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FICOU TUDO TÃO DIFERENTE SEM A SUA PRESENÇA: DIÁLOGOS COM A ESCRITA EPISTOLAR

EVERYTHING WAS SO DIFFERENT WITHOUT YOUR PRESENCE: DIALOGUES WITH EPISTOLAR WRITING

TODO FUE TAN DIFERENTE SIN TU PRESENCIA: DIÁLOGOS CON ESCRITURA EPISTOLAR

TOUT ÉTAIT SI DIFFÉRENT SANS VOTRE PRÉSENCE: DIALOGUE AVEC ÉCRITURE ÉPISTOLAIRE

RESUMO

No arquivo pessoal de Jessy Cherem (1929-2014), dois documentos chamam atenção: são velhas cartas enviadas de uma ex-aluna à professora catarinense, guardadas por mais de cinquenta anos. Ao investigar o caminho percorrido por essas missivas, foi possível localizá-las em seu retorno e destino final, com sua autora. Enviadas por uma estudante seus conteúdos demonstram a presença significativa de uma professora deixando marcas além da sala de aula. Esses rastros documentais aqui reconhecidos como portadores de memórias, pois testemunham histórias que possibilitam realizar aproximações, com momentos vividos, contextos políticos, sensibilidades e cenários educacionais, contribuindo assim com novos aspectos para a História da Educação.

Palavras-chave:
arquivo pessoal; cartas; História da Educação

ABSTRACT

In the personal archive of Jessy Cherem (1929-2014), two documents stand out: they are old letters sent from a former student to a teacher from Santa Catarina, kept for over fifty years. By investigating the path taken by these missives, it was possible to locate them on their return and final destination, with their author. Submitted by a student, its contents demonstrate the significant presence of a teacher leaving marks beyond the classroom. These documentary traces are here recognized as carriers of memories, as they testify to stories that make it possible to make approximations, with lived moments, political contexts, sensitivities and educational scenarios, thus contributing with new aspects to the History of Education.

Keywords:
personal archive; letters; History of Education

RESUMEN

En el archivo personal de Jessy Cherem (1929-2014), dos documentos, nótese: son viejas cartas enviadas por un ex alumno a un profesor de Santa Catarina, guardadas por más de cincuenta años. Para indagar en el camino recorrido por estas cartas, fue posible ubicarlas en su regreso y destino final, con su autor. Enviado por un estudiante, su contenido demuestra la presencia significativa de un maestro al dejar marcas en toda la clase. Estos rastros documentales son aquí reconocidos como portadores de memorias, por estos relatos presenciados que nos permiten hacer aproximaciones, con momentos vividos, contextos políticos, sensibilidades y escenarios educativos, aportando así nuevos aspectos a la Historia de la Educación.

Palabras clave:
archivo personal; cartas; historia de laeducación

RÉSUMÉ

Dans les archives personnelles de Jessy Cherem (1929-2014), deux documents se distinguent: il s'agit d'anciennes lettres envoyées par un ancien élève à un professeur de Santa Catarina, conservées pendant plus de cinquante ans. En enquêtant sur le chemin parcouru par ces missives, il a été possible de les situer sur leur retour et leur destination finale, avec leur auteur. Soumis par un élève, son contenu démontre la présence significative d'un enseignant laissant des traces au-delà de la salle de classe. Ces traces documentaires sont ici reconnues comme porteuses de mémoires, car elles témoignent d'histoires qui permettent de faire des approximations, avec des moments vécus, des contextes politiques, des sensibilités et des scénarios pédagogiques, apportant ainsi des aspects nouveaux à l'Histoire de l'Éducation.

Mots-clés:
archives personnelles; Cartes; histoire de l'éducation

Introdução

Encontrei uma carta. Diferentemente de tantas cartas que são rasgadas, queimadas, amassadas, perdidas e até mesmo roubadas, esta foi cuidadosamente guardada. Escrita para encurtar distâncias, amenizar ausências, comunicar saudades, é um elo de ligação entre uma professora e seus alunos (MIGNOT, 2010MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. Armanda Álvaro Alberto (1892-1974). Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massagana, 2010. , p. 11).

A produção de cartas segue habitualmente alguns protocolos, num rito de saudar, confessar saudades, contar novidades, falar de si ou de outros, lançar perguntas para aguardar respostas, despedir-se. Visto como artefatos culturais, tais documentos possibilitam a busca de vestígios, práticas culturais, hábitos e valores partilhados, repletos de representações de sua época (CUNHA, 2002CUNHA, Maria Teresa Santos. A escrita epistolar e a história da educação. In: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPED), 25., 2002, Caxambu. Anais [...]. Caxambu, 2002. Disponível em: Disponível em: http://25reuniao.anped.org.br/posteres/mariateresasantoscunhap02.rtf .Acesso em: 14 maio 2020.
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). Tão bem guardadas, muitas vezes se perdem no tempo, em meio ao pó, marcadas pelo desgaste, transformadas pela ação química, tornam-se amareladas e muitas vezes irrecuperáveis. Sequer sabem das riquezas que carregam, portadoras de sensibilidades, “lugar de memória”, conduzem histórias de vidas, visões de mundo “[...] permitem compreender itinerários pessoais e profissionais de formação, seguir a trama de afinidades eletivas e penetrar em intimidades alheias.” (MIGNOT, 2002, p. 115).

Neste aspecto pretende-se analisar duas cartas enviadas por uma ex-aluna para sua professora. No interior da escrita compartilhada, é possível estabelecer algumas aproximações com contextos políticos, rituais da sala de aula, indicações de leituras e confissões de sentimentos íntimos e amizades. Enviadas pela ex-aluna, Tanira Margarete Piacentini, no ano de 1967 para a professora catarinense Jessy Cherem. Tem como ponto de partida o município de Siderópolis (SC), nas datas de 30 de abril de 1967 e 7 de junho do mesmo ano, a destinatária recebia as cartas na cidade de Curitiba (PR).

As missivas aqui analisadas fizeram parte do arquivo pessoal da professora catarinense Jessy Cherem, as quais integram um projeto maior1 1 Pesquisa de doutorado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/Udesc). que teve como foco reconstruir passagens da vida desta personagem com o intuito de perceber as ressonâncias das campanhas educacionais para a formação de professores em Santa Catarina em especial a sua participação no Programa de Assistência Brasileiro-americano ao Ensino Elementar (PABAEE-INEP) que ocorreu entre os anos de 1956-1964 em todo país.

Ao organizar os documentos da pesquisa mencionada acima, abre-se espaço para reflexão sobre a importância de preservar documentos considerados banais, como cartas, bilhetes, cartões-postais, papéis soltos que parecem não encontrar seu lugar no arquivo pessoal, que interrogados e articulados com outras fontes documentais oferecem pistas sobre práticas culturais, além de ampliar conhecimentos sobre temas diversos. Nesse sentido este texto tem como intenção contar “[...] a história de sua descoberta, a história dos que escrevem, a história dos acontecimentos que evoca.” (DAUPHIN, 2002DAUPHIN, Cécile; POUBLAN, Daniele. Maneiras de escrever, maneiras de viver: cartas familiares no século XIX. In: BASTOS, Maria Helena Camara, CUNHA, Maria Teresa Santos; MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (org.). Destinos das letras: história, educação e escrita epistolar. Passo Fundo: UPF, 2002., p. 79). Com base nessas intencionalidades, vamos tentar conhecer alguns aspectos sobre as personagens dessas missivas.

As cartas: sobre a destinatária e a autora

Ler uma carta é entrar em uma história sem conhecer a primeira palavra, sem saber o que aconteceu antes nem o que chegará depois, o que disse antes, nem o que dirá depois (DAUPHIN, 2002DAUPHIN, Cécile; POUBLAN, Daniele. Maneiras de escrever, maneiras de viver: cartas familiares no século XIX. In: BASTOS, Maria Helena Camara, CUNHA, Maria Teresa Santos; MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (org.). Destinos das letras: história, educação e escrita epistolar. Passo Fundo: UPF, 2002.).

O encontro com essas duas cartas possibilitou conhecer aspectos sobre a destinatária, pistas sobre sua personalidade, traços de sua atuação profissional, capturar sensibilidades que outros documentos não haviam permitido até o momento. Ao falar das personagens dessas cartas, iniciamos pela professora Jessy Cherem, que as guardou durante quarenta e sete anos. Jessy Cherem foi uma professora catarinense12 2 Jessy Cherem é natural de Tijucas, município situado a cinquenta quilômetros de Florianópolis, onde foi morar com seus pais com apenas oito meses de idade. , que iniciou sua trajetória docente quando ainda era estudante no Colégio Coração de Jesus (CCJ), em Florianópolis, onde se formou Normalista no ano de 1948, antes mesmo de ter seu diploma, já lecionava de forma voluntária para as crianças asiladas no mesmo colégio (GOULART, 2012GOULART, Angélica da Silva. Jessy Cherem: a construção da trajetória de uma educadora em Criciúma na década de 1960. 2012. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) - Unesc, Criciúma, 2012. Disponível em:Disponível em:http://repositorio.unesc.net/bitstream/1/193/1/Ang%c3%a9lica%20da%20Silva%20Goulart.pdf . Acesso em: 28 jan. 2019.
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).

Aos 22 anos de idade, casa e passa a residir em Curitiba, onde permaneceu durante alguns anos. Durante este período continuou lecionando3 3 Jessy Cherem atendia em sua residência alunas com dificuldades, ministrando aulas particulares. e manteve contato com as Irmãs do CCJ. Após esse período, retornou a Florianópolis, onde começou a atuar na Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina, como técnica educacional. Em 1963 recebeu um convite para realizar um curso de aperfeiçoamento, como professora bolsista do PABAEE-INEP, permaneceu um ano em Minas Gerais realizando cursos, especializando em Educação Pré-Escolar, realizando estágios no Rio de Janeiro e em algumas escolas em Minas Gerais, com o objetivo de conhecer diferentes experiências educacionais.

Após concluir seu aperfeiçoamento, retornou a Santa Catarina e, assim como as demais bolsistas do PABAEE-INEP, deveria prestar serviços durante pelo menos dois anos, como forma de pagamento de sua bolsa, o que incluía a orientação educacional e formação de professores para o aperfeiçoamento e a difusão do conhecimento lá adquiridos. Esse feito acabou reverberando em sua atuação como representante do estado na tarefa da modernização educacional. Um desses desdobramentos foi o convite para atuar na diretoria de educação do município de Criciúma (SC), onde estabeleceu residência entre 1964 até o ano de 1967.

Em Criciúma, lecionou no Colégio Madre Tereza Michel e residiu inicialmente nas dependências da instituição, em um quarto organizado pelas irmãs e destinado à sua estadia. Além dessa instituição, ministrou aulas no Colégio São Bento e no Colégio Marista, todas escolas confessionais e particulares. Em paralelo, atuou como idealizadora do Jardim de Infância Pequeno Príncipe (funcionou entre 1964-1972), possivelmente o primeiro da rede particular da cidade. Ali pôde aplicar os conhecimentos adquiridos durante o curso de aperfeiçoamento do PABAEE-INEP.

Foi no período em que residiu e lecionou em Criciúma que sua trajetória se cruzou com a da autora das cartas. Tanira Margarete Piacentini estudou no Colégio Madre Tereza Michel, único nesse período no município de Criciúma que possuía o Curso Normal, onde Jessy lecionava as disciplinas de Didática, Legislação, Prática de Ensino, Psicologia Educacional e História.

No ano de 1961, Tanira prestou exame para ingressar no ginásio, e entre os anos de 1961 a 1964 estudou no Curso Ginasial, e entre 1965 a 1967 fez o Curso Normal. Depois de ter se formado professora normalista viajou, destinada à capital catarinense, em 1968 passou a residir e estudar no curso de graduação em Letras na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Antes mesmo de concluir a graduação, Tanira começa a lecionar como professora concursada no Colégio de Aplicação na Universidade, onde permaneceu em suas atividades docentes até o ano de 1995. Ao longo de sua trajetória profissional, atuou em cargos administrativos no Colégio e na Universidade, também lecionou no curso de Letras na UFSC, além de ter participado de diversos projetos voltados à formação de professores.

O contexto de escrita das cartas ocorreu em 1967, ano em que Tanira frequentava o Curso Normal como aluna da professora Jessy Cherem, que lecionou para sua turma a disciplina de História. No conteúdo das cartas, é possível perceber que Jessy era vista com respeito e admiração por Tanira e suas colegas. Sua trajetória e seu trânsito foram vistos como um diferencial entre as outras professoras, seus deslocamentos entre cidades e estados, tanto em busca de formação quanto divulgando os novos métodos de ensino, precursora de jardins de infância, podem ter sido um elemento para a admiração das alunas.

Jessy Cherem atuava durante esses anos na formação de professores, inclusive nas áreas rurais; foi representante do governo na tarefa do aperfeiçoamento docente; construiu um intercâmbio de saberes; marcou espaços e circulou em meio a redes de sociabilidades. Vista com admiração por suas alunas, representava mulheres que romperam com alguns padrões, possivelmente por ser uma professora da capital do estado, vindo lecionar nos municípios do interior. Sua atuação provavelmente questionou lugares e dimensões do público e do privado, representando mulheres que ousaram em atravessar fronteiras, afinal viajar era algo mais comum aos homens (SILVA; ORLANDO; DANTAS, 2015SILVA, Alexandra Lima da; ORLANDO, Evelyn de Almeida; DANTAS, Maria José(org.). Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas. Curitiba: CRV, 2015.).

Ao encontrar o arquivo pessoal de Jessy Cherem, foi possível mergulhar um pouco mais em sua trajetória, seus papéis apresentavam indícios de sua formação nos cursos do PABAEE-INEP (fotografias de caravanas das professoras em Minas Gerais, registros de aulas práticas e descontraídas), além de recortes de jornais, álbuns de fotografias e memórias, homenagens recebidas ao longo de sua vida, certificados, diplomas, relatórios, discursos e cartas, que assim possibilitam aproximar de sua vida e de seu percurso.

As missivas guardadas aguçam múltiplas curiosidades, uma delas refere-se à própria ação de guarda, que garantiu sua existência até os dias de hoje (2021), resistindo ao desaparecimento por mais de cinquenta anos. O encontro com as cartas e com aquelas de quem as escreveu tem uma história, que teve início em 2015, quando a autora deste artigo conheceu a pesquisa de Angélica da Silva Goulart (2012GOULART, Angélica da Silva. Jessy Cherem: a construção da trajetória de uma educadora em Criciúma na década de 1960. 2012. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) - Unesc, Criciúma, 2012. Disponível em:Disponível em:http://repositorio.unesc.net/bitstream/1/193/1/Ang%c3%a9lica%20da%20Silva%20Goulart.pdf . Acesso em: 28 jan. 2019.
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), Jessy Cherem: a construção da trajetória de uma educadora em Criciúma na década de 1960, que teve como objetivo compreender a trajetória de Jessy Cherem desde sua entrada no magistério até sua atuação na cidade de Criciúma. Ou seja, o enfoque foi dado às contribuições à educação criciumense empreendidas por Jessy. Para a consecução da pesquisa, Jessy concedeu à autora uma entrevista e apresentou diversos documentos sobre a sua vida profissional. Alguns desses documentos foram digitalizados pela pesquisadora e passaram a integrar o acervo documental do grupo de pesquisa História e Memória da Educação (GRUPEHME-Unesc). Foi assim que foi tido conhecimento das cartas, em meio digital. Foi feita a impressão das cartas, a autora passou a analisá-las mais detidamente, levou para algumas entrevistas para tentar identificar a autora, visto que quem as havia escrito assinou apenas como Tanira. Essas informações, além de seus conteúdos fascinantes e a escrita impecável só aumentavam o interesse de pesquisa.

Jessy Cherem havia falecido em 2014 e, quando a autora entrou em contato com seu arquivo pessoal por meio de seus familiares, as cartas já não faziam mais parte do conjunto documental. A ausência causou diversas questões: teriam sido destinadas ao fogo ou ao lixo 4 4 Cunha (2002). por Jessy em ato de se desapegar? Ou foram descartadas por seus familiares após a sua morte? Já em relação a sua guarda, fez-se a reflexão sobre o que levou Jessy a guardá-las ao longo de todos esses anos. Teria boas recordações do período em que lecionou em Criciúma? Seria uma forma de reunir fragmentos de sua atuação profissional? Tal ato sugere intencionalidades, de recordar momentos, pôr ordem na desordem. Afinal, para que se guarda? “Guarda-se para ter a vida reconhecida. Para testemunhar, reviver, eternizar.” (MIGNOT, 2010MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. Armanda Álvaro Alberto (1892-1974). Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massagana, 2010. , p. 15). E ainda tinha dimensão da importância desses guardados para a História da Educação catarinense?

Durante o desenvolvimento da pesquisa, foram entrevistadas alguns ex-colegas de trabalho, ex-alunos, pessoas que de algum formam conviveram com Jessy. Em conversa com a primeira entrevistada (no ano de 2018), a ex-aluna e professora Vera Maria Silvestre Cruz, foram levadas as cópias das cartas com o intuito de descobrir quem eram essas alunas que sentiam falta da professora. Prontamente Vera reconheceu a grafia e a assinatura, identificando a jovem normalista que assinava as cartas como Tanira. No decorrer do processo investigativo, reuniram-se informações, realizando uma operação de caça para conhecer quem as enviava, o desejo era saber mais sobre as cartas, o que estudavam, o que liam, como era a relação com a professora, entre outras questões.

Figura 1
Uma das cartas

Foi assim que se conseguiu o e-mail e um contato de telefone de Tanira. A autora entrou em contato primeiramente por e-mail, mas, não obtendo resposta, resolveu ligar. Na ligação, a pesquisadora foi contando sobre a pesquisa, sobre Jessy Cherem e o interesse de entrevistar suas ex-alunas. Tanira respondeu positivamente e aberta à pesquisa, mas, por problemas de saúde, não poderia atender de imediato. Em uma segunda ligação, estava fora do país, adiando por alguns meses aquela conversa que tanto a autora desejava. Em dezembro de 2019, finalmente conseguiu agendar uma entrevista em sua residência, em Florianópolis. Ao realizar a entrevista, além de conhecer algumas recordações que Tanira mantinha sobre aquele período, a pesquisadora foi surpreendida com um envelope e duas cartas que a aguardavam sobre a mesa. Segundo a entrevistada, após o falecimento de Jessy Cherem, seus familiares lhe procuraram para entregar aquelas correspondências retornando assim quase cinquenta anos para ela.

A triagem dos documentos por parte dos familiares é uma ação muito comum, muitas vezes ocorre a doação para distintos locais, ou para pessoas que o titular manteve alguma relação. De acordo com Bellotto (2006BELLOTTO, Heloísa Liberalli Arquivos permanentes: tratamento documental. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006., p. 88), “Os fundos de arquivo devem ser preservados sem dispersão, mutilação, alienação, destruição não autorizada ou adição indevida. Este princípio deriva do princípio da proveniência.” Ou seja, “Tais circunstâncias tornam praticamente impossível uma interpretação literal do conceito de ordem original, quando se trata de organizar e descrever documentos pessoais.” (MEEHAN, 2018MEEHAN, Jennifer. Novas considerações sobre ordem original e documentos pessoais. In: HEYMANN, Luciana; NEDEL, Letícia (org.). Pensar os arquivos: uma antologia. Tradução: Luiz Alberto Monjardim de Calazans Barradas. Rio de Janeiro: FGV , 2018., p. 305). De acordo com os próprios familiares de Jessy, algumas fotografias de seu arquivo pessoal foram entregues a eles, assim como as correspondências que recebeu em vida.

Nesse caso, é preciso levar em consideração que os documentos guardados por Jessy carregam intervenções que não são mais apenas as suas. Subjetividades e afecções se misturam e apresentam novas problemáticas. São acontecimentos, cenários educacionais, programas de formação de professores(as) que precisam ser compreendidos, utilizando retalhos de uma vida, embaralhados por outras pessoas. Farge (2009FARGE, A. O sabor do arquivo. São Paulo: USP, 2009., p. 58) expõe as riquezas, as fragilidades e o minucioso trabalho decorrente de pesquisas em arquivos, considerando que

Não se trata de descobrir nele, de uma vez por todas, um tesouro enterrado, oferecido ao mais esperto ou ao mais curioso, mas tomá-lo como um suporte que permita ao historiador buscar outras formas do saber que faltam ao conhecimento.

É nesse entrelaçamento de diferentes documentos que se dará a intriga da narrativa, uma história possível de seus percursos.

Ausência e presença: encurtar distâncias

Escritas por diferentes motivos e intenções, muitas cartas expressam em seus textos relações de afetividade5 5 Mas não só isso, existem infinidades de destinos, por motivos de trabalho, negócios, relações diplomáticas, entre outros. São escritas por diferentes ordens e de diversas formas e ritos epistolares. , carregam romances, mensagens entre amigos(as) e familiares, trazem à tona sentimentos e emoções. Enviadas para diminuir distâncias, "cartas movem-se entre presença e ausências, ao mesmo tempo em que, à distância, mantêm vínculos.” (BASTOS; CUNHA; MIGNOT, 2002CUNHA, Maria Teresa Santos. A escrita epistolar e a história da educação. In: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPED), 25., 2002, Caxambu. Anais [...]. Caxambu, 2002. Disponível em: Disponível em: http://25reuniao.anped.org.br/posteres/mariateresasantoscunhap02.rtf .Acesso em: 14 maio 2020.
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, p. 5).

Nas cartas enviadas a Jessy, sua ex-aluna expressa saudades que ela e suas colegas possuem da professora: “ficou tudo tão diferente sem a sua presença! Sentimos falta de nossas conversas, do nosso álbum, (aliás, muitas continuam a fazê-lo), das aulas informais e atraentes que a senhora nos dava” (PIACENTINI, 1967).

Nesse trecho, pode-se perceber a demonstração de saudades e carinho relatados por Tanira, e que possibilita inferir que Jessy possuía uma forma diferente de conduzir suas aulas, realizadas de maneira mais informal e atraente, permitindo estabelecer relações tanto aos discursos da renovação pedagógica quanto aos cursos que realizou no PABAEE-INEP. Durante a entrevista, Tanira comenta, que em um dos trechos da carta referia-se às novas alunas de Jessy em Curitiba: “[...] Tomara que elas não tenham a infelicidade de perder uma amiga, ou seja, ela fez isso ultrapassou o limite de ser uma professora a distância e ganhou a relação afetiva” (PIACENTINI, 2019).

Outro aspecto passível de análise no trecho acima diz respeito ao cotidiano escolar, quando a autora se refere à confecção dos álbuns de memórias. Tais álbuns se constituíam de práticas escolarizadas, produzidas durante as aulas. Possuíam diferentes formas e diversificados tamanhos, alguns mais luxuosos, outros nem tanto, eram destinados a guardar momentos, registrar memórias, recebiam pequenas cópias de sonetos, ganhavam decorações, mensagens religiosas, dedicatórias trocadas entre amigas, espaço para as recordações dos tempos de escola. (CUNHA, 2005CUNHA, Maria Teresa Santos. Copiar para homenagear, guardar para lembrar: cultura escolar em álbuns de poesias e recordações. In: STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Camara (org.). Histórias e memórias da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2005. v. III. p. 347-362.).

[...] permite considerar esta prática como um aspecto da cultura escolar da época já que se constituíam como saberes e experiências produzidas e vividas no ambiente da escola, eram por ela incentivadas e praticadas e, como tal, construtoras de história e instituidoras de lugares de memória (CUNHA, 2005CUNHA, Maria Teresa Santos. Copiar para homenagear, guardar para lembrar: cultura escolar em álbuns de poesias e recordações. In: STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Camara (org.). Histórias e memórias da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2005. v. III. p. 347-362., p. 348).

Os vestígios analisados na carta e nos documentos pessoais de Jessy Cherem indicam que a escrita e a organização dos álbuns foram algo praticado em suas aulas. Teria esse hábito adquirido durante suas aulas no CCJ, em Florianópolis, onde realizou o Curso Normal e depois incorporado à sua prática docente? Evidenciados no trecho da carta, parece que se apresentavam como uma diferencial das aulas de Jessy, bem como se tornou um hábito de escrita e organização mesmo depois de sua partida.

Ademais, outro trecho transcrito da carta convida a refletir ainda sobre suas aulas e o cotidiano escolar: “Às vezes eu penso que a senhora não foi embora, que vou vê-la entrar em nossa sala, com um enorme sorriso a iluminar-lhes as faces, e, em seguida, dar uma ‘bronca’ por causa do “barulho” durante a chamada” (PIACENTINI, 1967).

Demonstram assim pequenas pistas da chegada da professora à sala, aspectos de seu semblante e os ritos comuns e que permanecem nos dias de hoje, como a chamada. Testemunhando a ausência, a escrita da carta sugere o desejo de encurtar distâncias, afagar saudades, saber notícias, obter respostas, manter um vínculo mesmo que afastadas pela localização geográfica.

Estou para escrever-lhe há muito tempo, mas creio que a senhora me conhece… Sempre adiava esta oportunidade, não porque evitasse escrever-lhe, mas por acreditar ser difícil transpor os nossos sentimentos para o papel (PIACENTINI,1967).

Quem escreve faz o pensamento no outro como quem trava um diálogo (GOMÉZ, 2002), como o seu interlocutor e com o papel, em seu desabafo a autora anuncia a dificuldade de expor seus sentimentos, a demora em escrever como forma de driblar a saudade de sua professora. Para além das saudades, a carta possibilita tanto uma visão de quem escreve quanto uma representação de quem a se destina, entendidas pelas lentes de uma aluna em relação à sua professora, ao relatar as saudades e a falta que suas aulas faziam, expressa que a via como amiga.

Depois, lembro-me que nada disso é verdade, que a senhora partiu e talvez, não volte mais para o nosso lado. Mas a tristeza é menor ao pensar que a senhora está fazendo com muitos jovens o que fez conosco. Conquistou, aos poucos, em nosso coração, um lugarzinho que ficará sendo sempre seu. Tomara que elas não tenham a infelicidade de perder uma amiga, como aconteceu conosco (PIACENTINI,1967).

A presença de Jessy parece ter marcado a rotina escolar de suas alunas, mesmo após sua partida elas mantinham preservadas algumas memórias dos dias que conviveram com ela. Escrever cartas era uma forma de manter essas memórias no presente, compartilhar as recordações e o carinho que a classe tinha em relação à figura da professora, quem escrever está evocando lembranças e sentindo saudades.

Entrelaçando os vestígios encontrados nas cartas, com a entrevista concedida por Tanira Piacentini, a pesquisadora perguntou quais eram as recordações que ainda mantém sobre Jessy Cherem:

Em 1961, fiz exame para o Ginásio, de 1961 a 1964 cursei o ginásio, de 1965 a 1967 fiz o Curso Normal e em 1966 foi quando a Dona Jessy foi ser nossa professora. E nos surpreendeu muito o sotaque a primeira coisa. Vou te contar esta história, do sotaque, ela falava chiado por ser de Florianópolis, então a gente era guriazinha boba, brincava muito, gostava de brincar, nós escrevíamos História com x, em vez de ‘s’. Ela foi nossa professora de História, e quando ela falava sobre os Incas, os Maias ou culturas egípcias, achávamos diferente o sotaque (PIACENTINI, 2019).

Tanira narrando suas recordações fez a pesquisadora imaginar o contexto em que o enredo aconteceu. Criciúma em meados dos anos de 1960 vivia os reflexos do crescimento econômico e a expansão do meio urbano, entretanto a capital do estado representava o centro das atividades, com a presença das universidades e, principalmente, pelas questões político-administrativas. Muitas estudantes normalistas do Colégio Michel, assim como Tanira, vinham de municípios vizinhos, ainda menores que Criciúma, com costumes e tradições que carregam fortes traços da colonização, em grande parte italiana e alemã. Para aquelas jovens, o sotaque de Jessy e, possivelmente, os modos de agir, vestir, o fato de ter uma professora mulher, mãe e que viajava ‘sozinha’ podem ter sido questões que contribuam para ser vista como algo excepcional, para os dias que viviam:

A gente gostava muito, ela nos conquistou neste ponto, ela era uma pessoa muito humana, ela tinha uma conversa fácil com o adolescente, com aconselhamento, mas não era nada careta, até porque a gente não era uma meninada tansa (tansa é coisa de Florianópolis, risos), não éramos devagar. O colégio Madre Teresa Michel tinha um nível de exigência, era um Colégio com um nível de exigência intelectual bastante bom, então nossos professores eram realmente bons (nem todos, mas isso não interessa). A dona Jessy logo conquistou a gente por isso. Ela vinha de uma cidade grande, vinha de Florianópolis, [...] tinha passado por este curso em Minas Gerais, provavelmente conheceu a Universidade Federal de Minas Gerais que tinha um maravilhoso Centro de Educação, ainda tem, apesar de muita gente já ter se aposentado. Ela tinha essa facilidade de comunicação com os jovens, era uma boa professora, era uma pessoa que cativava a gente (PIACENTINI, 2019).

Um aspecto que chamou atenção nas recordações de Tanira é referente às várias menções que ela faz ao fato de Jessy ter sido uma professora que proporcionava a comunicação, de ter um diálogo mais próximo de suas alunas. O que leva a pressupor que com os outros professores elas não tinham a mesma abertura ou ainda que, possivelmente, a centralidade da relação professor-aluno estava ainda muito pautada na figura do professor.

Ao longo da entrevista, Tanira comentou sobre outros momentos com Jessy que ajudaram a conjecturar um pouco mais sobre sua atuação profissional ao longo de sua passagem por Criciúma, como também reforçavam a ideia da admiração de suas alunas, pelo fato de ser uma representante do governo na tarefa educacional, estando envolvida em cursos e palestras educacionais:

Não consigo lembrar muita coisa, mas em uma dessas cartas eu falo que ela foi a Siderópolis, foi dar uma palestra na AJUS, Associação da Juventude de Siderópolis, eu participava de tudo, do grupo de teatro, jogava vôlei era da seleção, era muito envolvida. Ela fez uma conferência, discutiu muito sobre namoro, ela ter feito uma conferência sobre a vida da juventude, foi muito interessante, bateu um papo.Todo mundo gostou, não lembro muito sobre o que se falava. Mas certamente eram coisas muito boas, porque o espaço que ela nos dava era grande, até porque na segunda carta eu falo a situação mundial, ela deveria ser essa pessoa que incentivava a gente a abrir a cabeça (PIACENTINI, 2019).

Os conteúdos das missivas e os aspectos rememorados por Tanira ajudaram a dimensionar tanto traços sobre a figura de Jessy Cherem quanto a conhecer um pouco mais o cotidiano em que essas alunas viviam. O conjunto das informações demonstrou uma atuação destacada, e o trânsito de uma professora em múltiplas tarefas, que assumiu como representante do governo, destinada à modernização educacional. Seu jeito de ser professora abriu caminho para que suas alunas vissem nela uma interlocutora, com quem poderiam expressar pensamentos, preocupações e sentimentos que podem ser percebidos a seguir.

“Essa guerra dos árabes e judeus consegue tirar-me o sono”: contextos políticos vistos em cartas

A segunda carta, datada de 7 de junho de 1967, possui um tom muito mais político, carregando preocupações que revelavam angústias de tempos em que se viviam conflitos no cenário geopolítico mundial. Com um rito inicial de saudação muito mais breve, a preocupação vem logo à tona, ao mesmo tempo que era possível perceber sinais que as missivas escritas pela ex-aluna estavam sendo respondidas por Jessy, percebidas no seguinte trecho: “Tudo bem? Faz um tempão que recebi sua carta, e só agora respondo. Não foi falta de tempo, não” (PIACENTINI, 1967). E logo anunciava suas preocupações:

Estou preocupada. Essa guerra dos árabes e judeus conseguiu tirar-me o sono. Todos dizem que lá está o estopim que fará explodir a 3ª guerra mundial. Fico pensando: será que esses homens, Nasser, o presidente de Israel, os outros chefões árabes, nunca sentiram amor? (PIACENTINI,1967).

A angústia e a aflição de Tanira referem-se aos conflitos ocorridos nos dias em que ela escrevia para sua ex-professora. Foram seis dias marcados por inúmeras mortes e diversos bombardeios. Ocorridos entre 5 e 10 de junho de 1967, tais conflitos ficaram conhecidos como “Guerra dos Seis Dias”, “Terceira Guerra Árabe-Israelense” ou “Guerra de Junho”, envolvendo Israel, Egito, Síria e Jordânia, consistindo em diversos ataques simultâneas a Israel, uma das respostas mais consistente à fundação do Estado sionista. Mesmo com a ofensiva, Israel venceu diversos combates e acabou incorporando áreas da Península do Sinai, da Faixa de Gaza, Cisjordânia, as Colinas de Golã e a totalidade da cidade de Jerusalém, aumentando as tensões nesses territórios e tornando-os pontos-chave nos conflitos que se arrastam entre judeus e árabes na Palestina.

Mesmo em continentes diferentes, as notícias circulavam e as ações da guerra repercutiram nos meios de comunicação, nas conversas informais e nas cartas, um clima de aflição e terror assolava o imaginário, como demonstravam as palavras da autora das cartas. Além disso, vivia-se em anos de constantes instabilidades internacionais, em meio a declarações e pactos firmados durante a Guerra Fria.

Dando continuidade ao assunto, a escrita conduz aos caminhos da literatura. Tanira continuava expressando suas preocupações, porém utilizando outros artifícios para fazê-lo, como pode-se perceber na seguinte passagem:

Se o mundo continuar assim, quando o Pequeno Príncipe voltar, e perguntar à flor “Onde estão os homens? ”, eu creio que ela responderá “Os homens? Um dia, eu os vi passar calçaram botas, e pisoteavam minhas irmãs. Levavam armas às costas. Foram. Eu fiquei, fiquei, à beira do caminho, esperando-os. Eles não voltaram”. E o Pequeno Príncipe chorava, talvez, com pena das pessoas grandes (PIACENTINI,1967).

A obra O pequeno príncipe 7 7 O livro O pequeno príncipe foi escrito pelo escritor francês Antoine de Saint-Exupéry. O título original é Le petit prince, publicado pela primeira vez em 1943, nos Estados Unidos. possui uma aceitação em variados públicos, tanto para crianças quanto para adultos, suas passagens são marcadas por mensagens que possibilitam diversas interpretações. Teria Jessy Cherem utilizado o livro em suas aulas? Como Jessy se apropriou dessa leitura? Um indício da relação que a professora estabeleceu com essa obra é o nome do Jardim de Infância que fundou no município de Criciúma, que se chamou “Jardim de Infância Pequeno Príncipe” Ou seria apenas uma leitura aleatória de Tanira naqueles dias angustiantes?

Presente no repertório de leituras de Tanira e inserido na narrativa de sua escrita, dá a entender que não apenas realizou a leitura, e que possivelmente o utilizava como uma filosofia de vida, como uma forma de enfrentar problemas.

Ainda se referindo ao contexto geopolítico, escreveu utilizando outra metáfora: “E essa ameaça da bomba? Parece a espada de Damócles, a pender sobre nossas cabeças” (PIACENTINI, 1967). A expressão “espada de Dâmocles” trata-se também de uma parábola moral, que representa a ideia que quem está no poder vive sob pressões ou sob um perigo iminente. No caso da carta, a utilização da expressão busca traduzir o medo, a ameaça referente aos conflitos internacionais e o uso da bomba atômica. Comentou ainda que desejaria muito ser ouvida pelas autoridades e, se assim fosse, proferiria as seguintes palavras:

Sr. 1º Ministro das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O Sr. Presidente dos EEUU da América. Em nome dos jovens em nome do amor, eu lhes ordeno: Acabem com a bomba atômica: Ah se êsses distintos senhores recioncinassem, pensassem, garanto que fariam o que esperamos dêles (PIACENTINI,1967).

Ao ir encerrando o assunto, para iniciar um novo, comentou que “Como resposta, eu fico com vontade de dar uma, a Roberto Carlos, e dizer ‘Que vão todos para o inferno’ (não todos eu me refiro, aos não poucos loucos que estão obcecados pela guerra)” (PIACENTINI, 1967). Será que ela se referia apenas à ameaça da bomba atômica? Aos conflitos no Oriente Médio ou também ao cenário nacional? Em 1967 e 1968, vivia-se anos marcados pela exceção, iniciados pela ditadura civil militar de 1964 e que perdurou longos anos de truculentas restrições à cidadania, expressos na censura e exílios políticos daqueles que resistiam ao regime imposto.

Apesar de não falar diretamente sobre o assunto, foi possível perceber, em suas angústias, vestígios de um tempo onde reinavam constante vigilância e cuidados. Manifestar-se contra o regime, mesmo em cartas privadas, poderia ser algo muito perigoso, em especial entre uma estudante e sua ex-professora.

Alguns rituais da escrita epistolar

Escritas por diferentes razões e de diversos modos, as cartas preservam quase sempre algo em comum: protocolos de escrita, que “criam um determinado cânone epistolar articulado em torno de três partes, abertura, desenvolvimento e fecho[...]” (GÓMEZ,2002, p. 38). As cartas destinadas a Jessy Cherem eram escritas à mão em folhas de caderno, expressando tanto a minúcia do gesto de escrever quanto uma ação corporal, refletindo um determinado cerimonial epistolar, que podem ser percebidos nos seguintes trechos: “A fim de não contribuir para o fim, vou terminando. Um abraço. Tanira.”, seguidos de longas observações.

P.S.1: Desculpa o assunto meio maçante, mas é que eu tinha que botar pra fora tudo o que estava me chateando. Eu não podia, e não posso dizer tudo o que penso a torto e a direito, porque serei chamada de subversiva. 2: A Liane escreveu para senhora? Recebeu a carta dela? 3: A Celite quer escrever para sr.ª, mas acha difícil fazê-lo. Lembra-se da minha carta? Porque a senhora não toma iniciativa e escreve para ela? Pode colocar alguns parágrafos pra ela na resposta desta, que eu não me zango não. Até vou gostar (PIACENTINI,1967, grifos meus).

A seguir, os textos transcritos das cartas parecem ser bem reveladores do cerimonial epistolar que deveria ser seguido, dos cuidados com a escrita e até mesmo da escolha da caneta:

Vou parando de tomar seu precioso tempo, resumindo numas palavras, tudo o que está para ser dito: Muito obrigada, Dona Gessy! Um abraço desta que foi sua aluna, e de quem a senhora roubou algo: parte do coração (por favor não o devolva, quero que fique sempre com a senhora). Tanira. P.S.nº1: Beijos à Liane, meus e de Clotilde. Recomendação à família. P.S.nº2: Dizem que é falta de educação escrever com caneta esferográfica. Às vezes é falta de caneta tinteiro. Estou enquadrada na última teoria. Como a senhora pode ver pelo borrão acima, eu continuo sem remédio. Apesar de todas as tentativas para a cura, parece que estacionei e desse mal não caio fora (PIACENTINI,1967, grifos meus).

Na carta há também um espaço reservado a indicações de leituras: “Estou lendo um livro sobre juventude, seus problemas e seus dramas. O título é: Os sete pecados da juventude sem amor. Ainda estou no prefácio, mas o que tudo indica o livro é ótimo.” (PIACENTINI, 1967). Todas essas informações colocavam em evidência a riqueza dos detalhes e cuidados com o ato da escrita, permitindo conhecer os rituais e protocolos, informando sobre o que liam, comportando pensamentos individuais e contextos sociais. Indicavam, assim, a escrita circunscrita em um tempo social, ao mesmo tempo que se revestia de sua natureza eminentemente pessoal. Apresentava-se assim como espaço rico de investigação ao historiador para problematização dessas fontes documentais.

Considerações finais

As cartas analisadas neste estudo abrem possibilidades para variadas leituras, são papéis guardados do passado, que carregam lembranças, relatos do cotidiano, indicações de leituras, marcas da escolarização, cenários políticos, preocupações, comportam sensibilidades. Proporcionam diversas interrogações, como os motivos de sua guarda ao longo dos anos, além de questões, que não serão possíveis de responder, evidenciam a multiplicidade de formas que podem ser analisadas.

O ato da guarda chamou atenção, inclusive da autora das cartas. Tal gesto permitiu observar uma maneira de preservar laços de afetividade, seleciona-se, preserva-se aquilo que se quer lembrar. Um meio para encurtar distâncias, geográficas, geracionais, entre professora e alunas. As missivas demonstram diálogos entre pessoas que estão distantes geograficamente, mas se mantêm em contato, preservaram na escrita laços de afecção. Esses laços foram mantidos por muito tempo e aos poucos conduziram a pesquisa ao encontro com a autora que por meio de suas memórias contribuiu com contexto de escrita no presente, reforçando traços sensíveis que ela e suas colegas sentiam pela professora.

Seus conteúdos deixam ver Jessy Cherem como uma professora que teve presença marcante na vida de suas estudantes, pois mesmo distante manteve-se presente, seja na continuidade de metodologias que eram desenvolvidas em suas aulas, como o álbum de recordações, seja pela presença da escrita em cartas. Intui-se por meio desses registros que foi uma professora com práticas e metodologias que se diferenciavam do que as alunas estavam habituadas. Essas marcas podem ser observadas na figura da professora, que aos poucos vai deixando de ser o centro no processo educacional, dando espaço para que as estudantes falem, perguntem, interajam. Essa abertura possibilitou conversar, ouvir histórias e conselhos, o que aproximou a professora e as alunas, criando laços de amizade, materializados na escrita epistolar. São indícios de uma professora que buscava sintonia com os pressupostos da chamada Escola Nova e suas estratégias para a “renovação” do ensino.

Por meio das análises realizadas, cabe refletir sobre o lugar das cartas para a produção do conhecimento, não como noção de verdade, e sim um espaço de possibilidades para a investigação dos historiadores. Atentando para as missivas como objetos construídos, artefatos culturais, com formas particulares da escrita, que estão inscritos no tempo, permeados de acontecimentos sociais e que não podem ser dissociadas do tempo em que foram produzidas. A carta de Tanira para Jessy, como mencionada na abertura do artigo, é escrita para encurtar distâncias, demonstra o elo entre a professora e as suas alunas (MIGNOT,2010MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. Armanda Álvaro Alberto (1892-1974). Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massagana, 2010. ).

Referências

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  • GOULART, Angélica da Silva. Jessy Cherem: a construção da trajetória de uma educadora em Criciúma na década de 1960. 2012. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) - Unesc, Criciúma, 2012. Disponível em:Disponível em:http://repositorio.unesc.net/bitstream/1/193/1/Ang%c3%a9lica%20da%20Silva%20Goulart.pdf Acesso em: 28 jan. 2019.
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  • MEEHAN, Jennifer. Novas considerações sobre ordem original e documentos pessoais. In: HEYMANN, Luciana; NEDEL, Letícia (org.). Pensar os arquivos: uma antologia. Tradução: Luiz Alberto Monjardim de Calazans Barradas. Rio de Janeiro: FGV , 2018.
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  • SILVA, Alexandra Lima da; ORLANDO, Evelyn de Almeida; DANTAS, Maria José(org.). Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas. Curitiba: CRV, 2015.
  • Tanira Margarete Piacentini. Entrevista concedida a Susane da Costa Waschinewski, em Florianópolis, no dia 12/12/2019
  • 1
    Pesquisa de doutorado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/Udesc).
  • 2
    Jessy Cherem é natural de Tijucas, município situado a cinquenta quilômetros de Florianópolis, onde foi morar com seus pais com apenas oito meses de idade.
  • 3
    Jessy Cherem atendia em sua residência alunas com dificuldades, ministrando aulas particulares.
  • 4
    Cunha (2002)CUNHA, Maria Teresa Santos. A escrita epistolar e a história da educação. In: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPED), 25., 2002, Caxambu. Anais [...]. Caxambu, 2002. Disponível em: Disponível em: http://25reuniao.anped.org.br/posteres/mariateresasantoscunhap02.rtf .Acesso em: 14 maio 2020.
    http://25reuniao.anped.org.br/posteres/m...
    .
  • 5
    Mas não só isso, existem infinidades de destinos, por motivos de trabalho, negócios, relações diplomáticas, entre outros. São escritas por diferentes ordens e de diversas formas e ritos epistolares.
  • 6
    Tais álbuns aqui entendidos como documentos produzidos pela cultura material escolar.
  • 7
    O livro O pequeno príncipe foi escrito pelo escritor francês Antoine de Saint-Exupéry. O título original é Le petit prince, publicado pela primeira vez em 1943, nos Estados Unidos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2021
  • Aceito
    16 Ago 2021
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