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Entre utopia e ação: O I programa Especial de Educação (I PEE) no estado do Rio de Janeiro

Resumo

As reflexões apresentadas a seguir resultam de estudos que vem sendo realizados, desde a última década, sobre os projetos educativos concretizados por Darcy Ribeiro em sua trajetória de político e gestor de realizações educacionais. Através de tais estudos, procuramos situar, analisar e interpretar os fazimentos do pensamento político e educacional darcyniano. Desta forma, ao inventariar a sua produção, a sua relação com Anísio Teixeira e seus projetos implementados, tencionamos uma das suas principais experiências no campo educacional: o I Programa Especial de Educação (I PEE), documento orientador que definiu a concepção e as ações do campo educativo cultural do governador eleito em 1983, no estado do Rio de Janeiro, o gaúcho e pedetista, Leonel de Moura Brizola. Nos movimentamos pelo percurso de Darcy Ribeiro pontuando a construção de uma das maiores e mais intensas propostas educativas realizadas no Brasil, o que deste modo, propiciou um alargamento da contribuição de Darcy Ribeiro para a história da educação fluminense.

Palavras-chave:
Darcy Ribeiro; História da Educação fluminense; pensamento educacional brasileiro; I Programa Especial de Educação (I PEE)

Abstract

Our reflections result from studies conducted since the last decade on Darcy Ribeiro's educational projects as a politician and manager of educational initiatives. Through these studies, we seek to situate, analyze, and interpret the “makings” of Darcy's political and educational thought. By inventorying his production, his relationship with Anísio Teixeira, and his implemented projects, we focus on one of his main experiences in the educational field: the I Special Education Program (I PEE), a guiding document that defined the conception and actions from the cultural educational field of Leonel de Moura Brizola, the Rio de Janeiro governor elected in 1983. We moved along Darcy Ribeiro's journey, punctuating the construction of one of the most significant and considerable educational proposals carried out in Brazil, which widened Darcy Ribeiro's contribution to the history of education in Rio de Janeiro.

Keywords:
Darcy Ribeiro; History of Rio de Janeiro Education; Brazilian educational thought; I Special Education Program (I PEE)

Resumen

Las reflexiones que se presentan a continuación son resultado de estudios que se han realizado, desde la última década, sobre los proyectos educativos llevados a cabo por Darcy Ribeiro en su carrera como político y gestor de logros educativos. A través de dichos estudios buscamos situar, analizar e interpretar las acciones del pensamiento político y educativo de Darcyn. De esta manera, al inventariar su producción, su relación con Anísio Teixeira y sus proyectos implementados, pretendimos una de sus principales experiencias en el campo educativo: el I Programa de Educación Especial (I PEE), documento orientador que definió la concepción y acciones. del campo educativo cultural del gobernador electo en 1983, en el estado de Río de Janeiro, el gaucho y peatón, Leonel de Moura Brizola. Avanzamos en el camino de Darcy Ribeiro, puntuando la construcción de una de las propuestas educativas más grandes e intensas realizadas en Brasil, que de esta manera proporcionó una ampliación del aporte de Darcy Ribeiro a la historia de la educación en Río de Janeiro.

Palabras clave:
Darcy Ribeiro; Historia de la Educación de Río de Janeiro; pensamiento educativo brasileño; I Programa de Educación Especial (I PEE)

Résumé

Les réflexions présentées ci-dessous résultent d'études menées, depuis la dernière décennie, sur les projets éducatifs réalisés par Darcy Ribeiro au cours de sa carrière d'homme politique et de gestionnaire de acquis éducatifs. À travers de telles études, nous cherchons à situer, analyser et interpréter les actions de la pensée politique et éducative de Darcyn. Ainsi, en inventoriant sa production, sa relation avec Anísio Teixeira et ses projets mis en œuvre, nous avons entendu l'une de ses principales expériences dans le domaine éducatif : le I Programme d'Éducation Spéciale (I PEE), un document directeur qui définissait la conception et les actions. Du domaine éducatif culturel du gouverneur élu en 1983, dans l'État de Rio de Janeiro, le gaucho et piéton, Leonel de Moura Brizola. Nous avons suivi le parcours de Darcy Ribeiro, ponctuant la construction d'une des propositions éducatives les plus vastes et les plus intenses réalisées au Brésil, qui a ainsi permis d'élargir la contribution de Darcy Ribeiro à l'histoire de l'éducation à Rio de Janeiro.

Mots-clés:
Darcy Ribeiro; Histoire de l'éducation à Rio de Janeiro; pensée éducative brésilienne; I Programme d'éducation spéciale (I PEE)

É hora de lavar os olhos para ver nossa realidade. É hora de passar o Brasil a limpo, para que o povão tenha vez. No dia em que todo brasileiro comer todo dia, quando toda criança tiver o 1° grau completo, quando cada homem/mulher encontrar um emprego estável em que possa progredir, se edificará aqui a civilização mais bela desse mundo. É tão fácil; estendendo os olhos no tempo, sinto na ponta dos dedos está utopinhazinha nossa se realizando. (Darcy Ribeiro)

A Escola Pública é a maior invenção do mundo, aquela que permite que todos os homens sejam herdeiros das bases do patrimônio mundial mais importante que é a cultura (Darcy Ribeiro, 1997RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997.).

Darcy Ribeiro (1922-1997) iniciou sua trajetória acadêmica na Faculdade de Medicina (1939), entretanto, sem vocação para a carreira médica, abandonou a faculdade em 1943 e iniciou a Escola de Sociologia e Política (SP), graduando-se em 1946. Em 1947 ingressou no Serviço de Proteção ao Índio (SPI), travando contato com o marechal Cândido Mariano Rondon, então presidente do Conselho Nacional de Proteção ao Índio. Nos anos seguintes, seus estudos etnológicos levaram-no a viver longos períodos entre comunidades indígenas.

Com a eleição de Juscelino Kubitschek, em outubro de 1955, para a presidência da República, Darcy Ribeiro foi convidado a colaborar na elaboração das diretrizes para o setor educacional do novo governo, trabalhando com o educador Anísio Teixeira. Após a saída da direção da seção de estudos do SPI, irá integrar o corpo docente da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFI) da Universidade do Brasil.

Através de indicação de Anísio Teixeira dirigiu, em 1957, a divisão de estudos sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), vinculado ao Ministério da Educação. Em 1959 Darcy foi encarregado de planejar a montagem da Universidade de Brasília (UnB) e a seguir, em 1961, com a inauguração da UnB, foi nomeado seu primeiro reitor. Em agosto de 1962, assumiu o Ministério da Educação e Cultura, sendo substituído na reitoria da UnB, por Anísio Teixeira.

Por ocasião do retorno do país ao regime presidencialista, em janeiro de 1963, sai do Ministério para assumir a chefia do Gabinete Civil da Presidência da República. Ao longo dos nossos estudos, objetivamos identificar as relações do processo político nacional, com as trajetórias desses dois educadores, desde o movimento da Escola Nova1 1 Inspirados nas idéias político-filosóficas de igualdade entre os homens e do direito de todos à educação, esses intelectuais viam num sistema estatal de ensino público, livre e aberto, o único meio efetivo de combate às desigualdades sociais da nação. dos pioneiros da educação.

Durante o primeiro governo Vargas (1930-45) estrutura-se um novo sistema educacional. O que se observa, é que a luta dos pioneiros ocupou papel relevante na defesa de um sistema nacional de educação, e o pós-1930 acabou se constituindo em um verdadeiro palco de disputa de orientações para a re-definição dos rumos da educação no país.

Os renovadores tiveram suas propostas derrotadas, e o período pós-1935, início do autoritarismo que teria no Estado Novo (1937-45) sua manifestação formal, atingiu diretamente Anísio Teixeira. Após a revolta comunista de novembro e a prisão do prefeito do Rio, Pedro Ernesto, sob acusação de envolvimento com a Aliança Nacional Libertadora (ANL), Anísio é então destituído da função de secretário-geral de Educação e Cultura da capital federal.

Por outro lado, os pioneiros estavam no centro das discussões, com propostas formuladas desde a década de 1920, que expressavam publicamente seu ideário no Manifesto dos Pioneiros da educação nova2 2 Além do redator Fernando de Azevedo, assinaram o documento: Afrânio Peixoto, A. de Sampaio Dória, J. Frota Pessoa, Anísio Teixeira, M. Lourenço Filho, Roquette Pinto, Júlio de Mesquita Filho, Raul Briquet, Mario Casassanta, Delgado de Carvalho, Ferreira de Almeida Júnior, J. P. Fontenelle, Roldão Lopes de Barros, Noemi da Silveira, Hermes Lima, Atílio Vivacqua, Francisco Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Cecília Meirelles, Edgar Sussekind de Mendonça, Armanda Álvaro Alberto, Garcia de Resende, C. Nóbrega da Cunha, Paschoal Leme e Raul Gomes. (1932).O documento redigido por Fernando de Azevedo, assinado por 26 educadores brasileiros integrantes do movimento de “renovação nacional”, defendiam com fervor cívico a escola pública, gratuita, laica e universal.

Ao mesmo tempo, tendo em vista a Campanha de Defesa da Escola Pública, desencadeada no final da década de 1950, uma “nova edição” do Manifesto, veio a público em 1959. Diferentemente de 1932, o “Manifesto de 1959” não se preocupou com questões didático-pedagógicas, admitiu válidas as diretrizes de 1932 e buscou um foco nas questões gerais de política educacional. As principais orientações determinavam que o ensino público deveria ser obrigatório e gratuito, considerando o espírito republicano. Por outro lado, assinalava a possibilidade de participação mais consciente, e de bases mais amplas, afirmando, pois, o aspecto social da educação, ao conclamar o Estado a assumir seus deveres de mantenedor do sistema escolar e construtor da identidade nacional.

Segundo Simon Schwartzman (1984):

O movimento da Escola Nova, sem se constituir em um projeto totalmente definido, estruturava-se ao redor de alguns grandes temas e de alguns nomes mais destacados. A escola pública, universal e gratuita ficaria como sua grande bandeira. A educação deveria ser proporcionada para todos, e todos deveriam receber o mesmo tipo de educação. Este ensino seria, naturalmente, leigo. Sua grande função era, em última análise, formar o cidadão livre e consciente que pudesse incorporar-se, sem tutela de corporações de ofícios ou organizações sectárias de qualquer tipo, ao grande Estado Nacional em que o Brasil estava se formando. (p.53)

Ainda se torna importante sinalizar que um dos grupos em defesa da escola pública, foi liderado por Anísio TeixeiraTEIXEIRA, Anísio. Educação é um direito. São Paulo: Nacional, 1967., inspirado na filosofia liberal pragmatista de John Dewey.3 3 John Dewey, seguindo a tradição empirista inglesa, transformou o pragmatismo antecedente em instrumentalismo, fundando um colégio experimental calcado pedagogicamente nesses princípios (MARTINS FILHO. 1997, P.291). O movimento escolanovista envolve diretamente Darcy Ribeiro o transformando em um dos herdeiros mais proeminente. O que se confirma pelo fato do antropólogo haver lutado por tal bandeira renovadora até o final de sua vida, em fevereiro de 1997.

A afinidade entre Anísio e Darcy em prol da escola pública para todos, é ressaltada por Bomeny (2003BOMENY, Helena. Salvar pela escola: Programa especial de educação. In: Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 55, 2007, pp. 41-67, p.11): “Darcy deixa em suas memórias e correspondências as confissões de afinidade com o educador e filósofo Anísio Teixeira, o programa de democratização educativa e os ideais da Escola Nova”.

Neste contexto de defesa da escola pública, laica, universal, republicana e gratuita, é importante ainda frisar que o nome de Anísio esteve associado não só aos ideais do movimento da Escola Nova4 4 A Escola Nova, inspirada em grande medida nos avanços do movimento educacional norte-americano, teve grande repercussão no Brasil. As ideias que lhe deram corpo foram sempre inspirados na concepção de aprendizado do aluno por si mesmo, por sua capacidade de observação, de experimentação, tudo isso orientado e estimulado por profissionais da educação que deveriam ser treinados especialmente para esse fim. Duvidando dos métodos convencionais acabava questionando toda uma maneira convencional do agir pedagógico. no Brasil, mas também às instituições de ensino superior como a Universidade do Distrito Federal (1935-39), à Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em 1951, à direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep) e, em 1955, à criação do Centro Brasileiro de Estudos Educacionais (CBPE). Foi também um dos principais idealizadores da Universidade de Brasília (UnB), em 1961.

Neste cenário, se intensifica a pressão para uma ampliação do sistema educacional, Bomeny (2003BOMENY, Helena. Salvar pela escola: Programa especial de educação. In: Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 55, 2007, pp. 41-67), sinaliza que:

O contexto democratizante do pós-guerra legitima a demanda de benefícios educacionais a segmentos maiores da população. O sentido estritamente pragmático conferido à educação como qualificação de mão-de-obra vai sendo ampliado em uma dimensão política de mais acesso da população carente aos benefícios públicos garantidos em um Estado de Bem-estar. (p.35)

Entretanto, será nas décadas de 1950-1960, que a demanda por participação política e social ganha fôlego e abre espaços para se pensar um projeto de educação nacional. De acordo com os estudos do historiador Eric Hobsbawn (1995HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.), após a II Guerra Mundial, o sistema capitalista tenta conciliar o liberalismo econômico com os preceitos políticos da socialdemocracia.

A idealização desses novos tempos decorre, em grande medida, do desenvolvimento no campo da industrialização. Nesse período, viabiliza-se a crença na possibilidade do progressivo desenvolvimento do país, envolvendo diversos segmentos, como a cultura e a educação, assim como os campos político e econômico. Logo, a participação política, via educação, se apresentava como um caminho promissor.

Ao considerar o contexto mundial e nacional de possibilidades “concretas”, Darcy aprofunda a questão teórica de Anísio, para forjar o intelectual do “fazimento”. Essa influência tão marcante, está presente nas próprias palavras de Darcy: “Se me perguntassem pelo encontro mais importante de minha vida, eu diria que foi o nosso encontro”. A própria práxis de Darcy confirma a afirmação, defensor das causas sociais e convencido de que o papel do intelectual implica em uma ação direta no corpo social, Darcy Ribeiro acrescentaria o conteúdo social e o fervor militante para desenvolver projetos e programas, que o pioneiro mantinha em pauta desde a década de 1920.

O que se observa é que o encontro das duas personalidades foi possível pela paixão reformadora que os animava e pela afinidade em defesa da educação pública. Tal aliança se consolidou no movimento em defesa da escola pública e na elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional só sancionada em 1961, depois de longo período no Congresso Nacional (1948-61).

O texto legislativo, reforça mais uma vez, que a influência de Anísio Teixeira na concepção de mundo de Darcy Ribeiro é inegável, conforme sua própria declaração (1984):

Aprendi com o mestre Anísio Teixeira - e a duras penas tento cumprir este preceito - que o compromisso do homem de pensamento é com a busca da verdade. Quem está comprometido com suas ideias e a elas se apega, fechando-se à inovação, já não tem o que receber nem o que dar. É um repetidor. Só pode dar alguma contribuição quem está aberto ao debate. (p.3)

Ao rever a trajetória de ambos, podemos afirmar que Darcy cumpriu uma agenda pública pautada por Anísio Teixeira: “O senhor não avaliará o quanto eu lhe devo e como sou consciente de que em educação nada mais fiz do que pôr meu dínamo de agitação, zumbindo em torno de suas ideias”. (Bomeny, 2003BOMENY, Helena. Salvar pela escola: Programa especial de educação. In: Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 55, 2007, pp. 41-67, p. 72)

Por outro lado, a visão de educação pública republicana de Darcy pressupõe outros aspectos concernentes às bases do desenvolvimento democrático da nação. O seu discurso “a educação é um instrumento de revolução”, tem como idéia-força a edificação do autoconhecimento nacional. Desta forma, apontando uma preocupação central na reorganização do Estado brasileiro, em busca de sua identidade nacional, ao denunciar o sistema de dominação ainda existente em nosso país. Logo, sua preocupação em reformar a educação consiste na construção educacional, através de um projeto de nação que possibilitasse o pleno exercício da cidadania, banhada em nossas raízes de negritude e indianidade.

Anísio Teixeira, um intelectual determinante na concepção educacional darcyniana, foi um destacado defensor da escola pública brasileira e do movimento escolanovista, influenciou diretamente Darcy Ribeiro e o transformou em um dos seus herdeiros intelectuais mais contundentes, defendendo a educação pública até o final de sua vida. Tal afinidade entre Anísio e Darcy pelos ideais renovadores é ressaltada por Bomeny (2003BOMENY, Helena. Salvar pela escola: Programa especial de educação. In: Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 55, 2007, pp. 41-67): Darcy deixa em suas memórias e correspondências as confissões de afinidade com o educador e filósofo Anísio Teixeira, o programa de democratização educativa e os ideais da Escola Nova (p.11).

Ao considerar, portanto, o contexto mundial e nacional de possibilidades “concretas”, Darcy aprofunda a questão teórica de Anísio, para forjar o intelectual do “fazimento”. Nas próprias palavras de Darcy: “Se me perguntassem pelo encontro mais importante de minha vida, eu diria que foi o nosso encontro”. A trajetória darcyniana confirma essa afirmação. Defensor das causas sociais e convencido de que o papel do intelectual implica em uma ação direta no corpo social, Darcy Ribeiro levaria a Anísio Teixeira o conteúdo social e o fervor militante para desenvolver projetos e programas que o pioneiro mantinha em pauta desde a década de 1920 (FARIA; SOUZA, 2008FARIA, Lia; SOUZA, Silvio. A Universidade necessária: Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. VI Congresso Ibero-Americano de História da Educação, Buenos Aires, Argentina, 2007.).

Para esses dois intelectuais, a escola pública era essencial à sociedade. Darcy Ribeiro afirmava que a escola pública é a maior invenção do mundo, pois permite que todos os homens sejam herdeiros das bases do patrimônio mundial mais importante que é a cultura (Bomeny, 2003BOMENY, Helena. Salvar pela escola: Programa especial de educação. In: Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 55, 2007, pp. 41-67, p. 76). Portanto, o que se observa é que a afinidade entre essas duas personalidades foi possível pela defesa da educação pública brasileira.

Atualmente fica evidenciado a importância da educação no processo de desenvolvimento e democratização do país. Nesta direção, é necessário destacar a contribuição de Anísio e Darcy, que defenderam até o final de suas vidas o compromisso com a escola pública. Portanto, o estudo do pensamento educacional de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro é sempre profícuo, trazendo elementos para problematizar questões que ainda permanecem em aberto na trajetória da história da educação brasileira, tais como o direito à educação e a qualidade social da educação oferecida nas escolas públicas.

Na análise dos dois trechos observa-se a preocupação com a criança do que hoje denominamos ensino fundamental, a quem deveria ser dispensada uma formação completa, calcada em atividades intelectuais, artísticas, profissionais, físicas e de saúde, além daquelas de cunho ético-filosófico (formação de hábitos e atitudes, cultivo de aspirações).

Tal formação completa defendida por Anísio Teixeira tem como base a formação para o progresso e para o desenvolvimento da civilização técnica e industrial. Aspectos referentes aos ideais político-desenvolvimentistas, o que constitui pressuposto importante do pensamento/ação liberal. Nesse sentido, a formação completa da criança - via educação - teria como meta a construção do adulto civilizado, pronto para encarar o mundo do trabalho e seus desafios.

No Brasil, podemos apontar que foi com Anísio Teixeira, na década de 1950, que se iniciaram as primeiras tentativas de implantação de um sistema público de escolas em tempo integral, consubstanciada em uma formação completa. No entanto, a experiência não se multiplicou. Igualmente a proposta dos CIEPs, no Estado do Rio de Janeiro, nas décadas de 1980 e 1990, bem como a dos Centros de Atenção Integral à Criança (CAICs), em nível nacional na mesma época, não se mantiveram como opção viável, não persistiram de forma mais consistente e duradoura.

Nossos estudos sinalizam a concepção de Anísio Teixeira ao criar o Centro Educacional Carneiro Ribeiro: não bastava dar acesso à escola; para que o projeto de educação firmado no desenvolvimento científico e tecnológico avançasse, era preciso formar para o trabalho e para a sociedade. E para que tal acontecesse, a escola deveria funcionar em tempo integral, com uma formação que viabilizasse esse projeto (COELHO, 2009COELHO, L. M. C. C. História (s) da educação integral. Em aberto, Brasília, v.22, n.80, p.83-96, abr 2009.).

Desta forma, quando colocamos em perspectiva os projetos de Anísio Teixeira e de Darcy Ribeiro, verificamos que a proposta era ao mesmo tempo semelhante e distinta: semelhante, na perspectiva de oferecer atividades diversas das tradicionalmente entendidas como características da educação formal; distinta, na tentativa de integrar o que estamos denominando de atividades escolares e outras atividades, ainda, de fazê-lo no mesmo espaço formal de aprendizagem, que possuía três blocos. No bloco principal, com três andares:

(...) as salas de aula, um centro médico, a cozinha e o refeitório, além das áreas de apoio e de recreação. No segundo bloco, fica o ginásio coberto, com sua quadra de vôlei/basquete/futebol de salão, arquibancada e vestiários. Esse ginásio é chamado de Salão Polivalente, porque também é utilizado para apresentações teatrais, shows de música, festas etc. No terceiro bloco, de forma octogonal, fica a biblioteca e, sobre ela, as moradias para alunos residentes (RIBEIRO, 1986RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997., p. 42)

No trecho constata-se que, enquanto Anísio Teixeira pensou em um espaço escolar bipartido - escolas-classe e escolas-parque - para agregar as atividades que compunham sua concepção de formação completa, Darcy Ribeiro, nos CIEPs, procurou congregá-las no mesmo espaço, situação que promoveria maior integração entre as atividades educativas desenvolvidas pela escola, bem como possibilita entendê-las - todas - como componentes curriculares inerentes a essa formação do aluno nesse espaço escola (FARIA; SOUZA, 2008FARIA, Lia; SOUZA, Silvio. A Universidade necessária: Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. VI Congresso Ibero-Americano de História da Educação, Buenos Aires, Argentina, 2007.).

De acordo com Nunes (2009), concebido por Anísio Teixeira, o primeiro centro de educação popular do Brasil foi criado por um governo estadual e contou com o apoio do governo federal, por meio do Centro Regional de Pesquisas Educacionais da Bahia, vinculado ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep). A concepção do Centro Educacional Carneiro Ribeiro também esteve na base da organização do sistema escolar de Brasília, traçado por Anísio Teixeira e que fazia parte da sua proposta de um plano diretor de educação do governo federal para todo o País. Na década de 1950, conjuntura na qual se ergueu o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, na Liberdade, uma das áreas mais pobres de Salvador, também nasciam projetos de educação popular que proliferaram na década seguinte por todo o país (NUNES, 2009).

A escola primária deveria oferecer às estudantes oportunidades diversificadas, compreendendo atividades de estudos, de trabalho, de sociabilidade, de arte e recreação. Logo, era preciso um novo currículo, um novo programa, um novo docente. Tratava-se, portanto, de expandir, do ponto de vista da cultura geral, a instrução primária - até então caracterizada praticamente como escola alfabetizadora - para que a população, sobretudo das áreas mais pobres, se integrasse no contexto de uma sociedade moderna (NUNES, 2009).

O Centro de Educação Popular foi nomeado pelo governador da época, Octávio Mangabeira, de Centro Educacional Carneiro Ribeiro, em homenagem ao educador baiano que se distinguira na formação de intelectuais brasileiros prestigiados, como Ruy Barbosa e Euclides da Cunha. Curiosamente ganhou o apelido de Escola-Parque e tornou-se assim conhecido - o que evidencia a força da inovação -, pois, no conjunto de prédios escolares que constituíam o Centro, a Escola Parque destacava-se do ponto de vista arquitetônico e pedagógico.

De acordo com Xavier (2000XAVIER, Libânea. O Brasil como laboratório: educação e ciências sociais no projeto do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais CBPE/Inep/MEC (1950-1960). Bragança Paulista: Ifan/ Cdaph/Edusf, 2000.), ao longo de nossa história republicana, vários foram os projetos de reconstrução nacional que disputaram sua legitimidade junto ao Estado do Rio de Janeiro. Enquanto que para Faria (2008FARIA, Lia. Chaguismo e brizolismo: territorialidades políticas da escola fluminense. Rio de Janeiro: FAPERJ: Quartet, 2011.) Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro foram dois educadores que tiveram uma participação efetiva no que tange ao movimento de defesa pela educação pública, que antecedeu o advento da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionada em 1961.

Os dois educadores materializaram suas ideias através de suas produções intelectuais e ocupações em cargos públicos. Anísio Teixeira com a criação da Universidade do Distrito Federal (UDF), acabou propiciando reações de intelectuais mais conservadores da época. Darcy Ribeiro, como encarregado do planejamento da Universidade de Brasília (UnB), em 1959, enfatizou a necessidade da transformação da educação, através de um comprometimento político que garantisse a todos o direito à educação.

A influência do mestre

De acordo com Faria (2008), Darcy sempre se referiu a Anísio como “o meu mestre”, conforme se pode verificar em sua carta datada de 28 de março de 1966, a Anísio Teixeira:

(…) respondo a isto e a perplexidade e poderia cair com a crença de que nos cabe a nós, a intelectualidade dos povos morenos e pobres, a função de nos fazermos um novo sal da terra. Tendo tarefas específicas de luta contra o atraso e a miséria que nos aqueceram o peito por décadas, nós, os deserdados e discriminados que não possuímos bombas temos uma autoridade moral de importância decisiva neste mundo em crise de valores. (...) por que o senhor não escreve uma carta de pito geral ecumênica. Fale em nome de W. James, de Dewey aos ianques. (...) E fale como caboclo do sertão sanfranciscano, último reduto de romanidade (ACERVO FUNDAR).

Assim, Darcy Ribeiro mostrava-se indignado com os rumos da organização mundial nos planos econômico, político, social, cultural e, principalmente, educacional. Ao discutir a concepção educacional de Darcy Ribeiro, se revelam as influências que a constituem e os possíveis impactos na construção do I PEE. Para tanto, assinalamos que certamente foi a principal marca na constituição do pensamento educacional darcyniano, a figura do educador Anísio Teixeira.

Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro idealizaram e implantaram duas propostas que marcaram significativamente a História da Educação brasileira. Anísio na década de 1950, com sua Escola-Parque na Bahia, Darcy mais de 30 anos depois, nos anos 1980 no estado do Rio de Janeiro com os Centros Integrados de Educação Integral (CIEPs). Os dois pensaram e ergueram escolas republicanas, escolas de horário integral, escolas que visavam a Educação Integral dos alunos, propondo uma universalização do acesso e do direito à Educação de qualidade social.

Como assinala Xavier, Darcy compreendeu mais tarde a importância da pós-graduação:

Aprendi, sobretudo, que o principal produto da pesquisa cientifica não é a dissertação nem a tese- e nem mesmo o artigo ou livro que contribuem para ampliar o saber - mas a formação de gente capacitada para usar o método cientifico. Gente que só se consegue preparar ali onde se pesquisa, mas onde pesquisador se ocupa também das tarefas do ensino. (RIBEIRO apud XAVIER, 1999XAVIER, Libânea. O Brasil como laboratório: educação e ciências sociais no projeto do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais CBPE/Inep/MEC (1950-1960). Bragança Paulista: Ifan/ Cdaph/Edusf, 2000., p. 236)

Darcy foi apresentado a Anísio por intermédio de um amigo comum, Charles Wagley5 5 Charles Wagley, antropólogo americano, viveu no Brasil por vários anos, tendo inclusive dirigido o Programa de Migração e a Divisão de Educação Sanitária do Sesp (Serviço Especial de Saúde Pública) durante a Segunda Guerra Mundial. , que trabalhava com Anísio no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), onde estava sendo criado o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE). Conheceram-se durante uma palestra de Darcy sobre a vida social dos índios Ramkokamekra (RIBEIRO, 1997RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997.). De acordo ainda com suas Confissões (Ribeiro, 1997RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997.), foi durante esse primeiro encontro intelectual, que nasceu uma grande afinidade.

Darcy Ribeiro nasceu em 1922, na cidade de Montes Claros, interior de Minas Gerais, perdeu o pai aos três anos de idade e foi criado por sua mãe, mestra Fininha, que era professora alfabetizadora de adultos. Em sua autobiografia, Darcy aponta que foi ajudando os alunos de sua mãe que ele se sensibilizou ao ato de educar: às vezes ajudava os recém-ingressos segurando a mão deles com um lápis para domesticá-la, afim de que aprendessem a escrever (RIBEIRO, 1997RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997., p. 31).

Quando Darcy rememora o período ginasial, o descrevia como pouco significativo, tendo chegado à universidade, em Belo Horizonte, com uma “inocência espantosa”, devido ao seu desconhecimento sobre o mundo. A seguir, ingressou no curso de medicina por influência da mãe e de um tio, que era médico, e aos seus olhos o homem mais inteligente e respeitado da cidade. Deu continuidade aos estudos do curso de medicina até o dia em que descobriu que poderia frequentar as disciplinas das outras faculdades. Encantou-se com as disciplinas de sociologia, direito, filosofia, literatura, história, entre outras. Foi assim, que conseguiu ser reprovado por três anos seguidos no curso de medicina. Após as reprovações Darcy recebeu um convite para ir estudar em São Paulo, tirou férias por um breve período e após algumas conversas com seus familiares resolveu ingressar no curso de sociologia, em 1942 (RIBEIRO, 1997RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997.).

Nesse período recebia uma bolsa de estudos, ajudando um dos professores da faculdade a elaborar uma bibliografia crítica sobre a literatura brasileira e alguns ensaios de interesse sociológico. Dessa forma, aprofundou suas leituras literárias para poder fazer a classificação dos livros. Durante esse trabalho que teve a oportunidade de aprofundar seu conhecimento sobre o povo e a cultura brasileira. Para Darcy, essa literatura deu a ele mais embasamento teórico do que todo o resto do curso: aquela bibliografia me puxava para dentro do Brasil e das brasilidades, me dando matéria concreta para nos pensar como povo e como história (RIBEIRO, 1997RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997.; p.125).

Logo que se formou em sociologia foi contratado como etnólogo da Seção de Estudos do Serviço de Proteção aos Índios. Assim se inicia outra fase em sua vida, que o marcaria profundamente, a de indigenista. A primeira tribo que observou foi a dos kadiwéu que moravam no Mato Grosso. Mais tarde, Darcy criou o Museu do Índio no estado do Rio de Janeiro, este museu acolheu o primeiro curso de pós-graduação de antropologia no Brasil. Muitas das ideias utilizadas por Darcy na educação tiveram origem naquelas observações acerca dos costumes e tradições das tribos indígenas. No entanto, somente começou a se interessar e trabalhar ativamente pela educação depois de conhecer Anísio Teixeira, de forma que as causas defendidas por Anísio se tornaram suas causas também.

Darcy teve sua primeira atuação no plano da educação ao longo do processo de construção, da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN, 1961), tendo atuado intensamente ainda na luta pela criação da UnB. Porém, a satisfação de ver a UnB erguida durou pouco tempo, pois o projeto original gestado por ele foi totalmente destruído pelo golpe militar de 1964. Darcy saiu do Brasil nesse mesmo período, partindo para o exílio, assim como muitos outros intelectuais e políticos que eram contrários ao regime que acabará de se instalar. Darcy permaneceu alguns anos no exílio, trabalhando na América Latina, desenvolvendo projetos para o ensino superior de diversos países, como Uruguai, Chile e Peru.

A (re) construção de uma utopia

Eu suponho e proponho aos senhores como explicação, que estamos diante de um caso grave de deficiência intrínseca da sociedade brasileira. A incapacidade de educar a população, como a incapacidade de alimenta-la, se devem ao próprio caráter da sociedade nacional [...] é uma sociedade enferma de desigualdade, enferma de descaso por sua população. Assim é por que aos olhos das nossas classes dominantes, antigas e modernas, o povo é o que há de mais reles. Seu destino e suas aspirações não lhes interessa, porque o povo, a gente comum, os trabalhadores jamais são levados em conta quando de tomam deliberações, senão como uma força de trabalho, destinada a ser desgastada na produção (RIBEIRO, 1984RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997., p. 43).

No retorno ao país, junto com Leonel Brizola, nas eleições para o governo do estado do Rio de Janeiro, em 1982, Darcy Ribeiro é eleito vice-governador, tendo como proposta central de campanha a melhoria da educação. Para efetivar suas ideias, criou o I Programa Especial de Educação (I PEE).

Nas suas palavras:

(...) escolões de tempo integral, cada um deles para mil alunos. Cristalizavam, pela primeira vez no Brasil, como rede pública, o que é o ensino público de todo o mundo civilizado, que não conhece a escola de turnos, mas só escolas de tempo integral para alunos e professores. Eles preenchem as condições necessárias indispensáveis para que as crianças oriundas de famílias pobres, que não tiveram escolaridade prévia, progridam nos estudos e completem o curso fundamental. Assegurar isso a todas as crianças é o único modo de integrar o Brasil na civilização letrada, dissolvendo as imensas massas marginalizadas de brasileiros analfabetos (Ribeiro, 1997RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997.:476).

Darcy tentava, assim, concretizar o ideal de escola em tempo integral que há mais de meio século Anísio Teixeira tentou, sem continuidade das administrações posteriores, implantar no Rio de Janeiro, Bahia e Brasília. De certa forma, Darcy6 6 Nos anos de 1990 começa a idealizar sua própria fundação: a Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR). Durante o período em que foi senador pelo Rio de Janeiro conseguiu aprovar a proposta de uma Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conhecida como Lei Darcy Ribeiro (Lei n°9.394/96). Morreu em fevereiro de 1997, vítima de câncer. Entretanto, as utopias e sonhos de Anísio-Darcy permaneceram circulantes, em meio ao cotidiano da escola pública fluminense. reviveu nos anos oitenta e noventa as intolerâncias que os opositores de Anísio faziam a seu desafio de criar uma escola de base pública, laica, democrática, como condição fundamental para consolidação da democracia.

Neste sentido, para Bomeny (2009BOMENY, Helena. Salvar pela escola: Programa especial de educação. In: Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 55, 2007, pp. 41-67), Darcy Ribeiro defendia os CIEPs como uma escola pública regular igual àquelas que existiam nos países que acreditavam no direito à educação para a maioria da população. O que foi tentado aqui era fato nos países que já haviam universalizado o acesso à escola pública. E não só as nações desenvolvidas poderiam ser exemplos, mas na própria América Latina, era possível encontrar, em outros países que não o Brasil, a concepção da educação integral, como padrão de escolarização nas séries iniciais, afirmava Darcy.

Para Darcy Ribeiro a escola pública brasileira ainda não podia ser considerada uma instituição genuinamente republicana, pois era extremamente elitista e não estava preparada para receber grupos sociais que permaneciam sem acesso a bens materiais e culturais. Essa escola - fruto de uma Pedagogia vadia, ignorava a interferência direta dessas carências no desempenho escolar dos mais pobres, exigiam assim da criança pobre o rendimento da criança abastada.

Ainda segundo Bomeny (2009BOMENY, Helena. Salvar pela escola: Programa especial de educação. In: Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 55, 2007, pp. 41-67), pode se observar dois marcos importantes na defesa do projeto do governo brizolista apontados por Darcy Ribeiro: o programa era destinado às crianças e, a escola em tempo integral deveria ser uma resposta ao que considerava a calamidade da escola brasileira.

Darcy convergia para as ideias de Anísio Teixeira (1968):

(...) nos faltou vigor para expandir a escola a seu tempo, quando os padrões eram bons ou razoáveis ainda, e o processo histórico não havia sofrido os impactos de aceleração dos dias atuais. Um persistente e visceral sentimento de sociedade dual, de governantes e governados, impedia que nos déssemos conta da urgência de expandir a educação do povo, parecendo-nos sempre que bastaria a educação das elites (p.61).

Portanto, identificando o Brasil como um país liderado por uma elite pouco comprometida com o povo, Darcy aponta para o processo de exclusão histórico vivido pelo povo brasileiro, que assentado sob o mito das três raças, exclui sistematicamente a maior parte da população das decisões acerca do rumo do país. Imputa-se aos mais pobres, uma incapacidade política, decisória e intelectual, tira-se da maioria dos brasileiros a possibilidade de transformar a sua própria realidade. Para Darcy o posicionamento tomado pelos opositores dos CIEPs poderia ser considerado um indicativo de que seu diagnóstico era verdadeiro.

Assim, observa-se ainda que o I Programa Especial de Educação (PEE) tinha como objetivo garantir à população seu direito democrático, de acesso a um ensino gratuito de qualidade social e adaptado às transformações vivenciadas naquele contexto histórico. Vale assinalar também que, Darcy Ribeiro, antes de ser vice-governador do Rio de Janeiro e implantar o I PEE, vinha de um percurso destacado na área da educação e já havia atuado em cargos públicos, no sentido de contribuir com a luta pelo acesso à educação pública no Brasil, possibilitando dessa forma uma maior inserção socioeducativa, dos segmentos tradicionalmente excluídos (STOCK, 2004STOCK, SUZETE DE CÁSSIA VOLPATO. Entre a paixão e a rejeição: A trajetória dos CIEPs no Estado de São Paulo - Americana. Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. São Paulo: Campinas, 2004.).

Paralelamente, naquele período de redemocratização a conjuntura política fluminense possibilitou a uma liderança tradicionalmente de esquerda a posse do governo do estado do Rio de Janeiro. Contudo, ao contrário do que se poderia esperar, setores progressistas buscam dificultar a implementação do Programa Especial de Educação, emergindo assim um combate que vai se tornar contínuo na história da educação fluminense naquele período. Deste modo, revelam-se projetos educacionais em disputa, e, além de uma divisão comum e tradicional entre direita e esquerda, é possível observar também uma disputa acirrada no interior da própria esquerda, que por sua vez, alimenta as reações conservadoras que combatiam o projeto dos CIEPs e as usa em causa própria (FARIA, 2011FARIA, L. CIEP: A Utopia Possível. São Paulo: Livros Tatu, 1991.).

Considerações finais

[...] não seria a escola pública, formadora de uma cidadania lúcida, de um corpo de trabalho moderno, a maior das invenções? Uma das dores que me doem é ver o descaso dos mandachuvas do Brasil para com a educação. Os idiotas não sabem que, sem alfabetizar toda criançada, o Brasil não dará certo. Ou será que eles não ligam, porque querem deixar o Brasil tal como é, porque para eles é mais lucrativo? (RIBEIRO, 1997RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997., p. 34).

Embora o I PEE fosse muito mais abrangente que o projeto dos CIEPs, ele acaba por ser identificado exclusivamente com esse projeto, reduzindo sua dimensão frente à sociedade e à comunidade escolar. Torna-se importante ainda destacar que embora o I Programa Especial de Educação e o projeto dos CIEPs sejam formulados no interior de um contexto político partidário específico, investigar suas marcas e impactos na educação fluminense naquele período é de grande relevância para contextualizar os rumos que os sistemas de ensino (municipal e estadual) tomaram após o fim dos governos Brizola. Portanto, rememorar tal momento histórico assinala as contradições políticas presentes até hoje nos sistemas públicos de educação.

Ao mesmo tempo, as representações em torno de figuras políticas como as de Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, provocavam, pelo estilo e pela paixão implicados nas suas ações um forte conjunto de críticas de seus adversários, somando-se a degradação da rede escolar, o aumento da violência urbana e as supostas pretensões “político-eleitoreiras” (BOMENY, 2008BOMENY, Helena. Salvar pela escola: Programa especial de educação. In: Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 55, 2007, pp. 41-67).

Tal panorama influencia fortemente as relações que se estabelecem entre a sociedade fluminense e a administração brizolista. Tanto Darcy Ribeiro quanto o próprio Brizola traziam fortes marcas políticas das situações vivenciadas anteriormente. Dentre os fatos marcantes podemos apontar: a Cadeia da Legalidade; as Brizoletas; o governo estadual no Rio Grande do Sul na trajetória de Brizola. E a atuação nas políticas públicas em prol dos índios, o ministério da Educação no governo de João Goulart e a criação da UNB por Darcy. Ambos eram homens públicos que atuaram em situações marcantes da história brasileira e que também possuíam um forte comprometimento com os ideais de universalização do ensino público.

Portanto, uma das hipóteses levantadas em nosso estudo é que tais marcas fomentaram, em grande medida, o pensamento educacional que irá construir o I PEE, ou seja, a união das crenças sociais e políticas desses homens regem a constituição dos princípios norteadores do programa educacional implementado naquele período. Por um lado, observa-se a influência dos ideais trabalhistas que formaram o engenheiro e político Brizola, por outro, a questão que se apresenta é a centralidade de uma escola de qualidade social e cultural. As duas vertentes, portanto, forjam um projeto que se caracteriza por um conjunto de ideias que visavam instrumentalizar os educandos para enfrentar o mundo competitivo do trabalho, ampliar o acesso aos bens culturais e possibilitar a construção e ampliação de uma capacidade crítica em relação à sociedade brasileira.

References

  • BOMENY, Helena. Salvar pela escola: Programa especial de educação. In: Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 55, 2007, pp. 41-67
  • COELHO, L. M. C. C. História (s) da educação integral. Em aberto, Brasília, v.22, n.80, p.83-96, abr 2009.
  • FARIA, L. CIEP: A Utopia Possível. São Paulo: Livros Tatu, 1991.
  • FARIA, Lia. Chaguismo e brizolismo: territorialidades políticas da escola fluminense. Rio de Janeiro: FAPERJ: Quartet, 2011.
  • FARIA, Lia; SOUZA, Silvio. A Universidade necessária: Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. VI Congresso Ibero-Americano de História da Educação, Buenos Aires, Argentina, 2007.
  • HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • O GLOBO. Cieps 21 anos. Rio de Janeiro: 28 de maio a 4 de junho de 2006.
  • RIBEIRO, D. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras , 1997.
  • STOCK, SUZETE DE CÁSSIA VOLPATO. Entre a paixão e a rejeição: A trajetória dos CIEPs no Estado de São Paulo - Americana. Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. São Paulo: Campinas, 2004.
  • TEIXEIRA, Anísio. Educação é um direito. São Paulo: Nacional, 1967.
  • XAVIER, Libânea. O Brasil como laboratório: educação e ciências sociais no projeto do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais CBPE/Inep/MEC (1950-1960). Bragança Paulista: Ifan/ Cdaph/Edusf, 2000.
  • 1
    Inspirados nas idéias político-filosóficas de igualdade entre os homens e do direito de todos à educação, esses intelectuais viam num sistema estatal de ensino público, livre e aberto, o único meio efetivo de combate às desigualdades sociais da nação.
  • 2
    Além do redator Fernando de Azevedo, assinaram o documento: Afrânio Peixoto, A. de Sampaio Dória, J. Frota Pessoa, Anísio Teixeira, M. Lourenço Filho, Roquette Pinto, Júlio de Mesquita Filho, Raul Briquet, Mario Casassanta, Delgado de Carvalho, Ferreira de Almeida Júnior, J. P. Fontenelle, Roldão Lopes de Barros, Noemi da Silveira, Hermes Lima, Atílio Vivacqua, Francisco Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Cecília Meirelles, Edgar Sussekind de Mendonça, Armanda Álvaro Alberto, Garcia de Resende, C. Nóbrega da Cunha, Paschoal Leme e Raul Gomes.
  • 3
    John Dewey, seguindo a tradição empirista inglesa, transformou o pragmatismo antecedente em instrumentalismo, fundando um colégio experimental calcado pedagogicamente nesses princípios (MARTINS FILHO. 1997, P.291).
  • 4
    A Escola Nova, inspirada em grande medida nos avanços do movimento educacional norte-americano, teve grande repercussão no Brasil. As ideias que lhe deram corpo foram sempre inspirados na concepção de aprendizado do aluno por si mesmo, por sua capacidade de observação, de experimentação, tudo isso orientado e estimulado por profissionais da educação que deveriam ser treinados especialmente para esse fim. Duvidando dos métodos convencionais acabava questionando toda uma maneira convencional do agir pedagógico.
  • 5
    Charles Wagley, antropólogo americano, viveu no Brasil por vários anos, tendo inclusive dirigido o Programa de Migração e a Divisão de Educação Sanitária do Sesp (Serviço Especial de Saúde Pública) durante a Segunda Guerra Mundial.
  • 6
    Nos anos de 1990 começa a idealizar sua própria fundação: a Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR). Durante o período em que foi senador pelo Rio de Janeiro conseguiu aprovar a proposta de uma Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conhecida como Lei Darcy Ribeiro (Lei n°9.394/96). Morreu em fevereiro de 1997, vítima de câncer. Entretanto, as utopias e sonhos de Anísio-Darcy permaneceram circulantes, em meio ao cotidiano da escola pública fluminense.

Editado por

Responsible editor:

Doris Bittencourt Almeida

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2023
  • Aceito
    05 Set 2023
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