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AÇÕES DO ESTADO NA TERRA INDÍGENA INHACORÁ (1950-1960): EDUCAÇÃO, TERRITÓRIO E TRABALHO

ACCIONES DEL ESTADO EN LA TIERRA INDIGENA INHACORÁ (1950-1960): EDUCACIÓN, TERRITORIO Y TRABAJO

STATE ACTIONS IN THE INHACORÁ INDIGENOUS LAND (1950-1960): EDUCATION, TERRITORY AND WORK

ACTIONS DE L’ÉTAT SUR LE TERRITOIRE AMERINDIEN INHACORA (1950-1960): ÉDUCATION, TERRITOIRE ET TRAVAIL

RESUMO

Neste artigo analisamos ações do Estado na Terra Indígena (TI) Inhacorá, RS, nas décadas de 1950 e 1960, período em que crianças desta TI foram levadas para a Colônia Estadual de Férias de Itaí e para o Internato Rural Pedro Maciel. Focalizamos práticas educativas, exploração do território e do trabalho, a partir da análise do documento Com os Caingangue do Inhacorá, publicado originalmente em língua alemã por Fischer (1959). Apresentamos, igualmente, a percepção Kaingang diante destas ações a partir de trabalhos dos professores-pesquisadores Kaingang Cipriano (2014), Miguel (2015) e Policena (2020). No período estudado o Estado utilizou como estratégia civilizatória a combinação entre a escolarização e o trabalho, resultando na redução drástica do território e das liberdades, na sistemática exploração do trabalho indígena e em danos significativos nos processos próprios de aprendizagem desse povo. No entanto, destacamos a resistência Kaingang frente a essas violências.

Palavras-chave:
Internato Indígena; Educação e Escola Kaingang; Internato Rural Pedro Maciel; Colônia de Férias de Itaí; Território e Trabalho Indígena

RESUMEN

En este artículo analizamos acciones del Estado en la Tierra Indígena (TI) Inhacorá, provincia de Rio Grande do Sul, Brasil, en las décadas de 1950 y 1960, período en el que llevaron a niños de esta TI a la Colônia Estadual de Férias de Itaí y al Internato Rural Pedro Maciel. Nos enfocamos en prácticas educativas, explotación del territorio y del trabajo, partiendo del análisis del documentoCom os Caingangue do Inhacorá, publicado originalmente en el idioma alemán por Fischer (1959). Presentamos, igualmente, la percepción Kaingang frente a estas acciones, a partir de trabajos de los profesores-investigadores Kaingang Cipriano (2014), Miguel (2015) y Policena (2020). En el período estudiado, el Estado utilizó como estrategia civilizatoria la combinación entre la escolarización y el trabajo, lo que resultó en una reducción drástica del territorio y de las libertades, en una sistemática explotación del trabajo indígena y en daños significativos en los procesos propios de aprendizaje de este pueblo. Sin embargo, destacamos la resistencia Kaingang frente a estas violencias.

Palabras clave:
Internado Indígena; Educación y Escuela Kaingang; Internato Rural Pedro Maciel; Colônia de Férias de Itaí; Territorio y Trabajo Indígena

ABSTRACT

This paper analyzes the State actions in the Inhacorá Indigenous Land, RS, in the 1950s and 1960s, a period in which children from this indigenous land were taken to Itaí State Holiday Camp (Colônia Estadual de Férias de Itaí) and to Pedro Maciel Rural Boarding School (Internato Rural Pedro Maciel). We focus on educational practices, exploitation of the territory and labor, based on the analysis of the document Com os Caingangue do Inhacorá, originally published in German by Fischer (1959). We also present the Kaingang perception of these actions based on the work of Kaingang teachers and researchers Cipriano (2014), Miguel (2015) and Policena (2020). During the mentioned period, the State used the combination of schooling and work as a civilizational strategy, resulting in a drastic reduction of territory and freedom, systematic exploitation of indigenous work and significant damage to the Kaingang people's own learning processes. However, we highlight the Kaingang resistance to these violences.

Keywords:
Indigenous Boarding School; Kaingang Education and School; Pedro Maciel Boarding School; Itaí State Holiday Camp; Territory and Indigenous Work

RÉSUMÉ

Cet article analyse les actions de l’État brésilien sur le territoire amérindien Inhacorá (État du Rio Grande do Sul) dans les années 1950 et 1960, quand des enfants ont été emmenés dans la colonie de vacances d’Itaí et dans le pensionnat rural Pedro Maciel. Les pratiques éducatives ainsi que l’exploration du travail et du territoire sont étudiées à partir du document Com os Cainguangue do Inhacorá [Avec les Amérindiens Cainguangues d’Inhacorá], publié originalement en allemand par Fisher (1959). Mais le travail s’intéresse également à la perception des professeurs-chercheurs cainguangues Cipriano (2014), Miguel (2015) et Policena (2020). Pendant la période en question, l’État a utilisé comme stratégie civilisatrice l’association scolarité/travail, avec pour conséquences une réduction drastique du territoire et des libertés, l’exploration systématique du travail amérindien et des dommages importants au niveau des processus d’apprentissage de ce peuple. Malgré tout, les Cainguangues n’ont pas accepté ces violences sans faire preuve de résistance.

Mots-clés:
Pensionnat pour Amérindiens; Éducation et école cainguangue; Pensionnat rural Pedro Maciel; Colonie de vacances d’Itaí; Territoire et travail amérindien.

INTRODUÇÃO1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Este artigo decorre da pesquisa de doutorado em curso, que trata da presença Kaingang na Colônia Estadual de Férias de Itaí e no Internato Rural Pedro Maciel entre os anos de 1957 e 1966. Localizadas no município de Ijuí/RS, ambas as instituições partilhavam a mesma equipe diretiva e estrutura física, já que o Internato funcionava durante o período letivo e a Colônia de Férias, no recesso escolar. A Colônia de Férias atendia principalmente crianças consideradas em situação de vulnerabilidade social, oriundas de diversos municípios da Região Noroeste do estado do RS e também de Porto Alegre. No Internato estudavam filhos dos agricultores de Ijuí e região, sendo que aqueles que residiam nas proximidades retornavam diariamente para suas casas e os alunos provenientes de outros municípios permaneciam na escola, em regime de internato.

Dados acessados até o momento, a partir de pesquisa documental realizada no Museu Antropológico Diretor Pestana, apontam que o primeiro contato de crianças da Terra Indígena (TI) Inhacorá com as referidas instituições se deu no âmbito da Colônia de Férias, no início de 1957, quando estiveram presentes 11 crianças Kaingang, sendo 6 meninos e 5 meninas. Enquanto os meninos frequentavam a Colônia de Férias e também o Internato, as meninas só frequentaram a Colônia de Férias, cuja presença ficou restrita aos anos de 1957 e 1958.

No Internato Rural Pedro Maciel, no período de 1957 a 1966, frequentaram 13 meninos da TI Inhacorá e entre 1957 a 1962, 7 meninos da TI Votouro. As crianças indígenas ingressaram no Internato em anos diferentes e o tempo de permanência variou entre 1 e 6 anos. Conforme relatos de pessoas que frequentaram a instituição (MIGUEL, 2015MIGUEL, Irani. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na visão dos anciões e lideranças do povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (São Valério do Sul, Rio Grande do Sul). Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2015. e POLICENA, 2020POLICENA, Adilson. O povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (RS) e o contexto histórico das suas lideranças. Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2020.), o ingresso se deu a partir da imposição do Estado, ocasionando a separação entre crianças e seus familiares e resultando em muito sofrimento. Não se trata de um internato pensado especificamente para os povos indígenas, como ocorreu em outras situações no Brasil e no exterior. No entanto, assim como outras experiências de escolarização, esta ação estatal se inseriu em um rol de medidas que visavam a redução dos territórios originários para o uso da colonização e a integração dos indígenas à sociedade nacional, principalmente como trabalhadores para atuar no processo de desenvolvimento capitalista, que no dizer do Estado significava civilizar.

Nesse sentido, o presente trabalho reflete a respeito destas ações estatais na TI Inhacorá nas décadas de 1950 e 1960, tendo como contexto os processos educativos e, focalizando igualmente as relações com o território e a exploração do trabalho indígena. Este recorte temporal deve-se à intenção de compreender as circunstâncias que culminaram com o afastamento das crianças Kaingang de sua comunidade e a imposição da escola que visava a civilização. A ação do Estado na TI Inhacorá é abordada, principalmente, a partir da análise de um documento publicado em 1959 por Martin Fischer no almanaque alemão Separata de Serra-Post Kalender, com o título Bei den Caingang am Inhacorá. O texto foi traduzido para a língua portuguesa por Antonio Steffen sob o título Com os Caingangue do Inhacorá.

Martin Robert Richard Fischer nasceu em 1887, na Alemanha, participou da 1ª Guerra Mundial e, em 1921 emigrou para o Brasil, permanecendo durante 8 anos no Rio Grande do Sul, retornando depois para a Alemanha. Em 1937, após um período na Argentina, voltou ao estado, residindo na cidade de Iraí até 1951, ano em que se mudou para Ijuí. Fischer trabalhou na área jornalística, sendo que na cidade de Ijuí, além de atuar como correspondente de jornais estrangeiros, também foi redator do suplemento alemão Die Serra Post e editor do almanaque Serra Post Kalender2 2 Pode ser traduzido como “Calendário do Correio Serrano”. Tratava-se de um anuário, em língua alemã, editado entre 1922 e 1978, com circulação no Sul do Brasil e no exterior. Continha artigos sobre educação, saúde, economia, agricultura, imigração alemã, biografias, anedotas, poemas e anúncios publicitários. (Disponível em: <http://jdunijui.blogspot.com/2012/07/die-serra-post-kalender.html>. Acesso em: 10 abr. 2022). , ambos do Correio Serrano3 3 Fonte: Kema- Informativo Mensal do Museu Antropológico Diretor Pestana. Ano I. Número 2. Julho 2008. .

Foi como editor do almanaque Separata die Serra-Post Kalender que, em 1959, Martin Fischer publicou a reportagem intitulada Bei den Caingang am Inhacorá. Conforme relata nesse texto, em fevereiro de 1958 ele passou um período na TI Inhacorá, cujo acesso foi facilitado devido a sua amizade com Olivério Gomes de Oliveira, que em 1957 havia sido nomeado administrador dessa reserva4 4 No Brasil, os territórios reconhecidos (ou demarcados) pelo Estado no século XX foram denominados reservas. Só a partir da Constituição Federal de 1988 que passam a se chamar Terra Indígena (TI). . Olivério residia no município de Santo Augusto, mas intermediou a estadia de Fischer na casa do funcionário Francisco Eickb, que morava com a esposa na reserva (FISCHER, 1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969.).

Importante salientar que o documento em questão foi originalmente publicado em alemão, destinado à leitura de não indígenas, de forma que é coerente supor que esteja imbuído das percepções e interesses desse grupo em relação aos povos indígenas. No entanto, metodologicamente alinhadas ao Paradigma Indiciário elaborado por Carlo Ginzburg (1989GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.), em que alerta sobre a importância do pesquisador estar atento aos indícios, às pistas, às minúcias, aos detalhes marginais que poderiam passar despercebidos em uma leitura desatenta, faremos um movimento no sentido de perscrutar indícios de resistências Kaingang frente às ações estatais.

Como ainda não efetivamos conversas com pessoas que experienciaram o período que analisamos, trouxemos a percepção indígena a partir de pesquisas realizadas pelos professores Kaingang Pedro Cipriano (2014CIPRIANO, Pedro. Terras habitadas por Kaingang, terras habitadas por colonos: a história da divisão da Terra Indígena Inhacorá. Trabalho de Conclusão de Curso - Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2014.), Irani Miguel (2015MIGUEL, Irani. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na visão dos anciões e lideranças do povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (São Valério do Sul, Rio Grande do Sul). Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2015.) e Adilson Policena (2020POLICENA, Adilson. O povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (RS) e o contexto histórico das suas lideranças. Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2020.), que registram em seus trabalhos as vozes dos que vivenciaram esta ação.

O texto está organizado em duas partes: a primeira, contextualiza ações envolvendo a demarcação e redução do território da Terra Indígena Inhacorá no período estudado; na segunda, o foco é a exploração do território e do trabalho indígena pelo Estado. Em ambas, tecemos relações com os processos educativos subjacentes às ações do Estado que visavam territorializar, civilizar e integrar os indígenas à comunhão nacional, disciplinando corpos e intervindo nos modos próprios de vivenciar tempos e espaços, além de introduzir a escola.

O ESTADO E OS TERRITÓRIOS KAINGANG

O povo Kaingang está entre os mais numerosos do Brasil, com uma população de cerca de 45.620 pessoas, segundo dados da SIASI/SESAI5 5 Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena e Secretaria Especial de Saúde Indígena, respectivamente. referentes ao ano de 2014 e publicados pelo Instituto Socioambiental6 6 Disponível em https://pib.socioambiental.org/pt/Quadro_Geral_dos_Povos. Acesso em 21/01/2022. . Atualmente, este povo ocupa territórios localizados nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Conforme pode ser observado no mapa a seguir, no Rio Grande do Sul são 13 TI demarcadas, entre elas a TI Inhacorá, localizada à margem direita do Rio Inhacorá, município de São Valério do Sul.

Figura 1-
Terras Indígenas Kaingang nas regiões Sul e Sudeste

Atualmente a extensão territorial da TI Inhacorá é de 2.843,38 hectares, onde vivem cerca de 1.200 pessoas e 330 famílias (SIASI/SESAI). Conforme será evidenciado no decorrer do artigo, esse território já foi significativamente maior, contudo, ações do Estado no início do século XX e de forma mais aguda na década de 1960, foram diretamente responsáveis pelo esbulho de terras indígenas.

Diante disso, é importante contextualizar as políticas direcionadas aos povos indígenas desenvolvidas pelo Estado em níveis federal e estadual. No final do século XIX e início do XX, a elite política e econômica inquietava-se com os rumos da agricultura brasileira; a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) propunha alguns caminhos para a revitalização do setor agrícola, mas os conflitos entre indígenas e colonos que aconteciam em várias regiões do país eram considerados estorvos à modernização do setor (LIMA, 1995LIMA, Antônio Carlos de Souza. Um Grande cerco de paz: Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.).

Nesse cenário, os povos indígenas eram percebidos - e, em parte, ainda são -, como empecilhos à expansão econômica, o que gerava discussões sobre qual deveria ser o papel do Estado brasileiro nesse contexto. As posições divergiam entre o Estado assumir de modo mais concreto ações de extermínio dos povos indígenas, que eram realizadas a mando de colonos e empresas que tinham interesse em estabelecer-se nos limites dos territórios indígenas, mas que repercutia negativamente no exterior e a ação catequizadora de missionários, que não era considerada eficaz quando direcionada a povos indígenas em conflito (ERTHAL, 1992ERTHAL, Regina Maria de Carvalho. Atrair e Pacificar: a estratégia da conquista. Dissertação (mestrado em antropologia social). 1992. 277p. Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ.).

Diante do impasse entre extermínio e catequização, houve o fortalecimento da ideia de proteção leiga, liderada por Cândido Rondon, que havia chefiado a Comissão de Linhas Telegráficas. No processo de mapeamento dos locais por onde passariam os fios, Rondon atravessou o território de vários povos indígenas sem hostilizá-los, o que contribuiu para ele ser visto como a pessoa capaz de dirigir o órgão de proteção e assistência aos povos indígenas que o governo federal planejava implantar para resolver os conflitos entre sociedade nacional e indígenas, especialmente nos estados em que as fronteiras econômicas estavam expandindo-se (ERTHAL, 1992ERTHAL, Regina Maria de Carvalho. Atrair e Pacificar: a estratégia da conquista. Dissertação (mestrado em antropologia social). 1992. 277p. Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro - RJ.).

Em 20 de junho de 1910, por meio do Decreto n.º 8.072, foi criado o Serviço de Proteção aos índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que a partir de 1918 passou a se chamar Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e Cândido Rondon foi convidado a assumir a chefia desse órgão. A primeira tarefa do SPI foi a pacificação dos Kaingang do oeste de São Paulo, visto que sua resistência paralisava a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, um empreendimento que permitiria a civilização e o progresso chegar no interior paulista. Nas duas primeiras décadas de funcionamento o SPI esteve sob a responsabilidade do Ministério da Agricultura; entre 1930 a 1934 fez parte do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio; de 1934 a 1939, do Ministério da Guerra e, ao final de 1939, voltou a compor o Ministério da Agricultura. Portanto, a agricultura, assim como nos primeiros 20 anos do órgão, voltou a ter uma posição importante, sendo percebida como uma maneira de assegurar que os povos indígenas tivessem a posse da terra. Porém, esse acesso à terra anunciado pelo SPI estava condicionado ao trabalho, à capacidade de fazê-la produzir na lógica capitalista, de

engendrar uma produção em larga escala voltada ao mercado interno e, para tanto, a mão de obra indígena seria peça-chave para alavancar esse novo modelo produtivo que se instalava nas áreas indígenas brasileiras. O trabalho e a necessidade de estabelecê-lo enquanto “hábito” entre os indígenas tornava-se imperativo. (VANIN, 2020VANIN, Alex Antônio. A violência como reguladora do trabalho indígena na ação do Serviço de Proteção aos Índios no Posto de Cacique Doble (1941-1967). Revista Escripturas, v. 4, n.2, p. 67-88, 2020., p.74).

Vanin (2020VANIN, Alex Antônio. A violência como reguladora do trabalho indígena na ação do Serviço de Proteção aos Índios no Posto de Cacique Doble (1941-1967). Revista Escripturas, v. 4, n.2, p. 67-88, 2020.), reitera a intrínseca relação entre a garantia da posse da terra e a integração dos indígenas à sociedade nacional, pois a terra era o elemento chave que, aliada à tutela do Estado, permitiria que os povos indígenas alçassem o ideal de desenvolvimento e civilização para eles almejado, já que predominava a crença de que o indígena possuía um caráter transitório e que sua extinção era inevitável. Este era também um contexto propício para a difusão de escolas nas terras indígenas ou para fazer com que crianças indígenas frequentassem instituições educativas, com o objetivo de civilizar, fixando-os ao território, mesmo exíguo, e inseri-los no mercado de trabalho.

É importante ressaltar que no Rio Grande do Sul havia uma distinção entre os Toldos e os Postos Indígenas de Assistência, Nacionalização e Educação, que na década de 1950 passaram a ser denominados apenas Postos Indígenas (PIN). Conforme Vanin (2020VANIN, Alex Antônio. A violência como reguladora do trabalho indígena na ação do Serviço de Proteção aos Índios no Posto de Cacique Doble (1941-1967). Revista Escripturas, v. 4, n.2, p. 67-88, 2020.), na região Sul do Brasil, eram chamados toldos os locais tradicionalmente ocupados por indígenas, tendo essa nomenclatura relação com a proximidade geográfica com a região platina e derivada da palavra toldería, utilizada para referir-se aos espaços ocupados por indígenas. Ao demarcar as terras indígenas, o governo do Rio Grande do Sul passou a utilizar o termo Toldo para referir-se às terras indígenas administradas pelo governo estadual, enquanto os Postos estavam sob responsabilidade federal.

Contudo, é necessário pontuar a similaridade existente nas políticas indigenistas implementadas nas esferas federal e estadual, o que Medeiros (2020MEDEIROS, Juliana Scheneider. As escolas do Serviço de Proteção aos Índios em Posto Indígenas Kaingang: entre os documentos oficiais e as vozes dos kófa. 2020. 337 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, 2020., p.84), aponta como um aspecto fundamental para que “o estado mantivesse relativa autonomia, ficando a seu cargo a administração de 11 toldos: Inhacorá, Guarita, Nonoai, Serrinha, Fachinal, Caseros, Lagoão, Carreteiro, Ventarra, Erechim, Votouro”. A autora chama a atenção para uma ação do governo estadual, que cerca de um mês após a criação do SPI tornou público um texto defendendo

o federalismo e a autonomia dos estados para resolver questões concernentes ao próprio estado e tratou especificamente da situação dos índios do Rio Grande do Sul, afirmando que os indígenas já viviam sob a proteção das autoridades locais. (MEDEIROS, 2020MEDEIROS, Juliana Scheneider. As escolas do Serviço de Proteção aos Índios em Posto Indígenas Kaingang: entre os documentos oficiais e as vozes dos kófa. 2020. 337 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, 2020., p.83).

Entretanto, conforme será evidenciado no decorrer deste artigo, as ações do governo do estado do RS direcionadas aos povos indígenas não divergiam de modo significativo da política desenvolvida pelo SPI.

Logo após a Proclamação da República, no Rio Grande do Sul, que estava sob governo do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e influenciado por princípios positivistas, houve demarcação de terras indígenas. Conforme Kujawa (2015KUJAWA, Henrique. Conflitos territoriais envolvendo indígenas e agricultores: uma análise histórica e jurídica de políticas públicas contraditórias. Curitiba: CRV, 2015., p.74-75), dois são os aspectos centrais que motivaram essas demarcações:

Por um lado, a orientação positivista de “proteção fraternal” das populações indígenas e, por outro, o desejo do Estado de demarcar claramente o território indígena, passando a considerar as demais áreas como devolutas e assim atender a demanda dos descendentes de imigrantes, principalmente italianos, que necessitavam de novas terras para possibilitar a ampliação da fronteira agrícola, abrigando as numerosas famílias que se formavam nas antigas colônias desde as últimas décadas do século XIX. (KUJAWA, 2015KUJAWA, Henrique. Conflitos territoriais envolvendo indígenas e agricultores: uma análise histórica e jurídica de políticas públicas contraditórias. Curitiba: CRV, 2015., p.74-75).

À medida que demarca os Toldos indígenas, o Estado formaliza o “espaço a ser ocupado por colonos e índios promovendo a territorialização dos primeiros e a reterritorialização dos segundos” (KUJAWA; TEDESCO, 2014KUJAWA, Henrique; TEDESCO, João Carlos. Demarcações de terras indígenas no norte do Rio Grande do Sul e os atuais conflitos territoriais: uma trajetória histórica de tensões sociais. Revista Tempos Históricos, v. 18, p. 48-66, 2014., p.8-9). Se por um lado, a demarcação garantia à população indígena uma determinada área, ela também implicou na significativa redução do seu território. Brighenti e Oliveira (2007BRIGHENTI, Clovis Antônio; OLIVEIRA, Osmarina de. Espaço, memória e territorialidade: as terras indígenas em Santa Catarina. Cadernos do CEOM. Ano 20, nº 27. - Chapecó - SC. 2007, p. 21-42.) salientam que essa era uma estratégia utilizada pelo Estado, visando a sedentarização e a pacificação dos povos indígenas: reservar parcela ínfima do que era seu território, de modo a fixá-los naquele lugar e, consequentemente, desocupar as terras para os não indígenas. Conforme Brighenti e Oliveira (2007BRIGHENTI, Clovis Antônio; OLIVEIRA, Osmarina de. Espaço, memória e territorialidade: as terras indígenas em Santa Catarina. Cadernos do CEOM. Ano 20, nº 27. - Chapecó - SC. 2007, p. 21-42., p.27), as reservas eram locais “previamente definidos, controlado e fiscalizado por agentes federais, onde seriam doutrinados pela administração oficial através do trabalho e da escolarização”.

Simonian (1980SIMONIAN, Ligia Lopes. Estado expropria e domina o povo Guarani e Kaingáng. In: Cadernos do Museu nº 09, 1980. Disponível em: Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/visualizacao-estado-expropria-e-domina-povo-guarani-e-kaingang . Acesso em jan.2021.
https://acervo.socioambiental.org/acervo...
), avalia que apenas no século XX, no estado do Rio Grande do Sul, os povos Kaingang e Guarani teriam perdido 50% do seu território. Segundo Carini (2005CARINI, Joel João. Estado, índios e colonos: o conflito na reserva Serrinha/norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Editora UPF, 2005.), 82% do território da TI Inhacorá foi expropriado pelo Estado entre as décadas de 1900 e 1960. Os residentes da referida comunidade estimam que antes da demarcação o território era de 14 mil hectares. Em 1910 houve uma expressiva redução, quando a Comissão de Palmeira fez a delimitação de 8.023 hectares. Em 1921 o toldo foi demarcado pela Comissão de Santa Rosa7 7 Houve alteração da Comissão a ocupar-se da demarcação do Toldo de Inhacorá. Simonian (1980) aponta como causa a influência exercida por não indígenas e companhias colonizadoras locais, que tinham interesse na redução dos territórios indígenas. , ficando com 5.859 hectares. Nota-se que os movimentos de expropriação de terras coincidem com processos de imposição da escola para os povos indígenas que, no século XX, foram predominantemente ações do Estado.

O mapa a seguir, apresenta em cor branca o território da TI Inhacorá no início da década de 1910 e em vermelho sua configuração atual, permitindo visualizar a expressiva espoliação de terras ocorrida nesta TI.

Figura 2:
TI Inhacorá em dois momentos: 1910 e atualmente

Fischer (1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969.) relata que em 1958 a reserva do Inhacorá estava dividida em Posto I e Posto II e a administração seguia essa organização, pois em cada posto “há um funcionário do administrador, cada posto tem também o seu próprio cacique, os quais, entretanto hoje são nomeados pela administração e em caso de fracasso também são demitidos” (FISCHER, 1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p. 5-6). O pesquisador Pedro Cipriano (2014CIPRIANO, Pedro. Terras habitadas por Kaingang, terras habitadas por colonos: a história da divisão da Terra Indígena Inhacorá. Trabalho de Conclusão de Curso - Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2014.) explica esta divisão, pactuada pelos próprios kaingang e que resultou em dois grupos vivendo numa mesma terra indígena: a parte localizada ao sul passou a ser chamada Gu, enquanto a outra, ao norte, foi chamada kynh.

Em 16 de fevereiro de 1962 o território da TI Inhacorá foi significativamente reduzido por mais uma investida do governo do estado: 3.049 hectares foram destinados a agricultores e 1.750 hectares destinados à Estação Agrícola Experimental da Secretaria Estadual de Agricultura. Após essa desapropriação a Terra Indígena Inhacorá ficou reduzida a 1.060 hectares. Dentre as múltiplas reverberações dessa ação, uma das mais imediatas foi a de obrigar que todos os Kaingang voltassem a residir no mesmo lugar no território, ou seja, na parte chamada Kynh, pois a chamada Gu foi espoliada e destinada a colonos.

Conforme Tedesco, Silva e Vanin (2017TEDESCO, João Carlos; SILVA, Gean Zimermann; VANIN, Alex Antônio. Fragmentos de uma história de conflitos entre indígenas e colonos no norte do Rio Grande do Sul - século XX. In: TEDESCO, João Carlos (Org), Conflitos agrários no norte do Rio Grande do Sul: indígenas e agricultores. Passo Fundo/Porto Alegre, EST Edições, 2017.), o despacho administrativo 15.703/61, durante o governo de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul, foi um dos grandes marcos do processo de desapropriação das terras indígenas, em que glebas das TI Ventarra, Serrinha (ambas extintas na época e retomadas na década de 1990), Inhacorá e Votouro foram destinadas à reforma agrária no ano de 1962. A “[...] Diretoria de Terras do Estado procedeu à subdivisão das áreas expropriadas e entrega, mediante contrato de compra e venda destas terras aos agricultores “sem-terra” (SIMONIAN, apudTEDESCO, SILVA e VANIN, 2017TEDESCO, João Carlos; SILVA, Gean Zimermann; VANIN, Alex Antônio. Fragmentos de uma história de conflitos entre indígenas e colonos no norte do Rio Grande do Sul - século XX. In: TEDESCO, João Carlos (Org), Conflitos agrários no norte do Rio Grande do Sul: indígenas e agricultores. Passo Fundo/Porto Alegre, EST Edições, 2017., p.241).

Em 1961, o Secretário da Agricultura do estado do Rio Grande do Sul, ao aprovar a proposta de criação de uma Estação Experimental na Terra Indígena Inhacorá, retirou 1.737 hectares, sob a justificativa “[...] de que os indígenas ‘seriam beneficiados, pois teriam um exemplo de trabalho’ em área contígua e que também poderiam ser recrutados como força de trabalho” (SIMONIAN, 1981, p. 146 apudTEDESCO, SILVA e VANIN, 2017TEDESCO, João Carlos; SILVA, Gean Zimermann; VANIN, Alex Antônio. Fragmentos de uma história de conflitos entre indígenas e colonos no norte do Rio Grande do Sul - século XX. In: TEDESCO, João Carlos (Org), Conflitos agrários no norte do Rio Grande do Sul: indígenas e agricultores. Passo Fundo/Porto Alegre, EST Edições, 2017., p.241). Em paralelo à redução do território, ocorreram diversas ações estatais visando à civilização Kaingang, entre elas, o trabalho e a escolarização, esta por meio da imposição do ingresso de crianças na Colônia de Férias e no Internato.

Em 1994, o território onde estava localizada a Estação Experimental foi retomado pelo povo Kaingang, de modo que atualmente a TI Inhacorá possui 2.843,38 hectares. No espaço onde anteriormente funcionava a sede da Estação Experimental, encontra-se em funcionamento o Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, que além do Ensino Médio, trabalha com formação de professores Kaingang por meio dos cursos de Ensino Médio-Curso Normal Kaingang; Curso Normal Kaingang- Aproveitamento de Estudos; e Curso Normal Kaingang-Complemento de Estudos. É importante destacar que o Instituto nasceu a partir da mobilização do povo Kaingang por cursos de formação de professores, buscando a valorização dos processos próprios de aprendizagem, da língua materna e da sua cultura.

EXPLORAÇÃO DO TERRITÓRIO E DO TRABALHO INDÍGENA PELO ESTADO

Uma estratégia do SPI e do governo do Rio Grande do Sul foi a demarcação das reservas, porém reduzindo os territórios indígenas e inserindo neles agentes do Estado com a função de controle, fiscalização e imposição do trabalho na lógica capitalista. Aliado ao trabalho compulsório, outras violências estavam em cena: castigos físicos e prisões, proibição de sair da reserva, alimentação em quantidade e qualidade inadequadas e utilizada para controle social, e também a violência contida na imposição cultural, que incluía a educação escolar.

Conforme Bringmann (2015BRINGMANN, Sandor Fernando. Entre os índios do sul: uma análise da atuação indigenista do SPI e de suas propostas de desenvolvimento educacional e agropecuário nos Postos Indígenas Nonoai/RS e Xapecó/SC (1941-1967). 2015. 452 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015., p.114), mesmo não havendo ação direta do SPI em todas as reservas indígenas do RS, este órgão “vai emprestar a sua ideologia da proteção fraternal para os projetos de proteção aos índios do governo estadual”. As ações do governo do estado do Rio Grande do Sul, alinhado às ações do SPI, visavam preparar os indígenas para assumirem postos de trabalho, “sob a rubrica de trabalhador nacional” (LIMA, 1995LIMA, Antônio Carlos de Souza. Um Grande cerco de paz: Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995., p.126). A escola para os povos indígenas, intensificada neste período, estava em acordo com os objetivos das demarcações e subtrações de terra por iniciativas do Estado, bem como a formação para o trabalho.

Adilson Policena, atual cacique da Terra Indígena Inhacorá, traz em seu trabalho de conclusão de curso (2020POLICENA, Adilson. O povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (RS) e o contexto histórico das suas lideranças. Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2020.), o relato do ancião Antônio Cipriano8 8 Antônio Cipriano foi o primeiro cacique pós-Funai, escolhido pelo próprio órgão estatal para assumir este cargo devido à sua fluência na Língua Portuguesa, adquirida no período de internato. (POLICENA, 2020). a respeito da ação estatal nessa comunidade. Antônio Cipriano, uma das crianças forçadas a estudar no Internato Rural Pedro Maciel nos anos de 1957-1962, considera o período em que o governo do estado do RS reduziu o território e desenvolveu ações que inseriam os indígenas ao trabalho forçado, como um dos mais difíceis vivenciados por esta comunidade. Pedro Cipriano (2014CIPRIANO, Pedro. Terras habitadas por Kaingang, terras habitadas por colonos: a história da divisão da Terra Indígena Inhacorá. Trabalho de Conclusão de Curso - Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2014., p.17), relata que em sua

[...] adolescência e juventude o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) tinha como uma das ações o recrutamento dos indígenas para os trabalhos credenciados, de forma que era muito difícil, mas como a questão financeira era uma necessidade para os indígenas e não tinha outra saída até então, era um trabalho forçado.

Antônio Cipriano conta à Policena (2020POLICENA, Adilson. O povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (RS) e o contexto histórico das suas lideranças. Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2020.), que o governo do estado construiu uma usina hidrelétrica na terra indígena, que fornecia energia elétrica aos seus funcionários que residiam na comunidade. Também nesse período foi montada uma serraria, movida pelo trabalho dos indígenas, que localizavam madeiras, as cortavam e carregavam até a serraria. O relato do ancião mostra sua dúvida em relação ao destino dessas madeiras: oficialmente, deveriam servir à construção de casas para as famílias indígenas, contudo, levanta a possibilidade de que tenham sido comercializadas pelos representantes do Estado, o que também é apontado por Fischer:

Inicialmente o financiamento da administração e das medidas de assistência tomadas por ele, ficavam a cargo do tesouro do Estado. Mas já em dois anos o rendimento das plantações comunitárias e venda ocasional de madeiras dos matos tornou possível equilibrar de algum modo o orçamento. Aumentando o progresso, finalmente se equilibrará de todo e em seguida havendo administração poupada, poderá ser conservado sempre nesse equilíbrio. E com isso se teria certa garantia de que os esforços de assistência frutifiquem definitivamente. Algumas centenas de índios Caingang no rio Inhacorá com isso poderiam ser tirados do estado atual de uma semi-civilização pouco satisfatório, incorporadas na civilização e com isso preservadas do extermínio. (FISCHER,1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p.28).

Estes registros são indícios da exploração realizada pelo Estado, não apenas do trabalho, como também das riquezas e dos recursos naturais nas terras indígenas, concretizando a concepção colonizadora, civilizatória e integracionista dessas ações.

As iniciativas do SPI e do governo do Rio Grande do Sul partiam da ideia de que o Estado “sustentava” os indígenas e que, portanto, os próprios indígenas deveriam suprir estes gastos com suas produções, advindas da agricultura, do arrendamento de terras e da venda de madeira. Visando controlar e explorar o trabalho Kaingang, o SPI utilizou um sistema reconhecido como “panelão”. Braga (2015BRAGA, Danilo. A história dos kaingang na luta pela terra no Rio Grande do Sul: Do silêncio, à reação, a reconquista e a volta para casa (1940-2002).2015. 143 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.) elucida que o sistema de panelão refere-se ao trabalho compulsório dos Kaingang nos postos e toldos (derrubar a mata, trabalhar nas lavouras) e esse nome deriva da utilização de grandes panelas para o preparo dos alimentos, que eram consumidos coletivamente por aqueles que haviam realizado os trabalhos determinados pelo chefe da terra indígena.

Segundo Veiga (2006VEIGA, Juracilda. O processo de privatização da posse da terra indígena. 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.portalkaingang.org/privatizacao_juracilda.pdf . Acesso em: jul. 2021.
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), na década de 1940, nas terras indígenas da região sul do Brasil o SPI introduziu a obrigatoriedade do trabalho nas “roças coletivas”, também chamadas “roças do Posto”. Nesse regime de trabalho os indígenas

[...] deixavam de ter direito de trabalhar em suas roças, sendo obrigados a trabalhar nas roças do posto “a troco de comida”: os homens para um lado, e as mulheres para outro. A comida era feita em uma cantina, em grandes panelas, o que levou esse sistema a ficar conhecido como “panelão”. (VEIGA, 2006VEIGA, Juracilda. O processo de privatização da posse da terra indígena. 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.portalkaingang.org/privatizacao_juracilda.pdf . Acesso em: jul. 2021.
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, p.5).

Apesar de o sistema de panelão ser mais comumente relacionado ao SPI, ele também estava presente nos toldos, inclusive no Toldo de Inhacorá. Fischer (1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p.27) aponta que na TI Inhacorá todos os adultos (com exceção das mulheres que possuíam filhos pequenos) deveriam trabalhar conforme as ordens da administração, “sob a vigilância dos seus chefes indígenas”. Nesse mesmo sentido, Veiga (2006VEIGA, Juracilda. O processo de privatização da posse da terra indígena. 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.portalkaingang.org/privatizacao_juracilda.pdf . Acesso em: jul. 2021.
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, p.5) registra que na TI Inhacorá (RS), “os mais velhos relatam que um dos índios, vestido com farda do exército e sobre um jipe camuflado, vigiava os trabalhadores indígenas, armado de espingarda”.

Aprofundando a reflexão acerca da vigilância realizada pelos próprios indígenas, Vanin (2020VANIN, Alex Antônio. A violência como reguladora do trabalho indígena na ação do Serviço de Proteção aos Índios no Posto de Cacique Doble (1941-1967). Revista Escripturas, v. 4, n.2, p. 67-88, 2020.) salienta que pode ser compreendida para além do cooptação e imposição do Estado, ou seja, como uma das estratégias dos indígenas perante um contexto desfavorável e, diante do qual poderiam evitar ou aliviar punições. “Vê-se aí também a agência Kaingang, buscando articulações que beneficiassem e permitissem, de alguma maneira, o exercício de poder dentro do posto” (VANIN, 2020VANIN, Alex Antônio. A violência como reguladora do trabalho indígena na ação do Serviço de Proteção aos Índios no Posto de Cacique Doble (1941-1967). Revista Escripturas, v. 4, n.2, p. 67-88, 2020., p.13).

Em relação ao trabalho realizado pelos Kaingang sob o jugo do Estado, Fischer (1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969.) diz que os homens se ocupavam de tarefas relacionadas à lavoura,

como corte do mato, preparação de roças, cultivo da terra, semeadura de plantações, limpeza das roças, execução de colheitas, construção de [palavra ininteligível] e pontes, conservação das máquinas e instrumentos agrícolas, cuidar do gado e dos cavalos. Às mulheres era destinado o trabalho culinário nas cozinhas comunitárias, fazer lenha e outros trabalhos mais (FISCHER, 1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p.27).

Os documentos mostram que havia um rígido controle sobre o tempo, demarcado precisamente nos horários de início e término do trabalho. Segundo Fischer (1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p.27), na TI Inhacorá, no verão o trabalho começava “uma hora depois do nascer do sol até pouco antes do pôr do sol com uma pausa de três horas no meio dia. No inverno esta pausa é consideravelmente mais curta”. No entanto, Fischer pondera que em nenhum caso o trabalho indígena é explorado de forma abusiva; “pelo contrário, as vezes quer parecer que as exigências poderiam ser aumentadas ainda, sem o menor prejuízo para os índios” (1959, p.27-28).

No entanto, os relatos dos indígenas que vivenciaram esse período mostram como sentiam a exploração e o controle. O pesquisador Kaingang Policena (2020POLICENA, Adilson. O povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (RS) e o contexto histórico das suas lideranças. Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2020., p. 36-37), apoiado no relato de Antônio Cipriano sobre o período em questão, mostra que “foi um tempo em que os indígenas foram tratados como escravos, pois eram usados para quaisquer serviços na comunidade, sobretudo, para o próprio Estado”. O próprio documento escrito por Fischer registra que em troca dos trabalhos realizados, os indígenas

recebem do govêrno do Estado regularmente comida para si e todas as pessoas da família [...] Recebem também cobertores e roupas como também remédios e assistência médica em caso de doença. Além disso lhes assinala um pedaço de terra medido com liberdade, no qual [palavra ininteligível] levantar o seu rancho e fazer uma plantação individual. Os rendimentos dessas plantações particulares lhes facultam os recursos financeiros, que muitas vezes não são nada insignificantes, dos quais precisam para satisfazer suas pequenas necessidades pessoais (FISCHER, 1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p.27-28).

Os relatos das pessoas que vivenciaram o sistema do panelão convergem no sentido de que a quantidade da alimentação disponibilizada era limitada e de péssima qualidade. A partir de diálogos com moradores da TI Inhacorá, Veiga (2006VEIGA, Juracilda. O processo de privatização da posse da terra indígena. 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.portalkaingang.org/privatizacao_juracilda.pdf . Acesso em: jul. 2021.
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, p.5) escreve que “na hora do almoço, tinham que entrar numa fila para ganhar uma porção de comida à base de feijão e farinha. Carne era servida uma vez na semana, em quantidade insuficiente”. Nesse sentido, os Kaingang consumiam apenas um pequeno quinhão dos alimentos que produziam, visto que a parte mais significativa era levada para fora da Terra Indígena; a eles não era explicitado o destino da produção e também não compartiam o lucro. Veiga (2006VEIGA, Juracilda. O processo de privatização da posse da terra indígena. 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.portalkaingang.org/privatizacao_juracilda.pdf . Acesso em: jul. 2021.
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), registra relatos, a partir das memórias dos Kaingang residentes na TI Inhacorá, que denunciam a exploração do trabalho e do território: embora tenham trabalhado, plantando em grandes áreas de terra, o dinheiro resultante da comercialização da colheita não era por eles acessado, assim como não recebiam salários.

Fischer (1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969.) discorre sobre a alimentação na terra indígena Inhacorá, e com o viés do colonizador infere às ações do governo estadual um caráter salvacionista, se alinhando à postura tutelar do Estado. O relato que segue, impregnado da visão de um homem branco e europeu da época, também revela a sua possível conivência com as ações controladoras do chefe do Posto.

Antes de tudo importava terminar a subnutrição total dos indígenas. O fornecimento regular, diário de alimentação simples mas substanciosa em horas determinadas teve um resultado completo em tempo inesperadamente breve. Ao mesmo tempo se fornecia roupa muito simples mas rústica e cobertores, para defender os índios de algum modo contra as intempéries do clima. Além disto foram entregues aos funcionários dos postos medicamentos e material de enfermaria, como também instrumentos para os primeiros socorros em casos de doença e acidentes. Com isso estavam dados os primeiros passos para aos poucos chegar à higiene necessária na reserva. Para que essas medidas fossem de valor duradouro e não exploradas abusivamente pelos indígenas, era indispensável restringir a liberdade. (FISCHER, 1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p.26. Grifos das autoras).

O documento revela uma ideia também evidenciada nos relatos de Kaingang que vivenciaram este período, qual seja a noção de ordem, que remete a um ideal de civilidade e urbanidade, princípios educativos da época. Nesse sentido, é possível compreender que estes princípios educativos que visavam a civilização dos indígenas, eram acionados para além das tentativas de imposição da educação escolarizada; estavam presentes nas ações cotidianas, envolvendo principalmente a imposição do trabalho em uma perspectiva capitalista.

Enquanto para os adultos era o domínio do uso do tempo aliado ao trabalho que visava a criação de um modo de vida capitalista que interessava ao Estado, para as crianças, além de afetadas pelas ações a priori destinadas aos adultos, a escola surge para cumprir esse papel. A educação escolar era percebida como uma ferramenta civilizatória estratégica, à medida que o alvo era as crianças, consideradas mais fáceis de civilizar do que um adulto, a partir do afastamento do convívio de sua comunidade (considerada má influência) para educá-las segundo os interesses do Estado.

Foi nesse contexto, que crianças Kaingang foram levadas a frequentar a Colônia Estadual de Férias de Itaí e o Internato Rural Pedro Maciel: afastadas de seus familiares, expostas a um contexto linguístico e cultural branco, com forte presença da religião católica, haja vista que periodicamente padres visitavam a Colônia de Férias e o Internato, ministrando aulas de catequese. Houve também batismo e primeira comunhão das crianças Kaingang nestas instituições. Outro aspecto observado no Internato e na Colônia de Férias eram ações de patriotismo evidenciadas, por exemplo, nos conteúdos das aulas e nos rituais de hasteamento à bandeira.

Veiga (2006VEIGA, Juracilda. O processo de privatização da posse da terra indígena. 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.portalkaingang.org/privatizacao_juracilda.pdf . Acesso em: jul. 2021.
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), a partir do relato de moradores mais velhos da TI Inhacorá, aponta que o Estado tentava controlar o tempo e os corpos dos indígenas, determinando, desde fora dos costumes próprios, a hora para o início e fim do trabalho, assim como o horário para as refeições. Estudos iniciais mostram que o mesmo procedimento submetia as crianças na Colônia de Férias e no Internato, com um austero controle do tempo e cronogramas rígidos para cada atividade.

Essa visão de civilização está ligada a um corpo ordenado, contido, educado, o que pode ser exemplificado pelos horários determinados para a alimentação: come-se quando o relógio determina, e não quando se sente fome. Bringmann (2015BRINGMANN, Sandor Fernando. Entre os índios do sul: uma análise da atuação indigenista do SPI e de suas propostas de desenvolvimento educacional e agropecuário nos Postos Indígenas Nonoai/RS e Xapecó/SC (1941-1967). 2015. 452 f. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015., p.239) corrobora com esta compreensão, ao afirmar que o sistema do panelão, para além de uma modalidade produtiva, constituía-se em um aparelho disciplinador, à medida que o direcionamento dos esforços e do tempo dos indígenas para a produção também contribuía para evitar ações indesejáveis, como o deslocamento para fora do Posto ou Toldo, ou ausentar-se do local de trabalho.

A face violenta desse sistema disciplinador e tutelar refere-se também à supressão da autonomia indígena. Por mais que Fischer (1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969.) defenda que a ação estatal contribuía com a segurança alimentar, na prática, introduziu hábitos exógenos à tradição alimentar Kaingang e favoreceu uma situação de privação e dependência, impedindo-os de trabalhar em suas roças ou de exercer outras atividades que lhes permitisse produzir ou comprar os seus alimentos. Lígia Simonian registra o relato do Kaingang M. Farias, morador da terra indígena Ventarra (extinta pelo Estado em 1962), onde também foi instituído o sistema de panelão, sobre o qual ele diz: “Lá se trabalhava mais para o posto do que para si; tinha panelão de 18, 20 dias.” (SIMONIAN, 1980SIMONIAN, Ligia Lopes. Estado expropria e domina o povo Guarani e Kaingáng. In: Cadernos do Museu nº 09, 1980. Disponível em: Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/visualizacao-estado-expropria-e-domina-povo-guarani-e-kaingang . Acesso em jan.2021.
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, p. 6). É importante observar que essas ações do Estado cumpriam a intenção de afastar os indígenas de suas práticas culturais originárias e criar uma dependência do Estado e dos modos de vida não indígenas.

É reconhecido que os povos originários tinham as suas tecnologias que, sem a destrutiva ação colonizadora, lhes permitia suprir suas demandas de forma autônoma. Contudo, a ação colonial, ao impactar na natureza e no modo de vida de cada povo (controle do tempo e das atividades, usurpação dos territórios e dos frutos do trabalho, por exemplo), geraram e ainda geram dificuldades aos coletivos indígenas em prover os recursos básicos. Nesse sentido, corrobora o registro de Fischer, ao reconhecer que

Inicialmente a gente no Inhacorá passava bem, enquanto viviam no estado de homens da natureza, não contaminado. Mas quando a civilização abriu a área, ao redor do seu “toldo”, o seu território da caça diminuiu sempre mais, tornando-se o sustento sempre mais escasso. (FISCHER, 1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p. 5-6).

Dentre as inúmeras formas de resistência Kaingang diante das violências estatais, “muitas famílias que não se adaptavam a este sistema fugiam ou saiam da Terra Indígena e iam trabalhar para os não-indígena, ou confeccionavam artesanatos para vender na região, sem previsão de volta” (POLICENA, 2020POLICENA, Adilson. O povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (RS) e o contexto histórico das suas lideranças. Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2020., p. 36-37). Policena utiliza a palavra fuga para denominar a saída dos indígenas de seu território, pois o controle sobre seus corpos e suas liberdades chegavam ao ponto de serem proibidos de deslocarem-se segundo seus desejos. A ausência de liberdade e do direito de dispor de seu tempo e espaço era uma violação praticada nos Postos e nos Toldos. Conforme Quintero e Maréchal (2020QUINTERO, Pablo; MARÉCHAL, Clémentine. Populações kaingang, processos de territorialização e capitalismo colonial/moderno no Alto Uruguai (1941-1977). Horizontes Antropológicos [online]. 2020, v. 26, n. 58. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-71832020000300005 . Acesso em jul. 2021.
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, p.173),

Os funcionários do SPI, porém, colocavam em prática todo um sistema de controle e vigilância interna para proibir os Kaingang de saírem da área. Quando alguns deles conseguiam escapar, a “polícia indígena” - identificada nas lembranças dos Kaingang com “capitão do mato” - ia atrás dos fugitivos até encontrá-los.

Havia uma guia de trânsito, instituída pelo Memorando Circular nº144 expedido em 1945 pela 7ª Inspetoria Regional do SPI, que impedia que os indígenas se afastassem das reservas sem que o chefe do posto assinasse e carimbasse essa guia. Caso tal procedimento não fosse seguido, os indígenas poderiam ser presos e castigados. Uma das razões para a proibição de sair das áreas reservadas sem a autorização do representante do poder estatal era, segundo Brighenti e Oliveira (2007BRIGHENTI, Clovis Antônio; OLIVEIRA, Osmarina de. Espaço, memória e territorialidade: as terras indígenas em Santa Catarina. Cadernos do CEOM. Ano 20, nº 27. - Chapecó - SC. 2007, p. 21-42., p.34), evitar que os “indígenas criassem outras aldeias fora do espaço reservado, ficando as terras circunvizinhas sem ameaças e livres para os colonos ocuparem”. Além disso, a restrição dos indígenas às áreas reservadas contribuía para que as ações civilizatórias fossem realizadas de modo sistemático e constante, alcançando um maior grupo de pessoas.

Fischer, ao relatar sobre a proibição dos Kaingang do Toldo do Inhacorá saírem da área reservada sem autorização, destaca que se tratava de uma ação legal, visto que no Art. 6 do Código Civil brasileiro de 19169 9 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em jul. 2021. , os silvícolas são considerados relativamente incapazes e “ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará á medida que se forem adaptando á civilização do paiz”. Acerca deste aspecto da legislação, Fischer destaca:

A cláusula da lei de proteção aos índios, conforme a qual os indígenas são considerados como menores no sentido da lei, fornecia base legal para tanto. Portanto foi proibido a todos os Caingang no Inhacorá o abandono da área dos índios sem a expressa permissão da administração. Naturalmente a execução da proibição faz grandes dificuldades e causa muita dor de cabeça no administrador. Com efeito é praticamente impossível impedir que os índios abandonem o território e se ponham a vagabundear. Só há a possibilidade legal, de fazê-los prender e reconduzir pela polícia indígena, o sargento e os cabos. [...] Dão os motivos mais diversos para a sua saída da reserva, mas o motivo principal será um impulso de movimentação, que lhes ficou no sangue como herança dos seus pais do tempo de vida nômade. Mas quanto mais se consolidam as condições na reserva, tanto mais também os índios mesmos [reconhecem?] as vantagens de um modo ordenado de alimentação, de maneira que se pode esperar que as fugas, embora não desapareçam de todo, tudo com o tempo poderão ser reduzidas a um mínimo. (FISCHER, 1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p.26).

O documento revela a concepção depreciativa que predominava em relação aos povos originários, algumas ainda vigentes atualmente e responsável por preconceitos e discriminações. Contudo, queremos destacar o trecho que pontua uma perversa inversão, ao relatar o incômodo decorrente das violências contra os indígenas: é o administrador que passa por “grandes dificuldades e muita dor de cabeça”, enquanto o sofrimento que a opressão colonizadora e a ausência de liberdade causada aos indígenas tampouco é mencionada. Conforme Geni Longhini, a branquitude

se utiliza de diferentes estratégias para tentar dar um sentido ético às suas violências. Uma delas é a inversão colonial. Ao dizer que indígenas e negros são perigosos, a branquitude oculta sua própria violência colonial; ao dizer que indígenas e negros são hipersexualizados, obliqua seu longo histórico de estupros como tática de guerra; ao afirmar que indígenas são invasores, invisibiliza sua própria ação de roubo e invasão e assim por diante. (LONGHINI, 2021LONGHINI, Geni Daniela Núñez. Da cor da terra: etnocídio e resistência indígena. Revista Tecnologia & Cultura - Rio de Janeiro - Edição especial - 2021 - p. 65-73., p.67).

É evidente a tentativa de justificar a violência e desqualificar as formas de resistência, julgando, classificando e inferiorizando os indígenas a partir de parâmetros coloniais, tentando isentar o colonizador. Nesse sentido, no trecho acima, Fischer afirma que os indígenas “dão os motivos mais diversos para a sua saída da reserva” e atribui estas fugas ao “impulso de movimentação”, afirmando uma concepção que retirava dos indígenas a condição de humanidade. O autor também defende que, ao não aceitar as (deploráveis) condições de trabalho, o kaingang o faz por preguiça, já que ao sair da Terra Indígena, fica a “vagabundear”.

Compreendemos a fuga em seu forte caráter de resistência, traduzindo a busca de viver fora do jugo colonial. Conforme Veiga (2006VEIGA, Juracilda. O processo de privatização da posse da terra indígena. 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.portalkaingang.org/privatizacao_juracilda.pdf . Acesso em: jul. 2021.
http://www.portalkaingang.org/privatizac...
), nas décadas de 1950 e 1960, houve a criação dos primeiros acampamentos indígenas nas áreas urbanas e nas margens de rodovias, sendo esses praticamente os únicos espaços fora da ação direta do Estado. Tentando compreender os motivos das fugas como resistência, percebemos que também se relacionam com a ida das crianças kaingang ao Internato e à Colônia de Férias; conforme relatos de Antônio Cipriano (MIGUEL, 2015MIGUEL, Irani. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na visão dos anciões e lideranças do povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (São Valério do Sul, Rio Grande do Sul). Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2015.), alguns pais que não concordavam que seus filhos frequentassem as referidas instituições, deslocavam-se à Itaí para buscá-los. Contudo, ao retornarem à TI Inhacorá, poderiam ser castigados e novamente ter suas crianças levadas para o internato, situação que fazia com que famílias decidissem não retornar para a sua comunidade.

Irani Miguel (2015MIGUEL, Irani. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na visão dos anciões e lideranças do povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (São Valério do Sul, Rio Grande do Sul). Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2015., p.19) diz que nos territórios demarcados e reconhecidos pelo Estado como terras indígenas, eram obrigados a abandonar seus rituais e incorporar, no cotidiano, a prática de “orações e cantar o hino nacional”. Nesse sentido, registrou o relato de Natálio Miguel:

Além disso, naquela época fomos impedidos de falar a nossa própria língua kaingáng, assim como foram proibidas danças em roda de fogo, contação de história em roda de fogo para as crianças, os adultos e para os guerreiros. Foi falado para toda a população que quem praticasse esses rituais poderia sofrer castigos. Muitos dos nossos irmãos indígenas foram presos na cadeia e alguns foram surrados com reio e amarrados nos palanques, mas mesmo assim muitos indígenas se levantavam contra eles e então os castigos eram muito piores. Ele diz que os indígenas naquele momento sofreram bastante, mas mesmo escondidos praticavam os seus costumes tradicionais. (MIGUEL, 2015MIGUEL, Irani. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na visão dos anciões e lideranças do povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (São Valério do Sul, Rio Grande do Sul). Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2015., p. 25-26).

O pesquisador Kaingang Danilo Braga (2015BRAGA, Danilo. A história dos kaingang na luta pela terra no Rio Grande do Sul: Do silêncio, à reação, a reconquista e a volta para casa (1940-2002).2015. 143 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.) chama a atenção para o fato de que os não indígenas se utilizavam de informações que possuíam sobre a cultura Kaingang para que as violências infligidas ultrapassassem a dimensão física e fossem ainda mais cruéis:

Esse tipo de castigo tem um objetivo que na história dos Kaingang passou muitas vezes despercebido para nós, mas vejamos a questão: na cosmologia Kaingang não se pode bater em alguém, em uma pessoa, com um pau ou uma vara de Rabo de Bugio, principalmente, em mulheres, porque pode essa correr o risco de ficar estéril, não ter mais filhos. Então, se estamos tratando de um grupo indígena que deveria desaparecer com as políticas praticadas pelo estado brasileiro, este usou para atingir seu objetivo os mais variados artifícios, inclusive de elementos que com certeza acabaram descobrindo da cosmologia do grupo Kaingang. (BRAGA, 2015BRAGA, Danilo. A história dos kaingang na luta pela terra no Rio Grande do Sul: Do silêncio, à reação, a reconquista e a volta para casa (1940-2002).2015. 143 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. p.62-63).

Os trabalhos de Miguel (2015MIGUEL, Irani. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na visão dos anciões e lideranças do povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (São Valério do Sul, Rio Grande do Sul). Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2015.) e Braga (2015BRAGA, Danilo. A história dos kaingang na luta pela terra no Rio Grande do Sul: Do silêncio, à reação, a reconquista e a volta para casa (1940-2002).2015. 143 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.) evidenciam as diversas dimensões das violências que o Estado cometeu contra o povo Kaingang, mas também as múltiplas formas de resistência: as fugas, a manutenção da língua e de aspectos culturais e mais recentemente, a retomada de territórios tradicionais. Atualmente, na TI Inhacorá, quase todos os moradores são falantes da língua Kaingang, o que evidencia a eficácia das estratégias de resistência. Não obstante, o trabalho de Miguel (2015) instiga reflexões e questionamentos a respeito das reverberações dessas violências na educação das crianças Kaingang, em um contexto em que ações que faziam parte das metodologias de ensino e aprendizagem do povo Kaingang eram proibidas. Além de privar as crianças das práticas educativas tradicionais, foi sendo incutida a ideia de que eram negativas e destituídas de valor formativo.

No documento analisado, Fischer (1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p.28) também expõe sua opinião acerca das ações educativas que o Estado deveria colocar em prática na Terra Indígena Inhacorá:

Os Caingang do Inhacorá, enquanto o posso julgar segundo as minhas conversas em que parte prolongadas com êles, são perfeitamente inteligentes. Sem dúvida porém tem dotes acima da média para habilidades manuais, para as quais as vezes manifestam um jeito digno de admiração. Talvez se deveria pensar em mandar um ou outro índio por um tempo mais prolongado à instrução artesanal. Com isso ao mesmo tempo em que poderiam resolver diversos problemas para a administração. Assim, p.ex. seguramente seria uma vantagem se a reserva dispusesse de alguns ferreiros formados, para conservar sempre em condições de uso os instrumentos agrícolas e as ferramentas. As forças humanas de trabalho então poderiam ser utilizadas ainda melhor.

Este trecho evoca a binaridade entre trabalho intelectual e trabalho braçal. Elogia as habilidades manuais dos indígenas em detrimento das intelectuais, principalmente ao sugerir que tenham acesso à instrução artesanal. São afirmações que corroboram com a lógica colonial, desvalorizando a inteligência e a humanidade indígena, deixando subentendido a supremacia da racionalidade branca e europeia.

Constatamos que no período estudado, havia escolas em outras TI, que desenvolviam práticas educativas civilizatórias, com dispositivos para disciplinar corpos, tempos e espaços. Na TI Inhacorá essa formação se dava a partir do trabalho e só em 1957 houve uma ação concreta de civilização a partir da educação escolar, ao levar as crianças ao internato.

Ainda é necessário o aprofundamento da pesquisa a fim de compreender melhor a opção do Estado do RS em enviar as crianças para o Internato e a Colônia de Férias, ao invés de abrir uma escola na TI Inhacorá. O Boletim Interno do SPI nº 26, de 31 de janeiro de 194410 10 Disponível em: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&Pesq=menores%20%c3%b3rf%c3%a3os&pagfis=9818. Acesso em: jul. 2021. , mostra que o órgão possuía conhecimento da existência dos internatos para indígenas nos Estados Unidos e Canadá, mas considerava haver inconvenientes, como o de "contribuir para a desorganização da família indígena, afastando do seu convívio permanentemente os menores índios".

Schweig (2018SCHWEIG, Ana Letícia Meira. Educação pela Terra: professores Kaingang, territorialidades e políticas estatais. 2018. 207 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Porto Alegre. 2018.), afirma que a primeira escola na TI Inhacorá teria sido instituída pela FUNAI no final da década de 1970. Entretanto, Fischer revela que na década de 1950 o estado do Rio Grande do Sul já havia demonstrado interesse na escolarização dos residentes desta comunidade, como pode ser deduzido na leitura do excerto que segue:

[...] havia a opinião de que a alfabetização dos adultos tinha pouca esperança de êxito. Por isso se desistiu dela, começando com a juventude. Ainda não puderam ser construídas as escolas planejadas e a mobilização [palavra ininteligível] de forças apropriadas para o ensino ainda é um problema sem solução. (FISCHER,1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p.26).

Fischer não se detêm em explicar as razões pelas quais o Estado considerava que a alfabetização de adultos não atingiria os objetivos desejados, entretanto, é possível supor que uma delas seja a resistência dos adultos acerca da imposição linguística e cultural da qual a escola tomava parte e que o Estado já realizava a partir do trabalho. Por outro lado, Fischer deixa antever uma ideia do contexto e das motivações que levaram algumas crianças Kaingang ao Internato Rural Pedro Maciel.

Mas fez-se um começo e um começo muito promissor, mandando em fins de 1957 um grupo e no início do ano de 1958 dois grupos de cada vez dez crianças para a colônia estadual de férias Itaí, perto de Ijuí, onde sob o cuidado carinhoso da experimentada diretora senhora Teresa Tarragô, não só lhes foram ensinados os primeiros princípios de disciplina, mas também foi despertado seu interesse pela escola e formação. As crianças que com isso tinham lançado o primeiro olhar para um mundo, que até então lhes fora desconhecido, voltaram simplesmente entusiasmadas, como me pude convencer na volta de um grupo. Com as suas narrações hão de contribuir não pouco, para acabarem com muitas desconfianças e preconceitos da parte da geração mais antiga contra um ensino ordenado. (FISCHER,1959FISCHER, Martin. Bei den Caingang am Inhacorá. Separata de Serra-Post Kalender 1959. Ed. Ulrich Löw, Ijuí, Rio Grande do Sul. Tradução do Pe. Antonio Steffen, S.J., para o Instituto Anchietano, 1969., p.26. Grifos das autoras).

As expressões “princípios da disciplina” e “ensino ordenado” evidenciam o caráter colonizador dessa ação educativa, na qual está subentendida a imposição da língua, costumes e religião não indígenas, que deveriam ser adotadas pelas crianças que, ao retornar ao convívio dos seus, seriam capazes de potencializar a ação civilizatória, ao influenciar os adultos. Em se tratando da imposição da disciplina, é possível identificar sua presença na escolarização (Internato e Colônia de Férias) e no trabalho. Ambos, com os horários definidos para a realização das atividades, a figura vigilante de diretores, professores e monitores na escola e do chefe do posto na terra indígena, assim como a repressão de comportamentos considerados inadequados por meio de castigos. Outro ponto em comum a ser destacado, é que no Internato o trabalho também estava presente, organizado nos Clubes Agrícolas.

As situações elencadas aqui mostram que uma das formas utilizadas pelo Estado para atingir seus objetivos de inserir os indígenas na sociedade nacional, era a educação. Uma das investidas educacionais era a escola e a alfabetização que, conforme Pacheco de Oliveira e Freire (2006PACHECO DE OLIVEIRA, João; ROCHA FREIRE, Carlos Augusto da. A Presença Indígena na Formação do Brasil. Brasília: SECAD/MEC/UNESCO, 2006., p.126), visava “consolidar a sedentarização de um povo indígena”. Outro aspecto educativo que visava a integração dos indígenas era o incentivo ao trabalho manual, à pecuária e a práticas agrícolas, visando transformá-los em trabalhadores nacionais. Além disso, em inúmeros postos indígenas eram instaladas oficinas mecânicas, engenhos de cana, casas de farinha, serrarias, tentando inserir os indígenas em diversos ofícios. Contudo, Pacheco de Oliveira e Freire (2006PACHECO DE OLIVEIRA, João; ROCHA FREIRE, Carlos Augusto da. A Presença Indígena na Formação do Brasil. Brasília: SECAD/MEC/UNESCO, 2006.) também admitem que algumas crianças eram enviadas para escolas fora das suas comunidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As décadas de 1950 e 1960 foram períodos de intensa ação estatal nas terras indígenas no Rio Grande do Sul, visando intervir nos processos formativos das pessoas, individual e coletivamente, a fim de integrá-las à sociedade nacional. Na TI Inhacorá, houve a presença de chefes de Posto e funcionários não indígenas efetivando estas ações, que entre outras graves decorrências, resultou na drástica redução do território, sendo que uma parte da área foi retomada pelos indígenas na década de 1990. Neste período também vigorou um sistema de exploração do trabalho, denominado panelão; a liberdade dos indígenas foi restringida, suas terras e força de trabalho foram exploradas ao extremo. Além disso, entre os anos de 1957 e 1966, um grupo significativo de crianças Kaingang frequentam o Internato Rural Pedro Maciel e a Colônia Estadual de Férias de Itaí, no município de Ijuí, RS.

É perceptível que a motivação de todas essas violências estatais foi tentar a assimilação dos povos indígenas, promover mudanças culturais no sentido do branqueamento, ou seja, tentativas de desprovê-los das características que os tornavam indígenas, transformando-os em trabalhadores nacionais. Importante salientar que o interesse pelas terras indígenas balizava esse comportamento, já que quando o Estado pudesse afirmar que não existiam mais indígenas, não haveria sentido na existência de Terras Indígenas.

As ações educativas andaram par e passo com a exploração do trabalho e a usurpação dos territórios originários. O interesse do Estado, visando atender ao capital e ao desenvolvimento de uma agricultura extensiva nos moldes capitalista, até hoje representada pelo agronegócio, esteve aliada a um profundo e sistemático programa de educação, que visava formar este trabalhador nacional disciplinado e distanciado dos valores e vivências da cultura Kaingang.

Nesse sentido, podemos destacar que além de gerar renda, o trabalho compulsório tinha como objetivo a alteração na forma de manejo da terra; o controle do tempo e consequentemente, impacto na vida Kaingang - inclusive nos processos próprios de aprendizagem deste povo; a criação de um corpo disciplinado; do controle do tempo e dos castigos; a proibição de falar a língua Kaingang e de viver sua cultura. É nessas circunstâncias que crianças da TI Inhacorá foram afastadas de sua comunidade e enviadas para o Internato e a Colônia de Férias, onde houve a imposição de uma escolarização que visava a integração e a civilização.

É importante evidenciar que o povo Kaingang não vivenciou passivamente as violências do Estado. Exemplo de resistência foram as fugas do território, a comunicação na língua Kaingang (atualmente quase todos os moradores da Terra Indígena Inhacorá falam Kaingang fluentemente), a manutenção das práticas rituais e, mais recentemente, na década de 1990, a retomada do território onde o governo estadual mantinha a Estação Experimental. Neste local, após a mobilização do povo Kaingang, desde 2014 passou a funcionar o Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, que atua na formação de professores Kaingang. A resistência continua.

REFERÊNCIAS

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    » http://www.portalkaingang.org/privatizacao_juracilda.pdf
  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • 2
    Pode ser traduzido como “Calendário do Correio Serrano”. Tratava-se de um anuário, em língua alemã, editado entre 1922 e 1978, com circulação no Sul do Brasil e no exterior. Continha artigos sobre educação, saúde, economia, agricultura, imigração alemã, biografias, anedotas, poemas e anúncios publicitários. (Disponível em: <http://jdunijui.blogspot.com/2012/07/die-serra-post-kalender.html>. Acesso em: 10 abr. 2022).
  • 3
    Fonte: Kema- Informativo Mensal do Museu Antropológico Diretor Pestana. Ano I. Número 2. Julho 2008.
  • 4
    No Brasil, os territórios reconhecidos (ou demarcados) pelo Estado no século XX foram denominados reservas. Só a partir da Constituição Federal de 1988 que passam a se chamar Terra Indígena (TI).
  • 5
    Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena e Secretaria Especial de Saúde Indígena, respectivamente.
  • 6
    Disponível em https://pib.socioambiental.org/pt/Quadro_Geral_dos_Povos. Acesso em 21/01/2022.
  • 7
    Houve alteração da Comissão a ocupar-se da demarcação do Toldo de Inhacorá. Simonian (1980SIMONIAN, Ligia Lopes. Estado expropria e domina o povo Guarani e Kaingáng. In: Cadernos do Museu nº 09, 1980. Disponível em: Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/visualizacao-estado-expropria-e-domina-povo-guarani-e-kaingang . Acesso em jan.2021.
    https://acervo.socioambiental.org/acervo...
    ) aponta como causa a influência exercida por não indígenas e companhias colonizadoras locais, que tinham interesse na redução dos territórios indígenas.
  • 8
    Antônio Cipriano foi o primeiro cacique pós-Funai, escolhido pelo próprio órgão estatal para assumir este cargo devido à sua fluência na Língua Portuguesa, adquirida no período de internato. (POLICENA, 2020POLICENA, Adilson. O povo Kaingang da Terra Indígena Inhacorá (RS) e o contexto histórico das suas lideranças. Trabalho de Conclusão de curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Florianópolis, 2020.).
  • 9
    Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em jul. 2021.
  • 10
    Disponível em: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=DocIndio&Pesq=menores%20%c3%b3rf%c3%a3os&pagfis=9818. Acesso em: jul. 2021.

Editado por

Editora responsável:

Patrícia Weiduschadt

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2022
  • Aceito
    27 Nov 2022
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