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Sobre cultura histórica e usos do passado: a Independência do Brasil em questão1 1 Agradeço a leitura atenta e as sugestões de encaminhamento para esse texto feitas por Maria da Glória de Oliveira (UFRRJ) e Marcelo de Souza Magalhães (UNIRIO)

On culture and historical uses of the past: the Independence of Brazil in question

Resumo

O artigo discute alguns tópicos desenvolvidos pelos autores de A Independência e uma cultura de história no Brasil, focalizando a problemática que envolve a cultura histórica e os múltiplos usos do passado na sociedade contemporânea.

Palavras-chave:
cultura histórica; passado prático; historiografia; historiadores

Abstract

The article discusses some topics developed by the authors of Independence and a culture of history in Brazil, focusing on the issues surrounding the historical culture and the multiple uses of the past in contemporary society.

Keywords:
historical culture; practical past; historiography; historians

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    Agradeço a leitura atenta e as sugestões de encaminhamento para esse texto feitas por Maria da Glória de Oliveira (UFRRJ) e Marcelo de Souza Magalhães (UNIRIO)
  • 2
    PIMENTA, João Paulo; ATTI, César Augusto; CASTRO, Sheila Virgínia; DIMAMBRO, Nadiesda; LANNA, Beatriz Duarte; PUPO, Marina; VIEIRA, Luís Otávio. A independência e uma cultura de história no Brasil. Versão inédita apresentada durante o Fórum da revista Almanack, em maio de 2014, na UNIFESP.
  • 3
    Ibidem, p.1.
  • 4
    Ibidem, p.6.
  • 5
    Sobre cultura histórica, convém lembrar que o conceito tem sido pensado desde os anos 1980 e 1990 de forma sistemática por autores como Jörn Rüsen, Aleida e Jan Assmann, Bernard Guenée e Jacques Le Goff, em diálogo com estudiosos da relação entre história e memória coletiva, como Pierre Nora, Paul Ricoeur etc. De modo geral, parte-se da constatação de que a visão que uma dada sociedade tem de seu passado não é resultado exclusivo, nem mesmo predominante, da produção dos historiadores acadêmicos. As imagens, ideias, nomes e valores que compõe a visão do passado resultam de uma série de fatores que atuam em um processo dinâmico de discussão sobre a experiência passada e a construção de sentido. A cultura histórica abarca, portanto, os múltiplos enfoques e narrativas onde o que está em jogo não é o conhecimento erudito sobre a história, mas a autocompreensão da comunidade num dado presente e suas possibilidades de projeção no futuro. Ver: SÁNCHEZ MARCOS, Fernando. Cultura histórica [2009]. Disponível on-line em: http://www. culturahistorica.es/cultura_historica.html; RÜSEN, Jörn. ¿Qué es la cultura histórica?: Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia, 1994. Trad. de F. Sánchez e Ib Schumacher. Versão espanhola inédita do texto original em alemão publicado em FÜSSMANN. H. T. Grütter y RÜSEN, J. (eds.). Historische Faszination. Geschichtskultur heute. Keulen, Weimar y Wenen: Böhlau, 2009, p.3-26. Disponível em: http://www. culturahistorica.es/ruesen/cultura_historica.pdf.
  • 6
    A referência citada é MATOS, Sérgio Campos. Consciência histórica e nacionalismo: Portugal, séculos XIX e XX. Lisboa: Horizonte, 2008.
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    PIMENTA, João Paulo et al. Op. Cit. p.4. Outra referência importante para a definição do conceito de cultura de história pelos autores é RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007. Os autores também deixam claro que a cultura de história não se confunde com a noção de costume conforme a definição E. P. Thompson; ou com a noção de tradição, proposta por Rüsen.
  • 8
    RÜSEN, Jörn. ¿Qué es la cultura histórica? Op. Cit. p.6.
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    O conceito de cultura de história tal como apresentado pelos autores do texto em questão parece estar muito próximo da definição proposta por Jacques Le Goff, que por sua vez, parte das proposições de Bernard Guenée, para quem a cultura histórica corresponde à "bagagem profissional do historiador, a sua biblioteca de obras históricas, o público e a audiência dos historiadores". Ver: GUENÉE, Bernard. Histoire et culture historique dans l'Occident médiéval. Paris: Aubier-Montaigne, 1980. Le Goff amplia esta concepção ao acrescentar-lhe "a relação que uma sociedade, na sua psicologia coletiva, mantém com o passado". Essa compreensão aproximase daquilo que os anglo-saxões definem por historical mindedness (mentalidade histórica), embora reconheça que pensar a cultura histórica como unidade, supondo um "espírito do tempo" (inconsciente coletivo) ofereça certos riscos. Associando a cultura histórica à mentalidade coletiva, Le Goff propõe investigar a atitude dominante nas sociedades perante seu passado através da abordagem dos "sentimentos da opinião pública", baseando-se na crença de que na mentalidade coletiva, o passado se confunde com a história. Através de fontes que sirvam como "testemunho do gosto de algumas sociedades históricas pelo seu passado", ele espera poder abordar o modo como a opinião pública concebe o passado/história. E, para tanto, propõe três operações: compreender as diferentes concepções de tempo existentes na sociedade; observar a relação entre o oral e o escrito e analisar o vínculo entre história e mito. Ver LE GOFF, Jacques. História. In: _____. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1990, p. 47-48.
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    Paulo Knauss comentou esse estereótipo, argumentando que não existe sociedade sem memória e que, talvez, no Brasil, não haja uma prática hegemônica dominante acerca da memória. Além disso, lembrou que "nós somos um país continental, com características muito diversificadas, não só pelas suas origens étnicas, mas pelas características regionais, pelos processos sociais, que são muito diversificados. Vivemos em uma sociedade de muitas práticas de memória. E não necessariamente todas elas conduzem aos lugares de memória. As pessoas dizem 'Ah, é um país sem memória' porque os museus talvez não sejam tão importantes, porque não temos um Louvre ou monumentos tão bem tratados. Mas lembra-se muito". Ver: KNAUSS, Paulo. Combate pelo fato. Revista de História da Biblioteca Nacional. Entrevista com Paulo Knauss, por Rodrigo Elias. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, edição n. 73, 05/10/2011. Disponível on-line em: http:// www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/ combate-pelo-fato
  • 11
    Lembro rapidamente que, ao longo do século XX, sobretudo na segunda metade, o acontecimento foi considerado como algo de menor importância devido a sua efemeridade. A história como ciência social, centrada nas noções de estrutura e processo, privilegiou as regularidades e o acontecimento foi relegado a uma posição subalterna, vinculada ao tempo curto, diante dos processos históricos de longa ou média duração. Além disso, a abordagem do acontecimento em várias épocas sempre procurou inseri-lo em uma ordem de explicações causais. Mais recentemente, o desinteresse crescente pelas explicações estruturais e abrangentes, deu lugar a novas abordagens do acontecimento, entre as quais aquela que focaliza a relação que uma sociedade mantém com ele, reconstruindo-o e significando-o. Considero essa reflexão sobre o retorno do acontecimento pertinente para o estudo da cultura histórica, sobretudo a cultura histórica escolar, na qual o acontecimento parece ter papel importante, não tanto naquilo que é ensinado, mas na forma como a história é apreendida. A esse respeito, ver DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. Trad. Constancia Morel. São Paulo: Unesp, 2013, p.12.
  • 12
    Ibidem.
  • 13
    JOUTARD, Phillipe, cit. por DOSSE, François. Op. Cit., p.10.
  • 14
    ALEXANDER, Didier, cit. por DOSSE, François. Op. Cit., p.8. Referindo-se a Maio de 1968, Michel de Certeau argumentou que "um acontecimento não é o que é possível ver ou saber dele, mas aquilo que ele se tornará (e sobretudo para nós)". Ver CERTEAU, Michel cit. por DOSSE, François. Op. Cit. p. 179. E a narrativa serve como mediação entre o acontecimento como evento singular (ou o processo histórico, pode-se dizer) e a história pensada como totalidade abrangente e inteligível. Daí a importância de compreender como os indivíduos narram e, ao narrar, usam o tempo na construção da narrativa. A esse respeito, ver: RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa - v. 1: A intriga e a narrativa histórica. Trad. Claudia Berliner. Introdução: Helio Salles Gentil. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2010.
  • 15
    Complementando, o estudo sobre a cultura histórica engloba tanto o "passado histórico" como o "passado prático", utilizando os termos propostos OAKESHOTT, Michael. Sobre a história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
  • 16
    PIMENTA, João Paulo et al, Op. Cit. p.32
  • 17
    Ver LEE, Peter. Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar, Curitiba, Especial Dossiê Educação Histórica, 2006, p. 131-150. Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/educar/issue/view/251
  • 18
    A esse respeito, ver RICOEUR, Paul. Op. Cit. .212; e WHITE, Hayden. El valor de la narrativa en la representación de la realidad. In: _____. El contenido de la forma. Narrativa, discurso y representación histórica. Trad. Jorge Vigil Rubio. 1a. ed. americana 1987. Barcelona: Paidós, 1992, p.17-39. Para Ricoeur, o ato de tecer a intriga presente na historiografia combina duas dimensões temporais: uma cronológica e outra não cronológica. A operação de síntese do heterogênero é constitutiva da noção de coerência narrativa e refere-se "à coordenação seja entre acontecimentos múltiplos, seja entre causas, intenções e também acasos, numa mesma unidade de sentido". Além disso, a forma de compreender e narrar tem relação com um modo particular de conceber a "realidade" histórica. Ver RICOEUR, Paul. Op. Cit. p.313.
  • 19
    PIMENTA, João Paulo et al. Op. Cit. p.37.
  • 20
    Ibidem, p.41-42.
  • 21
    Ibidem, p.44-47.
  • 22
    Esse destaque dado ao anedótico e ao biográfico é associado pelos autores ao que pode ser definido como "sociedade do espetáculo" (Guy Debord) ou "indústria cultural" (Adorno e Horkheimer), caracterizada pela "saliência do indivíduo e esvaziamento da esfera pública". Cf. PIMENTA, João Paulo et al. Op. Cit. p.44, nota 104.
  • 23
    Chamo atenção para a recorrência, nas obras analisadas por Pimenta et al, de interpretações "tradicionais", como a ideia de que a nação brasileira foi preparando a Independência, de que as Cortes de Lisboa queriam recolonizar o Brasil e de que a Independência resultou de uma luta maniqueísta entre brasileiros e portugueses. Os autores do estudo indicam que tais obras mesmo quando amparadas em estudos acadêmicos, não os submetem a críticas e não evitam erros factuais e anacronismos, pois interpretações acadêmicas e não acadêmicas servem muito mais para corroborar a interpretação de seus autores, reeditando leituras convencionais. Sobre essa produção, ver MALERBA, Jurandir. Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a história: uma reflexão sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não acadêmicos no Brasil à luz dos debates sobre Public History. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 15, ago./2014, p.27-50.
  • 24
    Refiro-me ao livro Guia politicamente incorreto de história do Brasil (2011), de Leandro Narloch. O estudo de Pimenta et al não explora a questão do leitor implícito nas obras analisadas, o que poderia permitir alguns desdobramentos relevantes para a atual discussão sobre a história pública. A esse respeito, ver: ALMEIDA, Juniele Rabêlo de e ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (org.). Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011; e MALERBA, Jurandir. Académicos na berlinda. Op. Cit. p.27-50.
  • 25
    Cabe lembrar que ao menos no caso da Revista de História da Biblioteca Nacional, cujo foco é a história do Brasil, os textos publicados são produzidos por historiadores acadêmicos, sob o crivo dos editores que procuram adaptar a linguagem ao estilo mais coloquial, buscando tornar mais fácil a compreensão. Contudo, é difícil supor que o público leitor dessa revista seja composto eminentemente por leigos. A revista parece ser dirigida, sobretudo, para graduandos em história e professores da educação básica, que nela encontram textos de síntese da historiografia mais atual. Trata-se de uma produção dedicada à divulgação científica na área de história.
  • 26
    Um dos indícios que parece justificar essa conclusão é o fato de que algumas produções analisadas remetem a interpretações sobre a história do Brasil produzidas há muito tempo, tais como As maluquices do imperador (1927) e A Marquesa de Santos (1925), ambas de Paulo Setúbal, que tem muito prestígio entre atuais autores de best sellers. PIMENTA, João Paulo et al. Op. Cit. p.49.
  • 27
    Ibidem, p. 64.
  • 28
    A certa altura do texto, os autores indagam: "Não parece incrível, por exemplo, que após tudo o que a historiografia acadêmica produziu acerca da Independência do Brasil, tanta gente ainda a trate como um conflito maniqueísta de interesses nacionais entre brasileiros e portugueses, ou como um processo de simples reacomodação de interesses elitistas em prol da manutenção da ordem, ou, finalmente, como uma miríade de vontades individuais a moverem a história? Estas não são 'verdades' apenas dos não especialistas em história: também muitos profissionais da matéria ainda parecem dispostos a sustentá-las". PIMENTA, João Paulo et al, Op. Cit. p. 65. O problema da mudança interpretativa na historiografia coloca alguns desafios. A esse respeito ver, por exemplo: SPIEGEL, Gabrielle M. Revising the past / revisiting the present: how change happens in historiography. History and Theory, theme issue 46, dez/ 2007.
  • 29
    Ao apontar a importância de investigar a história da historiografia da Independência não me refiro especificamente à produção acadêmica ou mesmo àquela difundida por homens de letras ao longo do século XIX e início do XX. Um mapeamento da historiografia stricto sensu já vem sendo feito pelos especialistas no tema. Refiro-me às outras produções que contribuíram para consolidar representações sobre o assunto ao longo do tempo, incluindo manuais escolares, obras de arte etc. produzidas em diversas épocas. Sobre a historiografia da Independência, há importantes balanços: COSTA, Wilma Peres. A independência na historiografia brasileira. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2005, p.53-118; MALERBA, Jurandir. Esboço crítico da recente historiografia sobre a Independência do Brasil (c. 1980-2002). In: __________. (org.). A Independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006, p.809-827; PIMENTA, João Paulo. A independência do Brasil. Um balanço da produção historiográfica recente. In: CHUST, Manuel e SERRANO, José Antonio (eds.). Debates sobre las independencias iberoamericanas. Madri/Frankfurt: Iberoamericana, 2007, p.147-158.
  • 30
    RÜSEN, Jörn. ¿Qué es la cultura histórica? Op. Cit. p.13.
  • 31
    Ver OAKESHOTT, Michael. Op. Cit. Ver também WHITE, Hayden. The Practical Past. Historein, v. 10, 2010, p.10-19.
  • 32
    PIMENTA, João Paulo et al. Op. Cit. p.66.
  • 33
    WHITE, Hayden. Meta-história. A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995, p. 294.
  • 34
    Para aprofundar essa reflexão: RÜSEN, Jörn. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis: Vozes, 2014; MEGILL, Allan. Jörn Rüsen's theory of historiography. History and Theory, v.33, n.1, 1994, p.51-64; LORENZ, Chris. Historical knowledge and historical reality: a plea for internal realism. History and Theory, v.33, n.3, 1994, p.297-327; LEE, Peter. Op. Cit., p.131-150.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    Out 2014
  • Aceito
    Out 2014
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