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A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA BAHIA E OS HERÓIS POPULARES DO DOIS DE JULHO

Com a presença do Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, os duzentos anos da expulsão das tropas portuguesas da capital da Bahia foram festejados com grande entusiasmo em Salvador. Amplamente divulgada pela mídia nacional, a festa do Dois de Julho comemorou, segundo o presidente, “a principal etapa da independência brasileira”. “Dom Pedro I gritou independência ou morte, mas quem lutou e morreu foi o povo baiano para conseguir a independência”, acrescentou o presidente3 3 Souza, 2023. , repetindo assim o discurso multissecular baiano que destaca a centralidade daquela guerra para a conquista da Independência e a visão do processo que dá relevo à participação popular. Em 1903, o Diário da Bahia declarou, na linguagem florida característica da época, que “DOIS DE JULHO é o batismo de sangue da obra do Ipiranga: o 7 de setembro seria uma página quiçá de adesões, se a não tivesse iluminado, perpetuando-a, a coragem gigantesca, a bravura sem par, o patriotismo sem jaça dos heróis da Cachoeira, Pirajá e Cabrito”4 4 Dois de Julho. Diario da Bahia, 16 jun. 1903. . Décadas antes, um periódico mais popular, O Alabama, avaliou que a Independência era devida aos esforços baianos: “Fomos nós que lutamos, e não o Rio; que fomos nós que morremos, e não o Rio; que fomos nós que dormimos ao sol e à chuva, e não o Rio, que foi nosso sangue que correu, e não o do Rio; que somos brasileiros enfim, mas não somos cariocas!”5 5 Dous de Julho. O Alabama, 2 jul. 1867. .

O Dois de Julho - tanto a luta na Bahia de 1822 e 1823 como a comemoração dela - não se enquadra facilmente na história da Independência, centrada desde as obras clássicas dos Viscondes de Cairu e Porto Seguro na atuação de D. Pedro I6 6 Lisboa, 1825-1830; Varnhagen, 1919. . Ao lado dos conflitos ocorridos em outras províncias do Norte, o Dois de Julho desmente - se ainda é preciso desmentir - a história de uma independência pacífica, incruenta, sem conflitos graves, que contrasta com as independências turbulentas da América espanhola. A mobilização de milhares e milhares de homens e mulheres de todas as classes e cores, necessária para fechar o cerco à capital baiana em 1822-1823, desmente a história de um processo de independência restrito ao âmbito da elite, do qual não participava o resto da sociedade. E a popularidade da festa do Dois de Julho, que desde as décadas de 1820 e 1830 chamou a atenção de observadores brasileiros e estrangeiros pela sua natureza sui generis, indica que a “Independência da Bahia” (frase recorrente desde o século XIX), significava algo para amplos setores da população baiana7 7 Sobre a festa do Dois de Julho em diferentes momentos, ver Kraay, 2019; Albuquerque, 1999; Baldaia, 2018. .

Mas por que lutaram os homens e as mulheres hoje tão facilmente inseridos no panteão dos heróis da Independência? Oficialmente, desde as adesões dos senados da câmara das vilas do Recôncavo à regência de D. Pedro, em junho e julho de 1822, os baianos defenderam a manutenção de um centro do poder executivo na América, que a partir de agosto e setembro desse ano se tornou uma luta pela Independência. Esse fato facilita interpretações semelhantes à do presidente, em que os baianos pegaram em armas “para conseguir a independência” do Brasil. Em um panfleto distribuído este ano, o diretor da Fundação Pedro Calmon (FPC, entidade responsável pelas instituições culturais estaduais) declarou: “A independência nacional não foi exclusiva do Sudeste, dos brancos, dos homens e das oligarquias. Precisamos questionar os currículos escolares para que as juventudes saibam que seus antepassados pretos, mulheres, indígenas, escravizados e libertos, lutaram e garantiram a independência do nosso país”8 8 Fundação Pedro Calmon, 2023, sem paginação. . Parece estar retomando velhos formulários nacionalistas como o de José Honório Rodrigues, que sustentou em 1975 que o “povo nas suas mais variadas cores e posições […] trabalhou pela unidade e integridade nacional”9 9 Rodrigues, 1975, v. 4, p. 123. . Rodrigues, de fato, antecipou algumas das preocupações da época dos bicentenários ao prestar atenção à participação popular na Independência, mas enquadrou-a na sua visão nacionalista.

Ao festejar a contribuição patriótica dos heróis e heroínas populares da Independência na Bahia, constrói-se uma narrativa da Independência efetivamente mais includente; todavia, ainda uma narrativa centrada no Estado e na criação do Império brasileiro (temas centrais e importantes, mas que não esgotam a história dessa época). Nessa narrativa, apesar das referências vagas a “lutas e liberdade”, para citar o diretor da FPC10 10 Fundação Pedro Calmon, 2023, sem paginação. , há pouco espaço para divulgar uma visão mais crítica sobre a sociedade escravista, senhorial, latifundiária e machista do Oitocentos. Ao abrir o panteão dos heróis da Independência para gente do povo, esvazia-se o conteúdo mais radical das suas lutas. Já em 1975, Rodrigues reconheceu esse aspecto da Independência quando avaliou - de certa forma, contraditoriamente - que o povo, apesar de patriota, foi derrotado, pois a “contra-revolução triunfou” entre 1823 e 183111 11 Rodrigues, 1975, v. 4, p. 130. .

O destino de muitos dos heróis populares da Independência revela tanto o potencial radical dessa época como a força da reação. Depois de lutar como soldado, inspirada pelo que ouviu de emissários patriotas (segundo o que contou a Maria Graham), Maria Quitéria de Jesus foi recebida pelo Imperador no Rio de Janeiro e agraciada com uma pensão de alferes. De volta a Salvador, foi duramente criticada em março de 1824 por andar pela cidade ostentando a sua farda, e acabou voltando à vida recatada que cumpria às mulheres oitocentistas. Em 1849, José Lino Coutinho argumentou que ela não devia ter sido mencionada por Inácio Acioli de Cerqueira e Silva, o cronista da Independência na Bahia, pois a natureza havia destinado outros papeis mais convenientes às mulheres12 12 Graham, 1824, p. 292-293; Carta de Uma Bahiana. O Independente Constitucional, 6 mar. 1824; Reis, 2000, p. 73, 191. . Quem melhor cumpriu o papel destinado às mulheres oitocentistas foi a abadessa Joana Angélica, que morreu defendendo a inviolabilidade do claustro em fevereiro de 1822. Não se sabe se anuiu à presença de tropas patriotas no convento (a justificativa para a investida da parte dos soldados portugueses contra o Convento da Lapa), mas ela simboliza a tradicional abnegação de uma religiosa, e sua morte serve para realçar a iniquidade das tropas portuguesas sem implicar demandas mais radicais.

Quanto a Maria Felipa de Oliveira, a recém-inventada heroína que atualmente comemora a participação das mulheres negras na luta, não se sabe se realmente existiu ou se foi uma invenção do folclorista itaparicano, Ubaldo Osório. Mas o relato deste destaca não só os esforços dela na defesa da Ilha de Itaparica, como também as desavenças dela e das outras marisqueiras com um português, dono de uma armação de pesca: portanto, lutas de classe ou conflitos sobre recursos para a própria sobrevivência, que sem dúvida eram tão importantes quanto a Independência13 13 Osório, 1979, p. 304-305. . A questão da sobrevivência é também destacada no relato de Inácio Acioli sobre o Corneta Luiz Lopez, que alegadamente tocou erradamente “avançar cavalaria” em um momento chave da Batalha de Pirajá (8 de novembro de 1822). O erro provocou a debandada dos portugueses, mas o corneta acabou seus dias mendigando nas ruas de Salvador, segundo o cronista14 14 Silva, 1919-1940, vol. 3, p. 399. .

Apesar do decreto de 30 de julho de 1823, por meio do qual D. Pedro I recomendou a alforria dos escravos que haviam lutado na guerra para pôr ordem na situação confusa deixada pelo recrutamento informal destes nas forças patriotas, apenas alguns foram efetivamente libertos. E muitos dos soldados negros - já livres ou recém-libertos - que continuaram a servir no Exército foram considerados perigosos e transferidos para a Marinha, ou, depois do Levante dos Periquitos (outubro-novembro de 1824), para o Sul, tudo no intuito de afastá-los da Bahia para lugares distantes onde seriam menos perigosos para a maioria dos escravizados baianos que continuariam no cativeiro, que durou por mais 65 anos15 15 Kraay, 2002. . E movimentos escravos considerados ameaças à ordem que os senhores desejavam manter foram duramente reprimidos por meio de execuções em massa: 50 a ordem de Pedro Labatut por terem atacado as linhas patriotas, e outros 25 ou 30 depois de um levante na Ilha de Itaparica16 16 Reis, 1989. . Os temores do “haitianismo” ou do “partido negro” destacam que os senhores baianos se sentiam profundamente ameaçados pelas lutas sociais que se manifestavam no seio da guerra pela Independência.

O povo baiano efetivamente lutou pela Independência, mas não pela Independência tal qual se concretizou em 1824 e 1825 na Bahia e no Brasil. Reduzi-los a patriotas esvazia suas lutas de seu potencial radical. A Independência do Brasil na Bahia não foi uma vitória popular, mas os homens e mulheres de todas as classes e cores que formavam o grosso do Exército Pacificador lutaram por mais do que a simples Independência.

Bibliografia

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  • 3
    Souza, 2023.
  • 4
    Dois de Julho. Diario da Bahia, 16 jun. 1903.
  • 5
    Dous de Julho. O Alabama, 2 jul. 1867.
  • 6
    Lisboa, 1825-1830; Varnhagen, 1919.
  • 7
    Sobre a festa do Dois de Julho em diferentes momentos, ver Kraay, 2019; Albuquerque, 1999; Baldaia, 2018.
  • 8
    Fundação Pedro Calmon, 2023, sem paginação.
  • 9
    Rodrigues, 1975, v. 4, p. 123.
  • 10
    Fundação Pedro Calmon, 2023, sem paginação.
  • 11
    Rodrigues, 1975, v. 4, p. 130.
  • 12
    Graham, 1824, p. 292-293; Carta de Uma Bahiana. O Independente Constitucional, 6 mar. 1824; Reis, 2000, p. 73, 191.
  • 13
    Osório, 1979, p. 304-305.
  • 14
    Silva, 1919-1940, vol. 3, p. 399.
  • 15
    Kraay, 2002.
  • 16
    Reis, 1989.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2023
  • Aceito
    21 Jul 2023
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