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FATORES INTERVENIENTES NA AQUISIÇÃO MUNICIPAL DE PRODUTOS DA AGRICULTURA FAMILIAR PARA A ALIMENTAÇÃO ESCOLAR

Intervening factors in local food acquisition from family farming for the school feeding program

Factores intervinientes en la adquisición municipal de productos agrícolas familiares para la alimentación escolar

RESUMO

O tema da alimentação escolar, estruturado em torno do Programa Nacional de Alimentação Escolar, presente em todos os municípios, defronta-se amplamente com uma série de desafios de implementação. Este estudo propôs-se a levantar diferentes respostas administrativas, políticas e institucionais adotadas, no âmbito da aplicação local dos recursos federais transferidos para promover a compra de alimentos advindos da agricultura familiar, por efeito da Lei nº 11.947/2009. Para tanto, foram escolhidos dois municípios do estado de Minas Gerais que, embora possuam características geográficas similares, registram desempenhos discrepantes no atendimento dessa nova regra. Os casos analisados expressam um conjunto de métodos orientados à compreensão das dinâmicas que cercam o Estado em ação, demonstrando aspectos concretos sobre desafios e potenciais associados à inserção desse público em mercados institucionais.

Palavras-chave:
alimentação escolar; agricultura familiar; gestão pública; federalismo; desenvolvimento local

ABSTRACT

School feeding in Brazil faces implementation challenges and is structured around the National School Feeding Program, which runs in all municipalities. Thus, this study aims to identify different local administrative, political, and institutional responses adopted at the local level with federal resources transferred to purchase food from family farming, according to law 11947/2009. The research explored the case of two municipalities of the Brazilian state of Minas Gerais that, despite having similar geographic characteristics, record different performances in complying with the legislation. The cases analyzed express a set of methods aimed at understanding the dynamics surrounding the state in action, demonstrating concrete aspects of the challenges and potentials associated with the insertion of this public in institutional markets.

Keywords:
school feeding; family farming; public administration; federalism; local development

RESUMEN

La temática de la alimentación escolar, estructurada en torno al Programa Nacional de Alimentación Escolar, presente en todos los municipios, enfrenta en gran medida una serie de desafíos de implementación. Este estudio tuvo como objetivo plantear las diferentes respuestas administrativas, políticas e institucionales adoptadas, en el ámbito de la aplicación local de los recursos federales transferidos para promover la compra de alimentos de la agricultura familiar, de conformidad con la Ley Nº 11.947/2009. Para ello, se eligieron dos municipios del estado de Minas Gerais que, a pesar de tener características geográficas similares, registran desempeños diferentes en el cumplimiento de esta nueva norma. Los casos analizados expresan un conjunto de métodos orientados a comprender la dinámica que rodea al Estado en acción, demostrando aspectos concretos de los desafíos y potencialidades asociados a la inserción de este público en los mercados institucionales.

Palabras clave:
alimentación escolar; agricultura familiar; gestión pública; federalismo; desarrollo local

INTRODUÇÃO

Políticas públicas de abrangência nacional no contexto do federalismo brasileiro guardam em si uma diversidade de desafios para sua implementação, dadas a complexidade de contextos com que se defrontam e a magnitude territorial de sua abrangência (Abrucio & Franzese, 2007Abrucio, F. L., & Franzese, C. (2007). Federalismo e políticas públicas: o impacto das relações intergovernamentais no Brasil. In M. F. I. Araújo, & L. Beira (Eds.), Tópicos de economia paulista para gestores públicos (pp. xx-xx). São Paulo: Edições FUNDAP.; Arretche, 2012Arretche, M. (2012). Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV.; Silva, 2022Silva, S. P. (2022). Descentralização federativa e desafios de implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar: uma análise pós-Lei nº 11.947/2009. Brasília: Ipea. (Texto para Discussão, n. 2.762). Recuperado de https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2762.pdf?fbclid=IwAR1F0WA_5atV9TQlhpLxV23jICtoR4wXReXlCF0DflrtqmOBenbVJ8ITBKQ
https://www.ipea.gov.br/portal/images/st...
). O tema da alimentação escolar, estruturado em torno do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), defronta-se amplamente com esses desafios.

Presente em todos os municípios brasileiros, o PNAE alcança em períodos regulares do calendário escolar a média diária superior a 40 milhões de estudantes, o que o faz ser reconhecido como um dos maiores programas de alimentação do mundo. Sua execução anual exige do poder público um considerável conjunto de recursos orçamentários (em torno de R$ 4 bilhões anuais, levando-se em conta somente os repasses financeiros do governo federal), humanos e tecnológicos para garantir sua efetivação, mobilizados em torno dos três níveis de poder federativo (Valadares & Alves, 2019Valadares, A. A. & Alves, F. A. (2019). O desempenho recente das políticas de compras públicas da produção da agricultura familiar. In: IPEA (Ed.), Políticas sociais: acompanhamento e análise (v. 19, pp. 385-405). Brasília: Ipea. Recuperado de http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10147/1/BPS_26_nps_odesempenho.pdf
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; Silva, 2020Silva, S. P. (2020). Trajetória e padrões de mudança institucional no Programa Nacional de Alimentação Escolar. Brasília: Ipea. (Texto para Discussão, No. 2.529). Recuperado de https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2529.pdf
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). Tal dimensão confere-lhe também caráter estratégico para assegurar níveis satisfatórios de segurança alimentar e nutricional em todas as unidades da federação, além de contribuir para o direito humano à alimentação adequada da população.

Em termos de estrutura decisória, a União é o ente responsável pela normatização geral e pelo monitoramento de sua implementação; a execução financeira ocorre de forma descentralizada. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) repassa os recursos orçamentários aos demais entes federativos para a compra de gêneros alimentícios, cujos valores são calculados em função do número de estudantes matriculados na rede pública de ensino, cabendo às unidades executoras realizarem anualmente a prestação de contas desses recursos.

Uma mudança decorrente da Lei nº 11.947/2009 adicionou novas camadas no marco regulatório do PNAE. Entre elas está a obrigatoriedade, prevista no artigo 14 da referida lei, de os entes federativos destinarem uma parcela mínima de 30% dos recursos repassados pelo FNDE para aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar (Silva, 2020Silva, S. P. (2020). Trajetória e padrões de mudança institucional no Programa Nacional de Alimentação Escolar. Brasília: Ipea. (Texto para Discussão, No. 2.529). Recuperado de https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2529.pdf
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). Com isso, a legislação instituiu uma interface promissora entre alimentação escolar e produção local, sobretudo pela abertura de um mercado institucional de alimentos até então pouco acessível a esse público específico. A perspectiva de compras públicas para os produtos da agricultura familiar tem como referência inicial a criação pelo governo federal do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), em 2003, que desde então se tornou instrumento para o estímulo à produção e à geração de renda das famílias beneficiárias (Valadares & Alves, 2019Valadares, A. A. & Alves, F. A. (2019). O desempenho recente das políticas de compras públicas da produção da agricultura familiar. In: IPEA (Ed.), Políticas sociais: acompanhamento e análise (v. 19, pp. 385-405). Brasília: Ipea. Recuperado de http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10147/1/BPS_26_nps_odesempenho.pdf
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; Cavalcanti, Marjotta-Maistro & Lima, 2021Cavalcanti, M. T., Marjotta-Maistro, M. C., & Lima, L. M. (2021). Análise de possíveis evidências entre o acesso ao Programa de Aquisição de Alimentos e renda. Revista de Economia do Nordeste, 52(3), 133-144. Recuperado de https://www.bnb.gov.br/revista/index.php/ren/article/view/1283
https://www.bnb.gov.br/revista/index.php...
; Perin, Almeida, Spínola, Pella, & Sambuichi, 2021Perin, G., Almeida, A. F., Spínola, P. A., Pella, A. F., & Sambuichi, R. H. (2021). A evolução do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Brasília: Ipea. (Texto para Discussão, No. 2.691). Recuperado de http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10824/1/td_2691.pdf
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).

Todavia, a adesão dos municípios a esse dispositivo vem ocorrendo de maneira bastante distinta no território nacional. Tal fato pode ser problematizado por uma miríade de dimensões, dados o caráter intersetorial que remete à operacionalização do PNAE e a diversidade da agricultura familiar em suas múltiplas interações com os contextos nos quais se insere (Silva, 2015Silva, S. P. (2015). A agricultura familiar e suas múltiplas interações com o território. Brasília: Ipea. (Texto para Discussão, No. 2.076). Recuperado de https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2076.pdf
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, 2021Silva, S. P. (2021). Panorama da produção acadêmica sobre alimentação escolar e agricultura familiar no Brasil. Brasília: Ipea. (Texto para Discussão, No. 2.656). Recuperado de http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10622/1/td_2656.pdf
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). Ademais, a Lei nº 11.947/2009, ao destinar o mínimo de 30% dos recursos transferidos pelo FNDE para a aquisição de produtos da agricultura familiar, não estabeleceu sanções rígidas para o caso de inobservância, tampouco gera incentivos atraentes para seu cumprimento. Logo, o êxito dessa norma torna-se dependente de vários fatores a serem observados no cotidiano da administração pública municipal, o que faz com que seu alcance e seus efeitos destoem entre as jurisdições federativas.

Por sua vez, há estudos que ressaltam a relevância das interações sociais nas diversas etapas de implementação do PNAE, capazes de influenciar a magnitude da introdução de gêneros alimentícios dos agricultores familiares (Bastian, Valadares, Alves, & Silva, no preloBastian, L., Valadares, A. A., Alves, F., & Silva, S. P. (no prelo). Análise das redes sociais no Programa Nacional de Alimentação Escolar: aspectos relacionais da aquisição de produtos da agricultura familiar. Planejamento e Políticas Públicas, (63).; Freitas & Freitas, 2020Freitas, A. F., & Freitas, A. F. (2020). Análise relacional do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Sociedade e Estado, 35(2), 525-552. https://doi.org/10.1590/s0102-6992-202035020007
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). Desse modo, as relações que balizam a implementação do programa ao nível do município são bastante relevantes, seja de forma isolada, seja em conjunto com outras políticas de desenvolvimento rural, como, por exemplo, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o já citado PAA (Silva & Silva, 2011Silva, M. G., & Silva, S. P. (2011). Para além do acesso: uma análise da relação entre mercados institucionais e empreendimentos de economia solidária no meio rural. Mercado de Trabalho: Conjuntura e Análise, (49), 87-93. Recuperado de http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3951/1/bmt49_econ04_paraalem.pdf
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; Grisa & Schneider, 2014Grisa, C., & Schneider, S. (2014). Três gerações de políticas públicas para a agricultura familiar e formas de interação entre sociedade e estado no Brasil. Revista de Economia e Sociologia Rural, 52(Supl. 1), 125-146. https://doi.org/10.1590/S0103-20032014000600007
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; Silva, 2014Silva, S. P. (2014). Mediação social e incidência territorial de políticas públicas de desenvolvimento rural no Médio Jequitinhonha/MG. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 19(65), 164-185. https://doi.org/10.12660/cgpc.v19n65.9145
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; Silva, Dias, & Amorim Júnior, 2015Silva, M. G., Dias, M. M., & Amorim Junior, P. C. (2015). Mudanças organizacionais em empreendimentos de agricultura familiar a partir do acesso ao PNAE. Revista de Economia e Sociologia Rural, 53(2), 289-304. https://doi.org/10.1590/1234-56781806-9479005302006
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; Sambuichi et al., 2019Sambuichi, R. H., Kaminski, R., Perin, G., Moura, I. F., Januário, E. J., Mendonça, D. B., & Almeida, A. F. (2019). Programa de Aquisição de Alimentos e segurança alimentar. Brasília: Ipea. (Texto para Discussão, No. 2482). Recuperado de https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34876
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).

Com base em tais problematizações, este estudo propôs-se a levantar diferentes respostas político-administrativas adotadas e seus resultados na promoção da compra de alimentos advindos da agricultura familiar, por efeito da Lei nº 11.947/2009. Para tanto, foram escolhidos dois municípios para comparação - Bonfinópolis de Minas e Brasilândia de Minas, ambos no estado de Minas Gerais -, com características socioeconômicas e ambientais parecidas, mas que registram desempenhos discrepantes na execução da referida norma.

O objetivo dessa comparação entre municípios vizinhos foi ressaltar o papel dos arranjos institucionais formados para constituí-los como casos considerados de sucesso ou de insucesso no tocante à inclusão da agricultura familiar no PNAE. Logo, a questão orientadora de pesquisa pode ser assim resumida: quais são os principais fatores associados ao sucesso ou insucesso na inserção local de agricultores familiares no mercado do PNAE em contextos distintos da administração pública municipal brasileira?

Os fatores a serem verificados nos contextos municipais escolhidos são tomados como elementos fundamentais para a formação dos arranjos institucionais de implementação. De acordo com a literatura utilizada, eles envolvem questões como: estrutura da burocracia municipal responsável; organização social dos atores de interesse; formas de utilização dos instrumentos previstos em lei para o atendimento da regra em questão; arcabouço normativo complementar; viabilização de outros programas convergentes com a natureza temática em análise; entre outros pontos que puderam ser problematizados levando-se em conta relatos de entrevistas e documentos coletados.

Buscou-se, com isso, abrir a caixa-preta da implementação de um programa nacional no plano municipal, com base tanto nas capacidades autônomas das unidades federativas quanto no seu potencial de interatividade com outros atores locais. Nessa perspectiva, os casos analisados expressam um conjunto de elementos orientados à compreensão das dinâmicas que cercam o Estado em ação, demonstrando aspectos concretos sobre desafios e potenciais referentes à inclusão desse segmento socioprodutivo em mercados de compras governamentais. Vale ressaltar ainda que o termo território é utilizado no texto de forma restrita, referindo-se ao espaço jurisdicional de poder federativo a ser analisado, como no caso dos municípios escolhidos para comparação.

MARCO TEÓRICO-CONCEITUAL DO PROBLEMA DE PESQUISA

As análises realizadas dos casos municipais escolhidos estão centradas no arcabouço político-institucional que rege o sistema federalista brasileiro, sobretudo no tocante à formulação e execução de políticas públicas de abrangência nacional, como é o caso do PNAE. Assim sendo, buscou-se explorar uma questão recorrente na literatura de análise de políticas públicas sobre por que programas formulados nacionalmente pelo governo federal e coordenados em relação direta com instâncias subnacionais alcançam resultados tão díspares em termos de efetivação no plano local (Pressman & Wildavsky, 1998Pressman, J. L., & Wildavsky, A. (1998). Implementación: cómo grandes expectativas concebidas en Washington se frustran em Oakland. México: Fondo de Cultura Económica.).

Vale ressaltar que o processo de implementação depende de uma série de requisitos associados às relações estabelecidas entre atores de interesse, competências e recursos mobilizados, além dos instrumentos de coordenação empregados para sua viabilização nos distintos recortes territoriais do país. É preciso levar em conta ainda a conjuntura específica que envolve o problema público sobre o qual está orientada a intervenção.

A investigação das características dos arranjos institucionais que permeiam toda essa sistemática operacional oferece subsídios importantes para a interpretação da ação estatal, em suas múltiplas esferas de poder. Para fins desta pesquisa, arranjos institucionais são assumidos como o conjunto de “regras, mecanismos e processos que definem a forma particular como se coordenam atores e interesses na implementação de uma política pública” (Gomide & Pires, 2014Gomide, A. A., & Pires, R. R. (2014). Capacidades estatais e democracia: arranjos institucionais de políticas públicas. Brasília: IPEA., p. 19). Entende-se também que tais arranjos não apenas credenciam um conjunto de atores a atuarem no processo de implementação, como também estabelecem seus papéis e a maneira como deve ocorrer essa interação interorganizacional.

Nesse sentido, os arranjos institucionais são relevantes na estruturação das capacidades estatais voltadas à governança de programas específicos, e por meio de sua análise é possível levantar indícios sobre as intencionalidades que influenciam, coordenam e direcionam a ação política em determinado campo de interesses (Hill & Hupe, 2002Hill, M., & Hupe, P. (2002). Implementing public policy: governance in theory and in practice. Nova Déli: Sage.; Gomide & Pires, 2014Gomide, A. A., & Pires, R. R. (2014). Capacidades estatais e democracia: arranjos institucionais de políticas públicas. Brasília: IPEA.).

Em termos da relação entre unidades federativas, embora as leis federais prevaleçam sobre as demais esferas legislativas, dada a hierarquia de sua autoridade regulatória, as dinâmicas de implementação apresentam diferenças entre os níveis de poder burocrático. Isso decorre do que Pierson (1995)Pierson, P. (1995). Fragmented welfare states: federal institutions and the development of social policy. Governance, 8(4), 449-478. https://doi.org/10.1111/j.1468-0491.1995.tb00223.x
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classificou como desafio federalista, ou seja, a dificuldade de exercer padrões de coordenação sobre os graus de competência e responsabilidade que estão em jogo em cada programa a ser executado. Tal desafio pode levar a duas situações opostas: por um lado, as jurisdições locais podem implementar ações por meio de arranjos criados em função de suas particularidades, possibilitando o surgimento de iniciativas de inovação política; por outro, a multiplicidade jurisdicional oferece incentivos à mobilidade entre cidadãos, empresas e organizações sociais em busca de condições mais propícias para o atendimento de seus interesses, explorando lacunas, assimetrias e ambiguidades normativas (Pierson, 1995Pierson, P. (1995). Fragmented welfare states: federal institutions and the development of social policy. Governance, 8(4), 449-478. https://doi.org/10.1111/j.1468-0491.1995.tb00223.x
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; Agranoff, 2001Agranoff, R. (2001). Managing within the matrix: do collaborative intergovernmental relations exist? The Journal of Federalism, 31(2), 31-56. https://doi.org/10.1093/oxfordjournals.pubjof.a004895
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; Mahoney & Thelen, 2010Mahoney, J., & Thelen, K. (2010). Explaining institutional change. Cambridge: Cambridge Press University.).

Logo, ao verificar o processo de formação e mobilização de arranjos institucionais no plano municipal referentes à regra específica de compra da agricultura familiar para o PNAE, esta pesquisa pretende contribuir com a análise da relação entre descentralização de competências e autonomia decisória. Em outras palavras, conforme estabelecido por Arretche (2012)Arretche, M. (2012). Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV., trata-se da relação entre a etapa de elaboração política (policy-making), que se remete ao ambiente normativo geral a que todos os níveis de poder federativo aderentes ao programa são submetidos, e a tomada de decisão política (policy decision-making), que aborda como as unidades subnacionais, com base em diferentes experiências, expertises e graus de autonomia, fazem uso de seu poder discricionário na etapa de execução.

Parte-se do pressuposto de que essa dissociação procedimental, presente no arcabouço do sistema federalista brasileiro, abre espaço para uma discricionaridade burocrática (Farah, 2018Farah, M. (2018). Abordagens teóricas no campo de política pública no Brasil e no exterior: do fato à complexidade. Revista do Serviço Público, 69, 53-84. https://doi.org/10.21874/rsp.v69i0.3583
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), que define na prática a incidência territorial (Silva, 2014Silva, S. P. (2014). Mediação social e incidência territorial de políticas públicas de desenvolvimento rural no Médio Jequitinhonha/MG. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 19(65), 164-185. https://doi.org/10.12660/cgpc.v19n65.9145
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) de determinado programa, isto é, a forma como o corpo normativo de políticas nacionais - no caso deste estudo, o PNAE - se adapta às condições objetivas nas distintas realidades locais.

SELEÇÃO DE MUNICÍPIOS E METODOLOGIA

O primeiro passo para definir os municípios foi verificar a evolução da aquisição municipal de alimentos oriundos da agricultura familiar entre os anos de 2011 e 2017, com base nas tabulações disponibilizadas pelo FNDE, para a classificação dos municípios brasileiros. Para isso, foram selecionados pares de municípios vizinhos que apresentavam entre si similaridades quanto a indicadores territoriais e ao volume de recursos recebidos para execução do PNAE, mas que contrastassem em relação à regra de aquisição de alimentos da agricultura familiar.

Em Minas Gerais, dois municípios próximos apresentaram boas condições para o estudo comparativo: Bonfinópolis de Minas e Brasilândia de Minas. Embora ambos possuam indicadores populacionais e agrários semelhantes, como mostra a Tabela 1, eles estão em situações opostas na execução do PNAE quanto ao quesito compras da agricultura familiar: Bonfinópolis tem alto desempenho e Brasilândia baixo desempenho. Já no que tange ao número de alunos na rede pública de ensino, a Tabela 2 demonstra que, embora haja uma diferença proporcional às respectivas populações, ambos os municípios são de pequeno porte, elemento que precisa ser levado em conta para qualquer tentativa de generalização dos resultados.

Tabela 1
Municípios selecionados: dados demográficos e agrários (2017)
Tabela 2
Municípios selecionados: dados de referência ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (2017)

Os dados de execução do PNAE demonstram a evolução do desempenho a nível nacional e nos dois municípios selecionados para este estudo em termos de aquisição da agricultura familiar. Embora a média nacional tenha se mantido abaixo dos 30%, é possível verificar tendência de crescimento ao longo dos anos. De todo modo, é digno de nota que, em 2017, metade dos municípios brasileiros (51%) adimplia ou superava essa cota. No caso dos municípios selecionados, é possível observar duas trajetórias bem distintas: enquanto Bonfinópolis se manteve durante todo o período bem acima da média nacional, Brasilândia ficou abaixo, sem atender ao mínimo exigido em nenhum dos anos, embora sempre com algum percentual de compra, o que comprova que os instrumentos para essa aquisição foram minimamente mobilizados no município (Figura 1).

Figura 1
Dados de execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar: aquisição de alimentos diretamente da agricultura familiar (%)

A coleta de dados consistiu na realização de entrevistas semiestruturadas com atores-chave dos dois municípios, cuja escolha seguiu a estratégia de seleção estratificada não randômica, na qual o pesquisador identifica subcategorias relevantes para o estudo e, dessa forma, assegura a diversidade dos respondentes levando-se em conta essas características (Lotta & Pires, 2020Lotta, G. S., & Pires, R. R. (2020). Categorizando usuários “fáceis” e “difíceis”: práticas cotidianas de implementação de políticas públicas e a produção de diferenças sociais. Dados, 63(4), 1-40. https://doi.org/10.1590/dados.2020.63.4.219
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). Foram feitas 11 entrevistas - seis em Bonfinópolis e cinco em Brasilândia -, indicadas no Tabela 1, que dão concretude e vivacidade aos processos analisados.

Tabela 1
Lista de entrevistados por município

A escolha de atores com diferentes funções, graus de responsabilidade e interesses na execução do PNAE, além de permitir verificar as estruturas burocráticas de implementação e a interação interorganizacional nos distintos contextos jurisdicionais, possibilitou maior robustez às análises ao contrastar os depoimentos coletados. Em caráter complementar, foram analisados documentos referentes aos processos de implementação em cada município, que foram solicitados diretamente dos atores entrevistados ou consultados na página eletrônica do FNDE.

RESULTADOS

Conforme indica o panorama da literatura sintetizado por Silva (2021)Silva, S. P. (2021). Panorama da produção acadêmica sobre alimentação escolar e agricultura familiar no Brasil. Brasília: Ipea. (Texto para Discussão, No. 2.656). Recuperado de http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10622/1/td_2656.pdf
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, há uma gama de fatores que condicionam os resultados do PNAE nos diferentes contextos jurisdicionais sobre os quais ele incide, especialmente no que tange ao cumprimento, por parte dos governos subnacionais, da regra referente ao direcionamento mínimo de 30% dos recursos repassados pelo governo federal para a aquisição de alimentos produzidos pela agricultura familiar. Esta seção visa contribuir com esse debate, ao focar a análise nos processos de implementação e em seus respectivos resultados em dois municípios do interior de Minas Gerais, enfatizando fatores que explicam o desempenho quanto ao atendimento de tal regra.

A descrição dos resultados para os municípios está calcada em um padrão que envolve a caracterização geral de cada um deles, os dados de aquisição de produtos da agricultura familiar para o PNAE e o encadeamento das evidências obtidas diretamente com os entrevistados. Com isso, buscou-se sintetizar a forma como se dá o processo de implementação em suas respectivas jurisdições, sob o amparo analítico do referencial teórico adotado.

Bonfinópolis de Minas

O município tem se destacado positivamente no que diz respeito ao atendimento à exigência legal de aquisição de produtos da agricultura familiar com recursos do PNAE, conforme demonstrado anteriormente, no Gráfico 1. Ao longo do período 2011-2017, registrou o percentual anual médio de 71,1% de destinação dos repasses do PNAE à aquisição desses produtos, chegando a 82% em 2017.

As entrevistas realizadas permitem afirmar que o município possui base ampla, coesa e bem organizada de agricultores familiares, entre pequenos produtores e assentados, espalhados em 16 comunidades e com forte tradição associativa - tanto em termos políticos, isto é, relativos à busca coletiva de soluções para problemas comuns, quanto em termos produtivos. Nesse sentido, a implantação da regra de compra da produção agrícola familiar não apenas se beneficiou desse contexto organizativo prévio, como também contribuiu para aperfeiçoá-lo.

Um dos efeitos dessa tradição foi o crescimento da relevância política da agricultura familiar. Pelos relatos obtidos, foi possível depreender que representantes dos agricultores têm ocupado posições na administração municipal, bem como em conselhos vinculados às políticas de desenvolvimento rural ou de alimentação escolar nos últimos anos. Essa circunstância propiciou que uma articulação abrangente pudesse ser construída entre poder público, entidades representativas, Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater) e profissionais ligados à execução do PNAE - diretores(as), nutricionistas e cantineiras.

As políticas municipais de apoio à agricultura familiar mostram-se também um componente fundamental da trajetória bem-sucedida do PNAE em Bonfinópolis, que, por sua vez, reflete o reconhecimento da importância econômica do setor para a cidade. Logo, essas duas dimensões - articulação institucional no âmbito da municipalidade e políticas públicas locais de apoio à agricultura familiar - explicam, portanto, grande parte do sucesso do PNAE em Bonfinópolis, especialmente no tocante à compra direta de produtos desse público.

Quanto à articulação institucional a nível local, um conjunto de elementos merece ser analisado. Primeiramente, em termos de estrutura burocrática, destaca-se a estreita colaboração entre as secretarias municipais de Educação (Semed) e da Agricultura (Seagri) no âmbito do PNAE. Essa relação engloba também a Emater local e caracteriza-se por uma dinâmica dialógica entre as secretarias e as entidades representativas dos agricultores, tais como o sindicato e, sobretudo, a central de associações e a cooperativa do município. Fica patente, por meio das informações levantadas, que o eixo principal de funcionamento do PNAE em Bonfinópolis está centrado em torno dessa articulação político-administrativa, unindo o órgão que centraliza as compras - a Semed - e o órgão que identifica a capacidade de oferta de alimentos e mobiliza a participação dos agricultores familiares no programa - a Seagri.

Tal relação de parceria entre as secretarias surge então como indício proativo da discricionaridade burocrática municipal na formação de arranjos de implementação para o atendimento da regra em questão. Ela assenta-se numa diretriz assumida internamente pela gestão local, reiterada pelos próprios entrevistados: o compromisso em comprar o máximo possível de produtos da agricultura familiar, não apenas para atender à proporção mínima de 30%: “O que a gente consegue comprar da agricultura familiar, a gente compra tudo. E deixa para comprar, como outros itens, somente o que nós não temos”; “O que a agricultura familiar pudesse oferecer, eles [a prefeitura] compravam”.

As duas secretarias levam em consideração a capacidade de oferta da produção familiar agrícola do município, de tal sorte que, uma vez lançada a chamada pública, seja possível encontrar um conjunto de potenciais fornecedores em condições de atender aos requisitos formais e às necessidades de provisão das escolas - isto é, quantidade e qualidade de alimentos, exigências nutricionais e frequência das entregas. Por meio dessa estratégia, a regra de compras deixa de ser uma previsão incerta, aplicada às cegas a uma realidade socioeconômica desconhecida, para ganhar efetividade e aderência às condições produtivas locais.

A Seagri apura, mediante cadastramento e mapeamento dos produtores agrícolas, quais alimentos podem ser providos ao longo do ano, em sintonia com a apuração das necessidades alimentares das escolas. Essa ação configura-se, na prática, como ferramenta indispensável para o planejamento das compras conforme um cronograma compatível com a sazonalidade dos produtos locais. Em parceria com a Emater, a Seagri também monitora a situação documental dos produtores familiares, a fim de assegurar que, no lançamento da chamada pública, o maior número possível deles possa participar:

A secretaria trabalha articulando produtores e cooperativa nessa questão da comercialização. Vai ter a chamada pública, a gente tenta fazer esse levantamento com os produtores que são da cooperativa e têm esses produtos. Nós, da secretaria, já buscamos, já pesquisamos e avisamos: “Olha, sua DAP vai vencer em tal data, procura a Emater para não correr o risco de chegar o dia da chamada e não conseguir participar porque não está com DAP ativa”. Então, toda essa articulação a gente faz junto aos agricultores.

Uma vez concluída a seleção, as secretarias seguem acompanhando, com os produtores participantes do PNAE, o planejamento das entregas e o cumprimento das condições previstas.

Quando vão lançar a chamada pública, a gente chama os produtores, os que não têm problemas com a DAP, que estão com as DAPs ativas, e mostra pra eles a chamada, a demanda. Então, eles falam: “Eu tenho o produto tal, o produto tal”. Aí [eles] oferecem os produtos que eles vão ter, e a gente monta chamada de acordo com o que a gente vai vendo com eles e de acordo com as necessidades das escolas.

Os alimentos a serem comprados, ela [Secretaria de Educação] só comprava aquilo que a gente repassava pra ela. A gente acompanhava sempre o estoque [de alimentos das escolas] e dizia: “Esse mês não precisa de tal coisa, esse mês precisa de tal coisa”.

Ela [a Secretaria de Agricultura] cadastra todos os produtores que querem participar. Quando ela faz o cadastro, ela já pergunta qual produto eles teriam para fazer a entrega. Aí [concluída a seleção] ela [a Secretaria de Agricultura] liga para o produtor e diz: “Olha, semana que vem tem a entrega de tantas dúzias de ovos”.

É importante dizer ainda que, após ser lançada, a chamada pública é amplamente divulgada por programas de rádio e por carros de som que percorrem as 16 comunidades rurais do município, o que contribui sobremaneira para os resultados expressivos alcançados.

Um dos efeitos positivos do arranjo institucional montado em torno do atendimento dessa regra diz respeito ao caráter indutor que a garantia de compra tem sobre a estruturação dos agricultores familiares do município. Isto é, o planejamento gradual e transparente da execução do programa repercute na organização produtiva desses agricultores, que têm na previsibilidade das entregas um eixo ordenador de suas atividades:

O planejamento é feito assim: [por exemplo,] eu sou uma fornecedora de cenoura. Eu já tenho a estimativa de quantos quilos de cenoura eu vou precisar produzir por mês. Nós já chegamos nessa fase. [...] Eles [os produtores familiares] já produzem tendo certeza de que aquele produto vai ser entregue. [...] [Enquanto] uma etapa já [é] semeada, outra já [está] em processamento.

O PNAE foi considerado pelo representante dos agricultores familiares ouvido na pesquisa como o maior mercado para essa produção em Bonfinópolis, cujo acesso é realizado coletivamente pelos produtores. Essa organização coletiva no município tem como marcos a criação de associações de produtores em cada uma das 16 comunidades rurais e a reunião delas em uma central de associações. Para não serem prejudicados nos critérios de priorização estabelecidos pela Resolução CD/FNDE nº 06/2020, os produtores criaram uma cooperativa, registrada com uma DAP de pessoa jurídica emitida pela Emater, que lhes permite atender aos requisitos da chamada pública. Portanto, os agricultores - desde que mantenham ativas suas respectivas DAPs - participam como produtores associados.

Atualmente, a cooperativa possui em torno de 90 associados, incluindo muitos assentados da reforma agrária. Aqueles que participam do PNAE entregam os produtos diretamente às escolas - caso dos que atendem às exigências de acondicionamento e embalagem dos produtos - ou a uma unidade de distribuição de alimentos, que funciona em um galpão cedido pela prefeitura. A cooperativa recebe os pagamentos e repassa-os aos produtores segundo as cotas correspondentes.

Foi possível identificar na pesquisa que o arranjo formado entre a estruturação coletiva da oferta e a centralização administrativa da relação dos produtores com a prefeitura possibilitou uma série de implicações positivas para o funcionamento do PNAE em Bonfinópolis, como, por exemplo:

  • assegura uma escala de produção capaz de fazer frente às necessidades alimentícias das escolas ao longo do ano;

  • fornece assistência aos agricultores que, via de regra, têm dificuldade de lidar com a burocracia processual;

  • reserva ao coletivo dos cooperados uma margem interna de gestão de sua capacidade produtiva.

Aqui nós temos também uma unidade de distribuição de alimentos. Então, a gente tem uma estrutura bem legal, onde se faz assim, às vezes esse intercâmbio, para onde o produtor traz o produto quando não dá pra entregar direto na escola. Entrega aqui nessa unidade e daqui é redistribuído para as escolas.

[A quantidade de alimentos produzidos pela agricultura familiar] é suficiente sim para o ano, porém, aí dependendo da safra, a gente elaborava cardápio, aí acontecia algum imprevisto que eles não conseguiam fornecer, mas aí a gente fazia a troca desses alimentos. Fazia alterações no cardápio, mas sempre preservando as quantidades de fibra, proteína e vegetais que o PNAE exige. A troca era feita dentro da agricultura familiar mesmo. Não tinha couve para oferecer, aí a gente pegava outro tipo de vegetal, mas dentro da agricultura mesmo.

Essa coesão organizativa, fortalecendo o papel político e econômico da agricultura familiar no município, encontra sua contrapartida no conjunto das políticas públicas ofertadas pela prefeitura. A maioria dos entrevistados fez referência a essas políticas, mesmo aqueles que não estavam diretamente ligados à agricultura, ressaltando o papel-chave que se atribui a elas na execução do PNAE em Bonfinópolis.

Quatro iniciativas foram destacadas. Primeiramente, as comunidades rurais dispõem de um trator de grade, adquirido com recursos de emenda parlamentar. A prefeitura, além disso, patrocinou um programa de correção do solo da região, considerado muito ácido. Também iniciativa da prefeitura, o Projeto IrrigaBon ofereceu aos produtores ressarcimento de R$ 6 mil aos gastos com irrigação e de mais R$ 6 mil quando esses gastos eram investidos em fruticultura. Foram citadas ainda a aquisição de equipamentos para o processamento de leite para a fabricação de iogurte, que segue pendente de certificação, e a criação de uma agroindústria para o beneficiamento de frutas (produção de polpas), cedendo seu uso aos produtores familiares que vendem para o PNAE.

Os entrevistados reiteraram que o estímulo da prefeitura foi fundamental para a entrada desses produtores no PNAE, em contraponto às dificuldades iniciais relacionadas ao clima e ao baixo preço dos produtos agrícolas. O apoio da Emater tem sido importante também para viabilizar o acesso às linhas de crédito do Pronaf, significativo para a manutenção dos investimentos em suas propriedades rurais.

Deve-se destacar ainda que a agricultura familiar encontra em Bonfinópolis um ambiente de relativa estabilidade fundiária, sem conflitos latentes, mas ocupa parcelas menos férteis do solo, já que as melhores terras são exploradas por grandes produtores de grãos. De certa forma, o PNAE, ao mesmo tempo que contribui na alimentação servida nas escolas, gera externalidades positivas para atenuar os efeitos dessa desigualdade.

O município é essencialmente agrícola. [...] Nós temos duas realidades distintas aqui. A Chapada de Bonfinópolis, que é onde eleva um pouco o [índice de desenvolvimento humano] IDH do município, é a produção de grãos. La é mais alto, onde chove mais. E tem as áreas mais fracas, que é a região do Vão, que a gente fala. No Vão são terras mais fracas e degradadas e é onde concentra mais a agricultura familiar.

A produção entregue pelos agricultores familiares às escolas inclui feijão, batata-doce, cenoura, mandioca, farinha, melancia, leite, abóbora, banana, hortaliças, ovos, cebola, repolho, beterraba, alho, polpas de frutas e outros gêneros. Também no que diz respeito à ampliação do rol de produtos, a prefeitura tem participação importante, como, por exemplo, ao adquirir um resfriador de leite com capacidade para armazenar até 70 mil litros por dia. Já a vigilância sanitária local emite um selo de inspeção municipal para produtos da agricultura familiar de origem animal que permite sua comercialização no município.

Mesmo assim, a necessidade de aprovação sanitária e as dificuldades logísticas de transporte em função das grandes distâncias no município seguem como obstáculos, nos dizeres dos entrevistados. Alguns produtores, no início das operações do PNAE, mandavam os produtos pelos ônibus escolares, afetando especialmente o transporte de hortaliças, gênero mais perecível, e com implicações gerais sobre a qualidade dos alimentos. Por essa razão, a Emater procurou orientá-los com um manual de boas práticas, a par do trabalho de inspeção sanitária, a fim de ampliar o rol de produtos comercializáveis pela agricultura familiar: “Tem um trabalho de inspeção municipal aqui que o pessoal está desenvolvendo, para tentar incluir o [selo de inspeção municipal] SIM a nível territorial. Mel inspecionado, queijo inspecionado”; “O leite vende [para o PNAE], mas o frango, não, porque não tem inspeção”; “A questão da aprovação sanitária é, sim, [um obstáculo], mas também a questão das distâncias. Aqui no município tem comunidades a 50 km de distância. A questão sanitária é importante. Alimentação criança, né? Tem que trabalhar as boas práticas”.

Outro problema, segundo os gestores do PNAE, é o baixo valor repassado pelo FNDE, o que exige da prefeitura aporte orçamentário adicional em torno de R$ 10 mil a R$ 12 mil por mês. Apesar disso, a maior parte das entrevistas realçou os benefícios gerados pelo PNAE em Bonfinópolis, nas duas pontas que o programa conecta: agricultura familiar e alimentação escolar. Em relação aos agricultores familiares, é destacada a facilidade de comercialização criada pelo programa, o que resultou no aumento da renda familiar e no acréscimo dinâmico à economia do município.

A despeito das carências tecnológicas que persistem mesmo com os melhoramentos recentes, os agricultores locais têm buscado planejar melhor a produção e investir na sua capacidade de processamento para agregar valor. Além disso, os benefícios trazidos com a valorização da produção familiar incentivaram a permanência ou o retorno dos jovens à agricultura: “Graças às compras públicas, começamos a ver a permanência dos jovens no campo e a entrada deles no ensino técnico [agrícola]” (Seagri); “A melhoria principal foi a permanência dos jovens no campo. Os jovens estão investindo na permanência no campo [...]. Tem a abertura de uma frente de trabalho na agricultura familiar” (Sindicato de Trabalhadores Rurais).

No que concerne às mudanças trazidas à alimentação escolar, os relatos reiteraram que a entrada dos produtos da agricultura familiar melhorou a qualidade e diversificou o cardápio oferecido. Também acerca de tal aspecto, a articulação entre as secretarias, com o protagonismo da nutricionista, mostrou-se coesa e bem-sucedida. A maior presença de alimentos in natura e a preferência a produtos de época influíram positivamente sobre os hábitos alimentares dos estudantes:

Quando eu começava a dar esse suporte [na alimentação escolar], eu pedia o mapa dos produtores que tem no município, qual deles poderia fornecer para tal a escola, e sempre pegava esse mapa pra ver a logística também [...]. Pegava o que é que ele tinha para me fornecer ao longo do ano, aí a gente montava o cardápio em cima do que ele tinha para me oferecer, aí eu não fazia assim: “Ah, eu tô colocando tal alimento, aí eles vão procurar o agricultor para ver se ele tem ou não”. Eu achava mais viável eles me fornecerem e eu montar o cardápio em cima do que eles tinham, porque eles tinham muita variedade, então não ficava uma alimentação monótona (nutricionista).

[Com a entrada da agricultura familiar,] foi observada uma grande mudança. Quando eu entrei, vi que a aceitação dos alunos em relação a vegetais era muito baixa e a composição da comida era muito gordurosa. Trabalhamos muito com as merendeiras nessa parte, para elas estarem também ajudando na educação nutricional dos alunos, na questão de aceitação desses alimentos mais nutritivos (nutricionista).

A Semed encarregou-se de estabelecer maior proximidade entre diretores, merendeiras e nutricionista, a fim de gestar a mudança dos cardápios das escolas com a adoção de opções alimentares mais saudáveis. Desse ponto de vista, pode-se considerar que a secretaria funcionou como ponte entre escolas e agricultores familiares, cujos pilares de sustentação são: a Seagri, com políticas públicas de apoio ao produtor familiar; e a organização coletiva da agricultura familiar, com as associações nas comunidades rurais, a central de associações e a cooperativa. Tal articulação deu forma, portanto, a uma estratégia própria de execução do PNAE que parte da premissa de que cabe aos órgãos da prefeitura, em parceria com a Emater, criar as condições formais e produtivas necessárias para garantir a efetividade das chamadas públicas lançadas para o atendimento à regra prevista no artigo 14 da Lei nº 11.947/2009.

Brasilândia de Minas

O município tem apresentado baixa execução do PNAE no tocante à destinação mínima de 30% dos repasses financeiros do FNDE à aquisição de produtos da agricultura familiar. Ao longo do período 2011-2017, o percentual anual médio foi de apenas 7,1%. Mesmo no ano mais bem-sucedido da série, 2016, a compra não ultrapassou 15% dos recursos (ver Gráfico 1).

Por meio dos depoimentos coletados, duas questões podem ser destacadas:

  • ausência de relação organizacional entre agricultores familiares e órgãos da administração municipal responsáveis pela execução do programa;

  • ausência, nos últimos anos, de uma efetiva Seagri, componente essencial para a articulação institucional, com a Semed, para a aquisição de alimentos da agricultura familiar como diretriz da política de alimentação escolar.

Um dos fatores explicativos para essa desarticulação operacional do programa no município, ao menos no que tange ao atendimento do artigo 14, é a fraca densidade organizativa da agricultura familiar, manifestada no fato de que a adesão ao PNAE é não apenas baixa, mas dá-se de forma individual. Essa condição representa, por si só, um limitador da oferta de produtos que ajuda a explicar o baixo desempenho dessa vertente em Brasilândia. Ao longo das entrevistas não foi citada, por exemplo, a existência de uma cooperativa local de agricultores familiares.

Como resultado, a variedade dos produtos entregues é bastante restrita: polpas de frutas, alface, hortaliças, brócolis, couve, cheiro-verde, abobrinha e mandioca. Os participantes - apenas quatro - são assentados da reforma agrária no município. Eles entregam os alimentos diretamente nas escolas com veículos ou meios próprios, o que sinaliza tanto a precariedade da comunicação entre eles quanto a ausência de apoio logístico por parte da prefeitura.

Do ponto de vista do poder público municipal, as entrevistas com o representante da Semed e com a nutricionista reiteraram tentativas já feitas para atrair os agricultores familiares:

Tem sido um grande desafio [comprar da agricultura familiar]. Hoje o município não compra nem 10%. Não é porque a gente não quer comprar, mas é que a gente tem muita dificuldade de trazer os agricultores pra fazer parte desse programa. Este ano fizemos uma parceria com a Emater. [...] Na reunião, tinha o técnico da Emater, o setor de compras do município, o pessoal da vigilância sanitária, mas de agricultores vieram três ou quatro. Aí a gente não consegue comprar. Tem uma resistência muito grande por parte dos agricultores. [...] Embora a gente tenha interesse, parece que os agricultores não querem. E os que comparecem são sempre os mesmos.

A busca por parcerias institucionais no âmbito do PNAE, como a Emater e o Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar (Cecane) da universidade de referência, é também citada nas entrevistas como parte de uma estratégia, repetida sem sucesso, de engajar os agricultores familiares locais no programa: “A articulação nossa é com a Emater, [para] que a gente fizesse uma chamada [pública] para chamar esses agricultores, mas infelizmente a participação é muito pequena. [...] A gente chama a Emater para incentivar esses produtores a vender para a prefeitura”; “Já recebi visita do Cecane, que fez reunião com os agricultores, foi na prefeitura. Estamos dispostos a comprar, mas os agricultores não”.

Em parte, o problema pode ser agravado não apenas pela restrita divulgação sobre os processos de aquisição, feita apenas pelo portal virtual da prefeitura, mas também pelo conteúdo formal do instrumento usado para atrair os agricultores familiares. As entrevistas apontaram que esse instrumento é, na prática, uma licitação, e não uma chamada pública, aos moldes do que dita a Lei nº 11.947/2009. Isto é, embora seja exclusivamente dirigida à agricultura familiar, os termos remetem-se à fórmula da tomada convencional de preços ou pregão. Trata-se de uma evidente inadequação processual que também ocorre em outros municípios, segundo os próprios relatos.

Ante a baixa adesão da agricultura familiar, a maioria dos alimentos tem sido comprada em atacadistas e varejistas da cidade - sobretudo os que exigem refrigeração, como leite, carne, frango e ovos - ou de municípios próximos. Recentemente, uma empresa de fora de Brasilândia, vencedora da licitação geral, passou a assumir a maior parte do fornecimento de alimentos para as escolas, com significativa preponderância de itens industrializados.

Durante muito tempo [os alimentos] vinham daqui mesmo do município, mas de uns tempos para cá têm vindo de outro município. Aqui ficava mais fácil de resolver, quando precisava trocar um produto. Quando eram os fornecedores locais [supermercados], era muito melhor. [...] Depois passou a ser essa empresa [de fora da cidade], que, além da alimentação escolar, fornece outros produtos ao município.

As entrevistas levantaram indícios relevantes de análise. O primeiro, já mencionado, é a baixa organização dos agricultores familiares, como indicado por uma representante de assentamento de reforma agrária. Embora eles já tenham acessado o Pronaf - o que, em certas condições, funciona como um vetor de estruturação produtiva -, os produtores locais são desmobilizados e não têm articulação com prefeitura nem com sindicatos. A falta de acompanhamento por parte dos órgãos públicos - técnico e social - explicaria, em alguma medida, a desorganização dos assentados:

A presidente [da associação] sempre tem que procurar as necessidades do assentamento para levar para três órgãos, que são: Emater, prefeitura e sindicato. A gente está desligado desses três órgãos. [...] Agora mesmo a gente está necessitando de um trator para abrir uma valeta e colocar uns canos de água [...], mas tem rivalidade política [com prefeito] e complica. (...) Se a gente tivesse acompanhamento, nosso assentamento estaria crescendo.

A administração municipal tem conhecimento desse grau de desorganização dos produtores familiares e, ao mesmo tempo, assume que parte da responsabilidade se deve a uma lacuna institucional em sua própria estrutura, que passou muito tempo sem um titular na Seagri. Mesmo a Emater, apontada como parceira indispensável para mediar a entrada da agricultura familiar no PNAE, tem atuação limitada, dada a falta de estrutura e de pessoal no município: “Somos um município grande em extensão rural, rico em água, então talvez falte incentivo. [...] Nós pecamos com a falta de um secretário de Agricultura, eu acho que foi uma falha. Não exerceu o papel de fazer essa ponte com as famílias de agricultura familiar” (Semed); “A gente tem só um escritório da Emater, mas a gente não tem técnico”.

Subsiste, portanto, o reconhecimento de que, no âmbito municipal, o poder público pode exercer papel relevante na organização dos agricultores e que o meio de induzir essa organização passa pela criação das condições de participação ou acesso desses produtores familiares às políticas públicas. No caso específico de Brasilândia, é possível que a incipiente organização interna dos assentamentos - em regra, ocupando terras mais degradadas e com acesso à eletricidade, água e pavimentação muito mais precárias que as áreas de agricultura consolidada - configure um problema que poderia ser sanado com as ações estruturantes do poder público.

As consequências das dificuldades encontradas se manifestam não só na baixa participação dos agricultores familiares de Brasilândia no PNAE, mas no próprio obstáculo que eles enfrentam para manter a viabilidade econômica de suas atividades agropecuárias.

Outro aspecto digno de nota refere-se às dificuldades dos agricultores locais em atender à documentação exigida nos processos de compras públicas: “Os produtores têm pouca renda, não têm acompanhamento técnico, têm dificuldades de comercialização. O que planta fica parado. [...] O escoamento da produção é feito com transporte próprio” (associação de assentados);

Os agricultores têm muita dificuldade com relação à documentação também. Às vezes, não sei se é falta de conhecimento, se exige muita documentação. A gente até trouxe o responsável do setor de compras para esclarecer, mas eles não vieram. O principal é a DAP (Semed).

A necessidade de implementos técnicos, como o uso de trator, para desenvolver a produção nos assentamentos foi também aludida como demanda premente por parte dos assentados. Apesar disso, afora a produção adquirida pelo PNAE - basicamente hortaliças -, a produção dos assentados abrange outros gêneros, como mandioca, cana para rapadura, banana, peixe, ovos, queijo, leite, abobrinha. O feijão é uma cultura forte no município, mas restrita aos grandes produtores. A nutricionista afirmou que o programa teria, por exemplo, interesse em adquirir as bananas produzidas pelos assentados: “Tem bastante produção de banana. A gente tem consumo alto na merenda de banana. A gente queria muito comprar, ver com esses produtores se eles fornecem pra gente, eles têm vendido muito nos supermercados locais” (nutricionista).

Outra questão mencionada diz respeito às dificuldades de obtenção do selo de inspeção sanitária, que inviabiliza o fornecimento de produtos de origem animal. O custo com que os produtores familiares teriam de arcar para efetuar, em suas propriedades, as adaptações exigidas pelo regramento sanitário, para muitos deles, é visto como um investimento pouco compensatório vis-à-vis o retorno econômico, tanto nas vendas para o PNAE quanto para os consumidores da cidade:

Como a gente não tem o selo de inspeção, não pode comprar produtos de origem animal, nem leite. Se tivéssemos, isso ajudaria bastante. [...] Sempre tem ovos, leite, frango, queijo que a gente poderia estar comprando, aí não pode comprar da agricultura familiar porque não tem o selo de inspeção. [...] O município fez uma parceria para vir fazer essa inspeção, mas para o agricultor conseguir o selo ele tem que fazer adaptações no seu local do abate. [...] Do ponto de vista deles, não compensa. Para o agricultor, o custo fica alto, para fazer essas adaptações necessárias para conseguir o selo.

Ainda assim, a percepção que sobressai nos relatos é o distanciamento entre os representantes dos órgãos públicos envolvidos na execução local do PNAE e os agricultores familiares. Do ponto de vista da prefeitura, dada a reiterada abstenção dos agricultores nas reuniões sobre o PNAE, é difícil compreender por que razão o programa, com retrospecto positivo entre seus participantes, não os atrai:

Eles [assentados] têm que entender que eles têm que ter uma associação forte para isso [participar do PNAE], porque é uma renda para eles. A gente tem feira aos domingos aqui e você vê que tem oferta de produtos. Se eles organizarem, dão conta de fornecer para as escolas.

Eles [participantes do PNAE] parecem satisfeitos. É bem pago. Às vezes o que o município paga é melhor do que a gente vê no supermercado. E não sei o que falta para eles aderirem ao programa, se é incerteza, se é medo de não receber”.

De outra parte, a representante dos assentados afirmou que não conhece ninguém do seu assentamento que participa do PNAE e que, pela sua impressão, a maioria sequer tem informações a respeito. Trata-se, aparentemente, de dificuldade de comunicação recíproca, que concerne não propriamente à ausência de disposição para aproximação, mas à inexistência ou inatividade de canais institucionais de interlocução. Exemplo disso é a resposta da representante da Semed, que, ao ser perguntada sobre os atores locais essenciais para a execução do PNAE, não incluiu nenhuma menção aos agricultores familiares: “Para implementar o PNAE, a gente procura a prefeitura mesmo, juntamente com a nutricionista. [...] Para suprimento de alimento nas escolas, os atores importantes são a nutricionista e as cantineiras” (Semed).

Todavia, as representantes da prefeitura consideram que a política de alimentação escolar no município funciona bem. Apesar de ressaltarem a necessidade de complementação orçamentária, já que o repasse do FNDE é considerado muito baixo, a representante da Semed e a nutricionista apontam que o cardápio servido nas escolas é variado, segue as diretrizes normativas e tem boa aceitação entre os estudantes. Essa boa aceitação inclui, também, os produtos adquiridos na agricultura familiar, especialmente as saladas. Os alunos da zona rural almoçam, lancham e jantam, e os da creche recebem café, colação, almoço e lanche. Os alimentos oferecidos, de modo geral, são: pão, leite, frutas, arroz, feijão, carne, legumes e bolos.

Portanto, os relatos aqui analisados permitem identificar que, enquanto no município de Bonfinópolis há relação de retroalimentação positiva e convergente entre capacidade indutora da administração municipal e estrutura organizativa dos agricultores familiares, em Brasilândia ocorre o inverso. As medidas tomadas pelo poder público local no sentido de atrair os agricultores familiares ao programa, como as convocações para reuniões com a Semed e outros atores, se mostraram pouco eficazes. Tal desarticulação pode ser assumida como fator principal para o baixo desempenho do município no atendimento da regra prevista pelo artigo 14 da Lei 11.947/2009, que, por sua vez, também se torna impeditivo para converter o PNAE em instrumento de desenvolvimento local, dado seu potencial de operar como fator de estruturação produtiva e geração de renda mediante a garantia de compra da produção nos seus territórios de incidência.

Síntese analítica

Com base na realidade empírica dos municípios investigados, foi possível aprofundar as análises em torno da implementação do PNAE, especialmente no que tange à capacidade de aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar para a distribuição na rede pública de ensino. Tanto os fatores associados ao sucesso quanto os entraves identificados perpassam questões em torno dos arranjos institucionais de implementação da referida regra que envolvem organização e estruturação dos agricultores familiares, interação entre poder público e sociedade civil e aspectos normativo-procedimentais.

Conforme demonstrado pelas experiências analisadas, sobretudo no caso de Bonfinópolis de Minas, pode-se dizer que as circunstâncias que tornaram bem-sucedido o cumprimento da regra se assentam em três eixos principais:

  • estruturação e articulação das instâncias do poder executivo local (Semed e Seagri, outros órgãos da prefeitura) com entidades representativas dos produtores familiares (sindicatos, associações, cooperativas) e entidades de assistência técnica (Emater);

  • organização coletiva e capacidade de interlocução institucional dos agricultores familiares locais para fazerem valer suas demandas;

  • adequação dos instrumentos normativos pelos quais o programa se realiza (chamadas públicas) ou que balizam as condições de produção e fornecimento de alimentos da agricultura familiar às escolas (inspeção sanitária).

O papel das profissionais nutricionistas foi destacado também tanto por atores do poder público municipal quanto por representantes dos agricultores e extensionistas. Elas exercem múltiplas funções nas etapas de execução do PNAE, que passam pelo mapeamento de produção, elaboração do cardápio, formação das cantineiras, educação alimentar e nutricional, articulação com atores locais, entre outros, contudo o quadro reduzido dessas profissionais nos municípios compromete sobremaneira sua capacidade de cumprir as atribuições em sua totalidade, ficando difícil uma atuação mais efetiva para viabilizar a participação da agricultura familiar (Silva, 2021Silva, S. P. (2021). Panorama da produção acadêmica sobre alimentação escolar e agricultura familiar no Brasil. Brasília: Ipea. (Texto para Discussão, No. 2.656). Recuperado de http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10622/1/td_2656.pdf
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream...
).

Quanto aos entraves identificados, as razões apontadas, especialmente ao verificar a experiência de Brasilândia de Minas, referem-se a condições concretas vivenciadas no município - desarticulação institucional, falta de canais de diálogo da administração municipal com os produtores familiares, desorganização coletiva, limitação da capacidade produtiva etc. Ao que tudo indica, não houve esforço coletivo entre os atores de interesse em torno do PNAE, capitaneado pela discricionaridade burocrática do poder executivo local para o atendimento da norma e, consequentemente, sua valorização política como elemento indutor do desenvolvimento local. Por sua vez, não foi relatada pelos entrevistados nenhuma justificativa para o desempenho modesto da política local de aquisição de produtos da agricultura familiar que alegasse impertinência ou inaplicabilidade da lei.

CONCLUSÃO

As análises sobre os fatores de sucesso e entraves da implantação do PNAE, conforme apresentado neste estudo, indicam que as estratégias administrativas municipais e as respectivas estruturas operacionais mobilizadas para esse fim são decisivas para o atendimento à cota mínima de 30% de compras da agricultura familiar. Ou seja, a gestão importa à medida que a unidade federativa mobiliza de forma proativa sua parcela de discricionaridade burocrática e suas capacidades estatais para o atendimento de regras gerais, definidas pelo executivo federal, visando garantir um ambiente institucional propício para a execução de programas nacionais em seus respectivos contextos jurisdicionais. Isso demonstra, para o caso específico do PNAE, que seu desenho normativo permite a formação de arranjos e coalizões locais para sua incidência diferenciada no território nacional.

As evidências inferem, como elemento central para a inclusão dos agricultores ser efetiva, a necessidade de uma articulação consistente entre os atores no lado da demanda - Semed, setor de compras, nutricionistas - e aqueles do lado da oferta - Emater, Seagri, entidades representativas dos agricultores. Quando essa articulação é inexistente ou ineficaz, tarefas meritórias como mapeamento e planejamento da produção local para elaboração do cardápio, cronograma de entregas, divulgação e mobilização dos agricultores ficam seriamente comprometidas. Para que isso ocorra de fato, o poder público subnacional precisa mobilizar sua margem de decisão para estruturar arranjos institucionais de implementação do programa de forma a contemplar essa possibilidade, ou ainda, de acordo com a realidade de cada contexto, fomentar as potencialidades locais para o atendimento dessa regra, como, por exemplo, viabilizando canais de acesso a outras políticas de apoio à agricultura familiar e suas comunidades rurais produtoras de alimentos.

A síntese apresentada, haja vista os contrastes entre as práticas institucionais analisadas, oferece um prospecto geral valioso para outros municípios empenhados em ampliar a compra da agricultura familiar em suas jurisdições. Isso vale não apenas para atender à lei, mas também para converter o PNAE em instrumento de desenvolvimento local, dadas as múltiplas dimensões de sustentabilidade que ele pode mobilizar.

Por fim, é importante destacar que não houve de nossa parte a pretensão de abordar toda a complexidade que incide sobre o cotidiano da gestão pública municipal. Estudos acerca dos desafios inerentes à relação entre alimentação escolar e agricultura familiar precisam ser mantidos, dadas as limitações quanto à validação externa dos resultados aqui apresentados. Os fatores de sucesso e entraves identificados podem ser testados em outros contextos para além dos controles utilizados nos casos desta pesquisa, como, por exemplo, para municípios de diferentes portes populacionais, visando testar o fator escala, ou estratégias usadas por administrações estaduais.

  • Avaliado pelo processo de double blind review

REFERÊNCIAS

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Editado por

Editor responsável: Andrea Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2022
  • Aceito
    14 Out 2022
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