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Análise morfológica de espaços urbanos em bacias hidrográficas: um olhar sobre o entorno do Arroio Dilúvio em Porto Alegre

Morphological analysis of urban spaces in river basins: analyzing the surroundings of Dilúvio River in Porto Alegre

Resumos

Este artigo busca apresentar reflexões acerca de estratégias de qualificação da Bacia Hidrográfica do Arroio Dilúvio, área densamente ocupada na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA). Adota-se inicialmente o método de análise urbana baseado nas contribuições de percepção da cidade desenvolvida por Kevin Lynch, buscando destacar, em três trechos demarcados ao longo de suas margens, situações identificadas como críticas devido aos conflitos que geram entre a população e o meio em que se inserem. Aponta-se, ao final, para a necessária integração entre a recuperação do curso de água e sua conexão com o entorno construído e vivido.

bacia hidrográfica do Arroio Dilúvio; análise urbana; conflitos; integração; entorno construído e vivido


This paper presents some reflections on the qualification strategies of the Dilúvio River Basin, a high density area in the Metropolitan Region of Porto Alegre. We used the urban analysis method based on the contributions of city perception developed by Kevin Lynch, seeking to highlight, in three demarcated stretches along the river’s margins, critical situations regarding conflicts between the population and the environment. At the end, we argue that there must be integration between the recovery of the watercourse and its connection with the city’s everyday life.

Dilúvio River Basin; urban analysis; conflicts; integration; city’s life


Introdução

O rápido crescimento das cidades brasileiras a partir da segunda metade do século XX foi fundado em uma concepção de desenvolvimento urbano que, em geral, desconsiderou as condições ambientais preexistentes. Os rios e afluentes urbanos se tornaram fontes difusas de poluição, afetando, inclusive, pontos de captação de água para consumo nas próprias cidades. Desde então, cidades já estruturadas tentam buscar soluções para a revitalização de seus cursos d’água, visto que muitos foram parcial ou totalmente canalizados.

A cidade de Porto Alegre, a exemplo de outras cidades brasileiras, revela esse processo desigual de ocupação de seu espaço urbano, em que se destaca a Bacia do Arroio Dilúvio como um setor que apresenta diferentes características socioespaciais ao longo de suas margens.

Através deste artigo, busca-se discutir os conflitos existentes do direito à água em relação às variadas possibilidades que implica também a água como elemento compositivo da paisagem urbana. Sua estrutura compõe-se dos seguintes itens: o primeiro contém uma breve reflexão teórica sobre a relação da água com o espaço urbano, destacando suas dimensões globais e locais; o segundo item apresenta uma descrição e caracterização da Bacia Hidrográfica do Arroio Dilúvio nas cidades de Porto Alegre e Viamão, apontando também para aspectos históricos relevantes para a compreensão de sua atual configuração espacial; no terceiro, destacam-se os principais impactos socioespaciais da ocupação urbana sobre o espaço do entorno do Arroio Dilúvio verificados através de observação da área de estudo, às margens da Av. Ipiranga, destacando pontos focais situados em três trechos com diferentes aspectos morfológicos.

Conflitos entre água e espaço urbano no contexto das bacias hidrográficas

A água é um dos recursos ambientais que mais deixam visíveis as relações de conflito entre sociedade, território e desenvolvimento (Alvim, Bruna e Kato, 2008ALVIM, A. T. B.; BRUNA, G. C. e KATO, V. R. C. (2008). Políticas ambientais e urbanas em áreas de mananciais: interfaces e conflitos. Cadernos Metrópole, n. 19, pp. 143-164.). Embora esse reconhecimento esteja presente, não apenas no meio acadêmico científico, mas também em algumas políticas públicas e ações de planejamento, nacional e internacionalmente, a condição da água no espaço urbano ainda se encontra de forma marginal nos investimentos voltados a sua valorização ambiental e paisagística, como decorrência de processos de crescimento extensivo das cidades e regiões metropolitanas.

No Brasil, a degradação ambiental decorrente da intensa e desordenada ocupação urbana, a partir da metade do século XX em diante, tem comprometido a qualidade e a ambiência do entorno de rios, lagos e lagunas em áreas urbanas, contrastando de forma profunda com espaços cujos tratamentos sofisticados têm sido promovidos, sobretudo, pelo capital imobiliário ou por ações pontuais do Estado. Tucci (2008)TUCCI, C. E. M. (2008). Águas Urbanas. Estudos Avançados, v. 22, n. 63, pp. 97-112. destaca, entre outros problemas vinculados às pressões urbanas sobre as águas: a ocupação irregular de áreas ribeirinhas, quase sempre sujeitas a inundações; a impermeabilização e canalização dos rios urbanos com aumento da vazão de cheia e sua frequência; o despejo de resíduos, seja proveniente das canalizações das construções, seja pelo descarte de consumo. Em sua avaliação, Tucci (2008)TUCCI, C. E. M. (2008). Águas Urbanas. Estudos Avançados, v. 22, n. 63, pp. 97-112. lembra que o Brasil encontra-se ainda na fase por ele denominada higienista, ou seja, momento em que há redução de doenças, mas com a permanência de poluição e contaminação de cursos d´água, com grandes impactos nas fontes de abastecimento e grandes inundações.

Importa considerar que as margens diretamente integradas à água são parte de um complexo sistema identificado como bacia hidrográfica que se constitui, segundo Tucci (1997)TUCCI, C. E. M. (1997). Hidrologia: ciência e aplicação. Porto Alegre, ABRH/Editora UFRGS., em superfícies vertentes e de uma rede de drenagem formada por cursos de água que confluem até resultar em um único leito. Silva (2002)SILVA, R. T. (2002). “Gestão Integrada de Bacias Hidrográficas densamente urbanizadas”. In: FONSECA, R. B. (org.). Livro Verde: desafios para a gestão da Região Metropolitana de Campinas. Campinas/ SP, Unicamp/IE. esclarece que, desde 1997, com a instituição da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, há um espectro considerável de medidas de planejamento e gestão passíveis de implementação no âmbito das bacias, que podem mitigar as pressões sobre os recursos disponíveis e melhorar o desempenho dos vários sistemas setoriais relacionados a esses recursos. A partir desse momento, diversos municípios passaram a estudar as possibilidades de nortear a gestão urbana com base nas bacias hidrográficas presentes em cada região.

Segundo Porto e Porto (2008)PORTO, M. F. e PORTO, R. L. (2008). Gestão de Bacias Hidrográficas. Estudos Avançados, v. 22, n. 63, pp. 43-60., no entanto, grandes são as dificuldades em se lidar com esse tipo de recorte geográfico, sobretudo quando se trata de gestão de bacias que ocupam territórios intensamente urbanizados. Apesar de reconhecida sua importância para a cidade, seja como fonte de abastecimento, seja como espaço de integração e deslocamento, ou ainda como composição paisagística, observa-se que a visão setorial do planejamento e gestão dos espaços urbanos e metropolitanos tende a fragmentar suas ações voltadas às águas urbanas prejudicando o direto à água nos âmbitos citados. Disso decorrem grandes conflitos principalmente no que se refere ao tratamento da morfologia urbana como estudo da integração entre os componentes das formas que estruturam a cidade, sendo um dos elementos fundamentais os percursos de rios e as bordas de lagos e lagunas.

Sob a perspectiva dessa complexa relação entre a água e o espaço urbano, destaca-se a tese de doutorado de Mello (2008)MELLO, S. S. de (2008). Na beira do rio tem uma cidade: urbanidade e valorização dos corpos d’água.Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília., que traz à discussão o desempenho de urbanidade dos espaços das margens de corpos d’água, utilizando como categorias de análise as chamadas dimensões global e local. A dimensão global diz respeito às relações que consideram o sistema urbano como um todo e as características da articulação dos elementos entre si, destacando-se aspectos como: o porte do corpo d´água, a localização da cidade em relação ao corpo d´água e sua posição em relação ao centro urbano. A dimensão local, mais apropriada para a análise deste artigo, está relacionada aos atributos dos espaços convexos de beira-d’água. Os principais aspectos apontados pela autora referentes a essa dimensão são:

  • a) Domínio: podem ser público ou privado, segundo suas possibilidades de uso e ocupação. Nessa categoria, Mello (2008)MELLO, S. S. de (2008). Na beira do rio tem uma cidade: urbanidade e valorização dos corpos d’água.Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília. destaca ainda dois tipos de espaço aberto, segundo a natureza de sua função: os espaços de encontro social e os espaços de função utilitária;

  • b) Constitutividade: são consideradas as transições entre espaços aberto e fechados, considerando-se constituído o espaço quando lotes e edifícios lindeiros voltam-se para as margens, definindo-o;

  • c) Acessibilidade física: facilidade ou não de acesso aos espaços de margens;

  • d) Acessibilidade visual: as margens podem apresentar variadas configurações entre espaços que permitem a visibilidade do corpo d’água e espaços que impedem a visibilidade do corpo d’água;

  • e) Artificialidade: refere-se ao grau de transformação das margens, podendo identificar como espaços naturalizados ou artificializados.

Essas categorias propostas são importantes indicações de análise das relações morfológicas existentes no recorte espacial sugerido neste artigo. Aqui se observam, como será visto mais adiante, as relações entrepostas dos elementos humanos (artificializados) e naturais na composição do cenário que envolve as margens estudadas.

Aspectos socioespaciais da Bacia Hidrográfica do Arroio Dilúvio

A ideia de uma estratégia de gestão por bacia hidrográfica parte de um desafio metodológico que confronta condições físico-naturais com as tradicionais abordagens político-institucionais do território. No caso da sub-bacia do Dilúvio, verificam-se duas realidades distintas: os municípios de Porto Alegre e de Viamão.

Porto Alegre é a capital do Estado do Rio Grande do Sul e está localizada, geograficamente, às margens do Rio Guaíba, fonte de captação de água. Apesar de apresentar uma população residente de 1.409.351 habitantes (Censo Demográfico, 2010), o movimento pendular da população visitante dos 31 municípios que integram a Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), inclusive Viamão, promove grande concentração populacional e de fluxos na cidade. Já o município de Viamão, apresenta cerca de um sexto da população da capital (239.384 habitantes), apesar de possuir uma extensão territorial de 1.497.023 km2, aproximadamente três vezes maior do que a de Porto Alegre.

A área de Porto Alegre que compreende a sub-bacia em questão é uma das mais densamente constituídas na cidade, sendo o eixo que margeia o Arroio Dilúvio em quase toda a sua extensão, a Av. Ipiranga, uma das principais vias de fluxo da capital. Logo, ao longo da história da ocupação urbana, a sub-bacia foi intensamente modificada nesse município (Menegat, 2006MENEGAT, R. (2006). Atlas Ambiental de Porto Alegre. Porto Alegre, Ed. UFRGS.). As porções da bacia localizadas em Viamão se caracterizam basicamente pela ocupação de assentamentos de baixa renda, mais rarefeitos e com baixa qualidade de habitabilidade.

O Arroio Dilúvio, embora tenha seu curso praticamente inteiro dentro dos limites da cidade de Porto Alegre, tem suas principais nascentes em dois pontos da cidade de Viamão (as represas Lomba do Sabão e Mãe d’Água), localizadas a leste da capital, conforme a Figura 1. Esse compartilhamento dos recursos hídricos resulta em uma das dificuldades da aplicação do conceito de bacia hidrográfica como unidade de gestão, tendo em vista a difícil compatibilidade de planejamento e gestão entre municípios.

Figura 1
– A Sub-Bacia do Arroio Dilúvio em Porto Alegre e Viamão (RS)

Ao observar os aspectos que caracterizam o que Mello (2008)MELLO, S. S. de (2008). Na beira do rio tem uma cidade: urbanidade e valorização dos corpos d’água.Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília. identifica como dimensão global da análise do curso d´ água, verifica-se que a sub-bacia do Arroio Dilúvio, em razão da localização estratégica de Porto Alegre em relação a ela, é a mais importante do município. Através dela escoam as águas de uma área com 83,74 km2 densamente habitada: 446 mil habitantes, representando cerca de um terço da população total. O curso principal, o Arroio Dilúvio, tem uma extensão de 17.605 m e importantes afluentes, como os arroios Mato Grosso, Moinho, Cascata e Águas Mortas em Porto Alegre. No caso de Viamão, a localização do município em relação à sub-bacia do Arroio Dilúvio é periférica, pois as nascentes que representam a parcela presente em Viamão estão situadas no limite oeste do município. Logo, a relação do Arroio Dilúvio com a área central da cidade de Porto Alegre é mais direta do que com o centro de Viamão, sendo no primeiro caso a área central parte integrante da sub-bacia na sua porção norte. A Avenida Ipiranga, que margeia o Dilúvio tem sua foz no Lago Guaíba, importante manancial vinculado ao centro e às faixas de ocupação mais antigas da cidade de Porto Alegre.

A canalização e retificação do Arroio Dilúvio entre o final dos anos 1930 e a década de 1980 acontecem entre grandes mudanças na paisagem e na estruturação do espaço urbano porto-alegrense. O que hoje é conhecido como uma “cicatriz” na cidade, à época de sua concepção, a canalização do Arroio Dilúvio proporcionou, além de reduções drásticas nas constantes enchentes na região, a possibilidade de crescimento urbano a regiões onde antes o acesso não era possível. Sem dúvida, pode-se afirmar que a Avenida Ipiranga é hoje uma das principais vias de acesso, comércio e moradia de Porto Alegre, sendo tudo isso possível graças à canalização do antigo Riacho, como era chamado. Apesar dos benefícios trazidos por essa intervenção, o fato de ter sido realizada a tão longo prazo, conforme cita Burin (2008)BURIN, C. W. (2008). O caso da canalização do arroio Dilúvio em Porto Alegre: ambiente projetado x ambiente construído. Disponível em Lume: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17323. Acesso em: 18 set 2012.
http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17...
, deixou que diversos fatores sociais, políticos e econômicos interferissem diretamente nas obras de canalização. Tais fatores influenciaram na atual estrutura do Arroio Dilúvio.

De fato, o processo de urbanização da bacia ao longo do século XX veio atrelado ao crescente embate da sociedade com as águas de seu território. Conforme Burin (2008BURIN, C. W. (2008). O caso da canalização do arroio Dilúvio em Porto Alegre: ambiente projetado x ambiente construído. Disponível em Lume: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17323. Acesso em: 18 set 2012.
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), por volta de 1900, medidas começaram a ser tomadas para conter o problema das enchentes. Desde então, diversas pesquisas foram realizadas e, devido ao crescimento populacional de Porto Alegre entre 1912 e 1914, um grande estudo foi realizado, baseado no que já estava sendo feito na época em São Paulo e Rio de Janeiro. Dentre essas ações, surgiu o projeto concreto para a retificação do Riacho, compreendido no Plano de Urbanização de Porto Alegre em 1943. Assim, deu-se início às obras de construção da Avenida Ipiranga e retificação do Arroio Dilúvio, que, por sua vez, só foram finalizadas na década de 1980, esquematizadas na Figura 2.

Figura 2
– A canalização do arroio Dilúvio em Porto Alegre

Por meio de sucessivos Planos Diretores (a primeira proposta é do Plano de 1914, conhecido como Plano Moreira Maciel), diferentes propostas de percursos e calhas foram criados com objetivos saneadores e higienistas e de mitigação das enchentes que afligiam a cidade. Mais tarde, com objetivos de resolver o sistema viário e a circulação na cidade, a obra finalizada originou a Avenida Ipiranga, modernizando Porto Alegre e acabando com os alagamentos que lhe valeu o apelido de Arroio Dilúvio.

Embora os Planos Diretores propusessem áreas verdes e estudos paisagísticos e urbanísticos para o entorno, as obras realizadas não conseguiram efetivar melhorias com esse enfoque para as áreas urbanizadas ao longo da Avenida Ipiranga, pois a preocupação dos legisladores foi sempre atender às demandas de fluxos viários e das enchentes, em detrimento dos dispositivos de regulamentação urbanística para espaços públicos. A preocupação com a qualificação espacial e com a paisagem não se manifestou concretamente nas ações públicas.

O grande crescimento da Região Metropolitana de Porto Alegre também trouxe como consequência uma forte pressão populacional em seus centros urbanos. Atualmente em Porto Alegre e Viamão, parcelas significativas da população total (aproximadamente 20%) são moradores de ocupações irregulares, ou seja, habitam as áreas informais, os espaços urbanos chamados de vilas ou favelas. Identifica-se desde as nascentes do Arroio, assim como ao longo de sua extensão, a presença desses espaços informais nas duas cidades.

Os impactos do processo de ocupação na área de estudo

Neste item, busca-se desenvolver uma análise morfológica de um recorte da Bacia do Arroio Dilúvio (Figura 4) que abrange o próprio arroio e seu entorno imediato, considerando a apropriação e acesso à água, seja físico, seja visual, como um direito fundamental nas relações humanas, como ressalta Gleick (1999)GLEICK, P. (1999). The Human Right to Water. Oakland USA, Pacific Institute for Studies in Development, Environment, and Security.. Para tal, utilizou-se uma metodologia baseada na percepção urbana conforme propõe Lynch (2008)LYNCH, K. (2008). A imagem da cidade. São Paulo, Edições 70., no desenvolvimento de variáveis de análise a partir de pesquisa de campo e nos conceitos de dimensão global e local apontados por Mello (2008)MELLO, S. S. de (2008). Na beira do rio tem uma cidade: urbanidade e valorização dos corpos d’água.Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília. para realizar uma leitura da área.

Figura 4
– Localização da área de estudo do Arroio Dilúvio

Segundo Gorski (2010)GORSKI, M. C. B. (2010). Rios e cidades: rupturas e reconciliação. São Paulo, Editora Senac., no Brasil até a metade do século XX em geral ainda existia uma relação harmônica de encontro entre as margens dos cursos d’água e a população do entorno, contudo a partir desse momento aumentaram os conflitos entre a sociedade, o desenvolvimento e o meio físico prejudicando o direito da população de acesso à água e à apropriação dos espaços marginais como áreas de lazer e de prática esportiva. Essa situação ocorreu com o recorte estudado da Bacia do Arroio Dilúvio.

Devido à inexistência de um tratamento urbanístico para a antiga Avenida do Canal (Avenida Ipiranga), além de sua função sanitária, esse trecho da cidade passou por um processo de ocupação lento e irregular nas ultimas três décadas, e assim as margens do arroio, ao longo de quase um século de estudos e projetos, não desenvolveram uma identidade relevante e significativa para o porto-alegrense.

No início do século XX a morfologia da Bacia do Arroio Dilúvio apresentava características desde a sua nascente, passando pela planície com os meandros e banhados até o Rio Guaíba que naturalmente influenciavam o convívio da população do entorno gerando uma imagem para os moradores. No livro Sinfonia Inacabada, Dreyer (2004)DREYER, L. (2004). Sinfonia Inacabada, a vida de José Lutzenberger. Porto Alegre, Vidicom Audiovisuais. relata a vida e obra do ecologista José Lutzenberger, destacando uma passagem que descreve a paisagem e o cenário urbano de 1935 onde o arroio era um das partes integrantes:

Na direção oposta a Redenção, a partir de sua casa, encontravam-se as delícias do arroio Dilúvio. Depois do chalé do vizinho freteiro, a rua fazia uma curva, terminava o calçamento e tinha início uma trilha em meio a campo aberto, verde, vacas pastando, um taquaral, depois de novo algumas casas, casas modestas de operário, ornadas com rendilhados de madeira, e então a ponte sobre o arroio. Perto da ponte não era o melhor lugar de se tomar banho, mas num dos meandros do arroio havia um panelão: uma piscina rodeada por rochas de diferentes alturas, própria para saltos e mergulhos. A gurizada chegava ali nadando por dentro do riacho, chapinhando sobre os cascalhos soltos do leito do Dilúvio, as canelas mergulhadas numa lâmina de água cristalina, sobre a qual se debruçavam languidamente os salsos-chorões. (Dreyer, 2004DREYER, L. (2004). Sinfonia Inacabada, a vida de José Lutzenberger. Porto Alegre, Vidicom Audiovisuais., p. 51)

Naquele período, o Dilúvio estava presente no cotidiano das pessoas do entorno garantindo o direito de acesso à água através de várias ações em que o arroio era o cenário conforme a Figura 3. A primeira imagem mostra o casario como pano de fundo das atividades realizadas no curso de água como pesca e banho e na segunda a importância da Ponte de Pedra como ícone de conexão urbana da época.

Figura 3
– Imagens do Arroio Dilúvio, referente às primeiras décadas do século XX

Contudo, com a retificação e o consequente desenvolvimento desordenado da área em estudo, essa imagem foi perdida e não foi substituída por outra imagem consistente ao longo das décadas. Os bairros que estabelecem interface com o Arroio Dilúvio nesse período ocuparam de forma lenta esse entorno, principalmente na margem que corresponde à área atingida pelo antigo traçado do riacho e hoje constituída pelos bairros Cidade Baixa e Santana. De fato, a intervenção realizada resolveu em grande parte o problema sanitário, mas não foi suficiente para melhorar a cidade em termos do convívio urbano, se comparado às condições originais da área.

De fato, a retificação do curso d´água representou uma barreira urbana, dificultando acesso de uma margem à outra. A partir de um levantamento morfológico da ocupação da área da Bacia do Arroio Dilúvio notam-se a desarticulação morfológica e a descontinuidade do tecido urbano, considerando ambiências (aqui tratadas como variáveis) que participam da composição da paisagem consideravelmente ao longo do percurso, tais como: áreas públicas verdes, vias cruzando o arroio, pequena escala edificada, equipamentos de grande porte, vazios urbanos e ocupações irregulares. Cada um desses fatores gera características específicas em cada uma das regiões que compõem o trajeto demonstrando que a demanda urbana se altera e a imagem resultante de cada localidade também (Lynch, 2008LYNCH, K. (2008). A imagem da cidade. São Paulo, Edições 70.). Tal fator justifica um estudo particular de cada zona para uma futura revitalização da Bacia do Arroio Dilúvio e para recuperação do direito de acesso à água, perdido em função do crescimento urbano desordenado.

As variáveis citadas caracterizam três trechos definidos desde a nascente até a foz do Guaíba. Segundo os aspectos morfológicos observados, o primeiro trecho inicia na foz e vai até as imediações da Terceira Perimetral, o segundo começa nas imediações da Terceira Perimetral até a Av. Antônio de Carvalho e o último trecho inicia nessa via e vai até a nascente no município de Viamão como mostra a Figura 4.

Os três pontos focais representam cada uma das três realidades morfológicas analisadas. Eles são o resultado da estrutura e da dinâmica urbana em cada um dos momentos das margens do Arroio Dilúvio. A seguir apresentam-se as análises do percurso que abrange os três trechos e o aprofundamento delas a partir da imagem resultante das morfologias em cada um dos três pontos focais, como estudos de caso:

a) Trecho 1

Esse recorte do arroio localiza-se entre a foz e as imediações da Terceira Perimetral e está mais conectado com a cidade do que os demais em função de uma diversidade de usos, atividades e espaços existentes e perceptíveis ao longo do percurso.

Esse trecho apresenta 14 cruzamentos distribuídos de forma uniforme no trajeto do arroio gerando boa acessibilidade e uma continuidade do tecido, qualificando o espaço urbano. Além disso, as pontes projetadas pelo arquiteto Christiano De La Paix Gelbert, responsáveis por essas conexões, apresentam características estéticas relevantes em função dos ornamentos presentes demonstrando uma preocupação arquitetônica com o ambiente construído (Weimer, 2004WEIMER, G. (2004). Arquitetos e Construtores no Rio Grande do Sul 1892-1945. Santa Maria, UFSM.).

Ao comparar as áreas verdes nesse trajeto com as dos demais trechos nota-se que existe uma maior quantidade de espaços públicos e uma variação maior das escalas desses espaços abertos, desde o parque urbano como o Marinha do Brasil até a pequena praça de bairro como a São João no Bairro Santana. Além disso, as margens do arroio são mais arborizadas como mostra a Figura 5. No total são 25 áreas públicas bem articuladas com o entorno do Dilúvio nesse trecho.

Figura 5
– Ponto focal do trecho 1 Cruzamento com a Rua Santana

Em relação ao parcelamento e aos equipamentos existentes também é possível perceber uma diferença bem clara entre os trechos, porque o grão de ocupação urbana é consideravelmente menor nesse primeiro momento com equipamentos de grande porte bem distribuídos: o Anfiteatro Pôr-do-Sol, o Shopping Praia de Belas, o Ginásio Tesourinha, o Colégio Júlio de Castilhos, o Campus da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o Palácio da Polícia e o Hospital Ernesto Dornelles. Todos os equipamentos estão bem integrados no contexto urbano, pois se encontram junto a cruzamentos importantes para a conectividade da área e estão relacionados com uma praça ou área verde imediata no caso dos quatro primeiros. Os vazios urbanos são praticamente inexistentes com exceção da interface com a orla do Guaíba que é um problema recorrente em várias partes da cidade.

O arroio nesse momento atravessa oito bairros com características que os distinguem entre si. Dentre esses, destacam-se principalmente os bairros Santana e Menino Deus que se constituem em espaços muito utilizados pela população moradora e por visitantes. Cada um deles apresenta características morfológicas, funcionais e de fluxos diferenciados, gerando uma ocupação do espaço por públicos distintos que transitam na região como pode ser visto na imagem à direita na Figura 5 onde pessoas circulam no espaço público junto com os veículos.

A presença de diversas pontes e travessias sobre o Arroio Dilúvio, aliada ao fato de sua posição cruzando os bairros desse trecho faz deste curso d´água um elemento integrado à paisagem nesse espaço, embora não haja uma clara apropriação pela população usuária em função da poluição da água. A ocupação qualificada dos oito bairros bem delimitados e integrados ao arroio, assim, contribui para a existência de poucas ocupações irregulares já que no total são apenas cinco vilas de dimensões menores espalhadas na área que apresenta um grão urbano menor e volumetrias que acompanham um padrão de alturas como pode ser visto no skyline da vista panorâmica da Figura 5.

Essas condições da estrutura urbana influenciam na dimensão local do espaço (Mello, 2008MELLO, S. S. de (2008). Na beira do rio tem uma cidade: urbanidade e valorização dos corpos d’água.Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília.) que pode ser observada e caracterizada no ponto focal destacado na Figura 5. Ao analisar-se o trecho e seu ponto focal, é possível determinar o domínio das margens do dilúvio como público, contudo não há elementos e nem condições sanitárias que possibilitem uma relação direta com o curso d’água, apesar de existir junto da Avenida Ipiranga uma diversidade de usos que possibilitam a ocupação do espaço de diferentes formas como as praças e os comércios nesse trecho. Logo, em relação à constitutividade, existe uma transição gradual entre ambientes abertos e fechados em função de aspectos como o grão menor de ocupação (Figura 5), gerando espaços constituídos e estruturados, mas desvinculados do arroio.

Do ponto de vista da acessibilidade física, as margens do arroio não oferecem grandes atrativos com exceção da ciclovia recentemente instalada nesse trecho e de algumas escadarias junto dos cruzamentos que no passado eram utilizadas para acessar o Dilúvio e hoje abrigam moradores de rua. Já a acessibilidade visual é plena, pois o arroio pode ser contemplado ao longo de toda a Avenida Ipiranga que margeia o curso d’água e de algumas praças (Figura 5) que estabelecem uma interface com o arroio gerando uma variabilidade visual. Por último, a artificialidade é relevante tendo em vista que o arroio foi retificado nesse trecho, contudo elementos naturais como as praças e a arborização das margens contribuem para um ambiente bem equilibrado entre as formas naturais e as formas artificiais.

b) Trecho 2

O segundo trecho do Arroio Dilúvio e da área do entorno analisado, delimitado pelas imediações da Terceira Perimetral e pela Avenida Antônio de Carvalho, situa-se no centro do eixo estudado. O ambiente é fragmentado e o convívio no espaço público é praticamente nulo, a partir da Terceira Perimetral. A noção de quarteirão se perde em razão das proporções dos grandes equipamentos institucionais. Os comentários a respeito dos fatores e variáveis analisadas no primeiro trecho dão lugar agora para características contrárias às qualidades de uma cidade convidativa e integrada ao seu entorno, pois tais elementos, além de se tornarem mais raros no contexto, não estão articulados entre si, apresentando uma alteração abrupta do padrão de ocupação urbana do primeiro para o segundo trecho como pode ser visto na Figura 6.

Figura 6
– Ponto focal do trecho 2 Cruzamento com a Avenida Cristiano Fischer

Os cruzamentos existentes são apenas seis e não apresentam os atributos estéticos presentes nas pontes do trecho anterior como os ornamentos, os pavimentos ou as escadarias.

As áreas abertas, como as praças, não apresentam relação alguma com o arroio já que estão concentradas num ponto específico no interior da área leste do Bairro Partenon, como pode ser visto no mapa síntese (Figura 4). Nessa parte do bairro, diferentemente do restante do trecho, é possível reconhecer uma continuidade de padrões de ocupação. Já as margens apresentam uma arborização rarefeita e pontual (Figura 6).

O segundo trecho possui um caráter fragmentado em função dos grandes equipamentos existentes que, presentes de forma concentrada, mostram pouca conectividade com a cidade. Entre eles podem ser citados, o Bourbon da Ipiranga, o Campus da PUC/RS (Figura 6) e a Garagem da Empresa de ônibus Carris. Tais equipamentos estão muito próximos entre si prejudicando a continuidade do tecido urbano de menor escala. Logo, diferentemente do primeiro momento do arroio, esse possui vários vazios urbanos junto da margem norte. Essa interrupção da malha urbana de grão pequeno inviabiliza a movimentação de pedestres nas rotinas diárias como pode ser observado na imagem à direita da Figura 6 onde o contexto não contribui para a circulação de pedestres retirando da área a vivacidade necessária à conexão e ao movimento urbano saudável.

A quantidade de bairros com diferentes características também é reduzida nessa parte da cidade já que são quatro bairros, ou parcelas de bairros, fortemente desarticulados entre si e que apresentam uma tipologia habitacional voltada para população de rendas médias e altas, os conjuntos fechados de alta densidade, que parece negar uma relação com o espaço público. Essas configurações habitacionais geram uma ruptura na dinâmica urbana e na paisagem local como pode ser visto no skyline da vista panorâmica da Figura 6.

A falta de continuidade dos tecidos acarreta a existência de grandes ocupações irregulares, as quais, não estando integradas à malha urbana “formal”, geram interrupções no movimento e na circulação geral da população na cidade, reforçando a descontinuidade da paisagem, que se torna rompida e ilegível, diferentemente do trecho anterior. No total, são três manchas de grande porte e uma menor junto da Garagem da Empresa de ônibus Carris. Além disso, ao norte do Jardim Carvalho e ao sul do Partenon estão localizadas várias vilas, cuja dimensão de cada uma corresponderia à área de um bairro.

Assim como no trecho anterior, a estrutura urbana e as variáveis propostas acabam repercutindo na dimensão local citada por Mello (2008)MELLO, S. S. de (2008). Na beira do rio tem uma cidade: urbanidade e valorização dos corpos d’água.Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília.. Contudo, nesse caso a falta de articulação entre as partes acaba gerando um panorama fragmentado que pode ser sintetizado a partir do ponto focal na Figura 6. O domínio das margens em questão continua sendo público, contudo esse trecho há uma ausência de diversidade de elementos junto da Avenida Ipiranga que impossibilita uma dinâmica de fluxos variados.

O acúmulo de grandes equipamentos privados resulta em um espaço desconstituído (Figura 6), pois a transição entre espaços abertos e fechados é abrupta e pouco convidativa para o encontro, já que as praças e as áreas comerciais do trecho anterior não estão presentes junto à avenida que margeia o Dilúvio e é dominada por veículos em alta velocidade nesse momento. O resultado disso é um ambiente com acessibilidade física comprometida já que o arroio não estabelece qualquer relação com seu entorno imediato, o que pouco contribui para a sua acessibilidade visual. A variabilidade de opções visuais que o observador tinha no primeiro momento agora apresenta-se restrita em função da baixa quantidade de cruzamentos e da ausência de espaços abertos, gerando pouco controle visual, sensação de insegurança e calçadas desertas. A artificialidade das margens nesse trecho é a maior, pois o espaço urbano junto do Dilúvio apresenta pouca arborização e nenhuma praça ou parque como mostra a vista panorâmica da Figura 6.

c) Trecho 3

O último trecho do arroio é o mais longo e caracterizado por uma ocupação urbana rarefeita com algum comércio e serviços ao longo da via de maior fluxo (Av. Bento Gonçalves). O recorte inicia na Av. Antônio de Carvalho e acaba junto às nascentes em Viamão. Nesse momento o arroio não apresenta mais a relação imediata com uma via de tráfego de veículos intenso, já que ele está integrado à mata na base dos morros que delimitam na outra direção o trecho analisado. Existem nessa parcela apenas dois cruzamentos do curso d’água do Arroio Dilúvio, e um deles não é pavimentado e está junto a uma ocupação irregular, como mostra a seguir a Figura 7.

Figura 7
– Ponto focal do trecho 3 Cruzamento com o Beco dos Marianos

As áreas públicas de convívio são praticamente inexistentes ao longo desse percurso, em que a diversidade do primeiro trecho é substituída por um repetição de áreas desocupadas, intercaladas com comércio esporádico referente ao perfil viário da Av. Bento Gonçalves: aí, se poderia dizer que a cidade “não existe mais”.

Neste último trecho, em que ocorre a conexão entre Porto Alegre e Viamão podem-se encontrar apenas dois equipamentos relevantes para os fluxos do local: os Campi do Vale e da Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A área é caracterizada por grandes zonas de mata nativa junto dos morros, como pode ser observado na vista panorâmica da Figura 7. Logo, não se pode dizer que são vazios urbanos, mas espaços de interesse ambiental não preservados, tendo em vista a existência recorrente de vilas (favelas) na base desses morros (Figura 7) estabelecendo ora uma relação estreita com a topografia do morro, ora com as bordas do arroio. Essa área é ocupada apenas pelo Bairro Agronomia (em Porto Alegre) e pelo Parque Saint Hilaire (em Viamão). Nas duas localidades, o cenário é sempre muito semelhante: ocupações irregulares entre morros e curso d´água. Contudo, essas vilas apresentam uma morfologia distinta dos trechos anteriores já que elas não são oprimidas por um contexto urbano consolidado e apresentam a possibilidade de crescimento com certa organização entre espaços de convívio público e particular.

A dimensão local (Mello, 2008MELLO, S. S. de (2008). Na beira do rio tem uma cidade: urbanidade e valorização dos corpos d’água.Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília.) nesse trecho, representada pelo ponto focal junto do cruzamento com o Beco dos Marianos (Figura 7) apresenta um caráter de grande fragilidade urbana, pois a estrutura espacial local carece de uma série de elementos urbanos necessários na criação das dinâmicas de encontro e de relação. Nesse ponto do trecho podem ser observados três tipos distintos de interface do arroio com seu entorno: o domínio é público junto da interface do arroio com o trecho final da Avenida Ipiranga; o domínio semipúblico – ou público restrito – quando o arroio integra o Campus da Agronomia da UFRGS, e o domínio privado, quando o Dilúvio estabelece interface com os fundos dos pavilhões localizados na Avenida Bento Gonçalves como pode ser visto na Figura 7.

A transição entre espaços abertos e fechados é desordenada em função da presença das ocupações informais junto dos morros onde a natureza ainda se mostra fortemente presente. Em relação à acessibilidade física, o acesso às margens do arroio é restrito em função dos pavilhões e das vilas que também bloqueiam a acessibilidade visual. O acesso físico e visual sem obstáculos maiores ocorre apenas em uma das margens, entre os cruzamentos da Antônio de Carvalho e do Beco dos Marianos (Figura 7). Esse trecho apresenta a menor artificialidade dos três, pois a maior parte do curso do Dilúvio nesse momento não está retificada e ainda está integrada na natureza apesar de já estar poluída em função das vilas presentes junto das nascentes em Viamão.

A partir das análises realizadas anteriormente é possível concluir que existe uma relação estreita entre a estrutura urbana e suas variáveis e a repercussão dessas na dimensão local do espaço urbano. A seguir é apresentado um quadro com a intenção de sintetizar a relação dos aspectos da dimensão local com os pontos focais destacados.

Quadro 1
– Síntese de aspectos das dimensões locais por pontos focais analisados

Esse quadro demonstra que os aspectos da dimensão local revelam as fortes diferenças presentes nos três trechos analisados, com destaque para a baixa acessibilidade física e alta capacidade de domínio público do espaço urbano deste entorno, porém com difícil condições de apropriação, principalmente nos trechos 2 e 3.

A constitutividade também se apresenta muito distinta nos três trechos, sendo inicialmente gradual, abrupta no segundo trecho e desordenada no terceiro. Isso revela a descontinuidade do tecido urbano muito em razão da existência de equipamentos de grande porte (trecho 2) e de ocupações irregulares (trecho 3).

As análises apresentadas permitem considerar que, embora haja diferenças nas formas de ocupação ao longo do arroio, os resultados no espaço das margens são sempre preocupantes gerando conflitos e impactos na qualidade da paisagem.

Considerações finais

Ao analisar o mapa, as imagens e suas variáveis, é possível estabelecer uma relação entre as diferentes épocas de ocupação territorial e a crescente fragmentação espacial que se torna evidente no entorno da Terceira Perimetral a partir de sua dimensão local (Mello, 2008MELLO, S. S. de (2008). Na beira do rio tem uma cidade: urbanidade e valorização dos corpos d’água.Tese de doutorado. Brasília, Universidade de Brasília.). As características que privilegiam a conectividade das áreas públicas urbanas perdem espaço para as ocupações privadas de grande porte que não se preocupam com sua inserção no contexto urbano, como o Campus da PUC/RS. Logo, as informações tomadas e apresentadas aqui demonstram que a descontinuidade do tecido urbano tem se agravado nas últimas décadas. Em parte devido ao arroio e sua via de alta capacidade, mas principalmente pelas diretrizes urbanas e as opções utilizadas, que determinaram a forma de ocupação e os usos da terra do entorno ao arroio, que são os responsáveis pelas condições ambientais péssimas desse importante curso de água.

Nos trechos verificados, é clara a diferença entre as dinâmicas de cada um. Ao comparar o primeiro com o segundo trecho, nota-se que os tecidos do entorno no primeiro caso estão bem integrados e articulados entre si em função das variáveis comentadas anteriormente, já no segundo caso a situação se altera consideravelmente como pode ser percebido através da comparação dos pontos focais. Contudo, em nenhum trecho o arroio está integrado às atividades cotidianas dos porto-alegrenses como no passado em função da ausência de um projeto que considerasse o arroio como parte do cenário urbano, além de sua função sanitária. Por isso, o direito de acesso ao arroio e à água nesse recorte de Porto Alegre está longe de ser atendido em função de um problema de conexão urbana: embora inserido no tecido urbano, o arroio não está integrado à cidade, a seus moradores e às funções urbanas de maneira plena devido ao crescimento desordenado e segregador que se agrava a partir do segundo trecho.

Assim, o arroio e suas condições ambientais por si só não são responsáveis pela configuração atual da paisagem urbana nos trechos estudados, pois há uma grande variabilidade entre ambientes mais qualificados e ambientes menos qualificados espacialmente, ao longo de um curso de água que apresenta de forma constante condições ambientais depreciadas. Por isso, o arroio deve ser considerado uma das partes do problema que envolve variáveis de igual e maior prioridade, tais como as ocupações irregulares e todos os demais grandes equipamentos do entorno que geram e despejam resíduos sólidos, líquidos, químicos e hospitalares no mesmo, e não apontar o arroio como foco determinante na requalificação do espaço, pois as condições urbanas e legais existentes estão dentro de um quadro em que o desenvolvimento não tem contemplado a composição da paisagem como determinante para o convívio humano na cidade.

Nesse sentido, é necessária uma gestão pública que considere a bacia hidrográfica do Dilúvio de forma global e não apenas o curso do arroio como o foco de intervenção na revitalização urbana. Dessa maneira aumentaria a possibilidade de análise e integração entre as variáveis que interferem no entorno e no curso de água principal valorizando um recorte urbano mais abrangente através de múltiplos projetos mais sustentáveis e conscientes que considerariam as relações sociais nesse espaço físico conectado com seu entorno e contemplariam a cidade de maneira ampla.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2013
  • Aceito
    31 Out 2013
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