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Belém do Pará: cidade e água

Belém, in the State of Pará: city and water

Resumos

O artigo aborda o caso de Belém, Pará, Norte do Brasil, cidade onde a rede hidrográfica é um importante condicionante e definidor da morfologia urbana, dos usos do solo e dos atributos das atividades econômicas dispostas territorialmente. A partir de casos históricos, e de fenômenos contemporâneos de urbanização nas proximidades da água (rios, baía, estuário), nota-se sua dimensão enquanto como paisagem, veículo, substância e recurso; em paralelo, fenômenos como os waterfronts, os portos modernizados, a engenharia ambiental e a gestão de águas representam casos de materialização, e aprofundamento, de vetos no acesso à água e ao ambiente urbano em geral, apesar das diretrizes da política ambiental atual.

urbanização; recursos hídricos; planejamento ambiental


This paper deals with Belém, in the State of Pará, Northern Brazil, a city where hydrography has been conditioning and defining the urban morphology, land uses, and the attributes of economic activities arranged territorially. Studying historical cases and contemporary urbanization phenomena close to water bodies (rivers, a bay, an estuary), it is possible to notice the dimension of water as landscape, vehicle, substance and resource. At the same time, waterfronts, hub ports, environmental engineering and water management represent cases of materialization and deepening of vetoes on the access to water and to the urban environment in general, in spite of the directives of the current environmental policy.

urbanization; water resources; environmental planning


Introdução

Situada dentre as cidades brasileiras de implantação costeira ou estuarina, com razões nitidamente vinculadas à defesa da Colônia e às possibilidades de troca comercial (Santos, 2001SANTOS, P. F. (2001). Formação de cidades no Brasil colonial. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ.; Moraes, 1999aMORAES, A. C. R. (1999a). Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no "longo" século XVI. São Paulo, Hucitec.), Belém, Pará, apresentou várias fases de seu desenvolvimento urbano na relação com sua extensa e capilarizada hidrografia. Longe de qualquer determinismo ambiental, na verdade a história da estruturação urbana de Belém e de sua região demonstra como a presença dos cursos d´água na paisagem e no ambiente regional condicionou formas de aproveitamento econômico e soluções de territorialização, no Norte do país e em assentamentos urbanos costeiros em geral. Pretende-se, neste trabalho, abordar aspectos da urbanização de Belém, Pará, em sua relação com tais condicionantes ligados à proximidade e formas de apropriação da água em assentamentos urbanos, a partir de casos históricos, de fenômenos contemporâneos e de algum recurso a conceituações.

Este texto está estruturado, basicamente, em duas partes. Inicialmente são comentadas formas históricas de uso, de apropriação e de abordagens da água na cidade de Belém. Essas abordagens denotariam atividades econômicas, mas também soluções de desenho urbano e dimensões funcionais da cidade, relacionadas a essas abordagens da água. Em sequência, são brevemente abordados alguns fenômenos empíricos em que tais abordagens e formas se materializam, para comprovar e discutir essas categorias e apresentar, em retorno à formulação, a dimensão concreta da problemática.

Belém do Pará e abordagens históricas da água

O empreendimento colonial fez de Belém uma base militar e administrativa, com uma pequena praça comercial; um forte, sucessivamente reformado e fragilizado tanto pela precariedade construtiva quanto pelas intempéries e as correntes fluviais, foi implantado estrategicamente para a defesa da região da foz do Amazonas e do estuário em torno da Baía do Guajará (Moreira, 1989MOREIRA, E. (1989). “Belém e sua expressão geográfica”. In: MOREIRA, E. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. Belém, CEJUP.). Aquela Belém, entre o século XVII e o início do século XVIII, era na verdade um povoado, com população pequena e, no século XVII, poucos civis (Cruz, 1973CRUZ, E. (1973). História de Belém. Belém, Ed. UFPA.). Era um ponto de observação e de controle do acesso no sistema fluvial do estuário da Baía do Guajará, permeado de bancos de areia e rios de baixo calado (Penteado, 1973PENTEADO, A. R. (1973). O sistema portuário de Belém. Belém, Ed. UFPA. (Coleção Amazônica, Série José Veríssimo)). A pequena cidade, então, era composta basicamente por dois assentamentos, a Cidade e a Campina, separados por um rio e um pântano, o Alagadiço do Piri que foi drenado apenas no início do século XIX, integrando as duas diferentes parcelas da cidade (Cruz, 1973CRUZ, E. (1973). História de Belém. Belém, Ed. UFPA.; Baena, 2004BAENA, A. L. M. (2004). Ensaio corográfico sobre a Província do Pará. Brasília, Senado Federal. (Edições do Senado Federal, 30)). Essa foi uma fase de aproveitamento da água na cidade de Belém que denotava observação e extensão; controle e monitoramento do território (Deleuze e Guattari, 1997DELEUZE, G. e GUATTARI, F. (1997). “1440. O liso e o estriado”. In: DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro, Editora 34.) e produção de solo, por meio dos acrescidos de terras e da ocupação do território artificializado e drenado. Essa fase, de abordagem da água na cidade como observação e extensão, corresponderia ao período entre o início do século XVII e a primeira metade do século XVIII.

Figura 1
– A Doca da feira do Ver-O-Peso, registrada nos anos 1960, era um ponto de desembocadura do igarapé do Piri, divisor territorial da cidade nos séculos XVII e XVIII

Figura 2
– Embora em registro dos anos 1960, a Doca do Reduto (nas imediações da zona central de Belém) já era, há tempos, um exemplo de desembocadura de rio com intensa atividade comercial e fluxo naval

A Belém da segunda metade do século XVIII até o final do século XIX, em suas formas predominantes de aproveitamento e abordagem da água, é uma cidade comercial, um entreposto. É na troca comercial, sobretudo portuária, de equivalentes de especiarias asiáticas e africanas, e produtos regionais tidos como exóticos pelos europeus, que consiste a dinâmica econômica predominante daquele período, além das receitas públicas (Baena, 2004BAENA, A. L. M. (2004). Ensaio corográfico sobre a Província do Pará. Brasília, Senado Federal. (Edições do Senado Federal, 30)); grãos, ervas aromáticas e comestíveis, óleos, castanhas, têxteis e fibras, alimentos, madeiras, couros, pescado, frutas, artefatos em geral. A navegação, estruturando uma rede de trocas na Região Amazônica (assim denominada no século XIX), pontuava a formação e a consolidação de numerosas cidades ribeirinhas e portuárias, envolvidas em fluxos comerciais intensos na Bacia Amazônica (Baena, ibid.; Corrêa, 1987CORRÊA, R. L. (1987). A periodização da rede urbana da Amazônia. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, v. 4, n. 3, pp. 39-68.). Nesse período são estruturados portos, alguns públicos, em igarapés que penetram a cidade, e numerosos portos privados, ocupando lotes estreitos de suas margens fluviais, estendendo-se para terras então periféricas – fenômeno que seria, já em finais do século XIX, registrado como problemático pela chegada de um mercado formal de terras e pela formação de preços do solo urbano em termos modernos, em Belém (Penteado, 1968PENTEADO, A. R. (1968). Belém: estudo de geografia urbana. Belém, Ed. UFPA (Coleção Amazônica, Série José Veríssimo)). Essa cidade, ainda intimamente vinculada em suas atividades econômicas, em seus equipamentos públicos, em suas formas de territorialização e economia, à hidrografia, era portanto um entreposto, onde a navegação e a troca denotavam usos de extensão e conexão em relação à água. A conexão ocorria, portanto, a partir da instalação das estruturas portuárias, interface entre a terra estendida ou não e a água, produzindo relações (funcionais, econômicas, culturais). Essa característica comercial perdura até os dias atuais, obviamente com modificações, mas a persistência do caráter mercantil na economia regional repercute tanto em antagonismos entre as elites econômicas e os trabalhadores e pobres urbanos quanto nas definições contemporâneas sobre quem tem direito ao usufruto dos espaços diferenciados da beira da água (Moraes, 1999bMORAES, A. C. R. (1999b). Contribuições para a gestão da zona costeira do Brasil: elementos para uma geografia do litoral brasileiro. São Paulo, Hucitec/Edusp.).

A partir do final do século XIX, a cidade de Belém e sua região recebem traços próprios do processo de modernização capitalista da época. A adaptação das soluções de infraestrutura (até então incipientes, como era próprio daquele tempo e do estágio da economia local) e serviços urbanos para as exigências da cidade e do tempo capitalista implicam racionalização, retificação, esquadrinhamento e domínio geométrico do espaço urbano. É muito clara a influência do ideário da renovação urbana burguesa da virada dos séculos XIX e XX (Hall, 1995HALL, P. (1995). Cidades do amanhã. Uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo, Perspectiva.; Choay, 1997CHOAY, F. (1997). O urbanismo. Utopias e realidades – uma antologia. São Paulo, Perspectiva. (Coleção Estudos, 67)); a cidade precisava funcionar, e a massificação da habitação – ainda que em soluções precárias, registradas até mesmo na década de 1940 por Penteado (1968)PENTEADO, A. R. (1968). Belém: estudo de geografia urbana. Belém, Ed. UFPA (Coleção Amazônica, Série José Veríssimo) – e das redes e serviços urbanos então nascentes combinava uma estratégia de consumo de produtos europeus e norte-americanos (bonde, iluminação pública a gás, telefone e telégrafo, mobiliário urbano, tubulações, blocos pré-fabricados, usinas e máquinas), ou seja, uma ampliação de mercado, a uma remodelação urbanística significativa. O estudo de Sarges (2002)SARGES, M. de N. (2002). Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912). Belém, Paka-Tatu. (Série Açaí) aponta o caráter autoritário da administração municipal da época, imbuído do positivismo típico de seu tempo, e de uma lógica higienista própria da renovação urbana brasileira (Andrade, 1992ANDRADE, C. R. M. de (1992). “De Viena a Santos: Camillo Sitte e Saturnino de Brito”. In: SITTE, C. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo, Ática.), para as operações materiais de demolição de logradouros e edificações, implantação de infraestrutura e urbanização em geral, em moldes festejados pela elite e permeados pela busca da salubridade, ou pelo combate ao miasma. Nesse sentido, intervenções legislativas disciplinavam o escoamento das águas de chuva das coberturas das edificações para que não fossem dispostas no leito das vias; diques e contenções em alvenaria de pedra ou blocos eram construídos para que se limitasse o avanço das águas; aterros e acrescidos (extensão, portanto) produziam solo para que estruturas portuárias viessem a surgir, suprimindo bancos de areia e, portanto, praias; iniciava-se, em termos práticos, um período de racionalização do traçado e supressão de meandros de leitos de igarapés ou pequenos rios urbanos, de modo a acelerar seu escoamento e afastar os dejetos da paisagem (Sarges, 2002SARGES, M. de N. (2002). Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912). Belém, Paka-Tatu. (Série Açaí)).

Figura 3
– Vista geral do Porto de Belém, a partir da Baía do Guajará; o projeto de modernização e formalização do Porto, datado de concepções do final do século XIX, assinala a racionalização das águas na cidade

Figura 4
– A Avenida Visconde (“Doca”) de Souza Franco, atualmente área nobre da cidade, foi uma área de assentamento precário (ou uma “baixada”) até os anos 1970, período deste registro fotográfico

O controle e a administração da paisagem, comenta Cauquelin (2007)CAUQUELIN, A. (2007). A invenção da paisagem. São Paulo, Martins. (Coleção Todas as Artes), são operações artísticas/técnicas modernas, executadas a partir da segunda metade do século XIX, para que se produzam mundos e, portanto, para que a paisagem seja, ela própria, o disciplinamento do mundo. Nessa Belém da virada do século XIX para o século XX, as águas passaram a ser águas técnicas, progressivamente; o Porto de Belém se instala no início do século XX, extinguindo a praia e o banco de areia e lodo que existia nas imediações da feira e dos mercados do Ver-O-Peso (Penteado, 1973PENTEADO, A. R. (1973). O sistema portuário de Belém. Belém, Ed. UFPA. (Coleção Amazônica, Série José Veríssimo)); alguns canais passam a receber retificação de traçado e taludes impermeáveis em blocos; surgem as artes urbanas no espaço público da cidade, em praças com pequenos canais e sistemas integrados de escoamento; são construídas redes de infraestrutura, aterradas áreas sujeitas a alagamentos sazonais, e os casebres são identificados e sistematicamente remodelados ou removidos de alguns locais centrais da cidade (Sarges, 2002SARGES, M. de N. (2002). Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912). Belém, Paka-Tatu. (Série Açaí)). Essas águas são veículo e são substância, e logo se tornam paisagem, para que mercadorias, serviços, dejetos, reações físico-químicas e diferenciais de valor do solo urbano a elas relacionados surjam.

O século XX demarca não apenas a acentuação do caráter das águas técnicas, como processo de racionalização do ambiente, do território e da paisagem urbana, mas também o aprofundamento do caráter da água como veículo (de dejetos, de matéria, inclusive mercadorias), como substância (para produzir reações, de limpeza, sulfactação, diluição) e, então, como recurso (econômico, como ativo). Demarca, ainda, que as operações da água como extensão, conexão e observação incorporem, também, a apropriação material. A captação de água e a expansão dos sistemas de abastecimento, bem como a tomada de água como insumo, são procedimentos da cidade moderna que geram rejeitos, e cria-se uma espécie de dialética técnica no espaço urbano; o curso d´água é útil e maldito; ele é sujo, mas é um canal, não mais um rio; passa a ser, por isto mesmo, um veículo de limpeza e escoamento, através de uma substância codificada pelo saber aplicado moderno. As redes de abastecimento de água, já em franca implantação desde o século XIX, e representando evidente descompasso diante do enorme passivo da falta de cobertura de saneamento na cidade (Pereira, 2006PEREIRA, J. A. R. (org.) (2006). Plano diretor do sistema de abastecimento de água da Região Metropolitana de Belém. Síntese do plano diretor. Belém, Cosanpa; GPHS-UFPA.), avançam no século XX com sucessivas reformas administrativas e alterações tecnológicas. Aquela “água técnica” do saneamento básico moderno é tributária dessa lógica, em que o rejeito tem, na maneira de abordar a água na cidade e na região, caráter muito próximo ao da navegação.

Porto, waterfront, engenharia ambiental, gestão de águas

As formas de territorialização da água na cidade de Belém corresponderiam, assim, a usos e a abordagens. A partir da empiria utilizada, quatro fenômenos podem ser identificados com diferentes usos e abordagens da água na cidade. A partir dos usos de conexão, extensão, observação e apropriação, identificou-se abordagens da água como veículo, substância, paisagem e recurso. Essas abordagens, contudo, não se colocam como diretamente respectivas aos usos da água na cidade listados neste texto. Na verdade, há recombinações desses usos e das abordagens, de modo que, nos fenômenos estudados, há associações entre dois ou mais desses elementos.

Figura 5
– Um diagrama esquemático pode demonstrar relações entre usos, abordagens e formas territoriais, presentes na pesquisa, na relação entre cidade e água

Usos da água no território (portanto, no espaço politicamente delimitado, ainda que não formalmente, com conteúdos históricos, culturais, econômicos, técnicos, sociais) seriam elementos básicos dessa tipologia e dessa tentativa de conceituação. Esses usos, que sugerimos ser estruturais, resultam em abordagens modernas da água no território (urbano, principalmente). Falamos em abordagens modernas, porque elas derivam de utilizações mais complexas em comparação com aquelas presentes em outros tempos históricos (pré-capitalistas, por exemplo). Novas funcionalidades e equipamentos técnicos dispostos territorialmente – portos, fábricas, ferrovias, estradas, estaleiros, mercados (Jacobs, 1970JACOBS, J. (1970). The economy of cities. Nova York, Vintage Books.) – representam diferentes modos de tratamento da água na cidade; diferentes abordagens. Falar em recurso, portanto, remeteria a um dado momento histórico, capitalista, e já identificaria uma abordagem contemporânea da água na cidade. A política de gestão de recursos hídricos (que optamos por denominar como gestão de águas, o que é igualmente comum e identifica o mesmo fenômeno e a mesma política de Estado), conforme ilustrado esquematicamente no diagrama, é absolutamente transversal a todas as abordagens, dizendo-lhes respeito igualmente. Essa concentração em torno da gestão de águas ocorre porque se identificou que seu modo de analisar, de exercer poder e de intervir sobre a água no território é, de modo análogo, pretensamente universal, relativo a todos os usos que se possa praticar a respeito do recurso. O efeito da gestão de águas é transversal, difuso e generalizado, temporal e espacialmente. Justamente por isso, em textos institucionais da política de gestão de águas no Brasil (MMA, 2004MMA (Ministério do Meio Ambiente); Secretaria de Recursos Hídricos. (2004). Resumo do processo de elaboração do Plano Nacional de Recursos Hídricos. Brasília, MMA. Disponível em: www.mma.gov.br. Acesso em: 18 set 2007.
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), por exemplo, bem como em outros locais, como na Europa, mesmo com seus diferentes níveis de escassez e de estrutura institucional (Barraque, 1992BARRAQUE, B. (1992). A gestão da água em alguns países europeus. Espaço & Debates. São Paulo, n. 35, pp. 35-45.), fala-se no princípio de usos múltiplos da água como virtude – embora esse princípio não contenha, necessariamente, um modelo político de compartilhamento, ou uma relação necessária entre o recorte territorial técnico da bacia hidrográfica e os usos concretamente estabelecidos nas economias materializadas no território. A água é, assim, recurso porque pode representar fator de produção, insumo, diferencial na renda da terra, atributo valorável de localização.

Os portos seriam formas territoriais de abordagem da água como veículo. Sua lógica de desenho urbano e sua configuração denotam usos de extensão e conexão, sobretudo. Nesse sentido, nota-se que, historicamente, nos assentamentos urbanos há abordagens da água na paisagem que, para produzir solo, para garantir acréscimos de território na penetração diante do território da água, estendem o território. Essas abordagens podem ser notadas em aterros, em diques, píeres, mas também em embarcações. Podem ser observadas nas tecnologias de moldagem do terreno, no disciplinamento dos fluxos de drenagem e percolação, por exemplo, bem como na criação de terrenos emersos, quando se precisa, social e economicamente, desses. O inverso também ocorre; quando se cria canais e entradas da água no território urbanizado. A ideia de conexão se refere às estruturas (o equipamento portuário, por exemplo) em que se deseja produzir a relação entre a estabilidade ou o território alterado e o veículo.

Secundariamente, portos usam a água na cidade através de observação e de apropriação. Obviamente, usos militares, por exemplo, teriam importância de usos de observação tão relevantes quanto os próprios usos de conexão, no caso de estruturas portuárias, mas esses consistem em casos excepcionais; tratamos aqui de portos de natureza civil, comercial, principalmente, por esses estruturarem núcleos urbanos antigos – no caso dos portos abrigados da virada dos séculos XIX e XX (Doumenge, 1967DOUMENGE, F. (1967). Geografia dos mares. Lisboa, Difel. (Coleção Terras e Povos).) – e mesmo por representarem fatores de indução de novas centralidades econômicas, segregadas e em enclaves, em estruturas portuárias contemporâneas como o hub port (Baudouin, 1999BAUDOUIN, T. (1999). “A cidade portuária na mundialização”. In: SILVA, G. e COCCO, G. (orgs.). Cidades e portos: os espaços da globalização. Rio de Janeiro, DP&A. (Coleção Espaços do Desenvolvimento).). Nota-se, portanto, que mais de um uso da água na cidade e mais de uma abordagem podem corresponder, central ou perifericamente, a determinada forma territorial.

Figura 6
– O Porto de Belém, em operação desde o início do século XX, e em processo de discussão sobre sua viabilidade funcional e administrativo-econômica

Figura 7
– A Estação das Docas, espaço turístico com modelo de gestão e padrão de projeto típicos do waterfront em curso no mundo Fonte: Foto do autor (dez. 2003).

No caso de Belém, o Porto, que compreende uma zona portuária ampliada, contendo um terminal de carga a granel, o cais acostável para embarcações de carga e passageiros, terminais militares e um terminal de combustíveis (CDP, 2014), está em nítido processo de discussão de sua viabilidade técnica e gerencial. O Porto de Belém, estuarino, é configurado como estrutura tida, hoje, com alto nível de obsolescência (Baudouin, 1999BAUDOUIN, T. (1999). “A cidade portuária na mundialização”. In: SILVA, G. e COCCO, G. (orgs.). Cidades e portos: os espaços da globalização. Rio de Janeiro, DP&A. (Coleção Espaços do Desenvolvimento).), diante do modelo do hub port e seus impactos territoriais, ambientais e logísticos. A localização histórica do Porto, central, era a mais adequada para o período do início do século XX; atualmente, discute-se o conflito em torno das cargas em contêineres e a relação entre exportação, importação, passageiros e cargas, além do conflito funcional com o Centro Histórico de Belém e suas atividades.

Os chamados waterfronts representam, no plano da História, a contraface dos portos, antigos ou modernizados. Na verdade, um waterfront em geral deriva de uma zona portuária cujo padrão tecnológico, situação fisiográfica e modo de operação passaram a ser considerados obsoletos (Baudouin, op. cit.) Processos de reestruturação produtiva e de privatização de serviços e do comércio na cidade criaram um modelo de negócios que se utiliza das cascas históricas dessas estruturas portuárias para nelas produzir locais de consumo visual, de padrões diferenciados (Zukin, 2000ZUKIN, S. (2000). “Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder”. In: ARANTES, A. A. (org.). O espaço da diferença. Campinas, Papirus.; Harvey, 1996HARVEY, D. (1996). Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates. São Paulo, n. 39, pp. 48-64.; 2000HARVEY, D. (2000). Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo, Loyola.). Os waterfronts, assim, são formas territoriais de abordagem da água como paisagem. Sua lógica de desenho urbano denota usos de observação; subsidiariamente, resta a ideia de conexão como referência histórica, mas frequentemente sem qualquer concretude funcional. Zukin (op. cit.) apresenta a ideia de consumo visual e de paisagens liminares para identificar que, nesses locais, ocorre um novo tipo de relação econômica, contemporânea, em que a espacialidade do lugar é parte dos elementos que redefinem a abordagem da água na cidade.

Em Belém, o exemplo de waterfronts representa a aplicação das parcerias público-privado e a requalificação das cascas históricas das antigas zonas portuárias; o “empreendimento” Estação das Docas, inaugurado em 2000, subsidiado pelo Governo do Estado do Pará, é um exemplo. Nesse caso, a água como paisagem denota os valores do solo urbano articulados a uma dimensão da chamada economia da cultura, e a uma relação das novas atividades do terciário urbano com o aproveitamento das antigas estruturas (Jameson, 2001JAMESON, F. (2001). “O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária”. In: JAMESON, F. A cultura do dinheiro. Ensaios sobre a globalização. Petrópolis, Vozes. (Coleção Zero à Esquerda)); a dimensão paisagística da água, assim, adquire notável materialidade, fundiária inclusive.

Figura 8
– Uma das seções de canais de drenagem de obra de macrodrenagem da bacia hidrográfica mais densa de toda a Região Metropolitana de Belém, a Bacia da Estrada Nova, à época da divulgação do seu projeto básico, exibia então esboços de tecnologias de drenagem urbana não-estrutural

Em sentido ambiental mais diretamente, a vertente da Engenharia Ambiental aplicada no Urbanismo e nas obras de infraestrutura urbana vem, desde pelo menos os anos 1980, praticando variantes de projetos com pretensão de intervenções de baixo impacto físico-ambiental. Principalmente ligadas ao Paisagismo, à Drenagem Urbana e à Geotecnia, essas intervenções de uma Engenharia Ambiental urbana compreensiva remontam a aplicações da Ecologia ao Urbanismo, ao Planejamento Ambiental, ao Planejamento Regional e ao Paisagismo (Spirn, 1984SPIRN, A. W. (1984). The granite garden. Urban nature and human design. La Verne/TN (EUA), Basic Books.; McHarg, 1971McHARG, I. L. (1971). Design with nature. Nova York, Doubleday/National History Press.). A substituição de lógicas de impermeabilização de terreno, grandes movimentações de terra e obras de arte de infraestrutura por soluções que favorecem dinâmicas naturais de escoamento, percolação e retenção, contenção de margens e encostas, representa uma mudança significativa no tratamento técnico da paisagem e do ambiente. Essa abordagem da água na cidade se identifica com a água como substância e como veículo, sendo usada como conexão e extensão, na produção e supressão de terrenos, na modelagem do sítio e nas estruturas de interligação entre a terra e a água. Adicionalmente, e em sintonia com a concepção dos waterfronts, a água é aqui também abordada como paisagem, já que esses espaços tratados de modo ambientalmente compreensivos têm se tornado locais de frequência das classes médias urbanas e espaços de conflito entre direitos de ocupação, risco ambiental urbano e direito à moradia.

Na cidade, o projeto de macrodrenagem da Bacia Hidrográfica da Estrada Nova, área de numerosos assentamentos precários, com 940 ha de área e 300 mil habitantes, apresentou curiosa inflexão em seus padrões de projeto. Inicialmente a concepção (ilustrativa, mais do que técnica) desse projeto parecia incorporar soluções não-estruturais de drenagem urbana. Ao longo da execução da obra civil, e em função da fragilidade técnica do “projeto”, nota-se a materialização de soluções conservadoras, convencionais e mineralizadas – nos termos de Mello (2006)MELLO, S. S. de (2006). A experiência francesa de intervenção em espaços urbanos de beira-rio: um paralelo para a reflexão sobre as áreas de preservação permanente (APP). Oculum ensaios. Revista de Arquitetura e Urbanismo. Campinas-SP, n. 6, pp. 18-33. – de modo que se pode falar em um retrocesso, não apenas técnico, mas em termos urbanísticos, posto que em Belém a drenagem (e, portanto, o alagamento) constitui o principal fator de risco ambiental urbano. O projeto de macrodrenagem da Bacia Hidrográfica da Estrada Nova, área mais densa de toda a Região Metropolitana de Belém (RMB), é caracterizado pela intervenção em uma área de cota altimétrica baixa, frequentemente até a cota 6,0 m, acima do nível do mar. O alagamento, sazonal, periódico ou excepcional, se mostra induzido pela deficiência de saneamento básico, pela ocupação do solo e aterros tecnicamente críticos e irregulares, e potencializado pela pobreza dos moradores. Essa situação provoca, anualmente, perdas materiais, adoecimento e mesmo perdas humanas. Sua “mensurabilidade” não estaria, portanto, na capacidade de uma classe de peritos, que identificaria suas “causas” e atuaria sobre elas (Valencio, 2010VALENCIO, N. (2010). Desastres, ordem social e planejamento em Defesa Civil: o contexto brasileiro. Saúde e Sociedade. São Paulo, n. 4, v. 19, pp. 748-762.), mas em uma conjunção de política habitacional deficiente, baixíssima renda domiciliar, sítio físico alagável e alta contiguidade do ambiente construído.

Em paralelo a esse fator, a implantação de equipamentos públicos urbanos como o “parque naturalístico” Mangal das Garças parece não apenas tentar criar um ambiente naturalizado na cidade, mas também compor, como um termo entre o waterfront e a Engenharia Ambiental, a aplicação das abordagens da água na cidade como paisagem e como veículo, ao mesmo tempo, ou como uma espécie de articulação, inclusive pela proximidade, com o projeto de macrodrenagem da Bacia da Estrada Nova. A criação de espaços de sociabilidade, relativamente elitizados e com contraditórios apelos ambientais, pela porção de artificialidade que têm, sugere a vinculação entre a produção da paisagem nessa abordagem da água na cidade e seus potenciais de clivagem, de veto. Esse veto pode ocorrer tanto pelos mecanismos de consumo triviais, quanto pelo acesso às terras com os atributos da conexão e da observação em relação à água, e também quanto à possibilidade de infraestrutura e equipamentos urbanos a ela relacionados – incluindo o saneamento básico.

Figura 9
– O Parque Naturalístico Mangal das Garças, em Belém-PA, é um dos exemplos de intervenções de cunho ambiental e de baixo impacto praticadas recentemente, embora apresente, como é comum na Engenharia Ambiental, contradições estruturais, como sua grande área aterrada e supressão de vegetação de restinga

Por fim, a gestão de águas, abordando um conjunto de atividades de aproveitamento da água no território, tem caráter transversal, difuso e abrangente nesse cenário. A ideia de uma gestão da paisagem, inserida em uma lógica ao mesmo tempo contábil e gerencial (Cauquelin, 2007CAUQUELIN, A. (2007). A invenção da paisagem. São Paulo, Martins. (Coleção Todas as Artes)), é imediatamente a da abordagem da água como recurso do território. Em paralelo, contudo, as outras abordagens circulam. Na gestão por bacia, aborda-se a água como veículo e substância; em sua dimensão cultural, considerada dentro do chamado princípio dos usos múltiplos (MMA, 2004MMA (Ministério do Meio Ambiente); Secretaria de Recursos Hídricos. (2004). Resumo do processo de elaboração do Plano Nacional de Recursos Hídricos. Brasília, MMA. Disponível em: www.mma.gov.br. Acesso em: 18 set 2007.
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) na divisão de estoques do recurso surgem usos de apropriação; no gerenciamento desse estoque diante das intervenções ao longo da bacia, as intervenções são casos de extensão, conexão; a própria operação de monitoramento do uso do recurso se revela, em síntese, uso de observação da água no território (Figura 10).

Figura 10
– A definição espacial recente do Estado do Pará em regiões hidrográficas é o princípio da formalização de uma política de gestão de águas na Região Fonte: Sema (2012).

Figura 11
– A Região Metropolitana de Belém em sua parcela de maior densidade de urbanização, com delimitação de Bacias Hidrográficas

Considerações finais

A intenção da pesquisa que gerou este texto era, inicialmente, a de buscar pontos de convergência entre quatro frentes de discussão do fenômeno socioambiental relacionando o processo de urbanização e a água no território. A relação entre cidade e água, na verdade, não é essencialista, nem diz respeito a narrativas esotéricas e místicas entre o lugar, ou seus atributos naturais, e as atividades humanas nele inscritas. A empiria, no caso de Belém, Pará, remete a quatro fenômenos, ou formas, territoriais, que ilustram pontos de uma problemática de acesso ao recurso, ou à paisagem, ao veículo ou à água cientificamente tratada como substância – destituída, supostamente, de qualquer carga política. Nesse sentido, estender o território; conectar funções e atributos da água; apropriar-se materialmente dela ou monitorá-la são atividades, inscritas materialmente por meio de equipamentos e estruturas urbanas, próprias de cidades costeiras, ribeirinhas, lacustres. Esses fenômenos, então, articulam um problema único. Estes quatro fenômenos são:

  • a urbanização de frentes de água urbanas, tomada a partir de antigas estruturas e espaços públicos de equipamentos de logística portuária, segundo modelos do empresariamento urbano (Harvey, 1996HARVEY, D. (1996). Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates. São Paulo, n. 39, pp. 48-64.), usualmente chamada de waterfront;

  • a correspondente discussão técnica e gerencial sobre a modernização portuária (Baudouin, 1999BAUDOUIN, T. (1999). “A cidade portuária na mundialização”. In: SILVA, G. e COCCO, G. (orgs.). Cidades e portos: os espaços da globalização. Rio de Janeiro, DP&A. (Coleção Espaços do Desenvolvimento).), inclusive no Brasil, gerando novos impactos territoriais com a desativação de antigas zonas portuárias (frequentemente do início do século XX) e a reorganização gerencial advinda da legislação nacional de regulação do setor (Brasil, 1993BRASIL, Presidência da República; Subchefia para assuntos jurídicos. (1993). Lei n. 8.630, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre o regime jurídico da exploração dos portos organizados e das instalações portuárias e dá outras providências. (LEI DOS PORTOS). Brasília, 25 fev. 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/Leis/L8630.htm. Acesso em: 10 jan 2010.
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    ; 2013BRASIL, Presidência da República; Subchefia para assuntos jurídicos. (2013). Lei n. 12.815, de 5 de junho de 2013. Dispõe sobre a exploração direta e indireta pela União de portos e instalações portuárias e sobre as atividades desempenhadas pelos operadores portuários; altera as Leis nos 5.025, de 10 de junho de 1966, 10.233, de 5 de junho de 2001, 10.683, de 28 de maio de 2003, 9.719, de 27 de novembro de 1998, e 8.213, de 24 de julho de 1991; revoga as Leis nos 8.630, de 25 de fevereiro de 1993, e 11.610, de 12 de dezembro de 2007, e dispositivos das Leis nos 11.314, de 3 de julho de 2006, e 11.518, de 5 de setembro de 2007; e dá outras providências. Brasília. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/Lei/L12815.htm. Acesso em: 23 dez 2013.
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    ).

  • a incorporação crescente de tecnologias da engenharia ambiental, de caráter compreensivo (Araujo, Almeida e Guerra, 2008ARAUJO, G. H. de S.; ALMEIDA, J. R. de e GUERRA, A. J. T. (2008). Gestão ambiental de áreas degradadas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.; Spirn, 1984SPIRN, A. W. (1984). The granite garden. Urban nature and human design. La Verne/TN (EUA), Basic Books.), diante dos impactos ambientais considerados negativos, principalmente relacionados a medidas estruturais de drenagem urbana, com forte caráter artificializado e dependente de estruturas integradas sistemicamente, mas não relacionadas ao gerenciamento de bacia hidrográfica;

  • a implantação progressiva, no Brasil e no Estado do Pará (através da Secretaria de Estado de Meio Ambiente), de uma política de gestão de recursos hídricos (Sema, 2012SEMA (Secretaria de Estado de Meio Ambiente; Governo do Estado do Pará) (2012). Política de gestão de recursos hídricos do Estado do Pará. Belém, Secretaria de Estado de Meio Ambiente. Disponível em: http://www.sema.pa.gov.br/download/POLITICA_DE_RECURSOS_HIDRICOS_DO_ESTADO_DO_PARA.pdf. Acesso em: 24 mar 2014.
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    ), baseada em diagnósticos ainda incipientes por região hidrográfica do Estado, e baseadas na discussão, assumidamente em processo de amadurecimento, sobre a implantação de mecanismos de cobrança por uso e exploração de recursos hídricos no Estado, diante de diferentes potenciais de acesso físico à água e, portanto, diferentes níveis de escassez e abundância, de acordo com as diferentes regiões do Estado do Pará.

A análise desses fenômenos, em princípio desarticulados, permite uma integração da temática da água na cidade. Notou-se que:

  • a incorporação da água como paisagem no fenômeno do waterfront remete a um momento novo, da economia da cultura (Jameson, 2001JAMESON, F. (2001). “O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária”. In: JAMESON, F. A cultura do dinheiro. Ensaios sobre a globalização. Petrópolis, Vozes. (Coleção Zero à Esquerda)) nas economias urbanas, e da incorporação da paisagem como elemento derivado do acúmulo de capital previamente imobilizado no território, criando usos do novo terciário urbano, não mais relacionados à produção industrial, manufatureira ou ao comércio, ou mesmo às atividades primárias, típicas da economia urbana amazônica; a paisagem torna-se um ativo econômico, associando os valores da cultura do antigo à criação de uma suposta identidade regional, ribeirinha ou amazônica, vinculada ao rio;

  • como contraface desse processo, a modernização de portos trata a água na cidade como veículo; sendo uma “água técnica”, esse elemento pertence à ordem dos fenômenos racionalizados pela lógica do cálculo e, ao mesmo tempo, pela eficiência dos modelos logísticos contemporâneos. A água como veículo é, portanto, destituída em grande parte de seus atributos culturais e paisagísticos, em uma apreciação mais imediata, dizendo respeito a uma economia mais pragmática e, sobretudo, relacionada ao controle do tempo e às medidas de eficiência do espaço portuário;

  • na incorporação de uma lógica da Ecologia como ciência, no processo de urbanização e implantação de redes e sistemas de infraestrutura, a engenharia ambiental aborda a água na cidade como substância, como veículo, mas também permite sua apropriação como paisagem; sua dimensão econômica é nitidamente integradora. As intervenções de margens de rio e canais urbanos no mundo inteiro vêm se tornando polêmicas experiências de, simultaneamente, recuperação ambiental, elitização do perfil socioeconômico de moradores e discussão sobre os efeitos físico-ambientais das novas estruturas. Com uso intensivo de vegetação, materiais bio-degradáveis e superfícies permeáveis, a engenharia ambiental revela uma luta pela legitimidade e pelos direitos ao ambiente urbano saudável. Tendencialmente, as intervenções vêm justificando amplos processos de remoção populacional e a impossibilidade de extensão dos benefícios das tecnologias compreensivas para a urbanização de favelas, ponto crítico da drenagem urbana no Brasil.

  • a gestão de águas, por sua vez, aprofunda a dimensão integradora da engenharia ambiental. Pode ser afirmado que a gestão de recursos hídricos sintetiza as quatro abordagens estudadas da água na cidade. Ao adotar uma postura gerencial sobre o ambiente, essa dimensão da política ambiental se propõe a organizar a paisagem (Cauquelin, 2007CAUQUELIN, A. (2007). A invenção da paisagem. São Paulo, Martins. (Coleção Todas as Artes)); ao gerenciar o ambiente a respeito desse elemento específico, a gestão de águas sintetiza e aprofunda a dimensão difusa do controle político sobre o ambiente, incorporando a água como paisagem, veículo, substância e tornando-a, de modo mais evidente, mercadoria.

O caso de Belém, Pará, pode ser pensado como ilustrativo de uma problemática urbana de acesso à água, amplamente falando. Por ser uma cidade onde a localização e os atributos fisiográficos e hidrográficos do sítio se revelaram, historicamente, decisivos, o caso de Belém contém, com alguma variedade, questões generalizáveis. Como cidade portuária, da época dos portos estuarinos, e como praça comercial, ainda que relativamente estagnada no padrão brasileiro, Belém atravessa discussão pública acerca da “sobrevida” de seu Porto central, ligada a projetos culturais pensados como obrigatoriamente rentáveis, convivendo com propostas ambiciosas e não-urbanas de hub-ports distantes. Como local de urbanização precária e alagável, com alto índice de irregularidade fundiária e urbanística, Belém recebe, há alguns séculos, sucessivas propostas de racionalização (e, como visto, até mesmo de “compreensão” técnica, embora abortada) de sua drenagem natural e de produção da paisagem. Situada em um estado do Brasil com nível significativo de disponibilidade de água doce superficial, e na região expandida de desembocadura de um importante rio da América do Sul, a cidade, e o estado do Pará, enfrentam o debate em torno do perfil “amazônico” de uma política de gestão de águas, em que compensações financeiras conservadoras são postas na mesa em paralelo ao risco iminente de subjugar a informalidade urbanas, e as economias populares e de subsistência.

Em síntese, o planejamento ambiental urbano se observa de um ponto de vista de discussão de seus parâmetros teóricos e instrumentos de aplicação. Fortemente influenciados pela economia neoclássica, os modelos de planejamento ambiental vêm usando concepções de eficiência econômica e custo marginal supostamente capazes de prever e mitigar eventuais impactos negativos, ou externalidades, advindos da produção territorial da cidade e seu ambiente (Acselrad, 2001ACSELRAD, H. (2001). “Sentidos da sustentabilidade urbana”. In: ACSELRAD, H. (org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro, DP&A. (Coleção Espaços do Desenvolvimento.)). Nesse sentido, a dimensão classista do controle político, embora difuso, sobre o ambiente, é evidente e quase total. Faz-se necessária, portanto, outra lógica, cooperativa, de política ambiental urbana, capaz de articular níveis de governo, não promovendo competição entre agentes, mas criando dinâmicas de leitura, compreensão técnica e projetos progressistas para a aplicação de tecnologias de recuperação ambiental que corram em paralelo a projetos de desenvolvimento social e econômico. A dimensão pública e coletiva da água na cidade, portanto, não passa apenas pela discussão da ampliação do acesso e das opções tecnológicas, mas pelas opções políticas de garantia de acesso e viabilização dos custos para vencer o passivo das áreas classificadas como subnormais, no Brasil, por exemplo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2015

Histórico

  • Recebido
    8 Ago 2014
  • Aceito
    6 Nov 2014
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