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Planejamento urbano empresarialista em complexos imobiliários, residenciais e de serviços: a Reserva do Paiva em análise

Entrepreneurial urban planning in real estate, residential and service complexes: Reserva do Paiva under analysis

Resumo

Os Complexos Imobiliários, Residenciais e de Serviços (Cirs) são empreendimentos plurifuncionais que demandam longo lapso temporal para serem concluídos, e sua produção envolve um processo de interescalaridade das ações. São concebidos sob uma lógica global-local em que o lugar se ajusta aos ditames do capital como condição para se moldar aos novos padrões modernizantes. A governança evidencia o protagonismo privado, ainda que o Estado seja fundamental como agente regulador e viabilizador do negócio. Com base nisso, este artigo analisa a governança urbana desse planejamento urbano empresarialista que resultou na concepção do Cirs Reserva do Paiva, na Região Metropolitana do Recife. A principal crítica que se coloca é que esses complexos imobiliários são uma resposta conservadora do planejamento urbano aos problemas urbanos atuais e, ao serem concebidos e produzidos sob a tônica do exclusivismo socioespacial, negam a cidade como totalidade e não contribuem para a superação de seus problemas.

complexos imobiliários, residenciais e de serviços; planejamento urbano empresarialista; governança urbana; interescalaridade das ações; Reserva do Paiva

Abstract

The Real Estate, Residential and Service Complexes (CIRS) are plurifunctional enterprises that require a long period of time to be completed and whose production involves inter-scaled actions. They are designed under a global-local logic in which the place adjusts itself to monetary requirements as a condition to fit new modernizing standards. Governance evidences the leading role of private capital, although the State is a fundamental agent that regulates and ensures the viability of the business. Based on this, this article analyzes the urban governance of this entrepreneurial type of urban planning that resulted in the design of the CIRS Reserva do Paiva, in the Metropolitan Region of Recife. The main criticism that arises is that these real estate complexes are a conservative response of urban planning to current urban problems and, when they are designed and produced under the keynote of socio-spatial exclusiveness, they deny the city as a whole and do not contribute to the overcoming of its problems.

real state; residential and service complexes; entrepreneurial urban planning; urban governance; inter-scaled actions; Reserva do Paiva

Introdução

No atual período, são cada vez mais complexas as articulações entre o capital privado e o poder público no processo de planejamento urbano. Com base nisso, a implantação de megaprojetos imobiliários exige estratégias bastante arrojadas por parte dos agentes capitalistas, contando com o Estado como agente garantidor de certas condições para a realização do negócio. Esses megaempreendimentos são plurifuncionais e, via de regra, demandam algumas décadas para serem concluídos. Procurando melhor defini-los neste trabalho, utiliza-se a terminologia Complexos Imobiliários, Residenciais e de Serviços (Cirs), com base em empreendimentos de natureza e de composição semelhantes, na área metropolitana de Belo Horizonte, que foram estudados e assim denominados por Costa (2006)COSTA, H. S. M. (2006). “Mercado imobiliário, Estado e natureza na produção do espaço metropolitano”. In: COSTA, H. S. M. (org.) e COSTA, G. M. et al. (colab.). Novas periferias metropolitanas: a expansão metropolitana em Belo Horizonte: dinâmica e especificidades no Eixo Sul. Belo Horizonte, C/Arte.. Os promotores imobiliários em geral os chamam de “bairros planejados” (ou ainda “cidades planejadas”), num evidente apelo mercadológico que busca vender a ideia de uma “nova” cidade ou de uma suposta “nova” realidade urbana em face dos diversos problemas urbanos brasileiros.

Isso posto, os Cirs são plurifuncionais na medida em que reúnem, no mesmo local, vários usos do solo e não devem ser confundidos com os loteamentos residenciais fechados (também conhecidos por condomínios residenciais fechados horizontais) nem com os condomínios industriais e de logística, os complexos de escritórios empresariais e os de equipamentos turísticos. Conquanto se notabilizem pela prevalecente função residencial de alto padrão, os Cirs também comportam centros empresariais, de compras, de gastronomia e de lazer ou, ainda, assumem a função turística, constituindo-se de campos de golfe, de complexo náutico e hoteleiro. Com essa diversidade de funções, busca-se contemplar uma gama de serviços e de atividades comerciais que em pouquíssimos casos é ofertada em bairros nobres, porém, nesses complexos, resguarda uma perspectiva socioespacial ainda mais exclusivista.

Em vários casos, a exemplo do que ocorre na Reserva do Paiva, no litoral sul da Região Metropolitana do Recife (RMR), objeto empírico desta reflexão, os Cirs são desprovidos dos tradicionais muros que caracterizam os loteamentos fechados, o que sugere, ao menos na aparência, que apresentam maior integração com a malha urbana circundante. Porém, frequentemente, os muros se impõem de forma imaterial, por meio de sistemas de monitoramentos e por seletividades espaciais que induzem restrições tanto explícitas quanto veladas a todos que sejam considerados indesejados ou taxados como socialmente incompatíveis com o perfil de morador predefinido.

Assemelhando-se à lógica dos shopping centers, não obstante sejam muito distintos deles, os Cirs também possuem investimentos-âncora que até certo ponto lhes conferem centralidade urbana em termos de oferta de comércio e de certos serviços especializados para os próprios moradores e usufrutuários, constituídos por clientes bem-segmentados, sejam eles empresários, sejam profissionais liberais com seus escritórios e consultórios. Entre as atividades contempladas pelos investimentos-âncora, destacam-se centros empresariais, escritórios, clínicas particulares, restaurantes, lanchonetes, casas noturnas, hotéis, resorts, marina, galerias de arte, supermercados, escolas e faculdades privadas, dentre outros equipamentos (Figura 1).

Figura 1
– Esboço da planta do Cirs Reserva do Paiva, com base no seu plano máster

Buscando compreender melhor a lógica que perpassa a consolidação desses produtos imobiliários, é interessante frisar que, se a vida nas cidades brasileiras impõe inúmeras dificuldades relacionadas com o agravamento de problemas urbanos reais ou potenciais, como sensação de insegurança, congestionamentos frequentes, problemas ambientais e um sem-número de precariedades urbanísticas, os Cirs são planejados pelo capital como uma solução ainda que pontual para toda essa sorte de iniquidades. No plano da vida urbana, esses complexos se traduzem como uma resposta conservadora aos problemas urbanos e se tornam “a solução” sob o olhar do mercado. Nesse sentido, a cidade é encarada senão como um importante meio do processo de acumulação capitalista, pois não é vista na sua totalidade, constituída que é por realidades sociais multifacetadas.

Isso significa que, ao assumir o protagonismo do planejamento e da governança dos Cirs, o capital privado vai muito além de apenas construir empreendimentos segmentados para o mercado de alto padrão (residencial, comercial ou de serviços). Na verdade, ele cada vez mais passa a atuar no ramo que os promotores imobiliários denominam “desenvolvimento urbano”, ou seja, também assume a gestão condominial e planeja meticulosamente os serviços e os produtos que serão oferecidos nesses espaços, numa busca de estabelecer uma relativa autossuficiência diante do restante da cidade. Além disso, devido ao longo tempo que leva a implantação de um Cirs (que pode transcorrer 30 anos ou mais), há inúmeros riscos aos quais os capitalistas se expõem. Nesse caso, assegurar o controle urbano e ambiental, a gestão condominial e os serviços de alto nível que vão ser oferecidos na área interna do Cirs e atrair parceiros qualificados para assumirem os investimentos-âncora são condições essenciais para a perenidade do negócio.

Desse modo, nos Cirs é adotado um perfil de governança que evidencia o protagonismo privado, em que os valores e os preceitos do mercado se tornam absolutamente fundamentais. Porém, é importante frisar que, em nenhum momento, o Estado se coloca como mero coadjuvante. Há, ao mesmo tempo, um protagonismo privado e público, sendo o primeiro o usufrutuário e o segundo viabilizador do negócio, ao fornecer um conjunto de condicionantes no campo da regulação urbana e do financiamento e da oferta de serviços públicos. Nesse caso, a falsa ilusão de que o Estado está fora e de que quanto menos Estado melhor é puro jogo de cena, algo bastante funcional para os interesses dos promotores imobiliários e dos investidores com negócios no interior desses complexos.

Vale frisar o pensamento de Lefebvre (2007LEFEBVRE, H. (2007). The production of space. Oxford, Blackwell Publishing. e 2008LEFEBVRE, H. (2008). Espaço e política. Belo Horizonte, Editora UFMG.) de que, sendo o espaço uma instância da sociedade, a sua produção não constitui um processo inocente, pois ela é reveladora de muitas contradições que permeiam a sociedade. Desse modo, a concepção do espaço da Reserva do Paiva é a de um lugar diferenciado pelo exclusivismo e, de certo modo, evidencia a tentativa de diferenciação pela homogeneização, pois não parece razoável falar de diferenciação na homogeneização, mormente em cidades historicamente marcadas pelo signo da desigualdade, tal como o caso do Recife e sua área metropolitana. Em termos espaciais, a diferenciação pela homogeneização tem a ver com posturas, hábitos de consumo e visões de mundo que se relacionam com processos de autossegregação em espaços nitidamente exclusivistas.

Considerando o quadro de referência exposto até aqui, neste trabalho se opta pelo uso da expressão planejamento urbano empresarialista, sem ter com isso qualquer compromisso de propor uma nova modalidade de planejamento urbano. Na verdade, a opção aqui feita por tal adjetivação é uma menção à crítica feita por Harvey (1996HARVEY, D. (1996). Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos. São Paulo, v. 16, n. 39. e 2006HARVEY, D. (2006). Espaços da esperança. São Paulo, Edições Loyola.), ao discutir sobre o planejamento e a produção do espaço sob o signo do empresariamento urbano. Tendo como pano de fundo o empresarialismo, o autor adverte que a parceria público-privada significa que o público fica com os riscos, enquanto o privado fica com os benefícios, o que denota o caráter privado do planejamento, em que valores e preceitos do mercado são colocados em primeiríssimo plano. A despeito desse viés empresarialista, é sempre válido ressaltar que o papel do poder público é absolutamente estratégico para que os promotores imobiliários atinjam seus fins.

A par dessas reflexões iniciais, este artigo analisa o processo de planejamento urbano empresarialista que resultou na concepção do Cirs Reserva do Paiva, cujos primeiros investimentos iniciaram-se em 2007 e a última etapa está prevista para ser concluída somente em 2042 (isso, obviamente, vai depender dos ventos soprados pelo mercado). Projeta-se que o complexo tenha uma população fixa de 40 mil pessoas e uma população flutuante de 50 mil pessoas, o equivalente a uma cidade de porte médio. Até o presente, a Reserva do Paiva conta com quase duas dezenas de empreendimentos lançados, tendo sido concluídos o complexo viário construído por meio de parceria público-privada, um hotel da rede Sheraton, um centro de gastronomia e conveniências e um complexo empresarial. Três de oito condomínios residenciais lançados também já foram concluídos. Os empreendimentos-âncora servem de base para atrair investidores e propiciar a valorização do megaprojeto como um todo, oferecendo atividades de comércio e serviços para quem lá morar ou trabalhar.

Por sua vez, a localização em área litorânea sul, no município metropolitano do Cabo de Santo Agostinho, e ao mesmo tempo relativamente próxima do Recife, dá uma boa medida da localização estratégica desse Cirs (Mapa 1), como parte do processo de valorização imobiliária que ocorre nessa periferia de amenidades.

Mapa 1
– Localização do Cirs Reserva do Paiva

Faz-se um esforço aqui para demonstrar que esse planejamento empresarialista se dá de forma associada a uma concepção de governança urbana que dá salvaguarda ao Cirs como se fosse uma cidade à parte, com suas próprias regras e códigos. Um pressuposto aqui defendido é que o planejamento urbano condicionado e promovido pelo mercado constitui expressão do protagonismo privado, mas, ao mesmo tempo, está intrinsecamente articulado e dependente do Estado e é fruto de um processo de interescalaridade das ações, em que se articulam a ordem próxima e a ordem distante. Mostra-se ainda como são espaços assépticos, nos quais a dimensão ambiental é parte do jogo de interesses mercadológicos.

O planejamento urbano empresarialista num contexto prático

Como já salientado, o planejamento dos Cirs conta, não só com a ação do grande capital privado, mas também com a ação do Estado, por vezes com a benevolência das prefeituras municipais em aprovar instrumentos urbanísticos que lhes dão tratamento específico ante os demais fragmentos da cidade. Como advoga Reis (2006REIS, N. G. (2006). Notas sobre urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. São Paulo, Via das Artes., p. 146), “Esses empreendimentos complexos apresentam em geral uma diversificação de tratamento urbanístico que os destaca do tecido urbano próximo”, o que, a nosso ver, por si só não é razoável para justificativa de tal fato.

Nesse processo, o Estado legitima e dá total permissividade às ações do capital privado, colocando-se como agente direto na provisão de infraestruturas e na criação do ordenamento legal. A despeito da recorrente apologia aos benefícios gerados pela ação da iniciativa privada substituindo o Estado, nesses complexos imobiliários, onde termina um e começa o outro é, à primeira vista, pura ilusão de ótica. Um olhar apressado até tenderia a enxergar e por vezes exaltar apenas a atuação do planejamento privado e suas supostas vantagens comparativas. Porém, é igualmente necessário constatar que, devido às implicações dos Cirs em termos temporais e espaciais, os investimentos públicos e certas ações do Estado se tornam peça fundamental para a viabilização do negócio.

Não se trata de um planejamento urbano sob a perspectiva estado-centrista. Vale dizer que numa sociedade capitalista a ação do Estado é, via de regra, direcionada para a reprodução da ordem vigente e, nesse contexto, mesmo o planejamento urbano empresarialista é permeado pela ação do Estado. Em outras palavras, o Estado constitui uma relação de condensação de forças (Poulantzas, 1980POULANTZAS, N. (1980). O Estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro, Graal.), e o capital é forte o suficiente para fazer valer seus interesses. Nesse quadro de referência, Souza (2002)SOUZA, M. L. de (2002). Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. adverte que o planejamento se subordina às tendências do mercado, e o papel essencial do Estado é o de facilitação do próprio mercado, oferecendo-lhe vantagens e regalias que vão de isenções tributárias a suspensão ou imposição de restrições de uso por meio do zoneamento, como forma de privilegiar incorporadoras em áreas específicas.

Isso posto, vale tomar a implantação da Reserva do Paiva como um caso deveras revelador desse planejamento empresarialista. Nesse sentido, política e institucionalmente é criado um ambiente de amplo favorecimento dos investidores privados. De forma prática, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental do Cabo de Santo Agostinho, município metropolitano onde se localiza esse complexo imobiliário, prevê a criação de novas zonas especiais sempre que algum empreendimento econômico precise de ajuste no marco urbanístico para ser implantado no território municipal. Isto está previsto no art. 46, § 2º, que textualmente prescreve: “Fica autorizado o Poder Executivo a declarar outras áreas, como especiais, sempre que a dinâmica territorial assim o exigir ou para atender a diretrizes de planos específicos” (Cabo de Santo Agostinho, 2006CABO DE SANTO AGOSTINHO (2006). Lei Municipal nº 2.360, de 29 de dezembro: institui a Política Urbana e Ambiental e o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental do Cabo de Santo Agostinho, tendo como horizonte temporal o ano 2015, quando deverá ser revisado.). Para Vainer (2013)VAINER, C. (2013). “Quando a cidade vai às ruas”. In: ROLNIK, R. et al. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, Boitempo/Carta Maior., ao invés da regulação estatal, prevalece a negociação caso a caso, projeto a projeto, na concretização do que o urbanista francês François Ascher (2001)ASCHER, F. (2001). Les nouveaux principes de l’urbanisme. La fin des villes n’est pas à l’ordre du jour. Paris, Éditions de l’Aube. nomeou com a feliz expressão de urbanismo ad hoc.

Como na prática são os próprios loteadores que propõem a criação das novas zonas especiais, cabe ao Executivo Municipal apenas referendar e passar para o Legislativo subscrevê-la. Com isto, cada um desses novos recortes territoriais tende a conter parâmetros urbanísticos que atendam às especificidades e aos interesses bem localistas dos empreendedores privados, sem expressar a cidade em sua totalidade. Aliás, como bem afirma Padua (2015)PADUA, R. F. de (2015). “Produção estratégica do espaço e os ‘novos produtos imobiliários’”. In: CARLOS, A. F. A. et al. (orgs.). A cidade como negócio. São Paulo, Contexto., vista sob a perspectiva unicamente de negócio, a cidade deixa de ser totalidade e se torna totalitária. Dessa forma, as zonas especiais enquanto tais parecem não “dialogar” com a cidade como um todo, pois são concebidas para dentro dos empreendimentos imobiliários. Para Amorim (2013AMORIM, G. R. da S. (2013). Efetividade da política ambiental municipal: realidades no município do Cabo de Santo Agostinho/PE. Dissertação de Mestrado. Recife, Universidade Federal de Pernambuco., p. 95),

As Zonas Especiais não são apenas criadas, mas realmente implementadas e revisadas de acordo com as necessidades dos empreendedores. O tratamento diferente que recebe vale-lhe o nome de “especial”, pois se trata de áreas destacadas do restante do território pelo planejamento municipal, incluindo aí uma política ambiental mais permissiva quando se trata do lançamento de matéria ou energia em desacordo com os padrões ambientais, ou mais restritiva, quando se trata de agregar fatores ambientais na melhoria da qualidade de vida para moradias de alto padrão, e, portanto, moradores especiais de Zonas Especiais.

Em meio a essas contradições, desde o início da vigência do Plano Diretor, em dezembro de 2006, até o ano de 2013, já haviam sido criadas 6 zonas especiais e 11 leis, algumas delas feitas para atender a interesses das corporações empresariais, voltados para a implantação de complexos residenciais, industriais e logísticos. Nesse contexto, foi criada a Zona Especial de Turismo, Lazer e Moradia Reserva do Paiva, a partir da lei municipal nº 2.387/2007, e, tão logo tal projeto foi redimensionado para se adaptar a uma nova demanda do mercado imobiliário, o marco jurídico foi alterado, em 2012, para permitir o aumento do gabarito das edificações e da taxa de ocupação do solo. Paralela a essa postura do Estado, a iniciativa privada pauta suas ações no imediatismo respaldado na obtenção célere de retorno financeiro.

Essa crítica se estende ainda à implantação de empreendimentos logísticos e industriais, cujos projetos de loteamento têm sido elaborados e aprovados pelas incorporadoras, referendados pelo Executivo e subscritos pela Câmara de Vereadores, valendo-se dessa permissão contida no Plano Diretor e, claro, da fragilidade institucional. Os discursos dos gestores públicos sempre deixam implícito o imperativo de que o município tem que prover todas as condições que julgam vitais na atração de investimentos privados, em nome do tão propalado crescimento econômico local. Fica muito claro “[...] um contexto de subordinação da política dos governantes aos interesses econômicos e o engendramento manipulado da técnica como redenção, nos moldes atuais em que ela se encontra gestada” (Gomes, 2006GOMES, E. T. A. (2006). “Reflexões sobre o urbano-ambiental à sombra de catástrofes anunciadas e vividas em escala global”. In: SILVA, J. B. da et al. (orgs.). Panorama da geografia brasileira. Volume 2. São Paulo, Annablume., p. 73).

Nisso tudo, o papel exercido pela Câmara de Vereadores é de total subserviência ao Executivo e este, por seu turno, às corporações privadas. No final, é instituído o que os agentes privados decidem desde o início. Isto significa que a Prefeitura já recebe o “pacote pronto”, e os servidores do quadro técnico-administrativo ficam com a difícil missão de apenas referendar, por meio de argumentos técnicos e jurídicos, o que já foi decidido pelo empreendedor privado.

Se, no âmbito municipal, há tal submissão, no nível estadual o poder público também se faz presente, mas igualmente para favorecer os interesses hegemônicos dos grupos econômicos e, desse modo, sem qualquer participação efetiva da sociedade civil organizada. A Agência Condepe-Fidem, órgão metropolitano de planejamento, chega até a sugerir alterações na fase de análise do projeto para conceder a anuência aos empreendimentos imobiliários, para verificar se estão ou não em conformidade com a legislação vigente, porém só vai até esse ponto. As alterações que ela sugere não são fiscalizadas em campo, nem por ela, que não tem equipe e estrutura operacional suficiente, nem pelas prefeituras, que não querem afugentar os investidores. Aliás, diga-se de passagem, há um claro esvaziamento dessa agência, que está cada vez mais sendo substituída pela Secretaria de Estado de Governo (Segov) e pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico (Sdec), pastas do governo estadual que não têm o papel de fiscalização e controle, mas tão somente o objetivo de pactuar e promover a atração de grandes investimentos para alavancar o crescimento econômico do estado.

Na verdade, há uma decisão política de esvaziar o planejamento dessas agências, numa clara opção da administração pública pelo favorecimento dos grandes investimentos econômicos, sem maiores entraves para sua instalação no território. Por sua vez, a falta de articulação com as prefeituras e os atores sociais resulta num quadro em que as anuências são meras peças burocráticas e não têm qualquer sentido prático de fiscalização. Conforme afirmou a Coordenadora Técnica do Programa Especial de Controle Urbano-Ambiental do Território Estratégico de Suape, da Condepe-Fidem, não há o momento “[...] pós, ou seja, o monitoramento e o acompanhamento de tudo o que foi anuenciado e [...] acompanhar isso de perto com as prefeituras, para saber se está realmente sendo implantado aquilo” (Entrevista em ago/2013). Isto é uma demonstração cabal da crise do sistema de planejamento urbano metropolitano, justamente num momento em que os grupos econômicos cada vez mais tomam a frente e fazem valer seus interesses no planejamento urbano, dando-lhe um caráter essencialmente empresarialista.

Assim, nessas Zonas Especiais do Cabo de Santo Agostinho, os próprios investidores teriam que fazer a implantação da infraestrutura urbana. Mas, isso sempre vai depender da negociação direta com o Poder Executivo, sem qualquer interlocução da sociedade civil organizada, sem falar da tradicional debilidade do Legislativo municipal, que se limita a aprovar os projetos do Executivo e quase não se atém ao seu papel de legislar e tampouco de fiscalizar. Por isso que, estranhamente apenas cumprindo decisão superior, gestada nos escritórios de consultorias nacionais e estrangeiras, muda-se o zoneamento do uso do solo, permitindo-se o aumento do gabarito da Reserva do Paiva, e isto logo vira lei, num processo em que o Legislativo Municipal apenas cumpre uma formalidade legal.

Conquanto não seja parâmetro para analisar a realidade de qualquer recorte urbano, o fato é que, no contexto do espaço metropolitano do Recife, o planejamento urbano empresarialista ocorre pari passu com um quadro de clara fragilidade institucional. Isso se torna ainda mais grave, pois o poder público assume de fato a condição de mero facilitador do capital privado, sem qualquer disposição de apontar outras possibilidades de ação. Parafraseando Vainer (2013)VAINER, C. (2013). “Quando a cidade vai às ruas”. In: ROLNIK, R. et al. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, Boitempo/Carta Maior., trata-se da clara expressão da democracia direta do capital, em que a cidade é colocada como um formidável campo de investimento imobiliário, sem maiores preocupações sobre que cidade se quer para as gerações futuras.

Escalas e agentes da governança urbana nos complexos imobiliários

Outra clara acepção do planejamento urbano empresarialista está relacionada com a concepção e a governança dos Cirs. Elas traduzem um processo de interescalaridade das ações, num movimento global e local, sendo também permeado por níveis intermediários. Em outras palavras, o planejamento desses megaprojetos envolve consultorias estrangeiras em parceria com renomados escritórios nacionais que fazem adaptações para a realidade local, combinando ingredientes locais de arquitetura e urbanismo, sem perder de vista as tendências globais. Se, como diz Santos (1997SANTOS, M. (1997). Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo, Hucitec., p. 37), “é pelo lugar que revemos o Mundo e ajustamos nossa interpretação [...]”, também é, por meio do mundo, possível entender a realidade local. Aliás, procurar ser global com ares locais e ser local com ares globais se constituem em mais um traço da produção desses megaprojetos imobiliários.

Isso atesta o papel do setor imobiliário no aporte de capitais de outros segmentos econômicos, ao mesmo tempo que atua não mais restritamente à escala local e à nacional. É mais uma função do imobiliário associado ao capital financeiro no contexto de produção espacial por meio de megaprojetos em distintos espaços, estejam eles situados no interior das cidades, nas suas bordas, ou ainda em áreas descontínuas conectadas às metrópoles por modernos eixos viários, assim como ocorre no interior do estado de São Paulo, cujas implicações urbanísticas e espaciais foram diligentemente estudadas por Reis (2006)REIS, N. G. (2006). Notas sobre urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. São Paulo, Via das Artes..

Incorporado aos estudos urbanos, o termo governança está relacionado com as mudanças em curso no mundo atual e com seus rebatimentos na produção e na gestão das cidades, em vista da atuação de distintos atores sociais, políticos e econômicos que passam a participar cada vez mais do planejamento urbano. A governança urbana envolve a coordenação de interesses e a tomada de decisões de agentes públicos e privados afetas à produção espacial e à gestão urbana. Desse modo, governança tem a ver com a coordenação de atores, de grupos sociais e de instituições, com vistas a atingir objetivos comuns coletivamente (Le Galés, 1995LE GALES, P. (1995). Du gouvernement des villes à la gouvernance urbaine. Revue Française de Science Politique, ano 45, n. 1, pp. 57-95. Disponível em: http://www.persee.fr/doc/rfsp_0035-2950_1995_num_45_1_403502. Acesso em: 14 abr 2014.
http://www.persee.fr/doc/rfsp_0035-2950_...
). Como já destacado, grandes empreendimentos imobiliários do tipo Cirs tornam-se expressão desse contexto de uma complexa articulação de agentes privados e públicos, sendo isso parte indissociável da governança urbana.

De acordo com Harvey (2005)HARVEY, D. (2005). A produção capitalista do espaço. São Paulo, Annablume., a governança se distingue e vai além da noção de governo urbano. Ela se relaciona com o intricado jogo de interesses que perpassa os agentes locais, nacionais e internacionais. Como assevera esse autor, no contexto atual, “[...] o neoliberalismo transformou as regras do jogo político. A governança substituiu o governo” (ibid., p. 32). Logo, governança é uma noção mais ampla e envolve uma coalizão de forças, em que o governo e a administração pública exercem papel importante na condição de facilitadores e coordenadores, mas estão longe de ser os únicos agentes envolvidos no processo, tampouco seus únicos protagonistas.

Conforme ocorre na Reserva do Paiva, trata-se da governança para o empresariamento, que tem como uma de suas expressões as ações coordenadas pela Associação Geral da Reserva do Paiva (AGRP), entidade de direito privado e sem fins lucrativos que funciona como se fosse uma subprefeitura (no município do Cabo de Santo Agostinho), ao menos extraoficialmente, para pactuar a governança desse Cirs de forma relativamente autônoma e ao mesmo tempo dependente do poder público. Isso ocorre em um contexto político-institucional marcado por um processo de crescente fragmentação da gestão pública e pelo protagonismo dos agentes capitalistas privados que, em aliança com o Estado, capturam investimentos e transformam cada vez mais a cidade e seu espaço em mercadoria, aliás, diga-se de passagem, um negócio bastante lucrativo.

Segundo essa concepção, a governança pressupõe arranjos político-institucionais que articulam o público e o privado e, ao mesmo tempo, pleiteia a participação de distintos atores, com a descentralização das ações. Ela também busca o financiamento das políticas públicas, mormente quando isso é conveniente ao setor privado (leia-se: lucrativo). Utilizando tal enfoque, Rabelo (2012)RABELO, J. B. (2012). “Governança e impactos ambientais na instalação de empreendimentos urbanos”. In: ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE - PRÉ-ALAS BRASIL. Teresina. Anais eletrônicos. Disponível em: http://www.sinteseeventos.com.br/ciso/anaisxvciso/resumos/GT09-10.pdf. Acesso em: 29 abr 2013.
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ressalta que a governança constitui um meio e um processo voltados para produzir resultados eficazes mediante a participação dos diferentes agentes em sua realização. O tom empresarialista torna-se o mote de todas as ações, e não é apenas a questão do custo elevado do empreendimento que a priori afasta o capital privado, mas, também, a desconfiança ou a certeza de que ele poderá não dar lucro.

Nesses complexos, é bastante comum a estratégia de as incorporadoras imobiliárias assumirem a governança urbana e ambiental e, paralelamente, delegá-las a outras empresas privadas especializadas em gestão condominial, que assumem funções outrora típicas do poder público. É preciso frisar que a gestão condominial, nesse caso, não está associada apenas com as clássicas atribuições da administração dos condomínios prediais. Tendo em vista a constituição plural e o escopo exclusivista desses megaprojetos, os Cirs possuem uma regulamentação e gestão próprias para construção e reformas, uso dos espaços coletivos (incluindo ruas, praças, parques e praia); ações relativas à provisão e/ou ao monitoramento dos serviços públicos, como coleta, seleção e tratamento dos resíduos sólidos e efluentes; limpeza, paisagismo e manutenção das áreas de uso comum; além da gestão da segurança e das ações de responsabilidade e de investimento social, sobretudo junto às populações pobres que residem no entorno. Assim, mesmo que muitos serviços continuem a ser assegurados pelo Estado, no interior dos Cirs eles estão sob a coordenação da associação geral (ou o equivalente) e a gestão de consultores privados com vistas a garantir a eficácia e a excelência na qualidade dos serviços prestados. Na verdade, a governança entra como mais um item do pacote do negócio.

No fundo, está em jogo um novo diferencial para o processo de valorização que objetiva, em último caso, assegurar a perenidade do negócio. Este é um elemento absolutamente essencial para que os agentes capitalistas invistam elevadas somas de recursos financeiros em empreendimentos cuja implantação compreende diversas etapas e que, por essa razão, leva algumas décadas para a sua conclusão. Não ter essa preocupação de longo prazo pode significar dar um tiro no escuro, em relação ao capital investido. Em outras palavras, os Cirs são capitalisticamente concebidos como complexos plurifuncionais de empreendimentos de alto padrão, sendo, por isso, expressão do que se coloca como mainstream no setor imobiliário.

A concepção de um Cirs compreende tanto o plano da ordem próxima, quanto da ordem distante, permitindo concluir que o campo do planejamento urbano empresarialista está cada vez mais sob a responsabilidade de agentes locais e extralocais e envolve atores e processos que se manifestam em diferentes escalas e correspondem a consultorias especializadas no segmento de paisagismo, arquitetura, urbanismo, assessoria jurídica e ambiental. Elas são tanto nacionais quanto estrangeiras e, além de deterem um instrumental técnico especializado, constituem grifes que agregam valor aos produtos cujos projetos recebem sua assinatura. Nesse caso, vale dizer que a concretização da governança se dá no entrelaçamento dessas duas ordens da ação.

Nesse quadro de referência, na concepção e planejamento urbanos da Reserva do Paiva, diversos escritórios extralocais estão encarregados de conceber o espaço. Eles têm sede em outros países: Estados Unidos, Reino Unido, Dinamarca, Austrália e Argentina. Alguns atores são consultorias nacionais, com escritórios-sede localizados nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo. Há, ainda, as consultorias sediadas no Recife, e parte delas tem atuação nacional, por isso, essas consultorias, ainda que sejam vistas como agentes locais, dependendo do caso, também podem ser consideradas agentes nacionais, pois assinam projetos e estudos técnicos de empreendimentos de grande envergadura em vários estados do país.

Agentes de considerável importância são ainda as instituições financeiras e os investidores, que, em certa medida, também expressam o par dialético ordem próxima e distante. De um lado, há bancos públicos federais que se inserem como financiadores da implantação da infraestrutura, como o BNDES e o Banco do Nordeste; e, de outro, estão megainvestidores privados, como a Promovalor Investimentos, de Portugal; a Starwood Hotels & Resorts Worldwide, dos Estados Unidos, proprietária da bandeira Sheraton; e a Four Seasons Hotels and Resorts, do Canadá. Em parceria com esses agentes estrangeiros e em coalizão com os proprietários fundiários, a Odebrecht Realizações Imobiliárias (OR) é a timoneira do Cirs, assumindo, assim, o papel de master developer. A Figura 2 constitui uma síntese da inserção desses esses agentes.

Figura 2
– Interescalaridade das ações para a realização da Reserva do Paiva

Em parceria com a OR estão os dois grupos empresariais proprietários fundiários (autodenominados terrenistas), além da AGRP, que na prática é a responsável pela gestão condominial e o controle urbano e ambiental do Cirs, com total permissividade da gestão pública municipal e estadual para sua atuação. Esse caso pontual é uma evidência de que a interescalaridade das ações constitui uma realidade bastante presente no planejamento de fragmentos dos espaços metropolitanos, o que só reforça as reflexões sobre o caráter empresarialista do planejamento urbano.

Alguns alcances da governança urbana da Reserva do Paiva

Ante o que foi exposto até aqui, vê-se claramente que a Reserva do Paiva se posiciona como o mainstream da produção imobiliária do espaço metropolitano do Recife. Para melhor compreender isso, aprofunda-se a apreciação da atuação da AGRP, como forma de corroborar com os pressupostos já explicitados sobre o planejamento empresarialista e a governança urbana da Reserva do Paiva.

Um marco da ação da AGRP é o vasto conjunto de atribuições que exerce na gestão da Reserva do Paiva. Desse modo, o estatuto social estabelece como de sua incumbência aprovar projetos para a execução de obras de construção, acréscimo e/ou modificação, previamente à obtenção de alvará na Prefeitura Municipal, devendo também observar as normas urbanísticas convencionais que foram estabelecidas no âmbito da Reserva do Paiva. Ressalta, ainda, dentre os seus objetivos, aprovar previamente os pedidos de licença para exercício de atividades de comércio e de prestação de serviços, mesmo as que funcionem apenas temporariamente na área ocupada por esse complexo imobiliário e a faixa de praia.

Considerando as diversas de ações tomadas na gestão desses espaços, Reis (2006REIS, N. G. (2006). Notas sobre urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. São Paulo, Via das Artes., p. 147) defende que “Condomínios com sistemas de serviços complexos exigem sistemas de gestão complexos”. Porém, isso também acaba por servir de apanágio para muitas vezes se colocar o interesse privado acima do público ou, em outros casos, cobrar do poder público uma atenção especial. No caso da Reserva do Paiva, ao mesmo tempo que a AGRP se responsabiliza pela coordenação dos serviços nas áreas de interesse comum, cláusulas do seu estatuto deixam em aberto a possibilidade de ação do poder público, mostrando que o Estado é sempre chamado a contribuir quando isso for conveniente aos investidores privados. Na prática, o Estado compartilha com a AGRP a condição de agente regulador do uso do solo e, ao fazer isso, fragmenta a gestão pública e, muitas vezes, limita-se a dar legalidade ao que é definido previamente pelos promotores imobiliários.

De certa maneira, tem-se uma autonomização que não pode e não deve prescindir do poder público, mas tomá-lo como parceiro no processo, até como estratégia para adquirir legalidade e maior legitimidade perante a própria sociedade e, sobretudo, para garantir a reprodução do capital. Ademais, seguindo a tradição americana, por meio desse perfil de gestão condominial, as normas para o controle do direito de construir e para a conservação do meio ambiente são muito mais garantias do direito privado que propriamente do direito público (ibid.). Desse modo, a lei é criada notoriamente para atender aos propósitos dos promotores imobiliários e se põe como um instrumento, ora de legalização (se se permite a redundância), ora de coerção de práticas indesejadas nesses espaços exclusivistas.

É importante frisar que também há ações desenvolvidas pela AGRP junto a populações pobres do entorno da Reserva do Paiva, sob a argumentação de serem instrumentos para a promoção do desenvolvimento local. Essas ações são parte do Programa de Desenvolvimento Local Sustentável da Reserva do Paiva e seu entorno, o qual foi habilmente construído por uma consultoria contratada. Serve de base para a incubação de projetos, a oferta de cursos de capacitação e a orientação de ações do poder público na provisão de infraestrutura nos bairros vizinhos, dentre outras atividades junto aos moradores pobres do entorno da Reserva do Paiva. Uma questão de fundo é que, para além dessa retórica, visa-se estabelecer uma relação mínima de confiança e, na medida do possível, gerar alguns benefícios ou compensações para tais vizinhos. Isso pode até ser visto como uma forma de buscar evitar possíveis externalidades negativas para o Cirs em longo prazo, como um eventual risco de aumento da criminalidade ou a sensação de insegurança no interior do Cirs.

No que toca à questão urbano-ambiental, há um trabalho meticuloso da AGRP. Para o devido planejamento e encaminhamento das ações nesse campo, sempre no fim do segundo semestre, é feito o alinhamento com a definição dos itens do Plano de Ação (PA) para o ano fiscal seguinte. A AGRP trabalha com o planejamento estratégico e estabelece metas e objetivos a serem atingidos a cada ano, identificando pontos fortes, fraquezas e oportunidades. O PA torna-se, assim, um instrumento da gestão condominial. A estruturação de cada PA começa com o item “cenário”, fazendo-se menção à situação do empreendimento em sua totalidade; depois vem a identificação de quais etapas serão concluídas e os próximos lançamentos; e a citação, ainda, do provável quantitativo de famílias que devem passar a residir no complexo para o devido redimensionamento dos serviços ofertados conforme o aumento da demanda.

Por sua vez, pelo alto custo de instalação da infraestrutura e por não darem elevado retorno econômico, os serviços de abastecimento d’água, coleta e tratamento de esgoto ficam a cargo do poder público ou das respectivas empresas concessionárias. Longe do propalado discurso de “quanto menos Estado melhor”, esse fato mostra quão presente é esse agente para a viabilização dos projetos privados, por meio de suas políticas e ações que possibilitam a implantação dessa infraestrutura, além de ser, ao mesmo tempo, peça fundamental na valorização do espaço.

Vale destacar a incorporação do campo ambiental como uma pretensa ou por vezes real preocupação com os problemas relacionados com o meio ambiente urbano, mesmo que quase sempre restrito ao perímetro e entorno imediato desses espaços. É válido frisar que, diante do recrudescimento das contradições socioespaciais envolvendo a produção e reprodução do espaço da cidade na atual fase do processo de acumulação capitalista, evocar tal preocupação é parte da retórica das grandes corporações, e isso logo se converte em ação da governança urbana. A propósito, segundo (Campos, 2009 apud Rabelo, 2012RABELO, J. B. (2012). “Governança e impactos ambientais na instalação de empreendimentos urbanos”. In: ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE - PRÉ-ALAS BRASIL. Teresina. Anais eletrônicos. Disponível em: http://www.sinteseeventos.com.br/ciso/anaisxvciso/resumos/GT09-10.pdf. Acesso em: 29 abr 2013.
http://www.sinteseeventos.com.br/ciso/an...
, p. 9),

[...] o discurso oficial para conservação e preservação ambiental nas cidades passa a ser símbolo de uma ordem ambiental imposta pelo mercado capitalista, visando seduzir e incorporar uma consciência ambiental na sociedade para neutralizar opções da luta política contra a desigualdade de classes provenientes da hegemonia de grupos dominantes, principalmente oriundas do setor imobiliário nas grandes metrópoles brasileiras. As campanhas alternativas de consumo da natureza representam também uma nova forma empreendedora de capitalizar a consciência ambiental de indivíduos através de símbolos ambientais.

Desse modo, não é de hoje que a natureza e seus elementos são apropriados simbólica e materialmente na cidade para evocar sua crescente escassez no espaço urbano (Lefebvre, 2001LEFEBVRE, H. (2001). O direito à cidade. São Paulo, Centauro. e 2007LEFEBVRE, H. (2007). The production of space. Oxford, Blackwell Publishing.). Na esteira de intervenções urbanas comandadas pelo capital, elementos como a segurança, o contato com uma natureza supostamente conservada e a homogeneidade social interna são vendidos como raridades. A todo tempo, os promotores imobiliários anunciam seus produtos como se fossem uma espécie de contraponto da realidade em que se inserem, fazendo uso da lógica de morte para matar outros fragmentos da cidade e, para de forma contraditória, dar vida ao que é propalado como o novo.

Além da inserção do discurso ambiental, a governança amplia os horizontes para a questão social que, correlacionada com a questão ambiental, resulta em uma propositura de cunho socioambiental, com intervenções de empoderamento de moradores por meio de ações de investimento social ou de responsabilidade socioambiental, sobretudo se isso gera resultados benéficos para a imagem das corporações patrocinadoras. Há ainda o benefício gerado do ponto de vista da percepção positiva da sociedade em geral, sendo isso um importante produto do marketing, não raro diligentemente veiculado pela mídia mais segmentada para seus investidores e clientela-alvo.

Outro elemento crucial nessa questão da incorporação da dimensão ambiental se refere à obtenção de selos verdes. Esse é um segmento ainda bastante distante da realidade do negócio imobiliário de muitas cidades, devido ao alto custo envolvido. Esses selos custam caro e, ao menos para o setor residencial, mesmo se tratando de clientela de alto padrão, quem arcaria com o investimento não seria o cliente, e sim a construtora. Em um contexto “de periferia da periferia” do capitalismo (essa é a inserção da RMR), até mesmo o mercado imobiliário voltado para residências de mais alto padrão construtivo ainda não incorporou essas práticas. Por outro lado, quando se trata de empreendimento não residencial de grande porte, como é o caso do hotel Sheraton na Reserva do Paiva, é compensador investir num selo ambiental. Portanto, enquanto os benefícios ficarem para o cliente final e os custos arcados pelo construtor, não vale o raciocínio da modernização ecológica (Escobar, 1996ESCOBAR, A. (1996). “Constructing nature: elements for a poststructural political ecology”. In: PEET, R. e WATTS, M. (eds.). Liberation ecologies: environment, development, social movements. Londres/Nova York, Routledge.), que, a despeito da sensibilização para com a questão ambiental, age em função de obter algum ganho financeiro.

O que está em jogo é até onde o selo proporciona ao capital algum ganho financeiro efetivo. Em certos imóveis corporativos, o custo do selo se paga pelo próprio negócio. Logo, como quem arca com os custos com consumo de água e energia elétrica é o seu investidor, para ele compensa buscar a certificação. Essa é mais uma face da governança que tem claro apelo empresarialista, pois, apesar dos propalados discursos de suposta preocupação com a conservação dos recursos naturais, o ambiental ainda está muito condicionado pelas possibilidades de retorno financeiro. Nesse caso, o que à primeira vista parece se colocar como algo de vanguarda, na prática falta muito a se avançar, mesmo nesses espaços exclusivistas.

Fica bastante claro, ao longo da exposição aqui desenvolvida, o quanto a produção do espaço sob a lógica capitalista configura um processo nada inocente, tal como aponta Lefebvre (2007LEFEBVRE, H. (2007). The production of space. Oxford, Blackwell Publishing. e 2008LEFEBVRE, H. (2008). Espaço e política. Belo Horizonte, Editora UFMG.), uma vez que a Reserva do Paiva contribui para a segregação socioespacial e, de certo modo, induz a um descolamento da frente à vizinhança pobre. A despeito da tônica do discurso do desenvolvimento local sustentável para os vizinhos pobres, fica evidente que promover a separação e a segregação ainda é a prática dominante, sendo isso habilmente feito sem os muros. Verifica-se que as transformações que marcam a atual produção desse espaço são reveladoras de novas faces do processo de desigualdade socioespacial, o qual, sob o manto do empresarialismo, é concebido e planejado em bases ainda mais complexas.

Considerações finais

Como discutido aqui, o planejamento urbano empresarialista se traduz num instrumento para o exclusivismo socioespacial. Frutos de uma interescalaridade das ações, os Cirs resultam da ação de distintos agentes e de luma eficiente articulação com o poder público. De forma contraditória, quanto mais esses complexos são habilmente concebidos e gerenciados e com algumas melhorias pontuais no seu entorno imediato, mais a cidade como direito de todos é negada.

Assim, sob a tônica do exclusivismo, as articulações do grande capital privado com o Estado são feitas para converter certos fragmentos da metrópole em “ilhas” de segurança, bem-estar, beleza cênica, e, justamente por isso, esses complexos imobiliários são anunciados como detentores de rara beleza, segurança, limpeza e conservação ambiental, que se repetem em poucos fragmentos urbanos. Na verdade, nesses empreendimentos de alto padrão, a iniciativa privada busca oferecer serviços que são reclamados pela população em geral, por isso justificaria a quem pode pagá-los ter o “direito de ser exclusivo”. Contudo, tanto mais se imponha o exclusivismo para alguns, mais ficam expostas as carências e os problemas da cidade real.

Por fim, é preciso reconhecer que o capital age dessa maneira com a plena anuência e participação do poder público e, pior ainda, com o apoio de grande parte da opinião pública, de segmentos importantes da mídia e, sobretudo, daqueles que se tornam seus clientes. As ações dos agentes capitalistas não se realizam no vazio ou sem nenhum sentido ou respaldo social. No fundo, sem querer aqui justificar suas estratégias, tais contradições perpassam a sociedade como um todo, sendo o espaço, pela via da ação dos agentes capitalistas, tão somente produto, meio e condição desse amplo e complexo movimento de reprodução capitalista. O planejamento e a governança de viés empresarialista tornam-se mais um diferencial e um instrumental do contraditório processo de produção e reprodução do espaço metropolitano do Recife e tantos outros espaços urbanos brasileiros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2016
  • Aceito
    31 Mar 2016
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