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(Des)territórios da mineração: planejamento territorial a partir do rompimento em Mariana, MG

Mining territories: territorial planning after the disruption in Mariana, Minas Gerais

Resumo

O poder da mineração no Brasil, particularmente em Minas Gerais, interfere no planejamento territorial e nos direitos da população atingida, que habita as áreas de interesse das mineradoras. Este artigo propõe refletir sobre a correlação de forças que resultou no rompimento da barragem em Mariana (MG), em 2015, e os conflitos territoriais em torno da desterritorialização de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. A metodologia inclui revisão bibliográfica e análise dos discursos pós-desastre de atores locais. Debater sobre o modelo exploratório da mineração subentende refletir sobre participação popular no planejamento territorial, sendo necessária uma leitura crítica sobre o refreamento da autonomia dos atingidos, buscando reconhecer o conflito como motor na construção de cidadania e justiça social e ambiental nas cidades.

planejamento territorial; mineração; Mariana; Minas Gerais; Brasil

Abstract

The power of mining in Brazil, particularly in the state of Minas Gerais, interferes in territorial planning and in the civil rights of the affected population, which inhabit areas of interest to the mining companies. This study proposes a reflection on the correlation of forces that resulted in the disruption of a mining dam in the municipality of Mariana (Minas Gerais), in 2015, and on the territorial conflicts surrounding the deterritorialization of two sub-districts. The methodology includes literature review and analysis of post-disaster speeches delivered by local actors. The debate about the exploratory model of mining implies a reflection on popular participation in territorial planning. It is necessary to make a critical reading of the containment of the affected actors’ autonomy and to recognize the conflict as an engine in the construction of citizenship and social/environmental justice in the cities.

territorial planning; mining; Mariana; Minas Gerais; Brazil

Introdução

O atual modelo de exploração minerária implementado no Brasil reflete a dinâmica contemporânea de acumulação capitalista, que resulta em danos socioambientais muitas vezes irrecuperáveis. Os impactos ao meio ambiente estão relacionados à expansão ilimitada da extração dos recursos naturais, ao alagamento de extensas áreas verdes e ao desequilíbrio da fauna, dentre outros; enquanto os impactos sociais incluem, frequentemente, a precarização da força de trabalho, o aumento dos casos de violência urbana e a transformação arbitrária de dinâmicas socioespaciais construídas historicamente. Famílias que habitam as áreas de interesse das empresas mineradoras são, muitas vezes, removidas e forçadas a aceitarem indenizações irrisórias ou outras formas de moradia que desconsideram os vínculos afetivos e de pertencimento com o lugar, as identidades territoriais construídas coletivamente e, não raro, desconsideram o real conceito de moradia digna. Denominamos “atingidos” essa população que sofre a perda de autonomia e de direitos, entendendo que os critérios para definição de quem é atingido devem ser construídos pelos próprios sujeitos a partir de um processo coletivo de reconhecimento.

Em linhas gerais, para “compensar” tais impactos da mineração, as municipalidades recebem recursos – royalties – de empresas e companhias mineradoras que se instalam no município. Esse volume é significativo em relação à arrecadação total e, no entanto, não costuma ser investido de forma transparente na efetiva melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e partir das demandas locais. Ainda, essas mesmas empresas são, frequentemente, financiadoras das campanhas eleitorais de políticos nas diferentes escalas de governo e, assim, é comum notar que atividades minerárias (mesmo colocando em risco a sociedade e o meio ambiente) são legitimadas pelo poder público e garantidas pela flexibilização de leis e licenças ambientais.

Como resultado, estabelece-se uma relação de poder, econômico e simbólico, perversa entre mineração e município, aprofundando a dominação do capital na gestão e no planejamento das cidades brasileiras. As tensões e as disputas territoriais resultantes do processo de dominação tornam-se mais acirradas em tempos de crise e de desastres socioambientais, quando ocorrem o declínio da produção e, consequentemente, o aumento dos desempregos, além da queda na arrecadação dos royalties pelas prefeituras municipais. Nesse contexto, vale destacar os municípios de Minas Gerais, estado com maior produção de minérios do País, onde a atividade mineradora exerce interferência significativa nos processos de gestão e planejamento territoriais, como no caso do município de Mariana, estudado neste artigo.

O imbricamento entre mineração e planejamento territorial pode ser percebido em um breve resgate histórico da (trans)formação do município de Mariana, mas ganha espantosas proporções quando do rompimento da barragem de rejeitos denominada “Fundão” em 5 de novembro de 2015, sob a responsabilidade da empresa Samarco Mineração S.A., controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton. Diante de um cenário de devastação que se arrasta por um ano, o presente artigo propõe uma reflexão sobre a correlação de forças que resultou no rompimento da barragem e sobre os conflitos territoriais em torno da desterritorialização de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, subdistritos que possuem extensa área destruída pelos rejeitos da mineração.

A reflexão aqui apresentada se dedica a algumas questões que antecederam à tragédia, além de informações e impressões que circularam no momento imediatamente posterior ao desastre socioambiental. Traz como contribuição uma leitura em nível local dos efeitos da desterritorialização dos subdistritos – principalmente na construção dos discursos de alguns atores envolvidos –, tendo em vista a participação das autoras nos primeiros debates ocorridos e enquanto servidoras públicas nos municípios de Mariana e Ouro Preto, além de participantes de coletivos locais. São várias e complexas as questões que ainda (re)surgem no processo em curso – nos campos jurídico, técnico, social, ambiental, cultural. Assim, este artigo não possui a pretensão de esgotar o debate, mas de levantar questões que precederam e sucederam ao rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, como o jogo de interesses entre os atores que participam dos processos de implantação/regulamentação da atividade mineradora e as sensações de vulnerabilidade dos atingidos ex-moradores de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo.

Além da revisão bibliográfica acerca da temática estudada e da discussão sobre dados atuais que demonstram as relações de dependência econômica e simbólica no território, utilizou-se como metodologia a análise dos primeiros discursos construídos por diferentes atores locais, a partir de depoimentos de sujeitos atingidos pelo desastre e/ou mobilizados na luta pela garantia dos direitos dos atingidos (ligados a movimentos sociais ou não), bem como de representantes do poder público e da empresa responsável pelo ocorrido, coletados em mídias formais, livres, audiências e manifestações públicas.

Como contribuição, o trabalho em questão busca ampliar a discussão sobre a necessidade de revisão do modelo exploratório das empresas mineradoras, associando-a ao debate sobre participação popular no planejamento territorial. Contra possíveis processos de refreamento da autonomia da população atingida por parte das empresas mineradoras e, inclusive, do poder público, este artigo propõe reconhecer o conflito como motor para o fortalecimento da cidadania, da luta por direitos – à justiça social e ambiental; à moradia digna, à memória, à cidade –, em que os sujeitos atingidos devem ser protagonistas na construção de processos horizontais e coletivos de planejamento territorial.

A mineração em Minas Gerais: uma histórica relação de poder

Olhai as montanhas,/ Olhai as montanhas, mineiros./ Como a Serra do Curral, mutilada/ Vós que não as defendeis, olhai-as enquanto vivem pois,/ A golpes de tratores vão sendo assassinadas/ Pela culpa única de suas entranhas de ferro./ Mineiros, por que não percebeis que essa ferrugem que vos empoeira os olhos,/ essa terra, vermelha, é o vosso sangue,/ Injustamente derramado, na luta que vos abate?/ [...] Olhai as montanhas, mineiros,/ Como o Itacolomi dos inconfidentes,/ Vós que vos omitis, olhai-as enquanto vivem pois,/ Em centenas de vagões, como urnas funerárias,/ Vão sendo levados seus pedaços, inermes.

Os versos proféticos do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, em Olhem bem as montanhas, já denunciavam na década de 1970 os impactos da exploração extensiva do minério de ferro em Minas Gerais. Inegavelmente a mineração sempre teve papel dominante na territorialização do Estado e na constante (trans)formação da grande maioria dos seus 853 municípios.

Conforme destaca Monte-Mór (2001)MONTE-MOR, R. (2001). Gênese e estrutura da cidade mineradora. Textos para Discussão nº 164. Belo Horizonte, Cedeplar, UFMG. Disponível em: http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20164.pdf. Acesso em: 6 dez 2016.
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, ao final do século XVII, o Brasil ainda se caracterizava como um território de baixa ocupação populacional concentrada na sua extensa faixa litorânea, na qual poucos centros comandavam a extração de recursos naturais em amplas regiões enquanto o restante das povoações e núcleos que poderiam compor uma “rede urbana” eram aldeias, acampamentos, povoados, missões e, em casos especiais, vilas. O sistema colonial baseado no latifúndio autossuficiente, o trabalho escravo e o monopólio comercial da Coroa Portuguesa impediam uma expansão e consolidação da base urbana. Segundo o autor, foi a riqueza mineral concentrada, principalmente, em Minas Gerais, que integrou a colônia diretamente, por algumas décadas, ao centro motor da economia mercantilista mundial, permitindo interações políticas e culturais inimagináveis na colônia até então abandonada.

Assim, as primeiras atividades de exploração de recursos minerais em Minas Gerais estão associadas à descoberta dos ricos aluviões auríferos, o que incentivou a fixação da população às margens dos rios. Essa exploração se estendeu ao longo do século XVIII, de forma predatória ao meio ambiente, garantindo o enriquecimento da Coroa Portuguesa e o esplendor mineral do denominado “Ciclo Econômico do Ouro”. No século XIX, contudo, a região assistiu a uma exploração desenfreada e desordenada das minas e um consequente processo de declínio da atividade. O aproveitamento do minério de ferro somente ganhou destaque num segundo momento, no período da Primeira República, quando o mundo tomou conhecimento das grandes reservas minerais do estado de Minas Gerais. Assim, ainda na primeira metade do século XX foi consolidada a base legal de sustentação da mineração brasileira, contando com dois importantes marcos: a definição do bem mineral como propriedade da Nação, em 1930, e a criação do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), em 1934.

Durante a Segunda Guerra Mundial as dificuldades nas importações e a necessidade de matéria-prima por parte dos países em guerra abriram espaço para os produtos minerais brasileiros. Assim, o Brasil reforçou o abastecimento das aciarias aliadas e, em troca, ganhou apoio financeiro para abrir uma mina na bacia do Rio Doce e construir uma indústria siderúrgica integrada. Em 1942, a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) modificou substancialmente a indústria mineral brasileira, e esta última se tornou uma das maiores empresas do mundo em fornecimento de minério de ferro na década de 1960, período em que foi criado o Ministério de Minas e Energia. A partir de então, a atividade mineradora passou a ser amplamente potencializada pelo governo militar, que publicou o Código da Mineração em 1967, atualizando o Código de Minas assinado em 1934. O Estado passou a aplicar vultosos recursos no setor, e as empresas estrangeiras foram atraídas pelo crescimento econômico que caracterizou o início do período militar. O auge da exploração mineral brasileira da década de 1970, porém, não perdurou por muito tempo. Com o aprofundamento da crise econômica mundial na década de 1980, ocorreu o declínio dos investimentos internacionais e a decadência do governo militar. Os dados referentes à produção mineral de Minas Gerais apontam que, em 1975, a produção do estado correspondia a 60% da produção nacional enquanto, em 1986, durante a crise, essa participação declinou para 35,5%, mantendo-se acima de 30% ao longo de toda a década de 1990 (BDMG, 1989BDMG (1989). Economia Mineira: diagnósticos e perspectivas. Belo Horizonte, v. VI.). Nota-se que, mesmo nos períodos de crise, a exploração do minério nunca deixou de apontar para altíssimos índices de produção e lucro.

O processo de redemocratização e a promulgação da Constituição Federal de 1988 trouxeram uma nova visão institucional sobre a mineração ao apontá-la como atividade agressiva ao meio ambiente. Assim, o artigo 225, parágrafo 2º, Capítulo VI da Constituição Federal atribuiu, às empresas mineradoras, a responsabilidade pela recuperação do meio ambiente degradado, a fim de garantir o direito de todos “ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” (Brasil, 1988BRASIL (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nºs 1/1992 a 68/2011, pelo Decreto Legislativo nº 186/2008 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nºs 1 a 6/1994. 35 ed. Brasília, Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 454 p. (Série Textos Básicos nº 67)., p. 127).

Mais recentemente, em 2001, o Estatuto da Cidade – lei nº 10.257 (Brasil, 2001BRASIL (2001). Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em: 25 ago 2016.
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) apontou o zoneamento ambiental como instrumento de planejamento municipal, conforme o Art. 4º, inciso III, reforçando a necessidade do planejamento ambiental previsto na Política Nacional do Meio Ambiente (lei nº 6.938/1981). O zoneamento ambiental, expressão equivalente ao Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), regulamentado pelo decreto nº 4.297/2002, é o instrumento que possibilita traçar um panorama sobre utilização e preservação dos recursos naturais, gerando as bases para um planejamento urbano comprometido com a sustentabilidade ecológica, econômica e social. O ZEE contém as diretrizes e os critérios para orientar as atividades de exploração dos recursos naturais, dentre elas a mineração, e deve ser executado de forma compartilhada entre a União, os estados e os municípios. O ZEE do estado de Minas Gerais foi aprovado pela deliberação normativa nº 129/2008 do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) e trata no capítulo 8 da “Vulnerabilidade natural e qualidade ambiental associadas à mineração” e no capítulo 9 do “Índice de fatores condicionantes do ZEE para mineração no estado de Minas Gerais”. O capítulo 8 destaca as áreas de mineração com maior vulnerabilidade natural e aponta que “é particularmente notável a quantidade de áreas de mineração em locais vulneráveis no médio Jequitinhonha e no Quadrilátero Ferrífero, por isso a necessidade de maior acompanhamento e monitoramento da atividade minerária nessas regiões” (Curi et al., 2008CURI, N. et al. (2008). Zoneamento Ecológico-Econômico de Minas Gerais: vulnerabilidade natural e qualidade ambiental associadas. Lavras, UFLA., p. 91).

A Figura 1 ilustra a variação do grau de vulnerabilidade natural ocasionada pela mineração no estado de Minas Gerais. Dentre as áreas com vulnerabilidade muito alta, destaca-se a área ao sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte, na região central do estado, onde está situado o município de Mariana, objeto de estudo deste artigo. A Figura 2, por sua vez, apresenta a média anual do valor, em reais, da produção mineral bruta e beneficiada, por município.

Figura 1
– Mapa da vulnerabilidade natural em áreas de mineração

Figura 2
– Classificação dos municípios a partir do valor médio anual (2001 a 2005), em reais, da produção mineral, bruta e beneficiada

Não por acaso, as áreas que indicam vulnerabilidade natural alta ou muito alta (conforme Figura 1) são compostas pelos municípios que têm os maiores valores de produção mineral (conforme Figura 2). Os municípios de Ouro Preto, Itabirito, Congonhas e Mariana, na região central do estado, tiveram uma produção mineral que corresponde a mais de cem milhões de reais por ano entre 2001 e 2005.

O ZEE, apesar de não associar diretamente a baixa qualidade ambiental às atividades mineradoras, aponta que a mineração está presente em cinco dentre os dez municípios de Minas Gerais com pior qualidade ambiental e ainda enfatiza que “evidentemente, a atividade mineradora causa grande e grave impacto ambiental. Essa é uma realidade inegável” (ibid., p. 91).

Contudo, todas as questões socioambientais que circundam a mineração são secundarizadas e silenciadas adiante da imponência econômica da exploração mineral da qual o País e, principalmente o estado de Minas Gerais, são dependentes. Responsável por aproximadamente 67% da produção de minério de ferro do País (Ibram, 2012IBRAM – Instituto Brasileiro de Mineração (2012). Informações e Análises da Economia Mineral Brasileira. Brasília. Disponível em: http://www.ibram.org.br/sites/1300/1382/00002806.pdf. Acesso em: 20 nov 2015.
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), o estado de Minas Gerais arrecadou R$300.069.000,00 de Compensação Financeira por Exploração de Recursos Minerais (CFEM), o que equivale a 43,3% da arrecadação nacional. O capítulo 9 do ZEE aponta que “o Estado de Minas Gerais comporta a maior concentração em minas do mundo na atualidade. São movimentados cerca de 450 milhões de toneladas de minério nas diversas minas no Estado” (Pinheiro et al., 2008, p. 102). O peso da arrecadação econômica ante as questões ambientais é evidenciado em outro trecho do ZEE, quando coloca o desenvolvimento e a geração de riquezas acima dos danos ambientais:

[...] evidencia-se a predominância de municípios com Índice de Fatores Condicionantes Muito Alto nas regiões Norte, Leste e Jequitinhonha. Isso porque, se os empreendimentos minerários forem implantados nestas regiões, sem a devida contrapartida de investimentos em áreas sociais e institucionais, poderá ocorrer concentração de riquezas, acentuar a desigualdade socioeconômica e a exclusão social. Além disso, deve-se considerar que a atividade de mineração tem impactos negativos em termos ambientais, mas gera riquezas importantes para o desenvolvimento do país e pode gerar riquezas para o desenvolvimento dos municípios, desde que a economia gerada permaneça no local e na região de exploração (Pinheiro et al., 2008, p. 110)

Viana (2012)VIANA, M. B. (2012). Avaliando Minas: índice de sustentabilidade da mineração (ISM). Tese de Doutorado. Brasília, Universidade de Brasília., ao comparar estudos de caso de diversos autores, destaca a conclusão a que chegou a pesquisadora Maria Amélia Enríquez quanto ao desenvolvimento sustentável dos municípios de base minerária:

A autora parte da hipótese de que, 0na realidade dos municípios de base mineradora, a dimensão ambiental não é o mais grave problema para o desenvolvimento, pela já existência de importantes marcos regulatórios, mas sim a dimensão socioeconômica, em que não há o mesmo tratamento e para a qual a Cfem, por destinar ao município 65% da arrecadação, pode ser um importante instrumento na busca da equidade intra e intergeracional. Sem mecanismos indutores das políticas públicas, contudo, a dinâmica socioeconômica do livre mercado tende a favorecer os atores já em vantagem. Essa situação é de particular importância para o Brasil, país em que a mineração vem se expandindo para áreas deprimidas socioeconomicamente. (Viana, 2012VIANA, M. B. (2012). Avaliando Minas: índice de sustentabilidade da mineração (ISM). Tese de Doutorado. Brasília, Universidade de Brasília., p. 108)

As consequências da relação de poder socioeconômica são nefastas, deixando a população à mercê das empresas da mineração que oferecem a maior parte dos postos de trabalho e que são responsáveis por um volume de recursos significativos na arrecadação municipal. Nos momentos de crise, as consequências socioambientais são ainda piores. A exploração do trabalho, as demissões de trabalhadores e a exploração das minas aumentam enquanto a arrecadação municipal diminui. A partir da pressão das mineradoras que visam ao aumento do lucro, licenças ambientais são flexibilizadas, novas minas são licenciadas, e o poder público age em conjunto com os empreendedores, reforçando o discurso da dependência econômica com o setor.

A relação de poder que se estabelece não é apenas econômica, mas também simbólica e se transpõe no território. Conforme definido por Bourdieu (1989BOURDIEU. P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil., pp. 7-8) “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. O discurso da geração de emprego e do “progresso” trazido com a mineração – comumente associado à falta de ações do poder público na melhoria da qualidade de vida dos cidadãos – é um fator importante de análise, já que nos contextos de crise ou de desastre socioambiental (como a tratada neste artigo), não é raro ver a população tomando partido da empresa, como será tratado mais adiante.

Esse “progresso” vendido pelas empresas e pelas próprias municipalidades é contestado em diversas pesquisas que abordam conflitos territoriais, demonstrando um contexto de injustiça ambiental e desigualdade nas cidades. Conforme Acselrad (2013ACSELRAD, H. (2013). Cidade - espaço público? A economia política do consumismo nas e das cidades. Revista UFMG. Belo Horizonte, v. 20, n. 1, pp. 234-247., pp. 243-244):

[...] A cidade desigual é também problematizada por movimentos de justiça ambiental e de denúncia de racismo ambiental, constituindo redes de questionamento das políticas fundiárias e ambientais, em defesa do igual acesso à proteção ambiental e aos recursos urbanos como direito de todos os citadinos, seja em termos de nível de renda ou de origem étnica. Movimentos contra a ambientalização da exclusão denunciam a evocação de argumentos ambientais para legitimar remoções de populações faveladas que, por sua vez, nunca foram atendidas em seu direito à moradia, dada a ausência histórica de políticas públicas habitacionais adequadas.

A dominação do capital na gestão e no planejamento territorial reflete-se na histórica relação de poder da atividade minerária. E, de forma mais perversa, na perda de direitos da população que habita as áreas de interesse das empresas mineradoras. Para além da precarização da força de trabalho e do aumento dos casos de violência urbana, destacam-se os impactos relacionados à transformação arbitrária de dinâmicas socioespaciais construídas historicamente. Famílias que habitam as áreas de interesse das empresas mineradoras são, muitas vezes, removidas e forçadas a aceitarem indenizações irrisórias ou outras formas de moradia que desconsideram os vínculos afetivos e de pertencimento com o lugar, as identidades territoriais construídas coletivamente e, não raro, também o real conceito de moradia digna.

A tragédia anunciada e as fissuras no planejamento territorial em Mariana, MG

A primitiva ocupação em Mariana (antigo Arraial de Ribeirão do Carmo), como em outros municípios do estado de Minas Gerais, foi motivada pela exploração do ouro, a partir da segunda metade do século XVII. Em 1745, foi elevada de vila à cidade, especialmente, para a implantação do primeiro Bispado do Estado. Muitos bens edificados do período setecentista e, principalmente, o traçado viário mantiveram-se preservados ao longo de muitos anos, motivo pelo qual Mariana foi tombada como Monumento Nacional, em 1938, pelo então Sphan, Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual Iphan).

Apesar das políticas de preservação terem conseguido, de certa forma, frear a verticalização e o adensamento no interior do conjunto arquitetônico e urbanístico tombado, nota-se uma expansão urbana acelerada e desordenada ao longo do século XX, com ocupações informais e loteamentos incentivados pelo próprio poder público municipal para suprir a demanda por moradia advinda da chegada de companhias mineradoras e siderúrgicas a partir da década de 1940 e, principalmente, na década de 1970.

[...] A nova periferia urbana em Mariana vem sendo constituída tanto através de processo espontâneo de ocupação do solo, por populações de baixa renda em regiões desvalorizadas, quanto através de loteamentos implementados durante o mandato do ex-prefeito João Ramos Filho [...]. Os loteamentos promovidos pelo ex-prefeito, na maioria das vezes por desapropriação de terras da CMP, constituem-se em empreendimentos realizados em contexto de bastante improviso, pois não se balizaram em nenhum Plano Diretor ou outro tipo de instrumento de planejamento, que possibilitasse garantir uma ocupação mais coerente do espaço, em termos de garantias mínimas de bem-estar coletivo. Esses loteamentos foram implementados, portanto, sem inclusão de nenhuma praça, área verde ou algum tipo de equipamento urbano necessário ao súbito adensamento urbano, como escolas, creches ou posto de saúde. A maioria desses loteamentos não é dotada sequer da infraestrutura urbana básica, de água tratada, esgotos sanitários, energia elétrica e calçamento de ruas. (Fischer, 1993FISHER, M. (1993). Mariana: os dilemas da preservação histórica num contexto social adverso. Dissertação de Mestrado em Sociologia urbana. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais., p. 70)

A forma como se deram esses parcelamentos demonstram um planejamento voltado aos interesses das empresas: os lotes urbanos ofertados para a moradia dos inúmeros empregados que chegavam à região não estavam regularizados e não contavam com infraestrutura urbana adequada, sistema de transporte, equipamentos públicos, praças, etc. Maricato (2000)MARICATO, E. (2000). “As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias – Planejamento Urbano no Brasil”. In: ARANTES, O.; VAINER, C. e MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes., em As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias – Planejamento Urbano no Brasil, desconstrói o discurso do caos urbano como consequência da "falta de planejamento" das cidades, mostrando que existe sim um planejamento, que resulta do jogo de interesses da elite e dos grandes investidores privados que enxergam no espaço urbano o palco para maior acumulação de capital. Nesse contexto, as classes que sempre estiveram às margens dos benefícios do planejamento e que sempre sofreram com um urbanismo injusto e excludente, estiveram também às margens do próprio sistema.

A chegada das grandes empresas mineradoras também desencadeou o deslocamento da população dos distritos e subdistritos em direção à sede do município de Mariana. Vale ressaltar, contudo, que essas ocupações também nos remetem, em muitos casos, aos séculos XVII e XVIII, como é o caso de Bento Rodrigues, subdistrito de Santa Rita Durão, que recebe atenção especial neste artigo:

[...] Bento Rodrigues foi importante centro de mineração do século XVIII, surgindo com os primeiros mineradores da região. A primeira Capela de São Bento foi provavelmente construída em 1718 e a atual, também antiga, foi construída no mesmo local, com um recuo maior. (Mariana, 2004MARIANA (2004). Inventário de Proteção do Acervo Cultural. Mariana, Secretaria Municipal de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Mariana.)

Próximo a Bento Rodrigues – mais precisamente a 3 km da praça onde se situava a Capela de São Bento, do período colonial –, na década de 1970, foi construída a Mina de Germano, pela empresa Samarco Mineração S.A. A essa época o subdistrito já era consolidado e com população de aproximadamente 600 habitantes. É a partir desse momento que as estruturas da mineração vão se expandindo no território.

A Samarco Mineração S.A. é uma joint venture1 (1) “[...] refere-se a um tipo de associação em que duas entidades se juntam para tirar proveito de alguma atividade, por um tempo limitado, sem que cada uma delas perca a identidade própria”. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2110:catid=28&Itemid=23. Acesso em: 20 nov 2015. das empresas Vale (nacional) e BHP Billiton (anglo-australiana), que atua no mercado internacional de minério de ferro desde 1977, possuindo duas unidades industriais no Brasil. Uma delas é a Mina de Germano, em Bento Rodrigues, Mariana, Minas Gerais, e a outra é a unidade de Ubu, no município de Anchieta, no Espírito Santo.

Para entender a dimensão da unidade industrial da Samarco em Bento Rodrigues, chamada Complexo da Alegria, é importante destacar que ali estão situadas duas minas (Germano e Alegria), duas barragens de rejeito (Fundão e Germano), uma barragem de contenção (Santarém) e a usina de concentração de minério – conforme Figura 3. O produto do complexo industrial (polpa de minério de ferro) é enviado através de três minerodutos para a unidade Ponta de Ubu, Anchieta-ES. Sua produção anual estimada é de cerca de 16,5 milhões de toneladas métricas secas (Igam, 2010IGAM – Instituto Mineiro de Gestão das Águas (2010). Parecer técnico para concessão de outorga de direito de uso. 172601/2010. Disponível em: http://www.igam.mg.gov.br/banco-de-noticias/1-ultimas-noticias/995-ctig-15072010. Acesso em: 20 nov 2015.
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).

Figura 3
– Localização do Complexo da Alegria com relação ao subdistrito Bento Rodrigues antes do rompimento da barragem do Fundão

A instalação do Complexo da Alegria resultou em interferências negativas sobre o modo de vida da população de Bento Rodrigues. A professora Andréa Zhouri, do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (Gesta-UFMG), em entrevista ao Programa “Opinião Minas” da Rede Minas (9 de novembro de 2015), acerca dos conflitos ambientais gerados pela implantação de estruturas da mineração, destaca que a população à jusante de barragens de rejeito enfrenta uma condição de insegurança e risco diários, sofrendo constantemente com a falta d’água devido ao assoreamento dos rios. Mesmo assim, essas comunidades não são efetivamente ouvidas pelas empresas responsáveis pelas barragens ou sequer consideradas atingidas. Assim, o processo de implantação das mineradoras é bastante controverso e conflitante com as demandas da população local, se tomamos como base a análise de Viana (2012VIANA, M. B. (2012). Avaliando Minas: índice de sustentabilidade da mineração (ISM). Tese de Doutorado. Brasília, Universidade de Brasília., p. 41) em relação ao desenvolvimento sustentável da atividade, que deveria se basear em modelos de inclusão cidadã e de empoderamento popular, de democracia, liberdade e ética.

Em Bento Rodrigues, os conflitos territoriais envolvendo os moradores e a empresa mineradora já se mostravam presentes muito antes do rompimento da barragem do Fundão, destacada neste artigo. Em fotos de 2012, por exemplo, retiradas da captura de imagens do Google Street View (Figura 4), o problema relativo à interferência da atividade de exploração de minérios na qualidade da água do subdistrito está estampado no muro de uma casa com o pedido: “Eu quero água limpa”.

Figura 4
– Imagem de casa em Bento Rodrigues

É possível verificar, ainda, a sensação de insegurança dos moradores com relação à presença das barragens de rejeitos, anterior ao rompimento, conforme relata uma ex-moradora de Bento Rodrigues:2 (2) Em debate realizado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto, em 10/11/2015. Em todas as reuniões que tinha [sic], muitas das pessoas perguntavam: ‘Qual é o risco que a barragem de Santarém oferece pra nós moradores?’. [Resposta] ‘Nenhum’. Ela é monitorada noite e dia”.3 (3) Relato dado por ex-moradora de Bento Rodrigues em debate realizado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto, em 10/11/2015. Nas reprodução de relatos, foi mantida a transcrição literal, a fim de serem mantidas as marcas de oralidade.

Como é possível constatar no relato da moradora, para além da dependência econômica refletida na geração de empregos e na arrecadação municipal, conforme já mencionado anteriormente, as relações de poder exercidas pelas empresas mineradoras são também simbólicas no território. Para ilustrar a estrita relação de Bento Rodrigues com a mineração, recorreremos aos dados apresentados por Viana (2012)VIANA, M. B. (2012). Avaliando Minas: índice de sustentabilidade da mineração (ISM). Tese de Doutorado. Brasília, Universidade de Brasília. a partir de pesquisa de campo realizada em 2010/2011: 72% dos moradores de Bento Rodrigues tinham alguma relação com a mineração e 44% eram ex-empregados ou ex-subcontratados. Outro dado interessante refere-se ao alto contingente (74%) de moradores residentes no subdistrito há mais de 20 anos, o que reafirma a existência de uma sólida identidade coletiva com o lugar. Quanto à renda, merece destaque o fato de que 40% da população afirmou receber até 1 salário mínimo enquanto 58% afirmaram receber entre 1 e 5 salários mínimos, o que é impactante, pois o principal argumento de subsídio à expansão da mineração refere-se ao crescimento econômico, à geração de renda para o município e à distribuição das riquezas para a região afetada. Esses dados mostram que a realocação dos recursos na própria comunidade, a diversificação e a dinamização produtivas ainda estão longe de se transformarem em realidade no universo da indústria minerária. Por fim, cabe ressaltar a questão do poder que a mineração exerce pela sua imponência enquanto atividade geradora de empregos e impostos e de remuneração elevada (se comparada às demais atividades como serviços, comércio e setor informal) que se reflete na predominância de uma imagem positiva da mineração, pela qual responderam 60% da população local (Viana, 2012VIANA, M. B. (2012). Avaliando Minas: índice de sustentabilidade da mineração (ISM). Tese de Doutorado. Brasília, Universidade de Brasília., p. 207). Dentre os aspectos negativos da mineração, destacou-se a poluição das águas, com 98%, seguida pela poeira, 64%. Por fim, para ilustrar a pressão da desterritorialização e dos conflitos fundiários que precederam à destruição de Bento Rodrigues, ressalta-se o fato de que 64% da comunidade temia a desapropriação de seus imóveis ou sua aquisição pelas empresas da mineração (ibid., p. 216).

Importante observar que o medo da desapropriação não é exclusivo de conflitos territoriais ligados à mineração. Principalmente nos grandes centros urbanos brasileiros, é extenso o histórico de práticas e políticas de remoção de famílias de baixa renda de suas próprias casas, resultantes de processos de dominação ditados por uma minoria abastada. Carregados de um discurso verticalizado, ora pelo embelezamento/higienização nas cidades, ora pela melhoria das condições de habitabilidade, ora pela construção de grandes projetos urbanos (de estruturação viária, de “revitalização” urbana, dentre outros), os projetos de cidades excludentes refletem processos de gestão e planejamento territorial que desconsideram os tecidos sociais historicamente estabelecidos, as relações afetivas com o lugar e as vivências cotidianas dos cidadãos.

Pesquisas recentes sobre os milhares de casos de remoções no contexto dos megaeventos no Brasil – a Copa do Mundo em diversas capitais em 2014; e os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro – apontam para a consolidação desses projetos de cidades excludentes. No caso específico do Rio de Janeiro, em que muitas remoções foram violentamente promovidas pelo governo municipal:

[...] A condenação das casas e posterior desocupação têm sido marcadas pela ausência de laudos técnicos que balizem as decisões, pelo constante desrespeito às ações judiciais ou até mesmo pelo uso intimidador dos agentes da justiça, caracterizando relações de truculência durante o processo. Recorrentemente tais práticas têm sido acusadas pelos movimentos sociais, quase sempre sem publicidade. (Faulhaber e Nacif, 2013FAULHABER, L. e NACIF, C. (2013). Rio Maravilha: desapropriações, remoções e reforço do padrão de organização espacial centro-periferia. In: XV ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR. Anais. Recife, Anpur, pp. 1095-1111., pp. 6-7)

Souza Santos (2007)SOUZA SANTOS, B. (2007). Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos – Cebrap. São Paulo, n. 79. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004. Acesso em: 7 dez 2016.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007...
utiliza o conceito de fascismo territorial, forma de fascismo social que ocorre sempre que atores sociais com forte capital patrimonial tomam do Estado o controle do território onde atuam ou neutralizam esse controle, cooptando ou violentando as instituições estatais e exercendo a regulação social sobre os habitantes do território sem sua participação e contra os seus interesses. É o que ocorre nas áreas de interesse da mineração, territórios em disputa, em que, muitas vezes, estão comunidades consolidadas.

Denominamos “atingidos” essa população que sofre a perda de autonomia e de direitos. A população de Bento Rodrigues e a de Paracatu de Baixo, subdistritos devastados pelos rejeitos de mineração após o rompimento da barragem do Fundão, já eram atingidas antes da tragédia, ao considerarmos que as estruturas do Complexo da Alegria foram implantadas acima da comunidade, ou seja, à montante no curso do rio que corta a comunidade e, não por acaso, essa população se sentia constantemente ameaçada.

Por outro lado, uma grande parcela da população de Mariana criou um imaginário diferente com relação à empresa Samarco por conta do discurso da geração de emprego e do dito “progresso” trazido com a mineração. Esse “processo” está comumente associado à falta de ações do poder público na melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.

Nos últimos oito anos, o município de Mariana foi governado por oito prefeitos, ou seja, uma média de um prefeito por ano. Análise ainda que superficial das recentes gestões municipais da cidade escancara o clientelismo e a corrupção predominantes na política local, a partir da compra de votos, do uso ilícito de recursos em campanhas eleitorais e das ações de improbidade administrativa, que resultaram em condenações e cassações de mandatos. A rápida ascensão econômica dos gestores municipais também demonstra como as eleições, sustentadas pelo financiamento de empresas privadas – muitas vezes de empresas e companhias mineradoras –, estão mais apoiadas no aumento do poder do que nas propostas de governo em prol da população. Para ilustrar, segundo Zonta e Trocate (2016ZONTA, M. e TROCATE, C. (orgs.) (2016). Antes fosse mais leve a carga: reflexões sobre o desastre da Samarco/ Vale/ BHP Billiton. Marabá, Editorial iGuana., p. 186), as seis empresas do grupo Vale “financiaram, em 2014, candidaturas em níveis estaduais e federais, somando um total de R$79,3 milhões”. Em outra passagem, os autores apresentam os dados do Tribunal Superior Eleitoral de 2015:4 (4) Outros dados importantes: “[...] o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), recebeu de todas as empresas do grupo Vale [...] um total de R$3,1 milhões, via fundo partidário. Paulo Hartung (PMDB), governador do Espírito Santo, recebeu em sua campanha, via Comitê Único Partidário, R$200 mil da Vale Manganês e R$100 mil da Mineração Corumbaense Reunida” (Zonta e Trocate, 2016, p, p. 188). “O senador Antônio Anastasia (PSDB) de Minas Gerais, que presidiu a Comissão Temporária da Política Nacional de Segurança de Barragens, recebeu mais de R$1 milhão das empresas do grupo Vale” (ibid.). Destaque para a Comissão Extraordinária da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, da qual dois deputados “tiveram suas campanhas financiadas diretamente pelas empresas do grupo Vale, Gustavo Valadares (PSDB), com R$60 mil da Salobo Metais; e Thiago Cota (PPS), com R$50 mil da Mineração Corumbaense Reunida” (ibid., p. 188), sendo o último filho do então prefeito de Mariana, Celso Cota. Os autores apontam ainda que “na Comissão Externa na Câmara dos Deputados, estabelecida para acompanhar e monitorar as consequências do rompimento, dentre 19 membros efetivos, dez tiveram suas campanhas financiadas pelas empresas do grupo Vale” (ibid.). Sendo assim, as “trocas de favores” estão refletidas, principalmente, na flexibilização das normas de regulamentação e da fiscalização das ações sobre o território explorado.

As impressões imediatamente após o rompimento da barragem do Fundão

Conforme aponta o geógrafo Rogério Haesbaert (2005)HAESBAERT, R. (2005). Da desterritorialização à multiterritorialidade. X ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA. Anais. São Paulo, USP, pp. 6774-6792., enquanto o espaço social aparece de maneira difusa por toda a sociedade e pode, assim, ser trabalhado de forma genérica, “o território e os processos de des-territorialização devem ser distinguidos através dos sujeitos que efetivamente exercem poder, que de fato controlam esse(s) espaço(s) e, consequentemente, os processos sociais que o(s) compõe(m)” (Haesbaert, 2005HAESBAERT, R. (2005). Da desterritorialização à multiterritorialidade. X ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA. Anais. São Paulo, USP, pp. 6774-6792., p. 6775). Assim, de acordo com o autor, cabe destacar as relações sociais como relações de poder, que compreendem desde o “anti-poder” da violência até as formas mais sutis do poder simbólico.

No dia 5 de novembro de 2015, a barragem do Fundão, da empresa Samarco Mineração S.A.,5 (5) Como já foi mencionado anteriormente, a empresa Samarco S.A. é uma joint venture controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton. rompeu, resultando no maior desastre socioambiental do País. O “mar de lama”6 (6) O termo “mar de lama” é utilizado na campanha do Ministério Público Estadual “Mar de Lama Nunca Mais” criada para alertar a população sobre os impactos gerados pela tragédia. que percorreu o Rio Doce e desaguou no Oceano Atlântico, litoral do Espírito Santo, e sul da Bahia, gerou passivo ambiental irrecuperável e impactos socioterritoriais de drásticas proporções. Causou 20 mortes (até o momento), devastou os subdistritos Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, deixou cerca de 600 pessoas sem moradia e outras centenas sem trabalho, sem água e sem sustento em diversos municípios – também as comunidades originárias, como os índios Krenak, que dependem do Rio Doce para a subsistência, foram atingidas –, matou milhares de animais e vegetais, extinguindo espécies e desequilibrando toda a fauna e a flora ao longo do Rio Doce até o mar. Os resultados das investigações da Polícia Federal, em junho de 2016, demonstraram que a empresa Samarco já sabia dos riscos de rompimento da barragem do Fundão antes do desastre, o que resultou no indiciamento de oito pessoas por crime ambiental, segundo notícias recentes.7 (7) Ver reportagem do G1, publicada em 22/6/2016, disponível em: http://g1.globo.com/espirito-santo/desastre-ambiental-no-rio-doce/noticia/2016/06/samarco-sabia-dos-riscos-antes-de-desastre-diz-delegado-da-pf.html.

Figura 5
– Imagem aérea de Bento Rodrigues após o rompimento da barragem do Fundão

A partir do ocorrido, instaurou-se um “estado de exceção”, especialmente, no município de Mariana, onde diferentes atores – dos setores públicos, privados, acadêmicos, da sociedade civil, entre outros – começaram a tecer diferentes discursos. Sobre esse estado de exceção, Vainer (2011)VAINER, C. (2011). Cidade de exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro. In: XIV ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR. Anais. Rio de Janeiro. afirma que

ao longo do século XX, o estado de exceção – ou emergência – passa a ser declarado em situações consideradas análogas à guerra, como podem ser as crises econômicas e políticas. Essa extensão não poderia ser realizada, porém, sem que a metáfora militar fosse acionada e a analogia da economia com a guerra fosse proclamada. (p. 7; grifos nossos)

Dentre as diversas vozes, destaca-se aquela dos atingidos e dos atores da sociedade civil e de movimentos sociais em torno da necessidade de se criar um espaço próprio de fala e de reivindicação. Essa luta iniciada imediatamente após o desastre-crime culminou na formação de um coletivo denominado “#UmMinutodeSirene8 (8) O coletivo integra representantes da sociedade civil e atingidos visando ao direito à comunicação. Mensalmente, nos dias 5, são organizados eventos públicos com propostas diferenciadas de integração entre os atingidos e são distribuídos os jornais elaborados por um grupo de atingidos. do qual resultou a formatação de um jornal independente, de nome A Sirene, que busca acompanhar o andamento das investigações e da recomposição dos direitos perdidos da população atingida e informar a todos sobre esse andamento. Tal jornal se configurou como um dos principais instrumentos de disseminação da fala dos atingidos. A definição da pauta, os textos e as imagens é inteiramente feita por um grupo de atingidos e com apoio de representantes da sociedade civil e de estudantes do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Ouro Preto.

Em depoimento para a edição nº 0, uma das atingidas expressa a dor daqueles que perderam não apenas suas casas: “Quando me disseram ‘a casa caiu, temos que ir pra Mariana’, eu sabia que era só o começo, que eu ia sofrer mais. Já sofri muitos anos, passei fome, criei cinco filhos sozinha, mas aquele 5 de novembro foi uma coisa que eu nunca mais vou esquecer na minha vida”.

Sobre a segurança das barragens de rejeito de mineração é preciso pontuar algumas questões relativas às fragilidades no processo de licenciamento e monitoramento. Considerando o contexto de Minas Gerias, o levantamento realizado em 2014, pela Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), constatou que, das 754 barragens do estado, mais de 40 delas não apresentavam condições de segurança atestadas. Além disso, existe um histórico considerável de rompimentos de barragens em Minas Gerais, o que constata a falta de segurança dessas estruturas, podendo ser citado o recente rompimento da barragem de Herculano, em setembro de 2014, na cidade de Itabirito.

Em 2013 a Samarco Mineração S.A. entrou com um pedido, aos órgãos ambientais, de licença para elevação da cota da Barragem de Rejeitos do Fundão, para a ampliação da sua capacidade. O laudo realizado a pedido do Ministério Público, para avaliar a revalidação da licença operacional da barragem em questão, destacou algumas recomendações relativas à segurança de seu uso:

  1. Recomenda-se que a condicionante de monitoramento geotécnico e estrutural dos diques e da barragem seja realizada periodicamente, com intervalo inferior a um ano entre as amostragens.

  2. Recomenda-se a apresentação de um plano de contingência em caso de riscos ou acidentes. Além disso, a comprovação de efetividade do plano de contingência é condicionante, conforme deliberação Normativa Copam n° 62/2002, dada a presença de população na comunidade de Bento Rodrigues, subdistrito do município de Mariana-MG. Esta condicionante não foi mencionada nesta Revlo.

  3. Recomenda-se uma análise de ruptura (DAM-Break), que estava prevista para ser entregue à Supram em julho de 2007, segundo PCA do projeto da Barragem de Rejeitos do Fundão. A validação do projeto final atrelada ao plano de monitoramento físico do empreendimento é de extrema importância para garantir a segurança e integridade do meio ambiente. (Instituto Prístino, 2013INSTITUTO PRÍSTINO (2013). Referente à Revalidação da Licença Operacional da Barragem de Rejeitos do Fundão Samarco Mineração S/A. Disponível em: http://www.meioambiente.mg.gov.br/images/stories/URCS_SupramCentral/RioVelhas/69/9.1-laudo-tecnico.pdf. Acesso em: 18 nov 2015.
    http://www.meioambiente.mg.gov.br/images...
    , p. 2)

O mesmo relatório chama a atenção ainda para os fatores de insegurança advindos da relação entre a Barragem de Rejeitos de Fundão e as demais estruturas minerárias do Complexo da Alegria:

Foi constatado, conforme parecer técnico anexo ao presente parecer, que ocorre sobreposição da ADA9 (9) ADA é a Área Diretamente Afetada por um empreendimento definida em relatórios de análise de impacto. da Barragem do Fundão e da ADA da Pilha de Estéril União, da Vale S.A. Tal informação foi identificada unicamente na retificação do Projeto de Utilização Pretendida (PUP) para a área a ser desmatada. Com efeito, notam-se áreas de contato entre a pilha e a barragem, situação não recomendada para ambas as estruturas devido à possibilidade de desestabilização do maciço da pilha e da potencialização de processos erosivos. Enquanto a pilha de estéril requer baixa umidade e boa drenagem, a barragem de rejeitos tem alta umidade, pois é reservatório de água. (Ibid., p. 3)

As causas técnicas do rompimento da barragem de Fundão ainda estão em processo de análise pelos órgãos competentes, mas uma das primeiras denúncias expostas é a negligência quanto à recomendação de realização de um plano de contingência que não foi cumprido pela empresa e que acarretou na morte de 19 pessoas, dentre elas, funcionários da Samarco Mineração S.A., de empresas terceirizadas e de moradores de Bento Rodrigues. Relato de um dos atingidos para o Jornal A Sirene (edição nº 0) expressa, inclusive, que as mortes não foram todas decorrentes do soterramento: “Minha mãe morreu de susto. Caiu na lama morta. Não consegui salvar”. Mortes de pessoas poderiam ter sido evitadas, caso o plano de evacuação fosse acionado corretamente. Segundo os depoimentos de moradores de Bento Rodrigues, além da falha das sirenes de aviso para evacuação, não foi implantado um plano de comunicação adequado com os moradores que viviam a pouco mais de 2 km da barragem do Fundão. O depoimento de uma professora que estava em sala de aula no momento do rompimento deixa essa falha muito evidente:

Na verdade, eu vi uma notícia no jornal assim: E um funcionário ligou pra escola. A escola não tem telefone, então pra escola não foi. Na verdade quem quisesse ter ligado só poderia ter ligado pra celular. O irmão da Paula, eu conversei com ele, ele estava lá, ele disse assim: “Olha eu só vi a hora que aquilo abriu e foi um desespero”. E ele ligou na hora e falou pra ela: “Avisa o pessoal pra sair da frente que a barragem tá descendo”. E ela montou na moto e saiu gritando: “Corre, corre que a barragem está descendo”.10 (10) Relato dado por professora do extinto Bento Rodrigues, em debate realizado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto, em 10/11/2015.

Outros depoimentos da população atingida retratam a ausência da “sirene”: “Minha sirene foi a gritaiada [sic] na praça, a afobação do povo. Não deu tempo de correr. Quando vi a lama já estava na minha garagem” (Jornal A Sirene, edição nº 0).

Importante ressaltar que nos subdistritos atingidos são construídas e (re)inventadas identidades territoriais – relacionadas, por exemplo, aos laços afetivos de vizinhança, aos cultos e festividades religiosas, às redes de produção agrícola, dentre outras singularidades –, que são cotidianamente afetadas pela atividade de mineração e impactadas de forma irreversível quando ocorrem a destruição e consequente desterritorialização. Importante observar que, conforme Haesbaert (2006)HAESBAERT, R. (2006). O mito da desterritorialização, do fim dos “territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil., na medida em que ocorrem movimentos individuais e sociais de desterritorialização, a estes sucedem novos processos de reterritorialização. Com isso, o fenômeno vivido no mundo real é o da des-re-territorialização uma vez que não é possível, nem individual, nem socialmente, ter-se a ausência de alguma forma de territorialidade.

Com base no entendimento de que o território é “um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder” (Souza, 2009SOUZA, M. (2009). “O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento”. In: CASTRO, I. E. de et al. Geografias: Conceitos e Temas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil., p. 78), é possível perceber no recorte espacial delimitado por este artigo – os subdistritos Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, Minas Gerais – a correlação de forças que determinam a territorialização das áreas de mineração, a partir da interação entre as empresas mineradoras, o poder público e a sociedade civil. O panorama histórico da mineração em Minas Gerais e os dados sobre a exploração do minério de ferro das últimas décadas, apontados anteriormente, demonstram o poder exercido pelas empresas mineradoras sobre o território, na extração degradante das riquezas naturais e nos reflexos socioespaciais. Isso significa dizer que a mineração tem poder sobre o território em detrimento de comunidades locais, constantemente pressionadas a deixarem as áreas de interesse das empresas mineradoras e/ou sujeitadas ao convívio com a contaminação dos mananciais e cursos d’água, poluição do ar e outras formas de degradação ambiental provenientes da extração do minério de ferro. Sobre essa população, que perde autonomia e direitos, vale destacar que:

[...] a noção de atingido diz respeito, de fato, ao reconhecimento, leia-se legitimação, de direitos e de seus detentores. Em outras palavras, estabelecer que determinado grupo social, família ou indivíduo é, ou foi, atingido por determinado empreendimento significa reconhecer como legítimo – e, em alguns casos, como legal – seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenização, reabilitação ou reparação não pecuniária. Isto explica que a abrangência do conceito seja, ela mesma, objeto de uma disputa. (Vainer, 2008VAINER, C. (2008). “Conceito de ‘atingido’: uma revisão do debate”. In: ROTHMAN, F. Vidas Alagadas – Conflitos Socioambientais, Licenciamento e Barragens. Viçosa, UFV, pp. 39-63., p. 40)

Os impactos ambientais afetam toda população do entorno imediato das estruturas da mineração, mas as pressões sobre a população que depende das terras para a moradia são ainda mais agressivas. As áreas de potencial mineral são, geralmente, áreas rurais, povoadas por comunidades que têm na agricultura e na criação de animais seu principal meio de subsistência e por comunidades que trabalham, no entorno, em distritos e subdistritos próximos. São, na maioria das vezes, pessoas que trazem um forte vínculo com a natureza e a vida rural do território onde vivem, de geração a geração. Existem ainda as situações em que as áreas de interesse da mineração pertencem aos povos indígenas ou quilombolas, e nesses casos as empresas incidem de forma ainda mais ofensiva. O polêmico projeto de lei 1610/1996,11 (11) Institui o regime especial para as atividades de pesquisa e lavra de recursos minerais em terras indígenas, de que tratam o § 1ºo do art. 176 e o § 3º do art. 231 da Constituição, e o regime de extrativismo mineral indígena, e dá outras providências. que tramita há quase duas décadas e que “institui o regime especial para as atividades de pesquisa e lavra de recursos minerais em terras indígenas”, ignora as salvaguardas socioambientais e restringe o direito de consulta livre, prévia e informada,12 (12) A chamada “obrigação estatal de consulta” foi prevista pela primeira vez, em âmbito internacional, em 1989, quando a Organização Internacional do Trabalho (OIT) adotou a Convenção nº 169. Disponível em:http://www.socioambiental.org/inst/esp/consulta_previa/. Acesso em: 18 nov 2015. deixando claro que a regulamentação das terras a serem exploradas e lavradas ficará reduzida às empresas interessadas e ao poder público à revelia da participação da população afetada, os atingidos.

As empresas mineradoras exercem pressão sobre as comunidades para avançarem com a mineração sobre novas áreas e recursos. A partir disso buscam realizar a compra individualizada das propriedades como parte de uma estratégia para enfraquecer os moradores que se mantêm firmes e irredutíveis na negativa de deixar o local. Todo esse processo é acompanhado da anuência dos políticos nas diferentes escalas de governo que, em sua grande maioria, são financiados pelas mineradoras nas suas campanhas eleitorais e, portanto, são incapazes de romper com o modelo exploratório da mineração que somente visa à majoração do lucro em detrimento dos direitos coletivos. Conforme ressalta Viana (2012VIANA, M. B. (2012). Avaliando Minas: índice de sustentabilidade da mineração (ISM). Tese de Doutorado. Brasília, Universidade de Brasília., p. 79),

O Estado, como ator fundamental no processo de adaptação das minerações às exigências do desenvolvimento sustentável, utiliza-se de instrumentos públicos de gestão para atuar nos campos regulatório, fiscal e tecnológico, incluindo o conhecimento geológico do território e a formação básica dos recursos humanos. A ele competiria também ser o mediador do diálogo entre os diversos atores sociais, buscando, em especial, compreender e proteger os interesses justos das minorias menos favorecidas.

Ao contrário disso, a flexibilização da legislação que regulamenta a atividade de exploração mineral e o caráter não participativo e “de urgência” costumam ser características marcantes nos processos de análise e aprovação por instâncias do poder público, a fim de beneficiar as mineradoras. Além disso, o sucateamento dos órgãos e instituições de fiscalização ambiental, a má remuneração dos trabalhadores e a interferência política nas decisões das esferas legislativas e executivas aprofundam a ingerência ambiental e a supremacia das grandes empresas.

Com relação à flexibilização da legislação, vale destacar as reflexões de Agamben (2004)AGAMBEN, G. (2004). Estado de exceção. São Paulo, Boitempo. sobre o estado de exceção que, ao instituir o excepcional como regra, apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal, essa terra de ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida marca do empreendedorismo urbano que se estabelece no planejamento estratégico.

A literatura sobre grandes projetos classifica a conjunção de planejamento, empresas, interesses econômicos e políticos que favorecem esses projetos em detrimento de promover qualidade de vida à população, terceirizando e externalizando para a sociedade os danos e os custos dessas obras que, na verdade, são obras que enriquecem meia dúzia de acionistas em detrimento de toda uma coletividade (Zhouri, 2015).

A questão territorial relacionada à exploração mineral, portanto, indica que o conflito entre a exploração e a moradia tem como base o modelo capitalista de dominação do espaço conformado como um objeto de disputa na qual os ganhadores são, quase sempre, os investidores e empreendedores associados ao capital. Conforme afirma Souza (2009)SOUZA, M. (2009). “O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento”. In: CASTRO, I. E. de et al. Geografias: Conceitos e Temas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil., ao contrário do que ocorre, as relações territoriais deveriam ser constituídas por relações autônomas e coletivas e não apenas por relações econômico-capitalísticas:

Na verdade, o território não é simplesmente uma variável estratégica em sentido político-militar; o uso e o controle do território, da mesma maneira que a repartição real de poder devem ser elevados a um plano de grande relevância também quando da formulação de estratégias de desenvolvimento sócio-espacial em sentido amplo, não meramente econômico-capitalístico, isto é, que contribuam para uma maior justiça social e não se limitem a clamar por crescimento econômico e modernização tecnológica. (Ibid., p. 100)

Sobre direitos, cidadania e um planejamento territorial insurgente

Este artigo propõe uma reflexão acerca da desterritorialização dos subdistritos Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, mas é importante reforçar que o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão atingiu drasticamente outras localidades e diversas cidades ao longo do Rio Doce, nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Os conflitos gerados envolvem diversos atores, como: moradores de comunidades atingidas que tiveram perdas materiais e imateriais irreparáveis; moradores de cidades atingidas pelo fator de instabilidade econômica e pelos danos ambientais sofridos; técnicos e atores políticos das esferas governamentais responsáveis pela fiscalização e punição da empresa; representantes da empresa Samarco Mineração S.A. e suas acionistas Vale e BHP Billiton; representantes da imprensa que divulgaram a ocorrência; integrantes dos movimentos sociais e pastorais que fazem resistência à forma como a atividade mineradora se realiza no Brasil, empenhando-se na luta pelos direitos dos atingidos dentre outros. Toda essa rede de atores traz diferentes olhares com relação ao fato ocorrido. Há uma diversidade de narrativas em torno dos precedentes e do momento do rompimento da barragem de Fundão.

As reportagens jornalísticas e os depoimentos da população atingida, coletados em debates ou no Jornal A Sirene, destacado anteriormente, explicitam as relações de poder e as tensões e disputas no território do momento imediatamente pós-rompimento. Apesar de se tratar de um evento recente, já é possível levantar alguns apontamentos preliminares, como: a) o rompimento da barragem já estava anunciado antes da tragédia (em laudo técnico elaborado a pedido do Ministério Público para avaliar a revalidação da licença operacional da barragem); b) nenhum plano de evacuação para acidentes foi acionado pela empresa de forma adequada, o que, caso tivesse sido acionado, minimizaria os impactos sofridos e, provavelmente, mortes de pessoas; c) a empresa Samarco, após o ocorrido, impediu o livre acesso ao local afetado reivindicado pelos moradores desabrigados de Bento Rodrigues; d) informações sobre as buscas das pessoas desaparecidas (e outros esclarecimentos) não foram passadas aos familiares com a devida transparência pela empresa imediatamente após o ocorrido; e) em um primeiro momento as famílias desabrigadas de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo foram alojadas em diversos hotéis e pousadas, aleatoriamente, dificultando a mobilização pela garantia de seus direitos; f) muitas reuniões para negociar e definir planos de ação foram realizadas apenas com representantes da empresa Samarco e da Prefeitura Municipal de Mariana (sem a participação dos atingidos), revelando a tendência de concretizar processos verticalizados e centrados nas demandas da empresa e não dos atingidos; e g) acordo firmado em princípio (atualmente anulado) era frágil do ponto de vista de ressarcimentos e compensações quanto aos impactos ambientais e sociais e afetava diretamente os direitos dos atingidos, não garantindo, por exemplo, assistência técnica.

É importante destacar que a mediação de conflitos estabelecida a partir do protagonismo da empresa responsável engendra processos hierárquicos que visam à redução dos prejuízos da empresa em detrimento da garantia de direitos básicos aos atingidos. Não raro, a empresa individualiza a solução de problemas, diferentemente da proposta dos movimentos sociais organizados de base popular, a exemplo do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), em que a negociação coletiva é o pilar da conquista dos direitos, pois coletivamente é possível unir forças e aumentar a pressão social dos atingidos na negociação com a empresa. Para além das diversas multas (especialmente devido aos impactos ambientais) ainda não pagas, nota-se que a empresa Samarco Mineração S.A. também não arcou com diversas exigências do Ministério Público ajuizadas em Ação Civil Pública (ACP). Resultante de uma ação cautelar que bloqueou 300 milhões de reais da empresa Samarco – uma quantia pouco significativa em se tratando dos danos ao meio ambiente e das perdas econômica, social e cultural dos atingidos –, essa Ação Civil Pública, construída com a participação dos atingidos, determina o provimento de cartão para as famílias atingidas com auxílio financeiro, moradia alugada até o reassentamento definitivo, antecipações de indenização, indenização pelos veículos que foram destruídos, dentre outros. Aproximadamente no início de fevereiro de 2016, um recurso levou ao deslocamento dessa ACP para a Justiça Federal, o que dificultou enormemente a continuidade da luta pela garantia dos direitos. Assim, em julho, foi elaborado um parecer do Ministério Público de Minas Gerais para o retorno do processo à instância estadual, respaldado em decisão do Superior Tribunal de Justiça. Essa solicitação foi acatada por determinação judicial que definiu, em 23 de agosto de 2016, pelo retorno da ACP à instância estadual, constituindo-se, portanto, como uma vitória da luta dos atingidos.

Quanto às definições de reassentamentos dos atingidos, vários relatos demonstram que a maioria das famílias atingidas defende a reconstrução do “novo Bento Rodrigues” e “novo Paracatu” como formas de reconstituição dos laços de vizinhança perdidos e da garantia de uma moradia adequada que vá além da unidade habitacional, incluindo também áreas de quintal para plantio e criação, instalação de escolas, posto de saúde, igrejas, espaços públicos de lazer e de sociabilidade:

A maioria tem o mesmo objetivo: viver num cantinho sossegado, na rocinha lá, com os mesmos vizinhos, todo mundo unido, do mesmo jeito. Pra você ver como a gente sente falta um do outro. Isso mostrou que, querendo ou não, a gente gostava um do outro e não percebia. A gente não percebia como que a gente gostava do Bento. (Jornal A Sirene, edição nº 3).

O terreno para reassentamento das famílias atingidas de Bento Rodrigues foi definido através de votação em audiência pública, com mediação do Ministério Público – que, desde o momento do rompimento, tem exercido importante papel na garantia dos direitos dessas famílias. Sobre a escolha das áreas, uma das atingidas afirma: “O critério que eu levantei foi que o terreno no novo Bento tinha que ficar na mesma rota do antigo. Depois da definição dos critérios é que a Samarco foi atrás do terreno” (Jornal A Sirene, edição nº 3). A área para reassentamento das famílias atingidas de Paracatu de Baixo, por outro lado, ainda não foi definida pela população.

A garantia da assistência técnica pode ser considerada outra conquista recente do processo participativo que vem sendo construído entre os atingidos, Ministério Público e movimentos sociais. Conforme anunciado pelo Promotor de Justiça do MPMG, Dr. Guilherme Meneguin, em reunião com os atingidos, no dia 26 de agosto de 2016:

Nós conseguimos, junto às empresas, junto à fundação [criada pela Samarco para gerir os recursos de indenização, etc.], que ela mesma vai pagar [...] pra que profissionais venham auxiliar os atingidos. [...] Agora vai ter uma assistência técnica que vai poder contrapor com a posição técnica da outra parte. [...] A ideia inicial de construir de uma forma que desrespeite as características da comunidade é que nós queremos evitar [...] nós queremos que os atingidos participem. [...] Nós queremos que a “nova Bento”, a “nova Paracatu”, seja o mais parecido possível. E pra que isso seja realidade, vão ser os arquitetos de confiança dos atingidos que vão dizer “isso é possível, isso não é”, de forma que o projeto arquitetônico se aproxime o máximo possível daquilo que é de interesse da comunidade.

As possibilidades de reconstrução ou “reterritorialização” trazem diversas reflexões ligadas à produção do espaço, mas também sobre o direito à moradia digna e à cidade de forma ampla, sobre cidadania e sobre a participação popular nos processos de planejamento territorial. Em uma perspectiva “estado-crítica”, Marcelo Lopes de Souza afirma que a luta institucional não substitui a ação direta, mas, sim, subordina-se a ela, assim como a tática se subordina à estratégia, e não o contrário. Na fórmula “com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado”, são dos dois últimos ingredientes – e principalmente o último – que devem predominar, de um ponto de vista que leve a sério o risco da cooptação e degeneração dos movimentos e que assuma a necessidade de uma mudança socioespacial profunda como pré-requisito para se poder falar em maior justiça social e melhorias substanciais da qualidade de vida da maior parte da população (Souza, 2010SOUZA, M. (2010). Com o Estado apesar do Estado, contra o Estado: os movimentos urbanos e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação direta. Revista Cidades, v. 7, n. 11, pp. 13-47., pp. 26-27). Ou seja, não se trata da defesa por instâncias de mediação de conflitos, de negociação pacífica – como normalmente defendido por grupos dominantes, empresas e poder público em campos de disputa –, mas de levantar novos instrumentos de luta, insurgentes, que partam dos próprios sujeitos atingidos.

Nesse sentido, destaca-se a importância dos movimentos sociais no trabalho de mobilização popular e de construção de momentos de troca. Conforme afirma Dagnino (1994DAGNINO, E. (1994). “Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania”. In: DAGNINO, E. (org.). Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo, Brasiliense., p. 103), “na organização desses movimentos sociais, a luta por direitos – tanto o direito a igualdade como o direito às diferenças – constituiu a base fundamental para a emergência de uma nova noção de cidadania”. Ou, ainda:

[...] incorporando características da sociedade contemporânea, como o papel das subjetividades, a emergência de sujeitos sociais de novo tipo e de direitos de novo tipo, a ampliação do espaço da política, essa é uma estratégia que reconhece e enfatiza o caráter intrínseco e constitutivo da transformação cultural para a construção democrática. (Ibid., p. 104)

É notável como a ação local de movimentos sociais, como é o caso do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), e de coletivos iniciados por representantes da sociedade civil, como o #UmMinutodeSirene, e de grupos acadêmicos tem exercido importante papel no sentido de fortalecer os laços (muitos já postos) entre a população atingida.

Conforme definido por Miraftab em seu artigo “Insurgent planning: situating radical planning in the global South”, para além do que ela considerada como “espaços convidados” existem os “espaços inventados”, ou seja, ações coletivas que partem da população, confrontam diretamente as autoridades e desafiam o status quo, sugerindo, assim, um planejamento insurgente. Para a autora, o planejamento insurgente é caracterizado como contra-hegemônico (pois desestabiliza a ordem normal das coisas), transgressor (pois transpassa o tempo e o espaço, colocando memória e consciência histórica no centro das atenções) e imaginativo (na medida em que promove um novo conceito de mundo possível e necessário e defende uma sociedade justa). O planejamento insurgente, assim, subentende ações coletivas para a transformação da realidade urbana buscando uma sociedade justa.

Figura 6
– #Um MinutodeSirene organiza atos nos dias 5 de cada mês com os atingidos

Ainda que seja possível perceber conquistas importantes na luta pela garantia dos direitos dos atingidos e o surgimento de “espaços inventados” que encaminham propostas de planejamento insurgente em Mariana (MG), existem muitos entraves colocados pela empresa Samarco, que parece mais preocupada com o retorno de suas atividades de exploração na região do que em arcar com suas responsabilidades com os impactos gerados. As famílias atingidas de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo – que estão alojadas temporariamente em casas e apartamentos alugados na sede do município de Mariana – têm sido vítimas de atitudes preconceituosas cotidianamente reproduzidas, inclusive, por alguns grupos de moradores do município.13 (13) Têm sido realizadas, desde janeiro de 2016, na sede do município de Mariana, manifestações em prol da empresa Samarco Mineração S.A., agregando, não apenas ex-funcionários demitidos da empresa (e de empresas terceirizadas), mas também, representantes da sociedade civil que, tomados por uma visão unilateral, associam a culpa pelo aumento do desemprego e pela crise municipal à população atingida. Segundo a publicação de Maurício Zonta e Charles Trocate (2016), “[...] mesmo que em termos absolutos os empregos criados sejam pouco expressivos, relativamente, em municípios mineradores e com populações pequenas empobrecidas, a geração de empregos precários, tipicamente terceirizados, é extremamente relevante em escala local. Isto gera uma espécie de dilema minerador, isto é, a percepção de que, apesar dos impactos negativos causados pela atividade, a mineração é a principal atividade econômica das regiões mineradas, sustentadora de parcela importante da renda familiar” (p. 194). Conforme relatado pelo Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, no dia 26 de agosto de 2016:

[...] fizeram um abaixo-assinado para que as crianças de Bento Rodrigues não estudem na escola do Rosário [escola na sede de Mariana]. Pessoas publicam notícias, publicam nas redes sociais falando que eles são aproveitadores. Pessoas que perderam tudo, que tiveram que fugir com a roupa do corpo não são aproveitadoras não, são vítimas de um crime, de um dos crimes mais terríveis que já aconteceram neste país, que afetou não só Mariana, não destruiu só o meio-ambiente. Destruiu, principalmente, a vida dessas pessoas.

Na construção democrática da ”reterritorialização”, deve-se entender democracia como sinônimo de soberania popular, em que seja considerada a presença efetiva das condições sociais e institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação ativa (Coutinho, 2000COUTINHO, C. (2000). Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo, Cortez.). E, seguindo esse mesmo raciocínio, o conflito engendrado não deve servir para justificar ações “emergenciais” por parte da empresa, que afetam os direitos da população atingida, mas, sim, servir de motor para o fortalecimento da cidadania, para a afirmação da justiça social e para a construção de processos horizontais e coletivos de planejamento territorial.

Considerações finais

Os conflitos territoriais engendrados pelo atual modelo de exploração minerária nos países do capitalismo periférico, particularmente no Brasil, acirram-se em contextos de crise e de desastres socioambientais. A dominação do capital na gestão e no planejamento territorial se reflete na histórica relação de poder, econômica e simbólica, da atividade minerária e, de forma mais perversa, na perda de direitos da população que habitam as áreas de interesse das empresas mineradoras. Esse cenário é latente nos municípios de Minas Gerais, estado com maior produção de minérios do País.

O caso do rompimento da barragem do “Fundão”, no município de Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015, pode ser considerado um marco que demonstra não apenas a necessidade urgente de revisão do atual modelo exploratório das empresas mineradoras, mas também a necessidade de associar esse debate à reflexão sobre os modelos de planejamento territorial que excluem os sujeitos atingidos nas definições das ações e políticas públicas nas cidades.

O modelo atual de exploração de minérios visa ao lucro a qualquer preço, ainda que coloque em risco o meio ambiente e a vida de pessoas e de comunidades inteiras. A relação de poder que se estabelece – seja no financiamento empresarial das campanhas eleitorais, seja na dependência excessiva das prefeituras aos royalties, seja na inexistência de políticas de apoio à diversidade produtiva – deve ser problematizada e percebida como fator decisivo na flexibilização da legislação e dos processos de licenciamento ambiental, por exemplo. Esses processos de licenciamento ambiental devem deixar transparecer todas as questões aos cidadãos que, por sua vez, devem ter pleno direito de se opor às ações com risco de impacto ambiental, social, cultural. Sob essa perspectiva, é imprescindível que os políticos eleitos democraticamente sejam de fato representantes da maioria desfavorecida e lutem com a sociedade civil em prol da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e não do lucro advindo da mineração.

A discussão sobre a revisão do modelo exploratório da mineração deve ser ampliada e estar associada ao debate sobre participação popular no planejamento territorial. Na esteira de um novo modelo, baseado no desenvolvimento sustentável, economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente adequado, as empresas mineradoras e a municipalidade devem incorporar e consolidar práticas democráticas de planejamento. Os cidadãos devem ter pleno acesso às informações e aos instrumentos de compensação, por exemplo, garantindo a participação popular na decisão sobre as prioridades de reinvestimento dos recursos do Cfem para, assim, manifestarem-se com autonomia sobre os processos de gestão e planejamento nas cidades.

Nesse sentido, além de levantar algumas questões que antecederam ao rompimento da barragem de rejeitos de responsabilidade da empresa Samarco S.A., entende-se a importância de analisar os discursos, perceber as diversas impressões, do momento imediatamente posterior ao desastre socioambiental, que causou mortes e um passivo ambiental e social de drásticas proporções no território brasileiro e, em especial, no território mineiro. É também imprescindível perceber no discurso dos diferentes atores envolvidos – sujeitos atingidos pela tragédia e/ou mobilizados na luta pela garantia dos direitos dos atingidos (ligados a movimentos sociais ou não), bem como de representantes do poder público e da empresa responsável pelo ocorrido – como se engendram conflitos, tensões e disputas no território.

A forma como se estabelece essa relação de poder sobre o território e como são veiculadas as informações em contextos de crise e desastre é determinante na mediação dos conflitos entre os diversos atores envolvidos, sugerindo processos de negociação pacífica que reforça o poder do grupo dominante – no caso, a empresa e o próprio poder público municipal – e causa o refreamento da autonomia dos sujeitos atingidos. Essa correlação de forças interfere diretamente nos processos de planejamento territorial.

Os conflitos territoriais desencadeados com o rompimento da barragem, com a desterritorialização dos subdistritos Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, deixando centenas de pessoas desabrigadas e sem nenhum bem material, demonstram que a luta pela garantia dos direitos essenciais, dentre eles o direito à informação, à participação e à negociação coletiva, direito à moradia digna, à memória, à cidade, deve ser construída de forma coletivamente, apoiada por movimentos sociais e coletivos insurgentes. O posicionamento do poder público em apoiar processos verdadeiramente participativos deve ser apresentado de forma clara e não deve ser deixado de lado, favorecendo o empreendedorismo urbano, como comumente é verificado.

Sob essa perspectiva, a partir do conflito e do dissenso, é possível, e necessário, construir processos coletivos e horizontais de planejamento territorial, defendendo a construção de cidadania e justiça social e ambiental nas cidades.

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  • ZONTA, M. e TROCATE, C. (orgs.) (2016). Antes fosse mais leve a carga: reflexões sobre o desastre da Samarco/ Vale/ BHP Billiton. Marabá, Editorial iGuana.
  • (1)
    “[...] refere-se a um tipo de associação em que duas entidades se juntam para tirar proveito de alguma atividade, por um tempo limitado, sem que cada uma delas perca a identidade própria”. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2110:catid=28&Itemid=23. Acesso em: 20 nov 2015.
  • (2)
    Em debate realizado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto, em 10/11/2015.
  • (3)
    Relato dado por ex-moradora de Bento Rodrigues em debate realizado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto, em 10/11/2015. Nas reprodução de relatos, foi mantida a transcrição literal, a fim de serem mantidas as marcas de oralidade.
  • (4)
    Outros dados importantes: “[...] o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), recebeu de todas as empresas do grupo Vale [...] um total de R$3,1 milhões, via fundo partidário. Paulo Hartung (PMDB), governador do Espírito Santo, recebeu em sua campanha, via Comitê Único Partidário, R$200 mil da Vale Manganês e R$100 mil da Mineração Corumbaense Reunida” (Zonta e Trocate, 2016, pZONTA, M. e TROCATE, C. (orgs.) (2016). Antes fosse mais leve a carga: reflexões sobre o desastre da Samarco/ Vale/ BHP Billiton. Marabá, Editorial iGuana., p. 188).
  • (5)
    Como já foi mencionado anteriormente, a empresa Samarco S.A. é uma joint venture controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton.
  • (6)
    O termo “mar de lama” é utilizado na campanha do Ministério Público Estadual “Mar de Lama Nunca Mais” criada para alertar a população sobre os impactos gerados pela tragédia.
  • (7)
  • (8)
    O coletivo integra representantes da sociedade civil e atingidos visando ao direito à comunicação. Mensalmente, nos dias 5, são organizados eventos públicos com propostas diferenciadas de integração entre os atingidos e são distribuídos os jornais elaborados por um grupo de atingidos.
  • (9)
    ADA é a Área Diretamente Afetada por um empreendimento definida em relatórios de análise de impacto.
  • (10)

    Relato dado por professora do extinto Bento Rodrigues, em debate realizado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto, em 10/11/2015.
  • (11)

    Institui o regime especial para as atividades de pesquisa e lavra de recursos minerais em terras indígenas, de que tratam o § 1ºo do art. 176 e o § 3º do art. 231 da Constituição, e o regime de extrativismo mineral indígena, e dá outras providências.
  • (12)

    A chamada “obrigação estatal de consulta” foi prevista pela primeira vez, em âmbito internacional, em 1989, quando a Organização Internacional do Trabalho (OIT) adotou a Convenção nº 169. Disponível em:http://www.socioambiental.org/inst/esp/consulta_previa/. Acesso em: 18 nov 2015.
  • (13)

    Têm sido realizadas, desde janeiro de 2016, na sede do município de Mariana, manifestações em prol da empresa Samarco Mineração S.A., agregando, não apenas ex-funcionários demitidos da empresa (e de empresas terceirizadas), mas também, representantes da sociedade civil que, tomados por uma visão unilateral, associam a culpa pelo aumento do desemprego e pela crise municipal à população atingida. Segundo a publicação de Maurício Zonta e Charles Trocate (2016), “[...] mesmo que em termos absolutos os empregos criados sejam pouco expressivos, relativamente, em municípios mineradores e com populações pequenas empobrecidas, a geração de empregos precários, tipicamente terceirizados, é extremamente relevante em escala local. Isto gera uma espécie de dilema minerador, isto é, a percepção de que, apesar dos impactos negativos causados pela atividade, a mineração é a principal atividade econômica das regiões mineradas, sustentadora de parcela importante da renda familiar” (p. 194).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2016
  • Aceito
    30 Nov 2016
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