Acessibilidade / Reportar erro

As desigualdades de mobilidade nas periferias da Região Metropolitana de Belo Horizonte: um estudo das atividades de comércio, lazer e saúde

Mobility inequalities in the peripheral areas of the Metropolitan Region of Belo Horizonte: a study of retail, leisure and health activities

Resumo

Se as periferias das cidades latino-americanas foram historicamente caracterizadas por significativas desigualdades de mobilidade, hoje em dia se constata uma reestruturação dos deslocamentos dos indivíduos. O presente artigo visa a analisar as desigualdades de mobilidade às quais os habitantes das periferias da Região Metropolitana de Belo Horizonte são submetidos, procurando-se compreender como as recentes transformações das periferias urbanas contribuíram com a reestruturação dos comportamentos de mobilidade quotidiana. Para tanto, são associadas análise quantitativa, baseada na pesquisa de origem e destino, e entrevistas qualitativas realizadas com os habitantes das periferias, através das quais propõe-se identificar as principais estratégias de mobilidade dos moradores dos espaços em questão.

mobilidade; desigualdades; periferias urbanas; Belo Horizonte

Abstract

Peripheral areas in Latin American cities have been historically marked by significant inequalities in mobility. However, nowadays, we observe an important restructuring in trip behaviors. The present paper aims at analyzing mobility inequalities in the peripheral areas of the Metropolitan Region of Belo Horizonte. We propose to assess how recent transformations observed in urban peripheries have contributed to the restructuring of daily mobility behaviors. Therefore, a quantitative analysis based on the Origin and Destination Survey is combined with qualitative interviews conducted with inhabitants of peripheries, in order to identify their main mobility strategies.

mobility; inequalities; urban peripheries; Belo Horizonte

O processo de urbanização das metrópoles latino-americanas (historicamente associado a uma intensidade) é confrontado, nas últimas décadas, a uma nova fase de desenvolvimento. Primeiramente, assiste-se a uma atenuação das intensas dinâmicas de crescimento demográfico observadas durante as décadas anteriores, atualmente alimentadas pelas migrações intraurbanas em detrimento do êxodo rural. Além disso, o processo de metropolização contribui com o aumento e a complexificação das dinâmicas de mobilidade, assim como com a ratificação das desigualdades sociais, em decorrência de novas formas de produção do espaço urbano.

A mobilidade e a capacidade de se deslocar emergem como uma das principais condições de inserção na sociedade atual, colaborando com a exclusão de determinadas categorias da população que não se inscrevem no referido sistema. Tais desigualdades tendem a se acentuar ainda mais nas franjas periféricas das aglomerações: os espaços mais distantes do centro, nos quais a densidade de atividades é consideravelmente menor, são moldados através de uma oferta à la carte de equipamentos e serviços urbanos (Dupuy, 1999DUPUY, G. (1999). La dépendance automobile: symptômes analyses, diagnostics. Paris, Anthropos.). No que concerne aos deslocamentos diários dos habitantes das periferias urbanas, as condições do sistema de transporte público assim como a distribuição da população e dos equipamentos urbanos nos preditos espaços engendram situações significativas de exclusão social.

As metrópoles latino-americanas caracterizam-se, historicamente, por importantes desigualdades nas condições de mobilidade das diversas categorias de população, associadas a um modelo dominante centro-periferia, no qual as principais atividades e os equipamentos urbanos são concentrados nas áreas centrais, levando ao deslocamento de um elevado contingente de moradores das áreas periféricas. Entretanto, a expansão e a diversificação do mercado imobiliário nas periferias das metrópoles latino-americanas, nas últimas décadas, suscitaram diversas transformações em termos de ocupação residencial, distribuição de serviços e condições de mobilidade dos indivíduos (Dureau et al., 2015DUREAU, F., LULLE, T., SOUCHAUD, S. e CONTRERAS, Y. (2015). Mobilités et changement urbain à Bogotá, Santiago et São Paulo. Rennes, Presses Universitaires de Rennes.). Desse modo, questiona-se quais os impactos da emergência de novos paradigmas de organização socioespacial em termos de mobilidade urbana.

A Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) figura como um exemplo significante de tais afirmações, uma vez que as periferias da metrópole vêm passando por inúmeras transformações nas últimas décadas (Mendonça, Perpétuo e Vargas, 2004MENDONÇA, J.; PERPÉTUO, I. e VARGAS, M. (2004). A periferização da riqueza na metrópole belo--horizontina: falsa hipótese? In: XI SEMINÁRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA. Anais... Belo Horizonte.). Observa-se na capital, caracterizada por uma polarização histórica de empregos e atividades, uma reestruturação dos deslocamentos em torno dos municípios periféricos (Lobo, Cardoso e Magalhães, 2013LOBO, C.; CARDOSO, L. e MAGALHÃES, D. (2013). Acessibilidade e mobilidade espaciais da população na Região Metropolitana de Belo Horizonte: análise com base no censo demográfico de 2010. Cadernos Métropole. São Paulo, n. 15, v. 30, pp. 513-533.).

O presente artigo busca analisar as desigualdades relativas à mobilidade nas periferias de Belo Horizonte, ante o impacto da evolução recente da organização das periferias metropolitanas sobre as práticas de mobilidade dos habitantes dos espaços em questão. Pretende-se destacar os resultados de um estudo1 1 Os resultados apresentados são provenientes da tese de doutorado Les inégalités d’accès aux ressources urbaines dans les franges métropolitaines de Lille et Belo Horizonte (Brésil), em curso na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e Universidade Federal de Minas Gerais. realizado nas periferias da região metropolitana de Belo Horizonte, que articula metodologias quantitativa (pesquisa de origem e destino) e qualitativa (entrevistas realizadas em campo). O artigo tem igualmente como objetivo dissecar as dinâmicas de mobilidade urbana através da análise dos deslocamentos motivados por outras atividades além do trabalho e dos estudos, visto que estes últimos foram anteriormente documentados na RMBH (Neto, 2009NETO, A. (2009). Deslocamentos urbanos e desigualdades sociais: um estudo do movimento diário da população de Belo Horizonte. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais.; Lobo, Cardoso e Magalhães, 2013LOBO, C.; CARDOSO, L. e MAGALHÃES, D. (2013). Acessibilidade e mobilidade espaciais da população na Região Metropolitana de Belo Horizonte: análise com base no censo demográfico de 2010. Cadernos Métropole. São Paulo, n. 15, v. 30, pp. 513-533.). Para tanto, foram selecionados os deslocamentos motivados por quatro tipos de atividade distintas: comércio, lazer, saúde e negócios. Levanta-se a hipótese de que os deslocamentos motivados pelas atividades em questão poderiam revelar dinâmicas significativas de desigualdade e exclusão social.

O estudo é estruturado sobre três dimensões principais. Primeiramente, detalha-se a natureza singular das condições de mobilidade nas periferias das grandes metrópoles, buscando abordar os principais aspectos dos deslocamentos nos espaços de baixa densidade através de um breve levantamento bibliográfico acerca do tema. Em seguida, traça-se uma análise quantitativa que permite apreciar a questão das desigualdades de mobilidade nas periferias da RMBH. Por fim, procura-se apreciar as estratégias de mobilidade dos habitantes dos espaços em questão através de uma investigação qualitativa que visa a complementar os resultados da análise quantitativa.

As novas condições de mobilidade nas periferias urbanas

As periferias urbanas: espaços moldados pela mobilidade

No contexto de áreas metropolitanas cada vez mais extensas, constata-se uma inflexão nos modelos tradicionais de urbanização. Em um quadro de inúmeras transformações, formas inéditas de mobilidade constroem um novo modo de organização do espaço urbano, caracterizado pela expansão e pela fragmentação. A difusão em massa de meios de transporte individuais motorizados propicia a emergência de novas configurações espaciais nas periferias das metrópoles, em termos de distribuição residencial e de atividades. Os indivíduos instalam-se nas periferias urbanas por motivos diversos, que vão desde a alta valorização imobiliária nas áreas centrais até a escolha de um estilo de vida alternativo ao urbano (Mendonça, Perpétuo e Vargas, 2004MENDONÇA, J.; PERPÉTUO, I. e VARGAS, M. (2004). A periferização da riqueza na metrópole belo--horizontina: falsa hipótese? In: XI SEMINÁRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA. Anais... Belo Horizonte.).

Em uma época em que os deslocamentos intrametropolitanos se multiplicam constantemente, a capacidade de se deslocar torna-se cada vez mais valorizada. A mobilidade consagra-se como uma norma de integração social que formata o acesso ao espaço e aos serviços urbanos. Entretanto, os indivíduos são confrontados de maneiras distintas quanto à mobilidade, o que promove uma dependência de certas categorias da população do sistema de transporte público e da localização das amenidades no espaço urbano.

A questão da desigualdade de mobilidade urbana acentua-se nos espaços de baixa densidade, uma vez que os deslocamentos moldam todas as dimensões dos espaços periféricos. Uma das principais características das áreas em questão consiste na dispersão dos serviços cotidianos, o que leva os moradores dos referidos espaços a se deslocarem através de múltiplos locais. As diversas atividades que compõem a vida habitual dos indivíduos, como local de trabalho, comércio, escola, lazer, saúde, são distribuídas de forma heterogênea no espaço, configurando frequentemente deslocamentos caracterizados por distâncias significativas.

As camadas populares que habitam as periferias metropolitanas são constantemente confrontadas com inúmeros obstáculos de mobilidade cotidiana, como a escassez de atividades em uma escala local e a performance do sistema de transporte público. As condições desfavoráveis de mobilidade suscitam o desenvolvimento de uma série de estratégias, como recurso a meios de transporte alternativos ao automóvel (bicicleta, deslocamentos a pé) ou restrição dos deslocamentos diários em termos não somente de distância, mas também de número de viagens. Assim, os indivíduos das camadas referenciadas inscrevem-se em um contexto de diminuição das oportunidades de integração social (Jouffe et al., 2015JOUFFE, Y.; CAUBEL, D.; FOL, S. e MOTTE-BAUMVOL, B. (2015). Faire face aux inégalités de mobilité. Cybergeo: European Journal of Geography. Disponível em: https://cybergeo.revues.org/26697. Acesso em: 27 mar 2017.
https://cybergeo.revues.org/26697...
).

Rougé (2005)ROUGÉ, L. (2005). "Les «captifs» du périurbain. Voyage chez les ménages modestes installés en lointaine périphérie". In: CAPRON, G.; GUETAT, H. e CORTES, G. Liens et lieux de la mobilité. Paris, Belin. descreve as dificuldades constatadas pelos moradores de baixa renda das periferias que, apresentando uma gama de escolha limitada em termos de localização residencial, são confrontados com inúmeros obstáculos no que se refere aos deslocamentos cotidianos, acarretando um efeito de compensação. Nesse contexto, os indivíduos em questão tornam-se “cativos” das periferias, construindo um modelo de dependência local decorrente das restrições de mobilidade encontradas nos espaços mencionados. Essa camada da população, quando não privilegia deslocamentos na escala local, é submetida ao percurso de longas distâncias para deslocar-se até as áreas centrais de maior densidade.

Da mesma maneira, os residentes das periferias urbanas que possuem um veículo privado se inscrevem em um sistema de “dependência automóvel” (Dupuy, 1999DUPUY, G. (1999). La dépendance automobile: symptômes analyses, diagnostics. Paris, Anthropos.), que se impõe como uma das principais formas de mobilidade nas periferias urbanas. Os ganhos de velocidade e conforto propiciados pelo automóvel permitem aos indivíduos percorrer distâncias mais longas, assim como a estruturação dos deslocamentos de maneira mais flexível. Dessa forma, os moradores das periferias urbanas que não se inscrevem nos padrões de “mobilidade automóvel” são confrontados com situações de exclusão socioespacial em termos de deslocamento e de acesso às amenidades urbanas.

As disparidades de mobilidade descritas são particularmente intensas nas periferias das metrópoles latino-americanas, nas quais o processo de expansão urbana acarretou inúmeras desigualdades socioespaciais. Nesse contexto, convém concentrar-se no processo de desenvolvimento das referidas metrópoles, assim como na evolução dos paradigmas de mobilidade observados nas últimas décadas.

Uma evolução da mobilidade nas cidades latino-americanas

As cidades latino-americanas apresentaram um intenso processo de urbanização na segunda metade do século XX, caracterizado pelo crescimento demográfico exponencial e pela extensão da mancha urbana. Sob essa óptica, o tradicional modelo de expansão urbana das cidades em questão abarca durante décadas uma intensa polarização das áreas centrais que, dotadas de um alto nível de equipamentos e serviços, opõem-se às periferias urbanas caracterizadas pela precariedade da infraestrutura urbanística, principalmente em termos de transporte e atividades econômicas (Sabatani, 2003SABATANI, F. (2003). The Social Spatial Segregation in the Cities of Latin America. Relatório de Pesquisa. Inter-American Development Bank.).

Nesse sentido, as categorias de baixa renda, pela alta valorização imobiliária das áreas centrais, assentaram-se nas periferias urbanas, muitas vezes através de ocupações informais. Ademais, a implantação de habitações sociais de baixa renda contempla frequentemente áreas periféricas não servidas de infraestrutura e distantes dos locais de trabalho dos residentes. Segundo Diogo (2004)DIOGO, E. (2004). Habitação social no contexto da reabilitação urbana da Área Central de São Paulo. São Paulo, Universidade de São Paulo., trata-se de uma forma de crescimento urbano que prima pela separação das diferentes classes sociais no território e pela exigência de ampliação de infraestrutura e de serviços públicos para áreas antes não ocupadas. Como corolário, os moradores das periferias urbanas foram confrontados a longos trajetos com destino às áreas centrais que contêm maior densidade de equipamentos e serviços.

Se os espaços periféricos foram historicamente caracterizados por uma importante dependência das áreas centrais em termos de mobilidade, atualmente, constata-se uma reconfiguração dos deslocamentos efetuados pelos habitantes das periferias (Dureau et al., 2015DUREAU, F., LULLE, T., SOUCHAUD, S. e CONTRERAS, Y. (2015). Mobilités et changement urbain à Bogotá, Santiago et São Paulo. Rennes, Presses Universitaires de Rennes.). Ainda que o modelo centro-periferia domine a organização das cidades latino-americanas, observa-se uma série de transformações nas periferias das aglomerações que indica a emergência de uma nova fase de urbanização dos referidos espaços. O poder de atração das áreas centrais em termos de deslocamentos cotidianos compete com a emergência de centralidades secundárias nas periferias das aglomerações (Mendonça, Perpétuo e Vargas, 2004MENDONÇA, J.; PERPÉTUO, I. e VARGAS, M. (2004). A periferização da riqueza na metrópole belo--horizontina: falsa hipótese? In: XI SEMINÁRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA. Anais... Belo Horizonte.).

Valette (2017)VALETTE, J.-F. (2017). L’ancrage au quotidien dans les colonies populaires de la périphérie de Mexico: une approche par les pratiques et les ressources du quartier. EchoGéo, n. 39. Disponível em: http://echogeo.revues.org/14837. Acesso em: 21 jul 2017
http://echogeo.revues.org/14837...
demonstra que um percentual significativo dos deslocamentos nas periferias populares da Cidade do México é realizado em uma escala local. A recente implantação de comércios e serviços permite a orientação das mobilidades dos habitantes no próprio bairro de residência. Da mesma maneira, a disseminação de condomínios fechados contribui com a reorganização de equipamentos e serviços nas periferias metropolitanas. Salcedo e Torres (2004)SALCEDO, R. e TORRES, A. (2004). Gated communities in Santiago: wall or frontier? International Journal of urban and regional research, n. 28, v. 1, pp. 27-44. apontam que, em Santiago, a emergência de loteamentos fechados induziu à instalação de equipamentos e atividades nas adjacências dos referidos empreendimentos, beneficiando não somente os moradores dos enclaves, mas também a população local de baixa renda. Além disso, certos condomínios são caracterizados pela instalação de atividades, principalmente de comércio e lazer, no interior dos empreendimentos, o que contribui com a estruturação de modelos de mobilidade em uma escala microlocal.

Sob esse enfoque, convém considerar que o acesso aos recursos urbanos pode evoluir sob o efeito de mudanças de acessibilidade espacial, alterações no sistema de transporte e de localização dos recursos. As observações tecidas reclamam um estudo compreensivo da mobilidade urbana, visto que atividades, empregos e serviços não são distribuídos de maneira homogênea no espaço urbano. A capacidade de apreensão do território torna-se, assim, um eixo fundamental no estudo das desigualdades sociais. Fol e Gallez (2014)FOL, S. e GALLEZ, C. (2014). "Social inequalities in urban access. Better ways of assessing transport improvements." In: SCLAR, E., LONNROTH, M., WOLMAR, C. Urban Access for the 21st Century. Finance and governance models for transport infrastructure. Londres, Routledge. sugerem que a questão da mobilidade fosse frequentemente observada apenas sob o ângulo do sistema de transportes, sem considerar demais elementos essenciais para a compreensão das desigualdades e da exclusão social, como as características dos indivíduos (idade, sexo, nível de vida), a distribuição de atividades no espaço urbano, assim como também escolhas e estratégias individuais.

Mobilidade na Região Metropolitana de Belo Horizonte

Desde a década de 1970, os munícipios periféricos da RMBH vêm apresentando taxas de crescimento demográfico mais significativas que o município central: em 2016, 58% da população da região metropolitana residia fora de Belo Horizonte. Conforme exposto por Lobo, Cardoso e Matos (2008)LOBO, C.; CARDOSO, L. e MATOS, R. (2008). Mobilidade pendular e centralidade econômica na Região Metropolitana de Belo Horizonte. In: XVI ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS. Anais... Caxambu., certos municípios que figuravam anteriormente como cidades-dormitório, nas décadas de 1960 e 1970, apresentam forte desenvolvimento de determinadas funcionalidades eminentemente urbanas, o que tem permitido uma reestruturação das atividades econômicas e profissionais no município de residência de uma crescente parcela da população local.

Assim, estudos anteriores (Mendonça, 2002MENDONÇA, J. (2002). Segregação e mobilidade residencial na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Andrade, Mendonça e Diniz, 2015ANDRADE, L., MENDONÇA, J. e DINIZ, A. (2015). Belo Horizonte: transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro, Letra Capital/ Observatório das Metrópoles.) mostram que a estrutura social da RMBH vem se complexificando, com o surgimento de novos agrupamentos sociais, apresentando padrões distintos de localização e interação com o espaço urbano. O surgimento de novos produtos imobiliários destinados a diversas camadas da população, que vão desde condomínios fechados a empreendimentos destinados às camadas de média e baixa renda, suscita uma reconfiguração das dinâmicas socioespaciais das periferias urbanas (Viana Cerqueira, 2015VIANA CERQUEIRA, E. (2015). As novas lógicas de fortificação residencial nas periferias metropolitanas de Belo Horizonte: quais impactos sobre a segregação social? URBE Revista Brasileira de Gestão Urbana, n. 7, v. 2, pp. 195-210.).

No que concerne à mobilidade urbana, centro das investigações do presente estudo, uma série de trabalhos procurou detalhar os padrões de mobilidade domicílio-trabalho na RMBH. Lobo, Cardoso e Matos (2013)LOBO, C.; CARDOSO, L. e MATOS, R. (2008). Mobilidade pendular e centralidade econômica na Região Metropolitana de Belo Horizonte. In: XVI ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS. Anais... Caxambu. demonstram uma diminuição da proporção daqueles que realizam deslocamentos diários entre a periferia e o núcleo metropolitano. Da mesma maneira, Cardoso (2007)CARDOSO, L. (2007). Transporte público, acessibilidade urbana e desigualdades socioespaciais na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Tese de Doutorado. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais. afirma que, no início dos anos 2000, a análise dos deslocamentos pendulares realizados na RMBH já revelava sinais de desconcentração espacial das atividades de trabalho. Entretanto, constata-se que, malgrado a contribuição das investigações mencionadas, poucos estudos dedicaram-se à compreensão das práticas de mobilidade relativas às demais atividades além do trabalho e do estudo na RMBH.

Sob essa óptica, busca-se assinalar, neste artigo, as principais desigualdades de mobilidade dos habitantes da periferia da RMBH através dos dados da pesquisa de origem e destino, realizada pela Fundação João Pinheiro (FJP) em 2012. Em um primeiro momento, justifica-se a análise das mobilidades através de quatro categorias de atividades distintas (comércio, lazer, saúde e negócios). Em seguida, procede-se à avaliação das tendências de mobilidade das diversas categorias da população a partir dos meios de transporte utilizados.

Uma análise segundo motivos de deslocamento

Se o local de emprego constitui uma variável importante para a análise das desigualdades de mobilidade, diversos estudos (Caubel, 2006CAUBEL, D. (2006). Politique de transports et accès à la ville? Une méthode d’évaluation appliquée à l’agglomération lyonnaise. Tese de Doutorado. Lyon, Université Lyon Lumière 2.; Delage, 2012DELAGE, M. (2012). Mobilités pour achats et centralités métropolitaines. Le cas de la métropole parisienne. Tese de Doutorado. Paris, Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.) sugerem que a observação da mobilidade destinada a outras atividades, como o comércio, serviços, lazer, pode revelar igualmente situações de intensa desigualdade. Além disso, os estudos que se restringem à investigação dos deslocamentos domicílio-trabalho excluem uma parcela significativa da população (jovens, desempregados, aposentados). Nesse sentido, procura-se focar, no presente estudo, em quatro tipos de atividades distintas definidas por Caubel (2006)CAUBEL, D. (2006). Politique de transports et accès à la ville? Une méthode d’évaluation appliquée à l’agglomération lyonnaise. Tese de Doutorado. Lyon, Université Lyon Lumière 2. como “a interpretação dos motivos de deslocamento mais recorrentes dos indivíduos – estrutura a minima – independentemente de grupo social, nível de vida ou posição social”2 2 “l’interprétation des motifs de déplacements les plus récurrents – structure a minima – des individus, quelle que soit leur appartenance à des groupes sociaux, leur niveau de vie ou leur position sociale”. : comércio (compras), negócios (banco, loteria, etc.), lazer3 3 Na categoria “lazer”, incluímos igualmente o motivo “refeição”, designado separadamente na pesquisa de origem e destino. (turismo, recreação, visitas, atividades religiosas) e saúde (médico, dentista, exame laboratorial).

Na RMBH, mais de 70% dos deslocamentos4 4 Excluídos os motivos de destino listados como “residência”, “acompanhamento”, “transbordo demorado”, “fazer escala” e “outros”. realizados pelos habitantes das periferias referem-se a atividades de trabalho e de estudo (Figura 1). Excluindo os deslocamentos referentes a trabalho e estudo, as atividades de comércio e lazer correspondem, respectivamente, a 22 e 43% das mobilidades. Observa-se que os deslocamentos mais recorrentes se referem a atividades associadas ao domicílio, como as compras. O importante percentual representado pelos deslocamentos de lazer pode ser explicado, em parte, pela extensão de tal categoria, que abarca desde atividades recreativas até visitas a parentes e amigos. Por sua vez, as atividades negócios e saúde, com, respectivamente, 17 e 19% dos deslocamentos dos habitantes das periferias, são as atividades menos frequentes.

Figura 1
– Os deslocamentos dos habitantes das periferias da RMBH segundo motivo de destino

O acesso aos diversos meios de transporte

Conforme abordado no levantamento bibliográfico realizado anteriormente, a mobilidade nos espaços de baixa densidade é frequentemente associada a um contexto de dependência do automóvel. Sob essa óptica, convém primeiramente analisar as práticas de mobilidade segundo o modo de transporte, no intuito de revelar as principais desigualdades nos deslocamentos das diversas categorias de habitantes das periferias da RMBH.

Sugere-se que o acesso aos meios motorizados de transporte, principalmente individuais, poderia potencializar as desigualdades de mobilidade nas áreas de baixa densidade. Para tanto, três meios de transporte distintos são selecionados: individual (carro, moto), coletivo (ônibus, metrô) e não motorizado (a pé, bicicleta).

De acordo com dados da pesquisa de origem e destino (realizada pela FJP em 2012), 47% das famílias entrevistadas residindo nos municípios periféricos da RMBH possuem, ao menos, um veículo, o que representa um percentual 15% menos elevado em relação a Belo Horizonte. Dos deslocamentos observados,5 5 Todos os motivos de origem dos deslocamentos listados na pesquisa de origem e destino são selecionados (residência, trabalho e outras atividades). Considera-se que os indivíduos poderiam desenvolver estratégias de mobilidade, dependendo do destino de origem, que pode se referir--se a outros locais além de domicílio. Por exemplo, considera-se que parte da população realiza deslocamentos destinados ao comércio a partir do local de trabalho, ao invés do local de residência. tendo como destino um dos quatro tipos de atividades selecionadas, 35, 19 e 46% foram efetuados respectivamente por meios individual, coletivo e não motorizados.

A Figura 2 permite traçar um panorama das desigualdades de mobilidade nas periferias da RMBH através de diversas variáveis (sexo, faixa salarial, número de automóveis do domicílio, faixa etária). Pretende-se verificar como os deslocamentos dos indivíduos diferem de acordo com características socioeconômicas distintas que poderiam ter um impacto sobre as condições de mobilidade da população. Por exemplo, uma mulher de 25 anos que ganha 3 salários mínimos e não dispõe de um automóvel apresentaria condições de mobilidades distintas de um homem de 47 anos que ganha mais de 10 salários mínimos e possui 3 veículos privados.

Figura 2
– Os deslocamentos dos habitantes das periferias da RMBH

As práticas de mobilidade das mulheres caracterizam-se pelo papel que exercem na esfera doméstica, reduzindo o alcance dos deslocamentos a uma escala local. Nas famílias que dispõem de apenas um veículo privado, os cônjuges tendem a “confiscar” (Dureau et al., 2011DUREAU, F., GOUESET, V., LE ROUX, G. e LULLE, T. (2011). Mutations urbaines et inégalités d’accès aux ressources de la ville: quelques enseignements d’une collecte biographique sur les mobilités à Bogotá (Colombie). In: MOBILITES SPATIALES ET RESSOURCES METROPOLITAINES: L’ACCESSIBILITE EN QUESTIONS/11EME COLLOQUE DU GROUPE DE TRAVAIL "MOBILITES SPATIALES ET FLUIDITE SOCIALE" DE L’AISLF. Grenoble.) o automóvel, conduzindo as mulheres a recorrer a meios alternativos de transporte, como o transporte público ou meios não motorizados. De acordo com a pesquisa de origem e destino da RMBH, os indivíduos do sexo masculino recorrem a um veículo particular mais frequentemente, enquanto aproximadamente 45% dos deslocamentos das mulheres que residem nas periferias da RMBH são efetuados, na sua maioria, através de meios não motorizados de transporte.

Evidencia-se igualmente o peso do acesso à mobilidade automóvel. Aproximadamente 60% dos deslocamentos dos indivíduos que não possuem um veículo particular são realizados por um modo não motorizado, enquanto 64% dos habitantes que dispõem de mais de dois veículos no domicílio se deslocam através de um modo de transporte individual. As práticas de mobilidade dos indivíduos que possuem um veículo no domicílio têm um caráter mais diversificado: 50% dos deslocamentos são efetuados através de meios individuais de transporte. Tais famílias são confrontadas com estratégias de mobilidade que compreendem o compartilhamento do automóvel entre os diversos membros do domicílio.

Além disso, os jovens constituem a categoria que recorre mais frequentemente aos meios não motorizados de deslocamento, comportamento fortemente associado à obtenção da carteira de habilitação. Os indivíduos menores de 25 anos recorrem, assim, a modos alternativos de mobilidade, principalmente deslocamentos não motorizados. Lógicas similares de mobilidade são observadas, igualmente, no que se refere aos indivíduos de 60 anos ou mais que, devido às restrições impostas pela idade, tendem a ter uma mobilidade mais limitada.

Constata-se, também, que os deslocamentos não motorizados constituem aproximadamente 50% da mobilidade dos indivíduos que ganham menos de 3SM. Essas camadas recorrem uniformemente ao transporte público (26% dos deslocamentos dos indivíduos ganhando menos de 1SM). Por outro lado, a mobilidade das classes de alta renda (ganhando mais de 10SM) é fortemente associada ao uso do automóvel, que representa um total de 77% dos deslocamentos.

As estratégias de mobilidade dos habitantes das periferias

Se a análise quantitativa tecida anteriormente permite uma primeira exploração das principais desigualdades de mobilidade nas periferias da RMBH, convém realizar, sob outra perspectiva, uma exploração aprofundada das experiências dos habitantes dos referidos espaços. A fim de compreender os aspectos subjetivos do ato de se deslocar, recorremos a uma análise qualitativa que visa a detalhar estratégias e táticas de mobilidade desenvolvidas pelos habitantes das periferias da aglomeração. Coloca-se que a mobilidade e o fato de se deslocar não remetem a simples atividades mecânicas cotidianas, mas a um comportamento que abarca uma série de fatores subjetivos. Tal postulado permite a integração de pistas de reflexão sobre o tema que não são evidenciadas através de uma análise quantitativa dos deslocamentos. Assim, apontam-se as nuanças da relação tecida entre os habitantes das periferias e esses espaços, permitindo a compreensão de mecanismos e estratégias desenvolvidos pelos indivíduos e dissecando-se as diferentes práticas de mobilidade em função de contextos sociais, residenciais e profissionais dos habitantes (Berroir et al., 2015BERROIR, S., DESJARDINS, X., FLEURY, A. e QUÉVA, C. (2015). Lieux et hauts lieux des densités intermédiaires. Plan Urbanisme Construction Architecture (PUCA).).

Para tanto, uma série de entrevistas qualitativas foi realizada com habitantes das periferias da RMBH (Quadro 1). As questões foram divididas em três temas principais abordando: as trajetórias residenciais dos habitantes; as práticas de mobilidade dos habitantes; e, por fim, a evolução da concentração de atividades e serviços nos municípios de residência. Procurou-se igualmente abarcar diversos municípios da RMBH (Nova Lima, Ribeirão das Neves, Vespasiano, Confins, Betim, Santa Luzia e Sarzedo), a fim de se aferir a diversidade social e espacial das referidas áreas.

Quadro 1
– Síntese das entrevistas realizadas nas periferias da RMBH

Na última parte da presente análise, abordam-se, em um primeiro momento, as principais estratégias de mobilidade utilizadas pelos habitantes das periferias para otimizar os deslocamentos diários. Em seguida, procura-se apreciar as experiências de mobilidade de diversas categorias socioeconômicas, apontando-se as principais desigualdades em termos de deslocamento e acesso às atividades no espaço urbano.

Morar nas periferias: otimizar e adaptar os deslocamentos diários

Habitar em áreas de baixa densidade de equipamentos requer, frequentemente, uma significativa organização dos deslocamentos diários (Berroir et al., 2015BERROIR, S., DESJARDINS, X., FLEURY, A. e QUÉVA, C. (2015). Lieux et hauts lieux des densités intermédiaires. Plan Urbanisme Construction Architecture (PUCA).). Os habitantes das periferias conjugam mobilidades motivadas por atividades distintas no intuito de otimizar a duração dos trajetos, assim como a utilização dos meios de transporte disponíveis. Trata-se muitas vezes de compensar a ausência de recursos dos espaços periféricos, em função seja da distribuição de equipamentos, seja do sistema de transporte público. As entrevistas de campo evidenciam que as diversas categorias de moradores das periferias optam pela realização de deslocamentos conjugando as áreas de maior (local de trabalho, atividades) e menor (local de residência) densidade em serviços.

Os moradores de baixa renda que trabalham em setores centrais caracterizados pela alta densidade em serviços procuram otimizar os deslocamentos através do local de trabalho. As referidas populações, frequentemente confrontadas com longos trajetos domicílio-trabalho, mobilizam diversas estratégias no intuito de conjugar diferentes tipos de locomoção. Assim, os deslocamentos induzidos pelo local de trabalho potencializam o acesso dos moradores das periferias às atividades observadas.

Ah! tudo que é banco, advogado, tudo que é burocrático é aqui no centro. Eu trabalho aqui, então eu aproveito meu deslocamento, porque quando eu saio do trabalho tudo já está fechado. E também eu tenho a impressão que tudo é mais rápido aqui em Belo Horizonte. (Fernanda, empregada doméstica, 55 anos, Betim)

Da mesma forma, muitos associam os deslocamentos profissionais àqueles motivados pelo comércio, principalmente alimentar. Assim, os moradores aspiram a uma conjugação do trajeto de retorno do trabalho à mobilidade relativa às atividades de comércio. Para a maioria dos indivíduos de baixa renda entrevistada, o acesso limitado a um veículo privado é frequentemente evocado no intuito de justificar o recurso à esfera local.

Fazer compra, eu faço em Ribeirão das Neves mesmo, o que tem aqui tem tudo lá, lojas, supermercado, né. Geralmente eu vou a pé, o supermercado é perto né, então dá pra ir a pé. A gente leva o carrinho, vai puxando o carrinho. (Raquel, 55 anos, empregada doméstica, Ribeirão das Neves)

A mesma lógica aplica-se também aos moradores de alta renda dos condomínios do eixo Sul da RMBH. Os indivíduos entrevistados alegam que as distâncias a serem percorridas são consideradas um obstáculo de mobilidade cotidiana. Nesse sentido, a necessidade de recurso a meios motorizados de transporte é interpretada como um fator negativo: certos elementos característicos das áreas centrais, como os deslocamentos não motorizados e a proximidade de serviços, são expostos como objetos de valorização dos moradores das periferias de alta renda da RMBH.

Depende das oportunidades que eu tenho. E eu canto no coral da Copasa, em Belo Horizonte, então sempre eu tento fazer as compras lá. Como meu coral é às 18:30 então eu tento sair daqui 15:30 ou 16 horas, fazer as compras, ir para o coral e voltar pra casa. Eu estou me organizando, morar em condomínio faz a gente ficar superdisciplinada. Porque aqui, se você não se organizar, você vai ter que sair toda hora do condomínio, andar pelo menos 5, 10 km pra comprar pão, leite, tem que ser disciplinado e organizado pra viver fácil [...] Saindo do condomínio tem os supermercados grandes, né. A questão que eu sinto mais falta é a questão de sacolão, que era pertinho da minha casa e agora é longe. Mas eu estou aprendendo como preservar verduras, embalar no plástico, que dura mais de uma semana. Coisa que eu não sabia. Coisas que a gente acaba aprendendo, congelar pão, carnes, etc. Ter uma despensa. (Helena, 66 anos, esteticista, Nova Lima)

Sob outra perspectiva, o aumento significativo da oferta de comércios e serviços conduz a uma restruturação das mobilidades dos habitantes desses espaços, pautada por lógicas de redistribuição dos deslocamentos em uma escala local. Esse cenário é observado principalmente no município de Nova Lima, cuja ocupação caracteriza-se pela difusão intensa de condomínios fechados.

Eu moro em um condomínio em Nova Lima. Hoje tem tudo lá, mas há 25 anos eu fazia aqui e no Carrefour do BH Shopping. Agora hoje não, perto da minha casa tem tudo. Farmácia, padaria, salão de beleza, supermercado. Se eu não quiser ir à cidade eu não preciso. (Letícia, psicóloga, 68 anos, Nova Lima)

A mobilidade limitada das camadas de baixa renda

Os indivíduos de baixa renda entrevistados descrevem os principais obstáculos associados às condições limitadas de mobilidade nas periferias da RMBH. Esses moradores mostram um acúmulo de limitações em termos de mobilidade, decorrentes de diversos fatores, como baixo capital financeiro, dependência dos meios coletivos ou não motorizados de transporte e concentração de atividades em determinadas áreas do espaço urbano.

Os deslocamentos motivados pela saúde têm como principal destino o centro da RMBH. A distribuição de tais equipamentos no espaço urbano é orientada por uma lógica de implantação de polos de atividades, visando a atender a um contingente mais elevado da população. Entretanto, a intensa concentração de equipamentos promove uma diminuição da acessibilidade de certas categorias da população, que se veem obrigadas a realizar longos trajetos (Lucas, 2006LUCAS, K. (2006). Providing transport for social inclusion within a framework for environmental justice in the UK. Transportation Research Part, n. 40, pp. 801-809.). Segundo a pesquisa de origem e destino, 42% dos deslocamentos dos indivíduos de baixa renda (menos de 3 SM) para fins de saúde efetuam-se em transporte coletivo.

Eu sou transplantado, então eu tenho que ir ao médico uma vez por semana. Tudo que eu preciso de saúde eu tenho que ir no centro, porque aqui é caótico. Antes eu pegava a van da prefeitura, aí eu tinha que acordar às 4:30 da manhã pra chegar no centro por volta de 7:30. Hoje em dia eu pego o ônibus porque é mais rápido. (Geison, 59 anos, aposentado, Betim)

Da mesma maneira, as categorias de baixa renda tendem a se orientar em torno das atividades do domicílio, uma vez que seu capital financeiro não permite a realização das mesmas atividades efetuadas pelas camadas de alta renda, como atividades culturais (museus, cinema, teatro) ou esportivas (Rougé, 2005ROUGÉ, L. (2005). "Les «captifs» du périurbain. Voyage chez les ménages modestes installés en lointaine périphérie". In: CAPRON, G.; GUETAT, H. e CORTES, G. Liens et lieux de la mobilité. Paris, Belin.). Nesse sentido, os baixos níveis de mobilidade e a escassez de meios financeiros traduzem-se em uma importante limitação das práticas de lazer dos indivíduos em questão. Uma grande parte dos entrevistados afirma ter pouca ou nenhuma atividade de lazer e, quando existe alguma, inscreve-se predominantemente em uma esfera local: mais de 55% dos deslocamentos para lazer dos moradores das periferias que ganham menos de 3 SM são efetuados através de meios de transporte não motorizados.

Ah! eu não tenho atividade de lazer, eu não tenho tempo! Eu vou na igreja uma vez por semana, é do lado da minha casa. Quando eu saio do trabalho eu não tenho vontade de voltar no centro pra ir no cinema, esse tipo de coisa. Eu vou no clube perto da minha casa, às vezes, mas é uma vez na vida outra na morte. (Raquel, 43 anos, empregada doméstica, Ribeirão das Neves)

Nesse sentido, as dificuldades de acesso decorrentes do sistema de transporte público limitam a mobilidade dos indivíduos de baixa renda, que se tornam tributários desse modo de transporte. Um dos principais argumentos utilizados pelos moradores para justificar as limitações de mobilidade constatadas relação é a distância-tempo para o acesso às atividades de lazer situadas no centro. Carmen (45 anos, zeladora, Vespasiano) aponta que a escassez de alternativas ao sistema de transporte público conduz a uma restrição de seus deslocamentos para o lazer.

Shopping de jeito nenhum! Eu faço o seguinte, se eu precisar ir no shopping eu tenho que fazer o mesmo trajeto que pra ir pro trabalho, mas quando eu penso que eu tenho que pegar quatro conduções no shopping aí eu já desisto, não vou. Se eu preciso de alguma coisa eu já vou no centro. Eu de verdade, pelo meu trajeto, eu desisto de passear, de sair, eu fico em casa mesmo. (Carmen, 45 anos, zeladora, Vespasiano)

Dentre as famílias de baixa renda que possuem um veículo particular, o uso do automóvel é restrito às atividades de lazer, uma vez que a manutenção do veículo para uma utilização cotidiana se torna onerosa. João (44 anos, motorista, Nova Lima) utiliza a moto para os deslocamentos motivados para o trabalho e o automóvel para passeios com a família durante o final de semana:

Pra trabalhar, eu uso a moto e pro lazer, por exemplo pra ir no cinema com meus filhos, eu pego o carro. Então o carro acaba sendo mais no final de semana mesmo. A gente tem sempre que fazer o máximo de economia, não é? (João, 44 anos, motorista, Nova Lima)

As camadas de alta renda e a mobilidade à la carte

As práticas de mobilidade das camadas de alta renda são muitas vezes justificadas pelas escolhas individuais. Constata-se que, malgrado a existência de uma oferta significativa de atividades em uma escala local, a proximidade do domicílio não é o principal fator de orientação dos deslocamentos da referida categoria.

No que se refere aos deslocamentos motivados pela saúde, fatores como a “qualidade do serviço” e os “hábitos” norteiam as práticas em questão. Letícia ressalta que, não obstante o franco desenvolvimento do setor do Seis Pistas, que se situa nas adjacências do município de Nova Lima, ela prefere percorrer longas distâncias até as áreas centrais da aglomeração.

Eu conservei os meus médicos todos aqui em BH, com exceção do Biocor, alguns já atendem lá. Mas no geral eu prefiro continuar a ir em BH mesmo, porque eu já conheço eles, já estou acostumada. (Letícia, 68 anos, psicóloga, Nova Lima)

Além disso, as camadas de alta renda inscrevem-se em uma lógica de escolha à la carte também no que concerne aos deslocamentos motivados pelo lazer. Aproximadamente 80% dos deslocamentos de tais indivíduos são realizados através de um automóvel. Assim, as mobilidades das camadas de alta renda tecem-se a partir de escolhas individuais: os habitantes preferem, voluntariamente, realizar deslocamentos mais longos no intuito de acessar atividades em particular (saídas ao cinema, museus, etc.), frequentemente situadas no centro.

Além disso, a disseminação de condomínios fechados nas periferias metropolitanas concorre com a reestruturação das dinâmicas de mobilidade dos habitantes de alta renda. Em Nova Lima, o desenvolvimento recente do setor contribuiu com a atração de uma miríade de equipamentos esportivos e de lazer, principalmente no interior dos condomínios. Nesse contexto, configuram-se novas lógicas de mobilidade que se inscrevem na esfera domiciliar no interior das residências fortificadas. Ao contrário das lógicas observadas através dos relatos da população de baixa renda, a limitação dos deslocamentos constitui, nesse caso, uma escolha e não um obstáculo.

Olha tem tudo ao lado, mas como eu sou muito caseira eu tenho tudo em casa, eu tenho piscina, sauna, galinha, planta, tenho telão. Eu também caminho dentro do condomínio. Eu optei por um estilo de vida e me adaptei a ele porque as circunstâncias me possibilitaram. (Letícia, 68 anos, psicóloga, Nova Lima)

Considerações finais

Se, nas últimas décadas, as periferias metropolitanas foram alvo de inúmeras transformações, como a implantação de novos empreendimentos imobiliários e a disseminação de equipamentos urbanos, tais evoluções não contribuem com a redução das desigualdades de mobilidade nas periferias da RMBH. As análises quantitativas e as entrevistas realizadas em campo, apresentadas nesta pesquisa, expõem não somente a diversidade de comportamentos de mobilidade observados, mas também a existência significativa de desigualdades, malgrado a recente evolução das periferias urbanas da RMBH.

Além disso, a análise dos trajetos por motivo de destino evidencia comportamentos de mobilidade socialmente marcados, assim como as táticas desenvolvidas pelos habitantes de otimizar o acesso às atividades. As práticas das classes de alta renda desenham-se a partir de escolhas individuais, enquanto os deslocamentos das camadas de baixa renda são orientados por obstáculos de mobilidade, como o acesso limitado a um veículo particular e a localização das amenidades urbanas. Revela-se que os deslocamentos motivados por atividades diversas, além de trabalho e estudo, podem igualmente engendrar uma série de desigualdades no que se refere à mobilidade urbana.

Os resultados assinalados permitem a construção de uma reflexão crítica sobre as diversas maneiras de pensar e planejar os espaços periféricos das grandes aglomerações. Ainda que tais espaços sejam submetidos a uma nova fase de evoluções, no que concerne a implantação de equipamentos e serviços, as práticas de mobilidade dos habitantes das periferias ainda seguem um padrão de intensa dependência das áreas mais densas da metrópole. Trata-se, nesse sentido, de analisar as margens das aglomerações a partir de “maturidade” (Bonnin-Oliveira, 2012BONNIN-OLIVEIRA, S. (2012). Les “pôles secondaires” dans la réorganisation des mobilités : Maturité et durabilité des espaces périurbains ? Consultation de recherche PUCA -Ministère de l’Ecologie, de l’Energie, du Développement Durable et de l’Aménagement du territoire.) desses espaços, como a emergência de centralidades periféricas que podem potencialmente estruturar as práticas de mobilidade cotidiana dos habitantes. A complexidade dos modos de habitar as franjas das metrópoles convida a uma reorientação das políticas urbanas que abarquem as evoluções desses espaços, que se encontram em constante transformação.

Referências

  • ANDRADE, L., MENDONÇA, J. e DINIZ, A. (2015). Belo Horizonte: transformações na ordem urbana Rio de Janeiro, Letra Capital/ Observatório das Metrópoles.
  • BERROIR, S., DESJARDINS, X., FLEURY, A. e QUÉVA, C. (2015). Lieux et hauts lieux des densités intermédiaires Plan Urbanisme Construction Architecture (PUCA).
  • BONNIN-OLIVEIRA, S. (2012). Les “pôles secondaires” dans la réorganisation des mobilités : Maturité et durabilité des espaces périurbains ? Consultation de recherche PUCA -Ministère de l’Ecologie, de l’Energie, du Développement Durable et de l’Aménagement du territoire.
  • CARDOSO, L. (2007). Transporte público, acessibilidade urbana e desigualdades socioespaciais na Região Metropolitana de Belo Horizonte Tese de Doutorado. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais.
  • CAUBEL, D. (2006). Politique de transports et accès à la ville? Une méthode d’évaluation appliquée à l’agglomération lyonnaise Tese de Doutorado. Lyon, Université Lyon Lumière 2.
  • DELAGE, M. (2012). Mobilités pour achats et centralités métropolitaines. Le cas de la métropole parisienne Tese de Doutorado. Paris, Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.
  • DIOGO, E. (2004). Habitação social no contexto da reabilitação urbana da Área Central de São Paulo São Paulo, Universidade de São Paulo.
  • DUPUY, G. (1999). La dépendance automobile: symptômes analyses, diagnostics Paris, Anthropos.
  • DUREAU, F., GOUESET, V., LE ROUX, G. e LULLE, T. (2011). Mutations urbaines et inégalités d’accès aux ressources de la ville: quelques enseignements d’une collecte biographique sur les mobilités à Bogotá (Colombie). In: MOBILITES SPATIALES ET RESSOURCES METROPOLITAINES: L’ACCESSIBILITE EN QUESTIONS/11EME COLLOQUE DU GROUPE DE TRAVAIL "MOBILITES SPATIALES ET FLUIDITE SOCIALE" DE L’AISLF. Grenoble.
  • DUREAU, F., LULLE, T., SOUCHAUD, S. e CONTRERAS, Y. (2015). Mobilités et changement urbain à Bogotá, Santiago et São Paulo Rennes, Presses Universitaires de Rennes.
  • FOL, S. e GALLEZ, C. (2014). "Social inequalities in urban access. Better ways of assessing transport improvements." In: SCLAR, E., LONNROTH, M., WOLMAR, C. Urban Access for the 21st Century. Finance and governance models for transport infrastructure Londres, Routledge.
  • JOUFFE, Y.; CAUBEL, D.; FOL, S. e MOTTE-BAUMVOL, B. (2015). Faire face aux inégalités de mobilité. Cybergeo: European Journal of Geography Disponível em: https://cybergeo.revues.org/26697 Acesso em: 27 mar 2017.
    » https://cybergeo.revues.org/26697
  • LOBO, C.; CARDOSO, L. e MATOS, R. (2008). Mobilidade pendular e centralidade econômica na Região Metropolitana de Belo Horizonte. In: XVI ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS. Anais.. Caxambu.
  • LOBO, C.; CARDOSO, L. e MAGALHÃES, D. (2013). Acessibilidade e mobilidade espaciais da população na Região Metropolitana de Belo Horizonte: análise com base no censo demográfico de 2010. Cadernos Métropole. São Paulo, n. 15, v. 30, pp. 513-533.
  • LUCAS, K. (2006). Providing transport for social inclusion within a framework for environmental justice in the UK. Transportation Research Part, n. 40, pp. 801-809.
  • MENDONÇA, J. (2002). Segregação e mobilidade residencial na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • MENDONÇA, J.; PERPÉTUO, I. e VARGAS, M. (2004). A periferização da riqueza na metrópole belo--horizontina: falsa hipótese? In: XI SEMINÁRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA. Anais.. Belo Horizonte.
  • NETO, A. (2009). Deslocamentos urbanos e desigualdades sociais: um estudo do movimento diário da população de Belo Horizonte Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais.
  • ROUGÉ, L. (2005). "Les «captifs» du périurbain. Voyage chez les ménages modestes installés en lointaine périphérie". In: CAPRON, G.; GUETAT, H. e CORTES, G. Liens et lieux de la mobilité. Paris, Belin.
  • SABATANI, F. (2003). The Social Spatial Segregation in the Cities of Latin America. Relatório de Pesquisa. Inter-American Development Bank.
  • SALCEDO, R. e TORRES, A. (2004). Gated communities in Santiago: wall or frontier? International Journal of urban and regional research, n. 28, v. 1, pp. 27-44.
  • VALETTE, J.-F. (2017). L’ancrage au quotidien dans les colonies populaires de la périphérie de Mexico: une approche par les pratiques et les ressources du quartier. EchoGéo, n. 39. Disponível em: http://echogeo.revues.org/14837 Acesso em: 21 jul 2017
    » http://echogeo.revues.org/14837
  • VIANA CERQUEIRA, E. (2015). As novas lógicas de fortificação residencial nas periferias metropolitanas de Belo Horizonte: quais impactos sobre a segregação social? URBE Revista Brasileira de Gestão Urbana, n. 7, v. 2, pp. 195-210.
  • 1
    Os resultados apresentados são provenientes da tese de doutorado Les inégalités d’accès aux ressources urbaines dans les franges métropolitaines de Lille et Belo Horizonte (Brésil), em curso na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e Universidade Federal de Minas Gerais.
  • 2
    “l’interprétation des motifs de déplacements les plus récurrents – structure a minima – des individus, quelle que soit leur appartenance à des groupes sociaux, leur niveau de vie ou leur position sociale”.
  • 3
    Na categoria “lazer”, incluímos igualmente o motivo “refeição”, designado separadamente na pesquisa de origem e destino.
  • 4
    Excluídos os motivos de destino listados como “residência”, “acompanhamento”, “transbordo demorado”, “fazer escala” e “outros”.
  • 5
    Todos os motivos de origem dos deslocamentos listados na pesquisa de origem e destino são selecionados (residência, trabalho e outras atividades). Considera-se que os indivíduos poderiam desenvolver estratégias de mobilidade, dependendo do destino de origem, que pode se referir--se a outros locais além de domicílio. Por exemplo, considera-se que parte da população realiza deslocamentos destinados ao comércio a partir do local de trabalho, ao invés do local de residência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2017
  • Aceito
    2 Dez 2017
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Rua Ministro de Godói, 969 - 4° andar - sala 4E20 - Perdizes, 05015-001 - São Paulo - SP - Brasil , Telefone: (55-11) 94148.9100 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadernosmetropole@outlook.com