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O rio, a ferrovia e a marginal: infraestrutura e ambiente na ocupação da várzea do Tietê em São Paulo

Resumo

O presente artigo aborda a ocupação de áreas ambientalmente sensíveis na metrópole paulistana, tendo como objetivo explicar a materialização histórica do território de várzea entre Lapa e Barra Funda, que teve como elementos estruturantes o rio, a ferrovia e as marginais. Por meio da construção da narrativa histórica e do exercício da cartografia interpretativa, este artigo explica o surgimento da paisagem ambiental urbana sobre várzea, revelando seus elementos estruturantes e sua ocupação, condicionados por diferentes lógicas, elucidando sua condição material atual, base para a aplicação de instrumentos urbanísticos contemporâneos. Como resultado, destaca-se a produção de uma paisagem fragmentada, bem como apresenta-se a construção de alegorias que articulam uma reflexão sobre o papel da infraestrutura na ocupação do território natural.

forma urbana; paisagem ambiental urbana; urbanização; infraestrutura; historiografia urbana

Abstract

This paper approaches the ocupation of environmentally sensitive areas in the metropolis of São Paulo, aiming to explain the historical materialization of the floodplain between the neighborhoods of Lapa and Barra Funda, which had the river, the railway and the highways as structuring elements. Through the construction of a historical narrative, mediated by the exercise of interpretative cartography, this paper explains the emergence of the urban landscape on the floodplain, revealing its structuring elements and its occupation, conditioned by different rationalities, and elucidating its current material condition, the basis for the application of contemporary urban instruments. As a result, we highlight the creation of a fragmented landscape and present the allegories that articulate a reflection on the role of infrastructure in the occupation of the natural territory.

urban form; urban landscape; urbanization; infrastructure; urban historiography

Introdução: o Tietê e sua várzea como paisagem urbana

Materializada sobre a várzea do então meandrante rio Tietê, a área entre Lapa e Barra Funda faz parte de um sistema de paisagem com lógicas próprias – que originalmente acomodava as cheias do rio e hoje se caracteriza por ser um espaço urbano dinâmico em reestruturação.

O rio Tietê atravessa a porção norte da cidade de São Paulo, compreendida por uma ampla várzea de orientação leste-oeste, localizada a 725m acima do nível do mar, que atualmente se encontra completamente manipulada por intervenções humanas. Originalmente, o sistema natural de drenagem composto por meandros sinuosos formou zonas inundáveis, compostas por lagoas e ilhas fluviais. As águas carregavam solo aluvial que se depositava nas curvas do seu leito e dos meandros, estruturas naturais responsáveis por desacelerar as águas (Pessoa, 2003PESSOA, D. F. (2003). Utopias e cidades: proposições. São Paulo, Fapesp e AnnaBlume). Esse processo natural foi progressivamente substituído durante o processo de urbanização e ocupação da cidade.

Este artigo tem como objetivo explicar a materialização histórica do território entre Lapa de Baixo, Água Branca e Barra Funda, tendo como elementos estruturantes o rio, a ferrovia e as marginais. O rio Tietê e sua várzea determinam as lógicas da paisagem natural desse lugar, enquanto a ferrovia pode ser entendida como a primeira tentativa de impor uma racionalidade técnica sobre a paisagem natural. Ao longo do século XX, as características naturais da várzea foram manipuladas ao extremo, em nome do saneamento, do progresso, da eficiência territorial e do desenvolvimento econômico.

O processo de infraestrutura e ocupação dessa porção da várzea não foi uma exceção, mas sua singularidade se dá no fato de que nunca foi totalmente ocupada, apesar do forte eixo ferroviário, que funciona como uma espinha dorsal infraestrutural desde o final do século XIX, e da subsequente construção de uma série de intervenções rodoviárias que compõem a marginal Tietê.

Por meio da construção de uma narrativa histórica e do exercício de cartografia interpretativa, explicamos o surgimento da paisagem urbana sobre várzea, revelando seus elementos estruturantes e sua ocupação, condicionados por diferentes lógicas, elucidando sua condição material atual, que é base para a aplicação de instrumentos urbanísticos contemporâneos. Como resultado, apresentamos a construção de figuras conceituais espaciais, alegorias que medeiam uma reflexão sobre o papel da infraestrutura na ocupação do território natural.

A ferrovia como plataforma para a industrialização

Desde a sua fundação, São Paulo estabeleceu-se entre rios e, consecutivamente, foi-se deflagrando um processo de negação de sua paisagem natural. No caso da várzea do Tietê, a conquista do território, originalmente sob domínio do rio, deu-se inicialmente por intermédio da produção agrícola e de atividades extrativistas na própria várzea (Brunelli et al., 2006BRUNELLI, A. S. U. et al. (2006). Barra Funda. São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico.).

Inicialmente, as áreas inundáveis entre Lapa e Barra Funda serviam de passagem para outras vilas, como a Freguesia do Ó, localizada a noroeste do assentamento original colonial, entre a vila de São Paulo e as rotas bandeirantes que partiam para o interior do País.

O início da ocupação da área remete-se ao século XVIII, apresentando uma forte sinergia com as dinâmicas naturais da várzea, em um momento em que se estabeleceram sítios e chácaras de pequena produção agrícola, após a promulgação da lei de terras em 1850,1 1 Lei imperial n. 601 definiu o regime de propriedade de terras no país, deslegitimando posse ou ocupação como uma forma legal de propriedade. A partir de então, a terra deveria ser transferida por meio de operações registradas de compra e venda (Rolnik, 1997). quando a propriedade de terra passou a ser registrada no País (Rolnik, 1997ROLNIK, R. (1997). A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo, Studio Nobel.). Naquele momento, a região da Lapa destaca-se, na primeira década do século XIX, como local importante de passagem para o escoamento da produção de cana-de-açúcar proveniente do interior paulista, com a construção da ponte do sítio do Coronel Anastácio (Santos, 1980SANTOS, W. D. (1980). Lapa. São Paulo, Prefeitura do Município de São Paulo.), a oeste do território objeto dessa pesquisa.

O segundo passo para a transformação desse território natural foi a construção da ferrovia (Augusto e Mendes, 2005AUGUSTO, M. L. J. P. e MENDES, S. P. R. (2005). Memórias de uma inglesa. São Paulo, Clanel.), no limite da várzea, interrompendo afluentes do rio Tietê e criando uma barreira artificial para o desenvolvimento urbano, dando origem a uma paisagem urbana dividida na cidade (Marchi, 2008MARCHI, P. M. D. (2008). “Signos de uma paisagem des(cons)truída”. In: KON, S. e DUARTE, F. (eds.). A (des)construção do caos. São Paulo, Perspectiva.).

A partir do estabelecimento da ferrovia, as várzeas dos rios Tietê e Tamanduateí passaram a ser consideradas espaços secundários, materializados em uma promiscuidade de funções e formas, enquanto a “cidade”, o espaço primário, localizava-se do outro lado dos trilhos. Marchi (ibid.) enquadra essa dicotomia como espaços de produção e espaços de fruição.

Os bairros industriais estabelecidos sobre as várzeas surgiram como espaços urbanos periféricos, fora do que então se considerava a cidade, lugares nos quais todos os tipos de funções indesejadas, atividades que não se encaixavam nos espaços primários, encontravam seu espaço. Marchi (ibid.) argumenta que essas áreas se materializaram como espaços autônomos, desconsiderando a racionalidade da cidade, adquirindo uma inerente flexibilidade e informalidade e também uma improvisada paisagem urbana, materializada, por sua vez, pela decadência ambiental das várzeas.

Toledo (2004)TOLEDO, B. L. D. (2004). São Paulo: três cidades em um século. São Paulo, Duas Cidades e Cosacnaify. explica essa mudança como uma particular sucessão de paisagens urbanas, baseada nos materiais das tipologias mais comuns, descrevendo a mudança na materialidade da cidade como uma transformação de vila jesuítica feita de taipa a uma área urbana consolidada no final do século XIX, como uma eclética cidade feita de tijolos, aludindo, à influência dos imigrantes europeus e à mistura de estilos e técnicas de construção, o estabelecimento de manufaturas ao longo das várzeas, como as olarias.

No esquema da década de 1900 (Figura 1), a rua do Bosque na Barra Funda aparece como um indutor da ocupação e um fragmento de malha ortogonal que já aparece na Lapa de Baixo, projetado de forma contígua ao tecido da Lapa, localizado ao sul da ferrovia. Nessa época, o bairro do Bom Retiro já se estabelecia como uma expansão ortogonal do centro da cidade, definindo o limite do desenvolvimento urbano na várzea até então. A vila Anastácio, um bairro operário primeiramente ocupado por trabalhadores da ferrovia, foi loteada em 1919 e define o limite do objeto desta análise.

Figura 1
– Cartografia interpretativa da primeira década do século XX

Andrade (1993)ANDRADE, C. R. M. D. (1993). A peste e o plano: o urbanismo sanitarista do engenheiro Saturnino de Brito. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo. aponta que, desde o fim do século XIX, havia projetos para a urbanização da várzea do Tietê, dentro das discussões das reformas sanitárias. Tanto as inundações constantes quanto as demandas por saneamento deflagraram propostas consecutivas para controlar o rio. Em 1894, o comitê de Saneamento do estado de São Paulo, sob as orientações de João Pereira Ferraz, iniciou as primeiras canalizações do rio Tietê, como o canal de Inhaúma e o Canal Anastácio, com 1.200m e 620m de extensão respectivamente (ibid.).

O autor elenca as três propostas diferentes e contrastantes que foram elaboradas para a canalização do Tietê e sua várzea, ao longo da década de 1920.

Em 1922, o engenheiro Fonseca Rodrigues, da Escola Politécnica, projetou um canal trapezoidal, margeado por avenidas e um lago adjacente, localizado na margem norte do rio, funcionando como mecanismo de controle de inundações e de retenção da água das chuvas.

Em 1923, a Comissão de Melhoramentos do Tietê, sob as orientações do engenheiro Ulhôa Cintra, definiu uma proposta diversa, que consistia na criação de parkways ao longo do canal, propondo um sistema de espaços abertos ao longo da várzea, com um lago no Campo de Marte, que deveria funcionar tanto como área de lazer, quanto para o controle das cheias.

Finalmente, em 1924, a proposta do engenheiro sanitarista Saturnino de Britto definiu a canalização através de uma seção trapezoidal ladeada por dois diques, aumentando a área inundável, se comparada às outras propostas, tanto na seção do canal quanto em dois grandes lagos e um reservatório localizado na Penha; propunha, também, que as áreas de várzea entre a Lapa e a Barra Funda fossem aterradas e parceladas.

O projeto de Saturnino de Brito foi amplamente criticado ao propor diques, visto que o eminente risco de sua ruptura poderia diminuir o valor da terra nas várzeas (Zmitrowicz e Borghetti, 2009ZMITROWICZ, W. e BORGHETTI, G. (2009). Avenidas 1950-2000: 50 Anos de Planejamento da Cidade de São Paulo. São Paulo, Edusp.), o que explica a mentalidade da época, vendo na área tanto um problema sanitário quando uma oportunidade imobiliária para a expansão urbana.

Apesar de mostrar estratégias projetuais distintas, todas as propostas dos anos 1920 de canalização mostram uma forte lógica sanitária, almejando as preocupações constantes em relação ao ritmo da industrialização, a demanda por coleta e tratamento de esgoto e a condição de insalubridade apresentada nas várzeas já urbanizadas, principalmente nas áreas em que se encontravam os bairros mais densamente ocupados.2 2 As epidemias que ocorreram entre o final do século XIX e início do século XX foram elencadas por Pessoa (2003). São elas: 1875 – varíola, morfeia, febre amarela; 1893-1898 – varíola, tuberculose, febre amarela; 1894 – cólera; 1896 – tuberculose; 1901 – peste bubônica; 1908 – varíola; 1918 – gripe espanhola.

Ao longo dos anos 1910 e 1920, redes de infraestrutura foram organizadas pelo estado, seguindo a rápida expansão urbana. Nesse período, a várzea do rio Tietê recebeu o que é, até hoje, um dos principais emissários de esgoto da cidade (Figura 2), construído paralelamente à ferrovia, na porção sul da várzea do Tietê (ibid.).

Figura 2
– Cartografia interpretativa da década de 1930

Apesar de outras áreas da várzea terem sido ocupadas intensamente, como as regiões a leste da cidade (Brás, Belém) e na confluência dos rios Tietê e Tamanduateí (Bom Retiro), até a década de 1930 havia apenas uma incipiente ocupação entre a Lapa e a Barra Funda, como se pode observar na Figura 2. Edificações aconteciam ao longo dos eixos viários existentes, como a avenida Santa Marina, a rua Thomas Edison e a rua do Bosque. As áreas entre as estações e as paradas de trem apresentavam maior densidade de ocupação.

Marginal como armadura que estrutura a metrópole

Cercada por urbanização extensiva, a várzea do Tietê permaneceu por muito tempo como uma periferia interna, espaço desocupado, de passagem.

A partir da década de 1940, iniciaram-se os trabalhos de retificação e canalização do rio Tietê, alterando drasticamente sua forma, mas não influenciando, num primeiro momento, a ocupação da várzea, que se dava majoritariamente ao longo do eixo ferroviário.

Entre a década de 1940 e o final da década de 1960, a várzea do Tietê transformou-se em um grande canteiro de obras, que se iniciou com a canalização do rio e a drenagem da várzea e dos meandros, completadas ao longo dos anos 1950 (Pessoa, 2003PESSOA, D. F. (2003). Utopias e cidades: proposições. São Paulo, Fapesp e AnnaBlume). Essa intervenção em larga escala no Tietê possibilitou a construção das vias expressas, idealizadas desde a década de 1930 pelo Plano de avenidas e finalizadas em 1967 (Zmitrowicz e Borghetti, 2009ZMITROWICZ, W. e BORGHETTI, G. (2009). Avenidas 1950-2000: 50 Anos de Planejamento da Cidade de São Paulo. São Paulo, Edusp.).

Elaborado em 1930, o Plano de Avenidas significou uma tentativa de conquistar o território da várzea como um espaço primário, trazendo o rigor do desenho da “cidade” para esse espaço natural, considerado secundário, unificando-o. Seu texto trazia normas para a distribuição, a acessibilidade, a complementação do sistema viário, com a previsão de transporte público de massa. Um dos principais elementos do plano era o sistema de parkways, que promovia, ao longo dos rios Tietê e Pinheiros, um sistema de áreas verdes, trazendo novas centralidades para a cidade, ao estabelecer importantes funções e equipamentos em suas margens. O Plano trazia a cidade – que então se encontrava rapidamente descendo as colinas – para o encontro dos rios.

Figura 3
– A drástica transformação da várzea na década de 1940.

A estrutura espacial do plano apoiava-se na proposta de Ulhôa, que concebeu parkways ao longo do Tietê canalizado, combinadas às radiais, ocupando sua várzea. Enquanto chefe da Comissão de Melhoramentos para o Tietê, em 1928, Cintra iniciou os estudos necessários para a canalização do rio Tietê. Esses estudos propunham diretrizes para aumentar o leito do rio como solução para as inundações, com o objetivo de aterrar e urbanizar a várzea. Tratava-se, nas palavras de seu autor, de: “Um passo decisivo dado pela administração para transformar em realidade esse grande melhoramento e a consequente urbanização das grandes áreas marginais [...] base de apoio em que se poderiam firmar todo e qualquer plano de remodelação para a cidade” (Saboya, 1930SABOYA, A. (1930). “Apresentação Plano de Avenidas”. In: MAIA, P. (ed.). Plano de Avenidas. São Paulo, Prefeitura Municipal de São Paulo., p. V).

De acordo com as diretrizes do Plano de avenidas, a urbanização da área da várzea propiciaria um uso apropriado para uma “imensa área em pleno perímetro urbano” (Maia, 1930MAIA, F. P. (1930). Plano de avenidas. São Paulo, Prefeitura Municipal de São Paulo., p. X) nas várzeas dos rios Tietê e Pinheiros. Pela introdução do Plano de avenidas de Prestes Maia, pode-se entender que a várzea não era percebida como uma estrutura da paisagem, mas apenas como um território abandonado dentro de uma cidade em expansão.

Quando realizado, entretanto, o plano foi reduzido apenas à construção de infraestrutura viária, inaugurando o urbanismo rodoviarista na cidade. As avenidas materializaram-se como dispositivos monofuncionais, articulando espaços regionais, e não aos seus entornos imediatos. O Plano de avenidas foi pensado como um plano estrutural, usando as avenidas como plataformas que informariam a ocupação do seu entorno. Em oposição ao que foi planejado, as avenidas expressas materializaram-se sobre as várzeas como elementos antiurbanidade, sendo espacialmente segregadoras, ao invés de se tornarem elementos que estruturariam o crescimento da cidade com a promoção de espaços abertos.

Apesar de monofuncionais, essas intervenções significaram um importante elemento infraestrutural, alterando padrões de mobilidade, configurando o desenvolvimento da metrópole paulistana e possibilitando uma ligação viária leste-oeste em larga escala, até então inexistente (Zmitrowicz e Borghetti, 2009ZMITROWICZ, W. e BORGHETTI, G. (2009). Avenidas 1950-2000: 50 Anos de Planejamento da Cidade de São Paulo. São Paulo, Edusp.), uma vez que, ao se conformarem como uma barreira entre a paisagem urbana e a paisagem natural dos rios Tietê e Pinheiros, possibilitaram tanto a dispersão urbana, quanto uma segunda onda de industrialização.

As marginais ao longo dos rios Pinheiros e Tietê foram, a partir de sua construção, a espinha dorsal para os futuros planos e programas de melhoramentos viários na cidade, como o sistema de vias expressas (década de 1970) e o programa de Avenidas de Fundo de Vale (fim dos anos 1970 e década de 1980), como reforçam Zmitrowicz e Borghetti (ibid.).

Até a década de 1950, o tecido urbano contínuo da cidade tinha nas várzeas o seu limite. Durante as décadas de 1950 e 1960, as áreas inundáveis ao redor do Tietê mantinham-se ainda desocupadas e não parceladas em sua maioria, tendo o emissário de esgoto como limite da área urbanizada nessa porção da várzea.

A partir do esquema da Figura 4, pode-se observar que, a partir da década de 1950, a área adjacente ao rio foi infraestruturada, dada sua retificação, passando a ser gradativamente ocupada.

Figura 4
– Cartografia interpretativa da década de 1950

Com esse longo processo de retificação, canalização e construção da Marginal, a maior parte das pontes foi construída antes mesmo das pistas das Marginais,3 3 A ponte da Freguesia do Ó foi projetada em 1956 e construída no fim da década, as pontes Piqueri e Casa Verde foram projetadas em 1957 e construídas no início dos anos 1960 e a ponte do Limão foi projetada e construída em 1968 (Zmitrowicz e Borghetti, 2009). sobrepondo-se à antigas travessias que estruturavam o sistema viário, deixando glebas desatendidas de acesso, o que contribuiu para o processo vagaroso de ocupação dessas margens ao longo dos anos 1950 e 1960.

Quando observamos o esquema dos anos 1950, percebemos como se deu o processo de sobreposição de diferentes lógicas, pois primeiramente foram criadas as travessias do rio, depois as avenidas a que dariam acesso. Isso se deu transversalmente às estradas existentes, que seguiam as estruturas da paisagem – meandros e microtopografias – e orientavam a maior parte da ocupação da várzea. Essa ocupação inicial seguia a lógica de edificação ao longo das estradas vicinais e da ferrovia.

Com a ditadura militar, que se iniciou em 1964, inaugurou-se um período de políticas de planejamento centralizadas (Somekh e Campos, 2002SOMEKH, N. e CAMPOS, C. D. M. (2002). “O super-plano: PUB – Plano Urbanístico Básico”. In: SOMEKH, N. e CAMPOS, C. D. M. (eds.). A cidade que não pode parar: Planos Urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo, Editora Mackenzie.), com alto grau de referência internacional,4 4 O Plano Diretor da Cidade foi financiado pelo Ministério de Planejamento, Fineb e United States Agency for International Development (Usaid). O Consórcio criado para a definição do plano contou com companhias brasileiras e norte-americanas: Leo A. Daly Company Planners-Architects-Engineers e Wilbour Smith Associates (Zmitrowicz e Borghetti, 2009). que também afetaram a cidade. Esse foi um período de impressionante crescimento econômico e uma nova onda de políticas desenvolvimentistas, abrindo a economia para investimentos estrangeiros como forma de aumentar as taxas de industrialização, que financiaram, ao mesmo tempo, investimentos no planejamento e transformações urbanas, por intermédio do Banco Nacional da Habitação (BNH), do BNDES e das agências internacionais de financiamento.

Figura 5
– Ponte da avenida Santa Marina, 1958

Em 1965, o recém-eleito prefeito Faria Lima (1965-1969, PR) criou uma comissão que definiu o Plano Urbanístico Básico (PUB), publicado em 1968 (Zmitrowicz e Borghetti, 2009ZMITROWICZ, W. e BORGHETTI, G. (2009). Avenidas 1950-2000: 50 Anos de Planejamento da Cidade de São Paulo. São Paulo, Edusp.). As propostas do PUB desconsideraram em parte os planos rodoviários e as intervenções anteriores – ainda em construção – que seguiam o esquema radio-concêntrico do Plano de avenidas, recomendando uma alteração da estrutura espacial da cidade (ibid.).

O plano previa controlar o crescimento e as densidades, prevenir o espraiamento, guiar o uso do solo por meio do zoneamento, definir as intervenções públicas em áreas públicas, descentralizar equipamentos e serviços, focar em equipamentos de transporte, criando um planejamento integrado e um sistema de participação (Somekh e Campos, 2002SOMEKH, N. e CAMPOS, C. D. M. (2002). “O super-plano: PUB – Plano Urbanístico Básico”. In: SOMEKH, N. e CAMPOS, C. D. M. (eds.). A cidade que não pode parar: Planos Urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo, Editora Mackenzie.). De acordo com as diretrizes estruturais do PUB, a área entre a Lapa e a Barra Funda deveria ser desenvolvida como uma área de uso misto, configurando uma nova centralidade, apoiada por uma estação de metrô na Barra Funda.

Em 1968, sob o mandato do prefeito Faria Lima e seguindo as diretrizes do PUB, Jorge Wilheim foi contratado para desenvolver um projeto para a ocupação da várzea do Tietê, combinando mudanças estruturais no sistema viário e definições de uso e ocupação do solo para a criação de uma centralidade.

Organizando a paisagem urbana em panoramas, o plano estabelecia eixos visuais, de orientação norte-sul, partindo da ferrovia ao rio, através de oito conexões viárias norte-sul chamadas Transtietê, que estariam desassociadas da avenida marginal Tietê. O objetivo seria melhorar a eficiência da conexão viária norte-sul, destacando-a da conexão leste-oeste representada pela marginal, almejando resolver o problema de grandes congestionamentos. O projeto definiu hierarquias do sistema viário, desabilitando as conexões de algumas pontes às marginais e criando uma política de espaços públicos, recuperando em parte a função drenante da várzea, preservando e programando áreas abertas ao longo da marginal. A ideia era criar bulevares que fariam a conexão norte-sul, os chamados “bairros irmãos’’, definindo eixos de verticalização ao longo desses acessos, como parte da grelha de vias expressas propostas pelo PUB (Wilheim, 2003WILHEIM, J. (2003). JW – A obra pública de Jorge Wilheim. São Paulo, DBA Artes Gráficas., p. 105).

O PUB e a proposta do plano de Jorge Wilheim para a várzea do Tietê não foram levados adiante. O mandato do prefeito Faria Lima encerrou-se, enquanto o governo do estado já estava construindo rodovias baseadas no esquema viário radio-concêntrico de acordo com o Plano Metropolitano de Desenvolvimento Integrado (PMDI), que era um plano para a metrópole e não integralmente compatível com a proposta espacial em grelha do PUB (Somekh e Campos, 2002SOMEKH, N. e CAMPOS, C. D. M. (2002). “O super-plano: PUB – Plano Urbanístico Básico”. In: SOMEKH, N. e CAMPOS, C. D. M. (eds.). A cidade que não pode parar: Planos Urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo, Editora Mackenzie.; Zmitrowicz e Borghetti, 2009ZMITROWICZ, W. e BORGHETTI, G. (2009). Avenidas 1950-2000: 50 Anos de Planejamento da Cidade de São Paulo. São Paulo, Edusp.).

Em 1971, o novo prefeito nomeado, Figueiredo Ferraz (1971-1973), criou a Coordenadoria Geral de Planejamento (Cogep) e implementou o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI). O plano preocupava-se explicitamente com a densidade, a poluição, o saneamento e a eficiente distribuição dos serviços públicos (Zmitrowicz e Borghetti, 2009ZMITROWICZ, W. e BORGHETTI, G. (2009). Avenidas 1950-2000: 50 Anos de Planejamento da Cidade de São Paulo. São Paulo, Edusp.). Essas disposições formaram a base da lei de zoneamento subsequente (lei n. 7805 de 1º/11/1972), que controlava o uso do solo e as densidades construtivas na cidade, regulando o direito de construir (Somekh e Campos, 2002SOMEKH, N. e CAMPOS, C. D. M. (2002). “O super-plano: PUB – Plano Urbanístico Básico”. In: SOMEKH, N. e CAMPOS, C. D. M. (eds.). A cidade que não pode parar: Planos Urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo, Editora Mackenzie.).

Apesar do PDDI e da lei de zoneamento de 1972 estabelecerem o uso misto em praticamente todo o território da cidade, o uso do solo da maior parte da várzea do Tietê, incluindo a área entre a Lapa e a Barra Funda, foi mantido como industrial. Entretanto, de meados dos anos 1970 em diante, a importância desse setor produtivo decresceu na cidade (ibid., p. 152). Passou-se, então, a haver um descompasso entre o zoneamento, as demandas socioeconômicas e os potenciais da área. Mais uma vez, portanto, cristalizou-se o aspecto secundário desse território, que permaneceu como espaço expectante no processo de produção do espaço urbano, dadas as restrições de regulação.

A promulgação do zoneamento de 1972 precedeu a crise do petróleo, seguida por uma severa crise econômica mundial, que deflagrou uma série de reajustes econômicos e fiscais, acabando, assim, com o “milagre econômico” que financiou os grandes investimentos na cidade. A crise fiscal impossibilitou a construção da infraestrutura projetada, e os equipamentos e redes de transporte público de massa não foram implantados como o planejado.

Figura 6
– Cartografia interpretativa da década de 1970

Até os anos 1970, São Paulo era regulada pela lógica da industrialização, como apontou Marchi (2008)MARCHI, P. M. D. (2008). “Signos de uma paisagem des(cons)truída”. In: KON, S. e DUARTE, F. (eds.). A (des)construção do caos. São Paulo, Perspectiva., com grandes programas de infraestrutura projetados para melhorar o padrão de circulação sobre pneus. Simultaneamente, a consecutiva drenagem dos meandros e lagoas da várzea deu lugar a novos padrões de ocupação.

Uma vez retificado e canalizado, a velocidade do Tietê mudou drasticamente, aumentando a sedimentação no leito do rio. O crescente ritmo da urbanização contribuiu também para o aumento da poluição e do consumo de água, majorando o volume de água no sistema de drenagem, que, eventualmente, chegava ao rio Tietê. A combinação da sedimentação e do aumento do volume de águas drenadas para o rio aumentava as inundações, aliando processos naturais de drenagem – cheias nos níveis mais baixos da várzea – a problemas de inundações artificiais (Pessoa, 2003PESSOA, D. F. (2003). Utopias e cidades: proposições. São Paulo, Fapesp e AnnaBlume, p. 148).

Do início dos anos 1970 em diante, as áreas não ocupadas foram edificadas mais intensamente por pequenas indústrias e galpões. A abertura das marginais ao longo do rio, em 1967, contribuiu para o aumento de sua ocupação. A construção das avenidas marginais alterou os cruzamentos tradicionais dos rios, mudando as conexões norte-sul da várzea, a sul, e aos bairros periféricos, à norte, interrompendo os caminhos tradicionais das estradas vicinais, como a avenida Santa Marina – que conectava a área com a Freguesia do Ó – e a avenida Tomas Edson – o eixo que cruzava o rio ligando a Barra Funda ao bairro do Limão.

Nesse período, essas áreas tornaram-se “fronteiras transicionais” (Marchi, 2008MARCHI, P. M. D. (2008). “Signos de uma paisagem des(cons)truída”. In: KON, S. e DUARTE, F. (eds.). A (des)construção do caos. São Paulo, Perspectiva., p. 97), formando um arco isolado de uso industrial decadente, enquadrado pela ferrovia e pelo rio canalizado. Os trilhos, uma vez que se configuram como símbolo de movimento, tornaram-se a imagem de imobilidade e vacância. Assim, áreas extensas tornaram-se expectantes, barreiras físicas que segmentaram a paisagem urbana.

Dos planos dos anos 1960 e 1970, poucos elementos materializaram-se, como as Avenidas de Fundo de Vale,5 5 O Programa de Avenidas de Fundo de Vale deu-se nos anos 1980, combinando fundos para o saneamento, o melhoramento e a expansão do sistema viário. Mais informações sobre o programa podem ser encontradas em Zmitrowicz e Borghetti, (2009). construídas como uma forma de combinar financiamentos para o saneamento à expansão do sistema viário, em função do menor valor dessas áreas – possibilitando sua desapropriação – e a disponibilidade de fundos federais e internacionais direcionados ao saneamento.6 6 O Banco Interamericano de Desenvolvimento oferecia fundos setoriais específicos para saneamento, e até o BNH criou linhas para financiamento do Desenvolvimento Urbano e de Saneamento ao longo dos anos 1970 e 1980 (Azevedo e Andrade, 1981). Com o programa de Avenidas de Fundo de Vale (década de 1970 a 1980), intervenções em drenagem, o abastecimento de água e o sistema de esgoto financiaram a extensão do sistema viário (Zmitrowicz e Borguetti, 2009). O sistema de metrô previsto ainda estava em construção (2016), entretanto a linha de metrô que alimenta a área entre Lapa e Barra Funda foi inaugurada na década de 1980.

A paisagem urbana contemporânea: um fragmento de fragmentos

As décadas de 1980 e 1990 consubstanciaram-se em mudanças econômicas e políticas no País, levando também a mudanças na ocupação da várzea.

Severamente afetado pela crise, o vetor industrial passou por mudanças importantes, envolvendo processos de reterritorialização e fragmentação da produção. Além disso, cidades e estados em outras áreas do País passaram a atrair a atividade industrial por meio de incentivos fiscais, causando uma drástica redução na contribuição do setor para a economia de São Paulo (Figueiredo, 2005FIGUEIREDO, V. G. B. (2005). Estratégias urbanas em busca do desenvolvimento local: o caso do projeto Eixo Tamanduathey em Santo André. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.), o que consequentemente contribuiu para a vacância da área.

A partir dos anos 1990, em um momento de ajustes institucionais, reestruturação produtiva e investimentos em infraestrutura, a Barra Funda recebeu uma das primeiras Operações Urbanas da cidade (Castro, 2006CASTRO, L. G. R. D. (2006). Operações Urbanas em São Paulo-interesse público ou construção especulativa do lugar. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.; Maleronka, 2010MALERONKA, C. (2010). Projeto e gestão na metrópole contemporânea – Um estudo sobre as potencialidades do instrumento “operação urbana consorciada” à luz da experiência paulistana. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo.; Montandon, 2009MONTANDON, D. T. (2009). Operações urbanas em São Paulo: da negociação financeira ao compartilhamento equitativo de custos e benefícios. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.) – e do País – concebidas como parcerias com o objetivo de reestruturar, transformando o que até então era considerado uma periferia interna em nova centralidade. A operação tinha como objetivo provocar a gradativa transformação do tecido urbano, substituindo tipologias e vazios urbanos por grandes empreendimentos residenciais e corporativos, um processo que se intensificou a partir do final da década de 2000.

Os anos 2000 marcaram uma fase distinta de desenvolvimento, crescimento econômico – com importante participação da indústria da construção civil – e novos ajustes institucionais, impactando a provisão de infraestrutura e as regulações urbanas na cidade. A organização de uma nova política federal de desenvolvimento urbano, representada pelo Estatuto da Cidade (2001), que aliou uma administração progressiva, deflagrou a revisão das políticas urbanas municipais, como o PDE 2002-2012.

Para analisar as transformações na paisagem urbana, é importante notar que o plano delimitava uma gama maior de áreas de reestruturação, combinada a novas regras de uso e ocupação do solo, permitindo outros usos nas áreas de várzea e deflagrando novos processos de desenvolvimento (PMSP, 2002PMSP (2002). Lei n. 13.430/2002 – Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo. São Paulo.).

A mudança na regulação de uso e ocupação do solo, oferecendo uso misto generalizado e maiores coeficientes de aproveitamento, combinados a um cenário econômico de expansão e investimentos estrangeiros no mercado imobiliário, provocou um aumento na produção do mercado imobiliário, alterando as tipologias mais comumente produzidas na cidade. Os impactos espaciais desse processo também foram percebidos nas áreas da Lapa de Baixo, Água Branca e Barra Funda.

A última grande intervenção infraestrutural realizada na área aconteceu entre 2009 e 2012, com a intervenção nas avenidas marginais, aumentando sua largura para a dimensão de 9 a 12 faixas de rolamento em cada lado da marginal Tietê, com o objetivo de diminuir o tráfego e separar fluxos metropolitanos de locais (Estado de São Paulo, 2009ESTADO DE SÃO PAULO (2009). São Paulo terá Nova Marginal do Tietê. São Paulo. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/sao-paulo-tera-nova-marginal-do-tiete-1-2/. Acesso em: 27 jan 2020.
http://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-no...
).

Figura 7
– Cartografia interpretativa da década de 2000

A ocupação dessa porção da várzea, apesar de nunca ter sido inteiramente completada, tendo em vista os vazios urbanos que lhe são perenes, representa as diferentes fases do desenvolvimento da cidade, que hoje estão cravadas em sua forma urbana contemporânea ambivalente, representando os ciclos industriais e seu decadente patrimônio, a conflituosa relação da cidade com seus rios e corpos d’água manipulados, a luta por preservar tecidos urbanos tradicionais entre a profusão da verticalização espraiada, o sistema viário superdimensionado e em expansão, e a soma de espaços expectantes. O território entre Lapa e Barra Funda apresenta todas essas facetas.

Para entender a singularidade e as especificidades desse território, deve-se contextualizá-las no desenvolvimento histórico de São Paulo, em seu processo de urbanização e formação de sua complexa paisagem urbana sobre a paisagem natural. As transformações atuais são heterogêneas. De um lado, são espontâneas e guiadas por dinâmicas do mercado, com o preenchimento dos lotes vazios e o redesenvolvimento dos fragmentos restantes. De outro lado, as transformações atuais também foram induzidas pelo poder público, pois uma sequência de políticas, regulações e projetos foi proposta para as várzeas ao longo das últimas décadas. Apesar de distintas, ambas as tendências apresentam um aspecto em comum: negligenciam a preexistente materialidade, desconsideram suas características naturais e tecidos urbanos existentes, negligenciando sua complexidade material e natural.

Ao serem mapeados os diferentes materiais urbanos contidos nesse território, revela-se seu caráter híbrido na contemporaneidade, como base das futuras interpretações, oferecendo uma cartografia combinada, composta por diferentes camadas de informação e suas interações, construindo a historiografia desse objeto por intermédio da interpretação da transformação da paisagem natural.

O estabelecimento consecutivo dos seus elementos de infraestrutura sobre as estruturas da paisagem marcou suas transformações espaciais. Esses elementos são aqui entendidos como pontos de inflexão, que alteraram ordens e transformaram racionalidades, mudando tipologias e compondo o palimpsesto contemporâneo.

É importante entender que uma periodização na América Latina não representa cortes precisos na produção da paisagem urbana. Como define Waisman (2013)WAISMAN, M. (2013). O interior da história. São Paulo, Perspectiva., a paisagem dessas cidades é como grandes colagens, em que diferentes tempos históricos, tipologias formais e funcionais se apresentam simultaneamente no mesmo espaço-tempo, o que dificulta tanto sua leitura, quanto as possíveis intervenções. Para a autora, existem elementos-chave para o entendimento da forma urbana na América Latina, que se apoiam na malha infraestrutural como principal elemento, servindo como suporte, elemento estruturante das transformações urbanas, adquirindo maior sedimentação histórica que as tipologias edilícias.

Dessa forma, ler e operar morfologias urbanas em contexto como o de São Paulo é um exercício que deve se apoiar tanto na infraestrutura quanto nas tipologias, aqui apresentado pelo mapeamento sistemático como o ponto de partida – e elemento deflagrador – de possíveis novas abordagens analíticas.

Resumidamente, apresentamos a interpretação cartográfica que revela os diferentes elementos infraestruturais desse território. Ao passo que a presença da ferrovia e seu aparato produziram uma plataforma infraestrutural que se expandiu até a década de 1950 e regrediu a partir da década de 1970, a manipulação extensiva e a construção de uma estrutura rodoviária de caráter metropolitano funcionaram como uma armadura sobre o território (Figura 8).

Figura 8
– Linha do tempo das grandes ações infraestruturais sobre o território da várzea entre a Lapa de Baixo e a Barra Funda (décadas de 1900 a 2000)

A cartografia interpretativa foi o método escolhido para construir a historiografia desse território e interpretar sua materialidade, construída sobre o espaço da várzea (Figura 8). O redesenho de mapas históricos possibilitou a construção de uma linha do tempo que remete aos processos de parcelamento, identificando e reconhecendo a origem dos diferentes materiais presentes no território contemporâneo e suas relações com os processos de transformações e com as estruturas da paisagem.

A seção seguinte apresenta o resultado desta análise. Urbanização (entendida como infraestruturação), parcelamento e edificação são apresentados em suas interações, como processos que, de acordo com Solà-Morales (1997)SOLÀ-MORALES, M. D. (1997). Las formas de crecimiento urbano. Barcelona, Ediciones UPC., enquadram a materialização da paisagem urbana.

Interpretando a paisagem ambiental urbana contemporânea

Como explorado na seção anterior, a ocupação da área organizou-se a partir de elementos naturais e infraestruturais – o rio, a ferrovia e as marginais – apresentando simultaneamente diferentes lógicas de materialização. Nessa seção, exploramos como se deu a formação do tecido urbano por intermédio do esquema analítico proposto por Solà-Morales (ibid.), segundo o qual a materialização é explicada por processos de urbanização – infraestruturação, parcelamento e edificação – e ocupação. Ao entender a área de acordo com essas categoriais, pode-se relacionar sua fragmentação à multiplicação de estratégias de materialização nesse fragmento urbano. A linha do tempo (Figura 9), elaborada a partir dessas categorias, ilustra o processo de ocupação descrito ao longo dessa seção, bem como suas relações com as estruturas da paisagem.

Figura 9
– Linha do tempo dos processos de urbanização, parcelamento e ocupação do território entre a Lapa de Baixo e a Barra Funda (fim do séc. XIX à década de 2000)

A urbanização iniciou-se com a formação das vias tradicionais (Figura 9-B). Antes uma paisagem natural (Figura 9-A), esse território foi atravessado por estradas vicinais, que chegavam a pontos de travessia do rio. Posteriormente, foi implantada a ferrovia, um eixo infraestrutural linear, colocado sobre o limite da várzea, dividindo o território em dois, separando fisicamente as áreas inundáveis – espaços secundários – das áreas fora das várzeas – espaços primários.

A ferrovia – infraestrutura composta por trilhos, estações, cruzamentos, entrepostos logísticos – formou uma plataforma no território, atraindo a ocupação industrial ao longo do seu eixo, através de edificações colocadas diretamente conectadas aos seus trilhos, elementos desassociados do entorno e alimentados pelos trilhos como seu único acesso. Até a década de 1950, a ferrovia e as vias tradicionais foram informando a ocupação, atraindo edificações e usos para o seu entorno imediato.

O último grande elemento infraestrutural realizado, compondo as estratégias de urbanização, foi a construção da marginal (Figura 9-D, E), um sistema viário que se expande a partir do rio, desenvolvendo-se, ao longo do tempo, como uma armadura sobre o território existente, interrompendo antigas lógicas de circulação que levavam em conta as estruturas da paisagem e sobrepondo-se a tecidos existentes, atraindo novas formas de ocupação (Figuras 9-K).

O parcelamento (Figura 9-G, H, I) ocorreu paralelamente ao processo de infraestruturação. Os primeiros fragmentos de tecido urbano de uso misto foram as áreas da Lapa de Baixo e do Bom Retiro (Figura 9-G). Projetados como os outros loteamentos do mesmo período, eles apresentam malhas relativamente ortogonais e regulares, com quarteirões com uma média de 120x120m, subdivididos em pequenos lotes, como uma estrutura que foi se transformando ao longo das décadas. Nesse mesmo período, o bairro vila Anastácio foi parcelado dentro de um dos antigos meandros do Tietê. Apesar de apresentar ordem e hierarquia, seu projeto seguia o formato do elemento natural original que o emoldurava, apresentando um traçado orgânico e proporções similares nos lotes.

Foi apenas na década de 1960 que outros processos de parcelamento ocorreram (Figura 9-H), apresentando, no entanto, uma lógica espacial distinta. Observa-se um fragmento de tecido industrial, confinado entre dois córregos a norte da fábrica Santa Marina, em área na qual havia os reservatórios das fábricas. Em malha ortogonal, as vias locais são maiores – adequadas para o tráfego de veículos de grande porte, como caminhões –, e os quarteirões são retangulares, variando em tamanho, alcançando o máximo de 300x250m.

O último parcelamento ocorreu mais recentemente (Figura 9-I), seguindo a lógica das tipologias contemporâneas: os condomínios fechados verticais. O parcelamento iniciou-se em 2007, dividindo uma grande gleba de cerca de 250.000m2 em cinco quarteirões de larga escala, em formato trapezoidal, agregando 14 lotes menores, organizados em uma malha orgânica definida em volta de um parque público.

A ocupação (Figura 9-J, K) – o ato de construir tipologias edilícias – seguiu lógicas diversas. A área apresentou, ao longo do seu desenvolvimento, diversas tipologias, que coexistiam ou foram consecutivamente substituídas ao longo do tempo.

Até a retificação do rio, a ocupação da várzea seguia a lógica do regime de inundações, mostrando, no emissário de esgoto – hoje avenida Marquês de São Vicente –, um limite rígido. Na margem norte, a ocupação estava limitada por uma antiga estrada vicinal, formada no limite das inundações.

A ocupação de áreas inundáveis deu-se seguindo a lógica de edificação ao longo do sistema viário original, que permaneceu como elemento estruturante até então, por exemplo a avenida Santa Marina – o antigo caminho para a Freguesia do Ó – e a avenida Thomás Edson. Instalações fabris atrelaram-se a esses eixos de transporte, que levavam às principais estações de trem da área, que também ainda concentravam em seu entorno os tecidos urbanos de menor gramatura.

Os parcelamentos da vila Anastácio, Lapa de Baixo e Bom Retiro ainda apresentam uma ocupação majoritariamente horizontal, inicialmente concebida como áreas de uso misto – concentrando principalmente sobrados, voltados para operários e a classe média –, combinando atividades comerciais no pavimento térreo ao uso residencial no pavimento superior.

Ao longo dos anos 1960 e 1970 (Figura 9-K), conjuntos habitacionais estabeleceram-se, mas como elementos isolados. Esse é o caso do conjunto habitacional localizado na Lapa (condomínio Central Parque da Lapa) e dos fragmentos horizontais mais densos, ocupando antigos lotes industriais, projetados como vilas e não integrados ao tecido urbano.

Além das áreas projetadas e parceladas ao longo dos anos 1970, empreendimentos industriais ocuparam os lotes remanescentes por toda a área, algumas vezes seguindo a lógica e a estrutura fundiária definida pelas estruturas da paisagem preexistentes e pelos elementos de infraestrutura, como a malha viária e os lotes remanescentes da expropriação ao longo da margem do rio e da drenagem dos meandros, que geralmente apresentam proporções maiores que o restante.

A tipologia colocada sobre esses lotes, de grandes proporções, mudou no decorrer da ocupação. Ao longo da marginal, os lotes transformaram-se, passando do uso industrial para o uso comercial – varejo de grande porte –, concentrando grandes galpões comerciais, atualmente voltados para comércios de veículos e materiais de construção, entre outros. Grandes lotes industriais também foram gradualmente transformados em grandes condomínios fechados na última década.

Houve uma mudança de escala entre os fragmentos mais densos, propostos até a década de 1930, e o que se materializou posteriormente. Complexos e edifícios industriais aumentaram a escala predominante dos lotes e quarteirões, escala que hoje em dia foi incorporada pelos empreendimentos imobiliários, aproveitando-se das amplas proporções desses lotes.

O patrimônio cultural – relacionado principalmente aos edifícios industriais remanescentes do século XIX e início do século XX – localiza-se ao redor da ferrovia, compondo sua figura decadente.

A vacância e os empreendimentos imobiliários contemporâneos encontram-se espalhados por toda a área, com alguma concentração na área da Operação Urbana Água Branca e ao redor da plataforma ferroviária, entre a vila Anastácio e as antigas oficinas da São Paulo Railway Co.

A várzea como um fragmento de fragmentos. A construção historiográfica da materialização desse território revelou a transformação de sua paisagem natural em paisagem urbana, que se explica tanto pela sequência de intervenções em larga escala, quanto pelos planos e projetos não realizados. A ocupação gradual da várzea apresenta não apenas uma sucessão tipológica, mas também a transformação funcional pela qual o território passou, enfatizando seu afastamento de lógicas e características naturais.

Processos de urbanização trouxeram diferentes tipos de eixos infraestruturais e pontos nodais, mudando de caráter do lugar ao longo do tempo, entretanto sempre manipulando as estruturas naturais. Essas diversas linhas, em cada período, apresentaram hierarquias distintas umas das outras e atraíram diferentes tipos de atividades e materiais urbanos.

Cada estrutura da paisagem e cada elemento de infraestrutura fazem parte de um sistema, conectando a área a outras diversas escalas, promovendo diferentes tipos de interação, transformando a materialidade da área. Elementos da infraestrutura e da paisagem – como a ferrovia, as marginais e o rio – transcendem essa escala, trazendo lógicas externas ao seu desenvolvimento, criando um sistema de interação multiescalar, por meio de elementos fixos e mutantes.

Enquanto a infraestrutura se multiplicou, a estrutura da paisagem – nomeadamente a várzea – permaneceu fixa; entretanto os elementos da paisagem – como os córregos – foram consecutivamente artificializados. Apesar disso, suas funções como elementos da paisagem permanecem inalteradas: ainda há cheias, como deveria haver, visto que esses elementos compõem um sistema de drenagem e o território é uma várzea.

Planos e projetos representaram grandes esperanças para o desenvolvimento da área, mas não se materializaram, adicionando um extrato de especulação e expectativa ao processo de materialização.

Ao longo do tempo, os planos, instrumentos de política, pouco se relacionaram aos aspectos materiais da área. Muitas vezes, não foram implantados, pois promoviam propostas que não se relacionavam com a materialidade do lugar. Além da regulação de zoneamento, até a contemporaneidade não houve plano que tivesse impactado profundamente a materialização dessa área. Uma vez que os planos e seus projetos não se materializaram, as mudanças tornaram-se situacionistas e casuísticas, acontecendo devido às oportunidades, a depender do aparecimento de processos, elementos, funções que a cidade necessitava em determinado instante e que a área pudesse incorporar. As regulações apareceram quando necessárias, trazendo regras implícitas e explícitas para o desenvolvimento da área, permitindo e acomodando funções, como os usos industriais, e permitiram a materialização de certas tipologias – como, mais recentemente, a proliferação de novos usos em antigos lotes industriais.

Como resultado dessa materialização, a área tornou-se, ao longo do seu desenvolvimento, um fragmento confinado artificialmente entre o rio e a ferrovia, composto pelo conjunto de diferentes materiais urbanos, de diferentes escalas. Um fragmento urbano composto por diferentes fragmentos.

Esse território se materializou combinando diferentes lógicas, aproveitando-se de certas conjunturas e oportunidades para seu desenvolvimento, em processo específico de materialização improvisada, semelhante ao salientado por Jacques (2001)JACQUES, P. B. (2001). A estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, Casa da Palavra., ao discutir a figura conceitual do fragmento. Este, de acordo com a autora, é um produto fragmentário de processos espaço-temporais, composto pela sobra de materiais, adaptados a novas circunstâncias, construídos de acordo com o acaso e a oportunidade, trazendo a heterogeneidade como resultado material.

A autora relaciona processos de materialização do fragmento à figura da bricolagem, na qual a composição de materiais não almeja um objetivo preciso e predefinido. A composição geral é dada pelo aproveitamento das oportunidades e de conjunturas, alcançando resultados inesperados e sempre intermediários. Assim, materializar um fragmento é sempre um processo de canalizar intenções difusas, sem a projeção ou a definição de formas precisas. Uma vez construído, o fragmento torna-se ultrapassado, já que seu resultado material está longe do que se espera.

O conjunto de fragmentos segue a lógica do patchwork. Cada parte do conjunto fragmentado é heterogênea e fragmentada em seu exterior, e seu interior apresenta uma unidade coesa, representando um pedaço circunscrito em si. Assim, ela finaliza o argumento, o fragmento pode ser entendido como parte do todo fragmentado ou uma unidade em si mesma, autônoma. Finalmente, um fragmento representa a incompletude, dada a rápida velocidade das transformações.

Uma leitura distinta de tais processos é dada pela figura do palimpsesto, definida por Corboz (1985)CORBOZ, A. (1985). Il territorio come palinsesto. Casabella, n. 516, pp. 22-27.. Entendendo o território como o resultado de um processo espontâneo de transformação, combinado às atividades humanas controladoras e deterministas, aplicam certas lógicas à transformação do território. A diferença entre as duas estratégias dá-se em suas referências. Nessa noção, o território é um objeto construído, um produto. De acordo com Corboz, ao longo do tempo, intervenções criam um território de muitas camadas, dada a sobreposição material de sistemas e de redes de infraestrutura, mudando a experiência da paisagem.

Territórios contemporâneos podem ser entendidos como um resultado de lenta estratificação, intervenções condensadas e justapostas ao longo do tempo, compondo finas camadas, fósseis que frequentemente apresentam lacunas, condensando processos de ação e rasura, modificando suas substâncias de forma permanente, tornando cada território único em sua combinação de camadas estratificadas.

A paisagem urbana, materializada sobre a várzea de um rio meandrante, pode ser entendida tanto como um palimpsesto quanto como uma bricolagem. O aspecto de palimpsesto de sua formação parte das consecutivas rasuras de suas partes, pedaços, linhas, elementos, que, ao longo do tempo, foram substituídos por outros, sobrepondo diferentes racionalidades e apropriações culturais do território. A bricolagem representa a composição de diferentes sobras de materiais, comum a territórios periféricos, de acordo com oportunidades, de uma forma dinâmica. Como espaço secundário e periferia interna, formou-se como fragmento de fragmentos, expectante. Na contemporaneidade, regulações e projetos, como as diferentes versões da operação urbana Água Branca, apareceram para transformar esse espaço secundário e expectante em espaço primário, priorizando seu potencial de transformação e densificação, em detrimento de suas características naturais.

Notas finais: figuras conceituais como alegorias da construção da paisagem urbana

Como vimos, a várzea do Tietê em São Paulo, especificamente o território entre Lapa e Barra Funda, passou por diversas fases de desenvolvimento em sua ocupação, guiadas e estimuladas pela provisão de infraestrutura. Tal desenvolvimento pode se relacionar a figuras conceituais formais e processuais, que guiaram a materialização de diferentes modos. As figuras conceituais formais relacionam-se a espaços e formas materializadas – elementos urbanos construídos no espaço – que, por usa vez, derivam de processos de produção do espaço, que explicam a materialização.

A ocupação da várzea do Tietê foi inicialmente guiada pela instalação da ferrovia, criando uma figura espacial, como uma plataforma sobre o território natural, que se expandiu e recuou ao longo do tempo, deixando traços de patrimônio cultural industrial na paisagem urbana contemporânea.

Essa figura, localizada no limite sul da várzea, era dominante até a década de 1950, representando tanto uma plataforma à qual a ocupação industrial se conectou ao longo do tempo, quanto uma barreira, separando espaços primários e secundários, a “cidade” e a várzea como espaços de caráter e importância distintos para o desenvolvimento de São Paulo (Marchi, 2008MARCHI, P. M. D. (2008). “Signos de uma paisagem des(cons)truída”. In: KON, S. e DUARTE, F. (eds.). A (des)construção do caos. São Paulo, Perspectiva.).

Inicialmente, a ferrovia estruturou fragmentos de tecidos urbanos horizontais e densos ao redor de suas estações, enquanto a maior parte da área da várzea permaneceu como o espaço do rio. Apesar das muitas propostas do poder público para a várzea e para essa porção específica do território, como o Plano de avenidas e as propostas sanitaristas anteriores, que concebiam o desenvolvimento da área como uma extensão da área urbanizada consolidada e reconheciam seu potencial imobiliário, a materialização guiada pela figura da ferrovia consistiu em fragmentos de tecidos horizontais de uso misto e a ocupação industrial alimentada pelos trilhos.

O processo de retificação, canalização do rio e drenagem da várzea preparou a área para a implantação da estrutura viária. Esses elementos de infraestrutura foram determinados e definidos por lógicas e ordens técnicas. Uma vez que os processos de retificação e canalização do rio e drenagem de sua várzea se iniciaram no período em que o País passava por uma segunda fase de industrialização, amparada pelo estado (Figueiredo, 2005FIGUEIREDO, V. G. B. (2005). Estratégias urbanas em busca do desenvolvimento local: o caso do projeto Eixo Tamanduathey em Santo André. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo.), que acabou induzindo a localização de plantas industriais ao longo dos principais eixos de transporte, no arco formado pela ferrovia e as várzeas do Tietê e Tamanduateí, seguidas das extremidades da várzea do rio Pinheiros, dada a facilidade de acesso e a proximidade às rodovias recém-inauguradas. Quase todos os projetos de infraestrutura de transporte de alta capacidade feitos na cidade abordaram a área, entretanto, dentre todos as propostas e projetos, apenas o sistema viário – as marginais ao longo do rio, as pontes, as avenidas radiais e as avenidas de fundo de vale – materializaram-se, definindo um espaço para os fluxos metropolitanos, formando uma armadura sobre a várzea.

Esses elementos infraestruturais, a ferrovia e as marginais, são aqui interpretados como figuras conceituais espaciais, que explicam a materialização da paisagem urbana e sua relação com as estruturas da paisagem.

A ferrovia é aqui entendida como uma figura sobre o limite da várzea, tal como uma plataforma, à qual outros elementos se agregaram e se conectaram. Já o sistema rodoviário é entendido como uma armadura, funcionando como um exoesqueleto, amarrando diferentes elementos viários a estruturas e sistemas urbanos mais abrangentes. A armadura – um sistema viário então colocado sobre elementos urbanos preexistentes e estruturas naturais presentes na área – impôs sobre a várzea novos fluxos. Fragmentos, tais como manchas urbanizadas ou edifícios de grande porte, seguiram esses elementos, sendo atraídos por eles de diferentes modos.

Do fim do século XIX até a década de 1930, planos visionários elaborados pelo poder público, deflagraram amplos projetos e intervenções em infraestrutura na área da várzea. Em função dessas intervenções em infraestrutura de grande porte, ao longo dos anos 1940, 1950 e 1960, o poder público foi um agente ativo na materialização das transformações da área, por intermédio da construção de infraestrutura de escala metropolitana. Apesar de materializar a infraestrutura, parcialmente definindo o processo de urbanização, a provisão de infraestrutura não foi suficiente para garantir a ocupação da área até a década de 1960, período do milagre econômico. A partir de meados da década de 1970, com o fim do milagre, as atividades do setor industrial passaram a recuar e diminuir sua participação na cidade.

Portanto, desse período em diante, a infraestrutura pouco guiou a ocupação, que se deu por meio da materialização de fragmentos distintos. A área tornou-se novamente uma paisagem expectante até recentemente, quando uma mudança na regulação urbana, combinada a uma nova onda de crescimento econômico, definiu as bases da reestruturação espacial contemporânea, desconsiderando a questão ambiental.

Como especificidades desse território, uma ocupação industrial ainda incipiente na década de 1950 foi reforçada por regulações ao longo dos anos 1950 e 1970. Essas regulações foram questionadas pela primeira vez nos anos 1980, alteradas pontualmente nos anos 1990, sendo finalmente revisadas nos anos 2000, quando um novo escopo de desenvolvimento foi definido para a várzea, semelhante ao que foi inicialmente concebido no início do século XX, quando Prestes Maia sugeriu, no Plano de avenidas, que se transformasse a várzea do rio Tietê de um espaço secundário a um espaço primário, integrando-a à estrutura formal da cidade.

Ao longo do século XX, a várzea foi percebida pelo poder público como um problema sanitário a ser revolvido, um potencial imobiliário a ser explorado, um eixo metropolitano industrial e uma nova centralidade terciária, entretanto nenhuma dessas visões se materializou inteiramente. Todas elas foram parcialmente alcançadas, apresentando atualmente interação e fragmentação entre seus elementos.

Apesar de única, ainda parcialmente desocupada enquanto as áreas do seu entorno se desenvolveram e se reestruturaram constantemente em longo do século XX, a área da várzea entre a Lapa e a Barra Funda representa processos que moldaram o espaço urbano da cidade, envolvendo sua paisagem original, a ocupação das áreas inundáveis de vales e várzeas, o que aumentou consecutivamente as tensões ambientais da metrópole.

Este artigo, assim sendo, ao se basear na construção de uma narrativa histórica, apoiada pela elaboração de cartografias interpretativas, propôs-se a construir figuras conceituais como novas formas de interpretar a paisagem ambiental urbana, baseadas na interpretação espacial dos principais avanços infraestruturais sobre a paisagem natural. A plataforma ferroviária, a armadura rodoviária e o fragmento (de fragmentos) são as figuras conceituais apresentadas, construídas como alegorias para o entendimento da paisagem urbana, oferecendo uma contribuição para o método de análise da história e da morfologia urbana. As cartografias elaboradas elucidam a relação espacial do processo de urbanização com as estruturas da paisagem, sintetizada pelo mapa-síntese (Figura 10).

Figura 10
– As estruturas da paisagem sobrepostas a infraestrutura e estrutura fundiária do século XIX

Completamente transformada, a paisagem natural ainda se encontra presente e estruturante na paisagem urbana. Antigos meandros e córregos canalizados definem a forma urbana da várzea urbanizada apesar da constante sobreposição infraestrutural representada pelas figuras conceituais.

No caso pesquisado, a paisagem contemporânea fragmentada é fruto de consecutivas ondas de desenvolvimento. Enquanto espaço secundário, recebeu elementos e funções secundárias, dos quais o espaço primário era dependente, mas não acomodava. Nesse sentido, a materialização foi conduzida pela infraestrutura, na qual outros materiais urbanos se ancoraram de diversas formas. Enquanto industrial, à área foi dada a ordem necessária para que funcionasse, de forma não hierárquica, contrastante aos outros elementos urbanos. Como uma periferia interna, a área permaneceu na tensão entre esses dois aspectos: ser central e periférica. A partir da tentativa de sua reestruturação, passou de espaço residual a repositório de grandes expectativas para o desenvolvimento contemporâneo, em detrimento do seu potencial ambiental.

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Notas

  • 1
    Lei imperial n. 601 definiu o regime de propriedade de terras no país, deslegitimando posse ou ocupação como uma forma legal de propriedade. A partir de então, a terra deveria ser transferida por meio de operações registradas de compra e venda (Rolnik, 1997ROLNIK, R. (1997). A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo, Studio Nobel.).
  • 2
    As epidemias que ocorreram entre o final do século XIX e início do século XX foram elencadas por Pessoa (2003)PESSOA, D. F. (2003). Utopias e cidades: proposições. São Paulo, Fapesp e AnnaBlume. São elas: 1875 – varíola, morfeia, febre amarela; 1893-1898 – varíola, tuberculose, febre amarela; 1894 – cólera; 1896 – tuberculose; 1901 – peste bubônica; 1908 – varíola; 1918 – gripe espanhola.
  • 3
    A ponte da Freguesia do Ó foi projetada em 1956 e construída no fim da década, as pontes Piqueri e Casa Verde foram projetadas em 1957 e construídas no início dos anos 1960 e a ponte do Limão foi projetada e construída em 1968 (Zmitrowicz e Borghetti, 2009ZMITROWICZ, W. e BORGHETTI, G. (2009). Avenidas 1950-2000: 50 Anos de Planejamento da Cidade de São Paulo. São Paulo, Edusp.).
  • 4
    O Plano Diretor da Cidade foi financiado pelo Ministério de Planejamento, Fineb e United States Agency for International Development (Usaid). O Consórcio criado para a definição do plano contou com companhias brasileiras e norte-americanas: Leo A. Daly Company Planners-Architects-Engineers e Wilbour Smith Associates (Zmitrowicz e Borghetti, 2009ZMITROWICZ, W. e BORGHETTI, G. (2009). Avenidas 1950-2000: 50 Anos de Planejamento da Cidade de São Paulo. São Paulo, Edusp.).
  • 5
    O Programa de Avenidas de Fundo de Vale deu-se nos anos 1980, combinando fundos para o saneamento, o melhoramento e a expansão do sistema viário. Mais informações sobre o programa podem ser encontradas em Zmitrowicz e Borghetti, (2009)ZMITROWICZ, W. e BORGHETTI, G. (2009). Avenidas 1950-2000: 50 Anos de Planejamento da Cidade de São Paulo. São Paulo, Edusp..
  • 6
    O Banco Interamericano de Desenvolvimento oferecia fundos setoriais específicos para saneamento, e até o BNH criou linhas para financiamento do Desenvolvimento Urbano e de Saneamento ao longo dos anos 1970 e 1980 (Azevedo e Andrade, 1981AZEVEDO, S. D. e ANDRADE, A. G. D. (1981). Habitação e poder. Rio de Janeiro, Zahar.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2019
  • Aceito
    24 Out 2019
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