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Apresentação

No início da década de 2020, ganha cada vez mais força a noção de que a dinâmica do desenvolvimento urbano, na América Latina e no mundo, ultrapassou alguns limites irreversíveis. A confiança no crescimento econômico, que ocorreu nas últimas quatro décadas, hoje se mostra confrontada com a desigualdade e a pobreza ampliadas pelo mesmo modelo econômico. A acentuada crise ecológica, corrupção e abusos de poder desencadeiam ondas de protestos violentos. Carências materiais e educacionais, desastres socioambientais de alcance global, falta de respeito à dignidade humana, mentiras elevadas à categoria de notícia e ameaças à vida das pessoas, entre outros, têm resultado na perda de confiança nas instituições nacionais e subnacionais, por um amplo espectro de grupos sociais, sobretudo vinculados às classes baixas e médias, insatisfeitas.

As contradições atingiram, inclusive, a esfera privada, com esperanças de alcançar maior igualdade e respeito. Mas a cidade é o encontro entre o público e o privado, o espaço no qual acontecem precisamente os conflitos mais complexos e no qual nada pode ser escondido. A instabilidade política em Santiago do Chile, Bogotá, La Paz e Quito – anteriormente no Rio de Janeiro, São Paulo e Buenos Aires – gerou mais incertezas do que certezas com relação ao futuro das economias e sociedades neoliberais latino-americanas. Um amplo espectro de governos cambaleia, não apenas aqueles apegados às "ideologias" comunista ou bolivarianas, sob constante pressão internacional, mas todo o espectro político. As disciplinas das ciências sociais revelam sua miopia disciplinar para explicar algumas dessas questões. O conflito supera a coesão social no âmbito dos países, e novos padrões de ação coletiva e de coesão social emergem nos territórios populares sem serem devidamente explicados, ao mesmo tempo que explodem comportamentos fundamentalistas e protofascistas. As agendas investigativas mostram-se limitadas se não incorporarem a geografia e o urbanismo críticos, para ajudar a descrever e analisar aspectos relevantes dessas realidades.

Será que estamos presenciando, na América Latina, um novo regime de acumulação, no qual o espaço urbano assume um papel preponderante no futuro das economias? Em outras palavras, a revolução urbana de Lefebvre finalmente estaria se transformando em uma realidade? Os rendimentos privados derivados da dívida hipotecária voltaram a crescer, mas também a especulação com a habitação e com o solo urbano, como mecanismos de investimento e de concentração do poder econômico. A financeirização da habitação hoje novamente viola os direitos de um grande número de famílias, não mais o subprime dos EUA e da Europa, vítimas enganadas da fase de exploração das hipotecas de alto risco, que resultou na grave crise de 2007, mas que atualmente são os inquilinos vulneráveis e inseguros, que enfrentam um aluguel oneroso e injusto, na Cidade do México ou em Buenos Aires, ou os "sem-teto”, que crescem assustadoramente em São Paulo ou que reaparecem após décadas no Chile, refletindo as fraturas mais acentuadas das políticas econômicas desses países.

A cidade neoliberal latino-americana traça claramente seus limites, não só entre os que têm mais e menos, mas agora também entre os que concentram maior número de imóveis à custa da privação do direito à moradia de um crescente número de pessoas, condenadas à condição de eternos migrantes urbanos sem lugar. O 1% da população mais rica, na América Latina, representa uma elite empresarial muito coesa, ligada a uma classe política que lhe é funcional. No Chile, por exemplo, 0,1% da população concentra 20% da riqueza ( Emol, 2019EMOL (2019). Cepal aborda desigualdad y estima que 1% más rico de Chile concentra el 22,6% de los ingresos y riquezas del país. Disponível em: https://www.emol.com/noticias/Economia/2019/11/28/968758/Cepal-1-mas-rico-Chile.html. Acesso em: 2 out 2020.
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).

É nesse cenário que ganha importância o Complexo Urbano Financeiro Imobiliário ( Aalbers, 2011AALBERS, M. (2011). Erc Refcom Project . Disponível em: http://ees.kuleuven.be/geography/projects/refcom/project/. Acesso em: jun 2020
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) conformado por quatro nichos de mercado conflitantes e inter-relacionados: primeiro, o aluguel de moradias; segundo, os investimentos em imóveis; terceiro, o solo urbano, como custo de produção e também meio de investimento; quarto, a capacidade industrial para renovar estoques imobiliários. Os quatro nichos são totalmente articulados ( Simián, 2017SIMIÁN, J. (2017). “Capítulo 2: Economía urbana y del sector inmobiliario”. In: SIMIÁN, J. M.; NIKLITSCHEK, V. (eds.). La industria inmobiliaria en Chile: evolución, desafíos y mejores prácticas. Santiago, Pearson, pp. 29-58. ). Em todos os quatro, há ineficiências comerciais, abusos de poder, falta de transparência e desequilíbrios. Em cada um desses nichos, as elites econômicas e políticas participam para influenciar e decidir sobre as regulações de sua conveniência ( Kornbluth, 2020KORNBLUTH, D. (2020). Neoliberalización y acumulación capitalista: el caso de la Cámara Chilena de la Construcción (1951-2018) . Tesis de doctorado. Chile, Universidad de Chile. ). Segundo o modelo dos quatro mercados, o incentivo ao investimento privado em habitação favorece a construção e o emprego, mas também gera concentração privada e um excesso de procura que faz subir os preços, deixando maior número de pessoas nas ruas, sem poder comprar ou alugar uma casa. Isso ocorre em Santiago, Cidade do México e São Paulo, onde foi criada uma casta de inquilinos vulneráveis, funcional ao sistema de investimento, incluindo segmentos importantes da classe média. No outro extremo, o desinteresse público pelo setor da construção e a falta de confiança social no sistema financeiro nacional, como na Argentina nas últimas duas décadas, paralisaram o setor de produção imobiliária “neoliberal”, mas também deixaram as pessoas sem casa, gerando um dos maiores déficits na cidade de Buenos Aires.

No Brasil, a Caixa Econômica Federal alavanca a dívida das megaintervenções urbanas, ainda com alto risco de perda, enquanto o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) é aniquilado no atual período bolsonarista ultraliberal, que não conhece limites. O ultraliberalismo é caracterizado por suas “falsas dicotomias” ( Slater, 2014SLATER, T. (2014). Unravelling false choice urbanism. City, v. 18, n. 4-5, pp. 517-524. Disponível em: https://doi.org/10.1080/13604813.2014.939472. Acesso em: jul 2020.
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). Por exemplo, ele nos oferece as escolhas entre o espraiamento urbano ou a megadensificação, entre a regulamentação excessiva ou o caos, entre o investimento extremo e o desinvestimento extremo, quase nunca oferecendo uma alternativa que contrarie os interesses da classe dominante no desenvolvimento urbano. Superar a falsa dicotomia imposta pelo sistema ultraliberal requer uma boa dose de imaginação acadêmica.

Realizar a convocação deste dossiê significou reconhecer a diversidade cultural regional da América Latina e do Brasil. Nesse sentido, mais do que linhas temáticas, convidamos os autores a investigar possíveis indícios de um presente “pós-neoliberal”, indefinível para o momento. A ideia de “pós-neoliberal” é uma página em branco. Exceto, talvez, pela noção, aparentemente compartilhada, de que essa vinculação (de aparência democrática) entre a liberdade empreendedorista e o autoritarismo de fato por parte da tecnocracia governamental esteja chegando ao seu fim, simplesmente porque as pessoas não podem mais suportar os efeitos dessa aliança. Daí a possibilidade de observar cenários atuais e imaginar futuros prováveis. Uma intenção teleológica, aliás, da nossa parte, a ideia de aprofundar os cruzamentos (ou fissuras) entre algumas (ou todas) as coordenadas do atual cenário de conflito urbano, um exercício de futurismo, que obviamente não conseguimos, e talvez não seja mesmo possível alcançar.

O que conseguimos realizar, pensamos, é trazer o ano de 2020, cheio de dores e dificuldades materiais, para a discussão acadêmica deste dossiê. Partimos do pressuposto de que a realidade de 2020 transbordou e se expressou com todo o seu monstruoso imediatismo e rastros de morte, para todos os autores aqui reunidos, incluindo os editores convidados. O pior momento para imaginar claramente utopias ou distopias, mas que, tampouco, é capaz de silenciar os desejos de emancipação popular e de uma ordem social alternativa, que mobilizam este dossiê. E podem ser que esses momentos sejam propícios à emergência de ideias novas, criativas e de reencantamento do mundo. A ausência de certezas e a consciência da incompletude do nosso pensamento podem favorecer o pensamento dialógico, a tolerância e a incorporação de novas perspectivas de olhar o mundo.

Para que a amostra de artigos fosse representativa dos interesses dos leitores da revista Cadernos Metrópole , ou seja, principalmente acadêmicos do Brasil, Portugal, Argentina e Colômbia, três seriam os temas mais relevantes para eles. Em primeiro lugar, a integração entre o mercado imobiliário e a financeirização, o Complexo Financeiro Imobiliário, a Refcom. Embora seja uma forma de extrativismo de renda e trabalho humano, a Refcom também é uma estrutura que requer a governança estatal para funcionar. O segundo tema é a virada epistemológica da mobilidade. O terceiro são os “movimentos sociais” muito ativos no Brasil e em Portugal hoje em dia.

No primeiro grupo de artigos, Thiago Canettieri, em Securitização da política pública em Belo Horizonte e redes de financeirização , analisa a formação da coalizão que levou à empresificação da política urbana e à securitização em Belo Horizonte, uma das primeiras cidades no Brasil a adotar esse tipo de modelo de gestão urbana. O artigo estrutura-se a partir da análise de documentos da PBH Ativos S/A e da análise das relações que determinados atores desempenham na concepção, na circulação e na efetivação desse modelo de política pública. O autor sugere a existência de uma forma específica de gestão da cidade baseada no desenvolvimento urbano-financeiro e ancorada nos mercados financeiros.

Por sua vez, Erick Omena de Melo, em seu artigo Financeirização, governança urbana e poder empresarial nas cidades brasileiras , observa a relação entre mercados financeiros e os setores tradicionalmente produtores do espaço urbano, o que se expressa particularmente relevante para a compreensão dos rumos tomados pelo desenvolvimento das cidades no início do século XXI. Estaria emergindo uma coalizão urbano-imobiliário-financeira, que se torna hegemônica ao direcionar tal desenvolvimento. Sua pesquisa busca um melhor entendimento dessa coalizão, de seu poder nos municípios e, sobretudo, de suas variações territoriais. Para tanto, são analisados dados relativos a doações eleitorais, indicando predomínio daqueles agentes ligados à acumulação urbana, tomando como foco as principais metrópoles brasileiras.

No caso da Argentina, o artigo de Marina Wertheimer, Renovación, extractivismo urbano y conflicto ambiental en la costa norte de Buenos Aires , analisa um caso de renovação urbana na cidade de Buenos Aires, liderada pelo setor público e pelo setor imobiliário, no marco de um regime urbano dominado por empresas privadas, desde 2004, bem como o contexto de surgimento de mobilizações sociais e da ambientalização do conflito. Enquanto a natureza constitui uma mais-valia, os atores coletivos desafiam a instalação desses empreendimentos urbanos pelo seu impacto ambiental e pela imposição de uma lógica comercial no seu território. Usando uma abordagem etnográfica, Wertheimer contribui para o debate sobre o extrativismo urbano e sobre o direito de acesso a espaços verdes e públicos cada vez mais escassos na cidade.

Os próximos dois artigos tratam das "mobilidades espaciais" ou da "virada da mobilidade", uma epistemologia proveniente da antropologia anglo-saxônica, que tem despertado, particularmente, um grande interesse nos engenheiros e, de uma forma geral, a produção acadêmica na Argentina e no Chile. Daniel de Albuquerque Ribeiro, em Migrações e processos socioespaciais no Eixo Pelourinho-Santo Antônio. Salvador, Bahia , elucida as relações entre os processos espaciais urbanos e as migrações em uma área da cidade de Salvador, que denominamos Eixo Pelourinho-Santo Antônio (EPS). Em seu artigo, o autor busca demonstrar que os diferentes processos espaciais urbanos, que geralmente são retratados em esquemas fechados na própria cidade, podem ser observados em uma escala mundial. Para isso, realiza estudos sobre migrações em Salvador, Bahia, relacionando--os com os processos socioespaciais urbanos da cidade, desde sua fundação até a contemporaneidade. O autor constata que o EPS constitui, desde a origem da cidade, um polo receptor de imigrantes. No decorrer do tempo, novos fluxos foram se configurando entre Salvador e o mundo, gerando, na área estudada, um complexo mosaico populacional com contribuições étnicas de todos os continentes.

Por sua vez, o artigo de Lucía de Abrantes e Luciana Trimano, Entre motivaciones y efectos. Movilidades residenciales en la Argentina contemporânea , aborda um dos temas centrais do atual momento do desenvolvimento do capitalismo urbano, o renascimento da migração das classes média e alta abastadas em busca de um sonho de suburbanidade e o impacto que isso tem nas localidades pequenas e médias, territórios concretos que sofrem o impacto das novas modalidades de sociabilidade, das percepções temporais e dos processos identitários. Tudo isso observado a partir da virada da mobilidade ( Urry, 2007URRY, J. (2007). Mobilities . Cambridge, Polity. ). São observados movimentos reais ou imaginários de objetos orgânicos e inorgânicos, dinheiro e informações, para os quais o movimento e a imobilidade representam atrito constante. Trata-se de uma nova forma de analisar os atuais processos de suburbanização, não mais a partir de uma geografia ou sociologia descritiva, mas de uma etnografia móvel dos atores.

Por fim, refletindo sobre o tema que mais despertou o interesse para o nosso dossiê de pesquisa, são apresentados os movimentos sociais urbanos no Brasil e em Portugal. Marginalmente, surge um quarto tema, que é uma epistemologia sobre a estética da favela, como recurso político e não como romantização da pobreza. Consideramos que falar de movimentos sociais urbanos populares, atualmente (e não de classes médias insatisfeitas com reivindicações específicas, como a defesa de um bairro), é um aspecto sobre o qual os autores do Brasil têm muito a dizer. O Brasil possui um dos indicadores de desigualdade, expresso no índice Gini, mais altos do mundo e uma configuração urbana muito própria que combina proximidade física e distância social, expressando-se em uma aparentemente menor escala de segregação, o que particularmente agrava o conflito cotidiano dos seus moradores. O feminismo observado em alguns artigos aqui coletados atribui um papel ativo às mulheres populares em posições de liderança, que entendem o conflito de classes que está profundamente subjacente às suas demandas por uma distribuição de poder mais igualitária. Aqui também se percebe uma particular vitalidade de Lisboa como palco de lutas urbanas, e o interessante poder reflexivo que os seus acadêmicos têm, representando o elo cultural que liga Portugal ao Brasil, como exemplo do desenvolvimento de uma relação teórica mais fluida e equivalente entre a Europa e América Latina.

Os sete artigos seguintes mostram novos rostos, novas reviravoltas e novos impulsos para se envolver na realidade concreta da pessoa que está sendo investigada, e não apenas “investigar” essa realidade de cima. Em Impasses da urbanização e regularização fundiária. Quem tem o poder de veto? , Jeferson Tavares, Marcel Fantin e Douglas de Almeida Silva falam dos impasses nas decisões sobre remoções e regularização fundiária a partir do papel das ações de planejamento urbano em assentamentos precários. A questão central é compreender os conflitos interescalares e os embates entre os modelos de desenvolvimento urbano e ambiental. O objeto de estudo é o processo de remoção dos moradores do Jardim Nova Esperança, em São José dos Campos-SP, sob dupla perspectiva: o empreendedorismo municipal e o plano de urbanização e regularização fundiária como instrumento de negociação. Os impasses que resultam desses conflitos são analisados pela teoria dos atores com poder de veto, particularizando a tomada de decisão sobre o uso e a propriedade da terra diante das novas formas de ordenamento territorial.

Heitor Vianna Moura, em seu artigo A construção de um problema público: ativismo no centro histórico de Lisboa , oferece um estudo empírico de coletivos, associações e instituições atuantes na cidade de Lisboa e da mobilização de referências teórico-metodológicas da sociologia pragmática. Busca analisar como uma série de denúncias de casos individuais de despejos ganhou o estatuto de coletividade, tornando a luta pelo direito à habitação, no centro histórico da capital, um assunto prioritário nas agendas públicas local e nacional. Partindo do entendimento de que os problemas públicos da cidade não são dados da realidade, e sim construções político-sociais, o autor pretende contribuir com as reflexões sobre o ativismo urbano, mapeando suas estratégias de publicização e de sensibilização de públicos.

Por seu lado, Luís Mendes, em Lutas urbanas pelo direito à habitação em Lisboa em tempos de pandemia , observa, também em Lisboa, durante o período pandêmico de covid19, como a ação dos movimentos sociais urbanos acirrou-se, capitalizando a visibilidade para o direito à habitação, como direito humano básico e imperativo incondicional de saúde pública, para cumprir os deveres de quarentena e de isolamento social, impostos pelo Estado de Excepção. Descrevendo o processo de lutas urbanas, participação e contestação e os ganhos na moratória contra os despejos e pagamento dos aluguéis, mostra que os atores nessa luta urbana têm poder limitado sobre as mudanças que iniciam ou fazem um esforço para infligir, se não estiverem envolvidos em uma ação concertada e politicamente integrada, até porque as conquistas que obtêm são temporárias e excepcionais, à semelhança do próprio estado de emergência imposto pela covid19.

O pacto contra violência doméstica na comunidade Menino Chorão (Campinas/SP): vitórias efêmeras , artigo de Helena Rizzatti, analisa avanços reais do feminismo no espaço popular. O pacto, instituído na comunidade Menino Chorão, tensionou as relações sociais de poder com o enfrentamento da violência doméstica, um dos pilares da construção social de gênero. Para analisá-lo, a autora parte do processo de urbanização corporativa e interseccionalizada que reproduz as desigualdades estruturais de gênero-raça-classe. O pacto é considerado uma vitória, ainda que efêmera e incompleta, da periferia urbana, pois aponta para uma possível superação do sistema capitalista-racista-patriarcal através da luta social organizada pelas mulheres, capaz de combater esse tipo de violência intensamente efetivada na sociedade brasileira. Indica-se, assim, para a potencialidade de uma racionalidade e modernidade alternativa à capitalista.

Jouberte Maria Leandro Santos e Sérgio Carvalho Benício de Mello apresentam, no artigo Um movimento social visto por dentro: a proposta contra-hegemônica do Movimento “Direitos Urbanos” , um estudo que objetiva analisar o discurso do movimento social “Direitos Urbanos” (DUs) e compreender como esse movimento se articula para desafiar discursos hegemônicos do urbanismo moderno e promover discursos alternativos ao modelo neoliberal. Para tal, os autores utilizam o aporte teórico da teoria dos Novos Movimentos Sociais (NMSs). Na análise, também foi acionada a arqueologia foucaultiana, com o objetivo de identificar as estratégias de construção do discurso do DU a partir dos sujeitos que o constituem. As análises indicaram o DU como um centro contra-hegemônico, resistente e combativo ao modelo de gestão urbana desenvolvido na cidade do Recife, afirmando um projeto alternativo de cidade. O DU possui hierarquia fluida, estratégias dinâmicas e contingenciais, atua em rede e aglomera-se para demandas específicas.

Nino Rafael Medeiros Kruger, Caroline Krüger e Cristine Jaques Ribeiro, em Um movimento contra a violação de direitos: a Estrada do Engenho resiste , discutem a garantia do direito à moradia a partir de uma reflexão sobre uma Ação Civil Pública (ACP) voltada à remoção da comunidade da Estrada do Engenho, no município de Pelotas. Com base em um movimento enraizado no método crítico dialético, tendo como esteira a pesquisa militante, a ação do Estado é problematizada, e rememoram-se a história da comunidade, as transformações ocorridas e as táticas desenvolvidas pelo mercado imobiliário e pelo poder público. Os autores questionam, ainda, a produção histórica de racionalidades excludentes e os problemas oriundos da má gestão das políticas públicas. Como resultado, eles identificam a construção de linhas de ação, possibilitando a desestabilização do processo, protegendo e preservando modos de habitar da comunidade local.

A decisão de deixar para o final a investigação sobre o olhar estético do afeto foi deliberada. O artigo de Lia Beatriz Teixeira Torraca, O olhar estético do afeto: reterritorializando o Rio de Janeiro, talvez seja a abordagem mais inovadora entre os 12 artigos apresentados. Uma técnica para “fazer ver”, “transformar o ver em olhar” e “fazer agir sobre” através da experiência fotográfica. Uma alternativa para reimaginar a cidade sob outra perspectiva e poder reconfigurar a imagem do Rio de Janeiro e suas relações a partir da virtualização e projeção das imagens fotográficas produzidas na favela, ou seja, um recurso para reterritorializar a cidade. Uma proposta construída a partir do conceito de desterritorialização de Pierre Lévy e na teoria de imagem complexa de Josep Català Domènech, tendo como referência metodológica a Fenomenologia da percepção, de Maurice Merleau-Ponty. Acreditamos que esta seja uma via possível e criativa para abrir pistas em torno da pesquisa geográfica sobre o amor, em contraste com o presente tremendamente materialista que vivemos.

Adicionalmente ao dossiê especial, temos a inclusão de quatro contribuições de caráter mais heterogêneo e de interesse geral, que selecionamos para a seção de artigos complementares da revista. O artigo de Ruskin Freitas e Jaucele Azerêdo, Do natural ao construído: proposta para estimar acúmulo de calor em metrópoles , estuda a formação de climas urbanos diferentes no processo de urbanização, analisando por geometria urbana, materiais e atividades. A metodologia que eles apresentam permite orientar intervenções que visem à satisfação dos cidadãos, à eficiência dos espaços e à sustentabilidade ambiental. Aparentemente, pelo menos até o momento, essa linha de pesquisa tem sido pouco explorada por parte dos estudos sobre o “direito à cidade” ou sobre as desigualdades urbanas como variáveis possivelmente correlacionadas com temperatura e acesso a áreas verdes e serviços ambientais na cidade e no território.

No artigo seguinte, O lugar da cotidianidade no planejamento urbano: um olhar a partir do Guarituba (Piraquara/PR) , Liria Yuri Nagamine foca no bairro de Guarituba, periferia de Curitiba, para desenvolver uma metodologia de pesquisa participante. Seus resultados mostram que as pessoas vivem desigualmente a cotidianidade, com momentos de alienação e desalienação (comunitária), com a presença de um poder público que se manifesta por uma ausência, não reconhecendo o cotidiano como forma relevante de análise e atuação. Trata-se de um problema político e também epistemológico, que se busca enfrentar tanto no âmbito das políticas públicas como na forma em que as e os pesquisadores estabelecem seus vínculos com os campos de observação.

Dando sequência, o artigo O empresariado urbano nos projetos de revitalização portuária no Rio de Janeiro , de Júlia Erminia Riscado, aborda a revitalização portuária no Rio de Janeiro como um espaço de participação e incidência empresarial sobre a governança estatal. A recuperação histórica desse processo, de 1980 em diante, permite identificar como a operação urbana consorciada reflete interesses nacionais, do estado e do município, mas, sobretudo, do empresariado. Nesse contexto, foi possível observar a participação de determinados grupos empresariais e agentes públicos no desenho do projeto de revitalização fundado no modelo de Cepacs e na assunção de riscos e responsabilidades pelo poder público.

O artigo seguinte, Da democracia participativa à desdemocratização na cidade: a experiência do Orçamento Participativo em Porto Alegre , o último deste número, poderíamos dizer que aborda uma temática distinta do paper anterior. Neste artigo, Lucimar Fátima Siqueira e Eber Pires Marzulo analisam o efeito da democracia na produção da cidade, tendo como foco a experiência do Orçamento Participativo (OP) em Porto Alegre. O trabalho estabelece um quadro da experiência democrática, a saber: 1) democracia-participativa (1989-2004); 2) liberal-governança (2005-2016); e 3) ultraliberal-mercado (2016-), observando a incidência dessas modificações nas dinâmicas de produção da cidade. O processo vivido pela cidade é interpretado como uma desdemocratização com alguns impactos sociais sobre a dinâmica de produção da cidade.

Por fim, gostaríamos de deixar um reconhecimento especial à trajetória dos Cadernos Metrópole que comemora 50 números, tendo se consolidado como uma das principais revistas científicas no campo dos estudos urbanos e regionais, em uma perspectiva interdisciplinar, sempre trazendo temas emergentes para o debate. Também queremos expressar nosso agradecimento especial aos avaliadores convidados, que anonimamente contribuíram para a produção deste número, bem como à Raquel Cerqueira, assistente da equipe editorial da revista Cadernos Metrópole, sem a qual este número não teria sido possível.

Referências

  • AALBERS, M. (2011). Erc Refcom Project . Disponível em: http://ees.kuleuven.be/geography/projects/refcom/project/ Acesso em: jun 2020
    » http://ees.kuleuven.be/geography/projects/refcom/project/
  • EMOL (2019). Cepal aborda desigualdad y estima que 1% más rico de Chile concentra el 22,6% de los ingresos y riquezas del país. Disponível em: https://www.emol.com/noticias/Economia/2019/11/28/968758/Cepal-1-mas-rico-Chile.html Acesso em: 2 out 2020.
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  • KORNBLUTH, D. (2020). Neoliberalización y acumulación capitalista: el caso de la Cámara Chilena de la Construcción (1951-2018) . Tesis de doctorado. Chile, Universidad de Chile.
  • SIMIÁN, J. (2017). “Capítulo 2: Economía urbana y del sector inmobiliario”. In: SIMIÁN, J. M.; NIKLITSCHEK, V. (eds.). La industria inmobiliaria en Chile: evolución, desafíos y mejores prácticas. Santiago, Pearson, pp. 29-58.
  • SLATER, T. (2014). Unravelling false choice urbanism. City, v. 18, n. 4-5, pp. 517-524. Disponível em: https://doi.org/10.1080/13604813.2014.939472 Acesso em: jul 2020.
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  • URRY, J. (2007). Mobilities . Cambridge, Polity.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021
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