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“Vestindo a camisa da empresa”: neoliberalismo e a subjetividade dos trabalhadores shoppers

Resumo

O presente artigo visa compreender a subjetividade do trabalhador shopper, avançando na análise da uberização no cenário brasileiro e dos impactos do neoliberalismo no tecido social e urbano. Observamos como os shoppers descrevem suas atividades, quais relações estabelecem com as plataformas e colegas e de que forma manifestam sua identidade. Para tanto, analisamos dois trabalhadores que narram questões sobre esse tipo de trabalho em canais do YouTube . As conclusões sinalizam que as incertezas vivenciadas nesse contexto se convertem em indefinições quanto às suas identidades profissionais, que se somam a um contexto urbano dominado pela falta de proteção de milhões de trabalhadores, por vezes vistos a si mesmos como empreendedores de suas próprias vidas que buscam construir alternativas de renda e trabalho.

neoliberalismo; shopper; uberização; informalidade

Abstract

This article aims to understand the subjectivity of the shopper worker, analyzing uberization in the Brazilian scenario and the impacts of neoliberalism on the social and urban reality. We investigated how shoppers describe their activities, what relationships they establish with platforms and colleagues, and how they manifest their identity. To achieve this, we analyzed two workers who talk about this type of work on YouTube channels. The conclusions point out that the uncertainties experienced in this context are converted into uncertainties regarding their professional identities, which are added to an urban context dominated by lack of protection of millions of workers, who are sometimes seen as entrepreneurs of their own lives seeking to build alternatives of income and work.

neoliberalism; shopper; uberization; informality

Introdução

O neoliberalismo, encarado como racionalidade política que constrói e modula subjetividades – uma razão de mundo, pela ótica de Pierre Dardot e Christian Laval (2016)DARDOT, P.; LAVAL, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo. , por sua vez influenciada pela leitura de Michel Foucault (2008)FOUCAULT, M. (2008). O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, Martins Fontes. sobre o fenômeno –, possui impactos perniciosos na vida social e de maneira muito latente para as camadas populares, por vezes negligenciados nos estudos que privilegiam a influência desse sistema de ideias sobre o Estado. Ao preconizar o governo das sociedades baseado numa generalização do mercado e da concorrência, o neoliberalismo suscita não apenas novas formas de organização produtiva, como também inscreve normas gerenciais nas práticas governamentais e nas próprias ações humanas, resultando em sujeitos e instituições vistos a si próprios como empresas (ibid.) e ausentes de mecanismos de intermediação coletiva e regulação social.

Com as transformações tecnológicas dos sistemas de produção, principalmente pelo uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), que possibilita a emergência de novas atividades mais individualizadas, mediadas por softwares que assumem o comando de diversas atividades humanas ( Manovich, 2013MANOVICH, L. (2013). Software takes command. Nova York, Bloomsbury. ), é possível pensar em novas organizações das maneiras de produzir e oferecer produtos e serviços. Assim como novas práticas de consumo desses bens, que nesse processo revelam uma ausência de garantias e segurança para o lado mais frágil dessa balança: o dos trabalhadores e trabalhadoras submetidos a tais arranjos ( Abílio, 2019ABÍLIO, L. C. (2019). Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, pp. 41-51. ).

Nesse novo contexto, as cidades, principalmente nas metrópoles, veem-se diante de reconfigurações do urbano, permeado pela ausência de regulação e coordenação pública e suscetível ao imperativo da lógica privada. Há, então, uma tentativa de se adequar ao fugaz desenho do trabalho contemporâneo, muitas vezes precarizado, em que as desigualdades se refletem no espaço e são, através dele, mais bem entendidas, assim como colocam desafios para a governança pública.

O trabalho por aplicativos pode servir de exemplo para esse cenário. Deparamo-nos com novidades no cotidiano que são introduzidas gradualmente e transformam a maneira de ver e pensar determinados hábitos de consumo e formas de trabalho. Nessa lógica, algumas empresas acabam por influenciar o mercado e modificar, paulatinamente, a cadeia produtiva, os hábitos de consumo e as maneiras de o Estado lidar e regular essas questões. É o caso da plataforma Uber, cujo modelo de organização se pauta no uso de big data para o gerenciamento de trabalhadores como um tipo de usuário de aplicativo, que, por sua vez, atende a consumidores, que formam o outro grupo de usuários. Este último grupo, por demandar o serviço, passa também a avaliar o desempenho daqueles responsáveis pela prestação, os trabalhadores. Muito conhecida no serviço de transporte de passageiros, essa organização tem se estendido a ramos como delivery de refeições e mercadorias, serviços de estética, transporte de cargas e compras em supermercados. A depender do ramo em que se insere, esse modelo encontra maior ou menor espaço para crescimento, conforme os hábitos de consumo da população e flexibilidades jurídicas de cada mercado.

No advento da pandemia do novo coronavírus, vimos crescer de maneira exponencial o ramo de delivery de refeições e o de compras em supermercados. No Brasil, esse último segmento, que até então não possuía muitos adeptos, passou a se oferecer como uma saída para as pessoas que evitavam sair de suas casas, com receio de infectar a si e a seus familiares e, ainda assim, precisavam comprar mantimentos de uso cotidiano. Assim, alternativas para a realização dessa atividade foram ofertadas por empresas como Cornershop, Rappi e James Delivery. Plataformas que conectam consumidores com pessoas dispostas a fazer essas compras em mercado e as entregar em domicílio, arriscando sua saúde, sob remuneração de acordo com parâmetros definidos pelas empresas.

A crescente literatura em torno do trabalho por aplicativos aponta para uma perspectiva crítica sobre as condições encaradas por essa mão de obra, assim como a lógica operada pelas plataformas que modulam tais condições ( Scholz, 2016SCHOLZ, T. (2016). Cooperativismo de Plataforma: contestando a economia do compartilhamento colaborativa. São Paulo, Elefante e Autonomia Literária. ; Srnicek, 2017SRNICEK, N. (2017). Platform capitalism. Cambridge, Polity Press. ). Em especial, o debate em torno do fenômeno da uberização, apontado por Slee (2017)SLEE, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo, Elefante. e, numa ótica mais próxima à realidade brasileira, desenvolvido também por Abílio (2019ABÍLIO, L. C. (2019). Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, pp. 41-51. e 2020ABÍLIO, L. C. (2020). Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, v. 34, n. 98. ), revela a formação de novas identidades profissionais, sob uma transformação profunda da maneira como o sujeito se enxerga em relação à atividade que desempenha. Sennett (2006)SENNETT, R. (2006). A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record. já havia identificado o sujeito resultante do que chamou de uma cultura do novo capitalismo como alguém que se pauta por relações de curto prazo, busca incessantemente por novas capacidades e prega por um certo desapego ao passado, invocando uma personalidade de consumidor e não de um proprietário zeloso por seus atributos pessoais. Boltanski e Chiapello (2009)BOLTANSKI, L. e CHIAPELLO, È. (2009). O novo espírito do capitalismo. São Paulo, Martins Fontes. sinalizaram para a importância de uma organização por projetos num mundo conexionista, em que a formação e a manutenção de redes dinâmicas e de pontos facilmente reativáveis se faziam essenciais para o novo espírito capitalista em ascensão. Numa trama mais próxima ao contexto nacional, Telles (2006TELLES, V. (2006). “Introdução”. In: TELLES, V.; CABANES, R. Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo, Humanitas. e 2010TELLES, V. (2010). A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte, Argumentum. ) apontou que a experiência social do trabalho no neoliberalismo indicava outros tempos da vida e sua relação com a cidade, em um cenário que enseja precariedade, descontinuidade e incerteza. Se remetermos à descrição da subjetividade advinda da racionalidade neoliberal, pautada pela concorrência como norma social e a organização de indivíduos na forma-empresa, temos na categoria shopper 1 1 Este é um termo usado pelos próprios trabalhadores desse tipo de serviço, razão pela qual decidimos mantê-lo em nossa análise. Em inglês, shopper designaria um comprador, e a palavra é mobilizada pela plataforma Cornershop , de propriedade da Uber , que nomeia seus usuários trabalhadores dessa maneira. Assim, quando a empresa adentrou o mercado brasileiro, muitos se tornaram shoppers , pois, na grande maioria, iniciaram os trabalhos nesse aplicativo, mesmo que atualmente prestem serviço também a outras plataformas. Mais recentemente, uma startup de nome Shopper, com atuação semelhante às demais plataformas citadas, tem ganhado mercado na cidade de São Paulo. Contudo, o termo shopper permanece com seu sentido abrangente, podendo designar trabalhadores desse ramo em diferentes plataformas. – o trabalhador que faz compras em supermercados intermediadas por grandes plataformas – uma importante figura desse contexto. O que não implica conceder todos esses atributos a esse tipo de trabalhador, mas sim pensar em como essa subjetividade está sendo formada e de que maneira ela dialoga com as influências que recebe. Importante frisar: se há a emergência de novos elementos na relação sujeito e trabalho, há também permanências relevantes nas práticas e identificações relacionadas ao trabalho no mercado não formalizado, tendo em vista sua importância e peso histórico e estrutural para a economia brasileira. A ausência de garantias e direitos para essa fração do mercado de trabalho por parte da governança pública marca a trajetória desse setor, que, embora flerte com o horizonte do assalariamento, vê-se cada vez mais distante de conquistá-lo, sobretudo com os novos arranjos produtivos do neoliberalismo e com as próprias dissolvências do mundo assalariado.

O objetivo deste artigo, portanto, é avançar na compreensão da subjetividade do trabalhador shopper , considerando que esta é uma categoria que nos permite analisar o contexto da uberização no cenário brasileiro e progredir, assim, na compreensão dos impactos do avanço neoliberal no tecido social e urbano. Iremos nos atentar para as seguintes questões: Como os shoppers descrevem sua ocupação e suas atividades de trabalho?; Quais relações estabelecem com as plataformas e com seus semelhantes?; Como representam suas atividades ante a sociedade e de que forma reivindicam reconhecimento e manifestam sua identidade?; De que maneira se veem diante do Estado e se colocam politicamente? Para tanto, analisaremos dois trabalhadores shoppers que narram seus cotidianos e questões sobre esse tipo de trabalho através de canais da plataforma de vídeos YouTube .

Na sociedade digitalizada, o YouTube torna-se um importante espaço de expressão das subjetividades contemporâneas. A plataforma de quinze anos tem aproximadamente dois bilhões de usuários únicos mensais,2 2 Informações disponíveis em: https://www.youtube.com/intl/en-GB/about/press/ . Acesso em: 23 jul 2021. sendo o segundo site mais visitado do mundo, atrás apenas do Google. Tendo usos variados por seus usuários, o YouTube sofreu importantes transformações ( Burgess e Green, 2009BURGESS, J.; GREEN, J. (2009). YouTube e a revolução digital. São Paulo, Aleph. ), deixando de ser somente um repositório de vídeos caseiros para se converter em uma importante mídia social para a produção de novos negócios, a emergência de influenciadores digitais ( Karhawi, 2017KARHAWI, I. (2017). Influenciadores digitais: conceitos e práticas em discussão. Communicare, v. 17, pp. 46-61. ) e o surgimento de dispositivos de performance do self , a partir de elementos colocados em cena pelos usuários ( Jesus, Salgado e Silva, 2014JESUS, E.; SALGADO, T.; SILVA, P. (2014). Performances e produção de efeitos subjetivos no Instagram e no YouTube. Fronteiras-estudos midiáticos, v. 16, n. 3, pp. 243-256. ). As performances publicadas na plataforma do YouTube projetam-se como um recurso (dispositivo) de midiatização de um “eu” representado perante uma audiência a partir de termos de busca (internos ou externos) e dos algoritmos de recomendação da plataforma (rede sociotécnica). Dessa maneira, a autorrepresentação da atividade profissional por trabalhadores shoppers , por meio do YouTube , configura-se como elemento estruturante de sua identidade e subjetividade, foco deste estudo.

O artigo está dividido em mais quatro seções, para além desta introdução. Iniciaremos abordando com maior profundidade o debate sobre o neoliberalismo e seus impactos no contexto brasileiro. Buscaremos traçar de que maneira está associada a uberização com esse modelo de governo da sociedade e como podemos pensar as formas de trabalho resultantes, considerando nosso cenário histórico e social. Na seção seguinte, faremos uma explicação de como opera a plataforma Cornershop no Brasil e quais atividades são exigidas dos trabalhadores shoppers . Em seguida explicaremos o recorte metodológico adotado e apresentaremos os dois canais de YouTube analisados, primeiramente fazendo uma leitura geral sobre eles e, após isso, descrevendo e analisando cada trabalhador shopper a partir de falas, ações e comportamentos de cada um exibidos em seus vídeos. A seção final será dedicada a traçar conclusões sobre a análise feita e sua relação com a temática proposta, indicando possíveis agendas de pesquisa e traçando um pequeno panorama da subjetividade do trabalhador shopper.

Neoliberalismo, uberização e subjetividades ligadas ao trabalho

A emergência da razão neoliberal – conforme adiantado na Introdução deste artigo – enquanto uma estratégia de governo, ou de governamentalidade, dos próprios modos de governar e exercer a biopolítica ( Foucault, 2008FOUCAULT, M. (2008). O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo, Martins Fontes. ), provocou profundos reordenamentos na forma de indivíduos e instituições verem a si próprios em relação à sociedade. Se as ideias presentes na Escola de Chicago, defendidas por economistas como Milton Friedman, ou mesmo na Escola Austríaca de Von Mises e Hayek, não obtinham grande lastro no debate político mainstream assim que surgiram, a partir da década de 1970 esse cenário passou a ser revertido. Tornou-se bastante difusa, nos meios acadêmicos e no ambiente corporativo, a mobilização para que o indivíduo, segundo determinada visão, extenuado da previsibilidade e acomodamento do fordismo, reivindicasse maior autonomia diante das estruturas burocráticas que encarava, através de uma consideração dele próprio como sujeito-empresa. Alguém que assume riscos, busca valorizar seu capital de modo constante e se organiza em torno de mecanismos concorrenciais ( Dardot e Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo. ).

Se analisarmos esse processo de mudanças de produção e nos pensamentos e subjetividades por outra chave teórica, também é possível notar transições importantes na maneira de os indivíduos organizarem seus trabalhos e sua forma de encarar a vida econômica e profissional. Sennett (1999SENNETT, R. (1999). A corrosão do caráter. Rio de Janeiro, Record. e 2006SENNETT, R. (2006). A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record. ) dá conta de situar a transição ocorrida em aspectos subjetivos de trabalhadores entre uma época marcada pelo fordismo e sua capacidade de propiciar estabilidade, planejamento a longo prazo e definição de rotinas, em contraste com uma nova cultura do capitalismo permeada pelo curto prazo e pela impossibilidade de se fazer longos planejamentos de vida. No ambiente de trabalho, isso ensejaria, entre outros aspectos, um baixo nível de lealdade institucional, ou seja, lealdade entre trabalhadores e as empresas que atuam, bem como uma diminuição da confiança informal desses trabalhadores e seus colegas ( Sennett, 2006SENNETT, R. (2006). A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record. ).

Explorando essa nova posição perante o mundo do trabalho, Boltanski e Chiapello (2009)BOLTANSKI, L. e CHIAPELLO, È. (2009). O novo espírito do capitalismo. São Paulo, Martins Fontes. destrincham o que seria um novo espírito do capitalismo, cujo ethos aponta para uma nova vida social, formada pela multiplicidade de encontros e por redes cujas conexões são temporárias, embora sempre reativáveis. O projeto torna-se, assim, o pretexto para a formação ou reativação dessas conexões: “Ele reúne temporariamente pessoas muito diferentes e apresenta-se como um segmento de rede fortemente ativado durante um período relativamente curto, mas que permite criar laços mais duradouros, que permanecerão adormecidos, mas sempre disponíveis” (ibid., p. 135). Seguindo essa visão, as redes de conexão passam a garantir o êxito dos indivíduos no mundo profissional. Quanto maior a rede de contatos de uma pessoa, mais projetos ela possui e, portanto, mais modos de se adequar ao meio em que está inserida. Essa fugacidade das conexões e atividades se reflete também em questões como a noção tradicional de propriedade no capitalismo. Enquanto essa visão privilegia a posse de algo, no novo espírito do capitalismo, a disponibilidade desse bem passa a ser mais importante. Não à toa passam a ser frequentes as relações de locação ao invés daquelas de compra e venda. Com isso, reside na posse de si a ideia de propriedade que ainda é tão cara ao sistema capitalista. É aqui que podemos pensar no empreendedorismo, como pautou López-Ruiz (2007)LÓPEZ-RUIZ, O. (2007). Os executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo: capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro, Azougue. , como um valor social a ser cultivado nas práticas do cotidiano. Estamos nos referindo aos empresários ou empreendedores de si mesmos que tanto ganham terreno no mundo do trabalho contemporâneo, marcado pela desregulamentação das profissões e do próprio mercado de trabalho, colocando desafios para a dinâmica da vida urbana.

Outras mudanças também se fazem presentes com o advento neoliberal. Para além da alteração nas formas de pensar e conduzir as vidas e os rumos profissionais dos indivíduos, as instituições são profundamente modificadas a partir do neoliberalismo. O Estado torna-se, ao mesmo tempo, alvo e agente dessas transformações. Como pautam Cruz e Fonseca (2018)CRUZ, M.; FONSECA, F. (2018). Vetores em contradição: planejamento da mobilidade urbana, uso do solo e dinâmicas do capitalismo contemporâneo. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 20, n. 42, pp. 553-576. , os programas e projetos governamentais, sob o que chamaram de ideais ultraliberais, constroem-se a partir de uma precedência da esfera privada sobre a esfera pública, exemplificada em propostas como a desestatização na economia, a desproteção dos capitais nacionais, o desmantelamento do Estado social – aspecto notado também em Fonseca (2019)FONSECA, F. (2019). Impactos do neoliberalismo ao estado de bem‐estar e à democracia: Uma análise conceitual e empírica. GIGAPP Estudios Working Papers, v. 6, n. 117, pp. 114-130. – e “ uma desregulação e desregulamentação da produção, da circulação dos bens e serviços , do mercado financeiro, das relações de trabalho e de todas as formas de mercado, entre as quais o imobiliário” ( Cruz e Fonseca, 2018CRUZ, M.; FONSECA, F. (2018). Vetores em contradição: planejamento da mobilidade urbana, uso do solo e dinâmicas do capitalismo contemporâneo. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 20, n. 42, pp. 553-576. , p. 556; grifos nossos). Assim, essa desregulamentação se faz sentir, por sua vez, no tecido social urbano e na gestão de grandes metrópoles, uma vez que a organização do espaço e dos múltiplos interesses econômicos estaria dependente de uma vinculação do Estado aos pressupostos do mercado, este em constante e acelerada modificação.

As maneiras com que bens e serviços são circulados também sofrem alterações estruturais, influenciadas e sendo parte, por certo, das modificações aqui já notadas entre indivíduos e instituições. Um exemplo dessa relação é o incentivo a uma economia do compartilhamento incentivada pela noção de que “tudo pertence a todos” ou “o que é meu é seu” ( Zanatta, 2016ZANATTA, R. (2016) “O capitalismo de plataforma no Brasil”. In: SCHOLZ, T. Cooperativismo de plataforma: contestando a economia do compartilhamento colaborativa. São Paulo, Elefante e Autonomia Literária. , p. 22). Scholz (2016)SCHOLZ, T. (2016). Cooperativismo de Plataforma: contestando a economia do compartilhamento colaborativa. São Paulo, Elefante e Autonomia Literária. demonstra que a economia baseada no compartilhamento de bens e serviços, ao invés da posse privada deles, apesar de oferecer mais alternativas para a obtenção de renda, estende mercados livres desregulados a áreas até então essencialmente privadas de nossas vidas. Assim, as grandes empresas do chamado capitalismo de plataforma dependem de nossos carros, apartamentos, emoções e, principalmente, de nosso tempo, para crescerem, sendo apenas intermediadoras logísticas em que os bens relacionados são, nesse caso, os indivíduos.

O conceito de capitalismo de plataforma, originalmente criado por Nick Srnicek, buscou referenciar uma nova etapa da economia global baseada em empresas de tecnologia que centram seu foco na exploração econômica dos dados: as plataformas, como a Cornershop, que aqui será esmiuçada. Essas plataformas passam a organizar os mercados, mediando a infraestrutura entre diferentes grupos e, ao definir “as regras do jogo”, também ditam como as demais empresas se estruturam dali em diante, havendo pouca margem de manobra ( Srnicek, 2017SRNICEK, N. (2017). Platform capitalism. Cambridge, Polity Press. ). Scholz (2016SCHOLZ, T. (2016). Cooperativismo de Plataforma: contestando a economia do compartilhamento colaborativa. São Paulo, Elefante e Autonomia Literária. , p. 18) denominou “uma armadilha precária de salários baixos” a economia do compartilhamento propalada pelas plataformas. Ao igualar trabalhadores e consumidores como ambos sendo usuários dos aplicativos oferecidos por essas plataformas, há uma dualidade dessa relação. Se, por um lado, trata-se de ter novas oportunidades econômicas, por outro, os usuários trabalhadores que fornecem os bens e serviços aos usuários consumidores são por estes gerenciados, com a prerrogativa de punir ou, mesmo, demitir a pessoa que está prestando determinado serviço. É aqui que podemos falar da uberização como conceito que sintetiza os efeitos desse modelo econômico para a organização social. Slee (2017)SLEE, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo, Elefante. analisa esse movimento como algo que despontou enquanto inovador, parte de um apelo sustentável e comunitário, e, ao fim, tornou-se um espaço desregulado e controlado por grandes empresas. Estas acabaram por promover uma nova onda de precarização do trabalho.

Abílio (2019ABÍLIO, L. C. (2019). Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, pp. 41-51. e 2020ABÍLIO, L. C. (2020). Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, v. 34, n. 98. ) desenvolve esse cenário explorando o que chamou de era do “trabalhador just in time ” para descrever o que compreende como uberização. O argumento da autora, após estudar revendedoras de cosméticos e entregadores motociclistas, é de que as formas de exploração do trabalho na periferia, que antes tinham um papel secundário ou marginal na explicação do modo de produção do capitalismo, agora desempenham papel central para explicar a dinâmica econômica global. Importante notar que elementos bastante presentes na realidade histórica do mercado laboral brasileiro, como a indefinição sobre o que é considerado tempo de trabalho ou não, as confusões sobre o que deve ser remunerado, quais são os espaços domésticos e espaços de trabalho, todos eles são aprofundados num modelo flexível que alcança níveis mundiais, ultrapassando a barreira do sul global e ensejando uma nova forma de gestão e controle. O conceito de uberização é compreendido, dessa maneira, enquanto um amplo e generalizado processo de informalização do trabalho, o que provoca alterações na forma como a própria informalidade é concebida, pois a uberização, segundo Abílio (2020)ABÍLIO, L. C. (2020). Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, v. 34, n. 98. , engloba processos de desregulamentação estatal e a extinção de mecanismos de controle das relações de trabalho, legitimando e tornando banal a transferência de custos e riscos ao próprio trabalhador. Esse processo se dá, entre outros aspectos, a partir da conversão de trabalhadores em profissionais autônomos, que se autogerenciam e estão sempre disponíveis para uma multidão de consumidores. Nesse sentido, a subjetividade do trabalhador na uberização é alterada de maneira profunda, uma vez que aspectos relacionados à sua identificação em relação às atividades que desempenha são suprimidos. Assim, emerge o conceito de trabalho amador enquanto algo que é temporário, mesmo que se coloque de modo permanente, pois não há definições de atividades, horários e espaços de trabalho, assim como planejamentos a longo prazo para a ocupação são impossíveis de serem traçados (ibid.).

Um elemento importante da uberização definida por Abílio (2019ABÍLIO, L. C. (2019). Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, pp. 41-51. e 2020ABÍLIO, L. C. (2020). Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, v. 34, n. 98. ) é o fato de que, embora ela tome proporções inéditas e enseje formas novas de regulação e controle, as incertezas e a flexibilidade propiciadas por esse modelo não são questões inéditas no horizonte da classe trabalhadora brasileira. O trabalho de Machado da Silva (2018)MACHADO DA SILVA, L. A. (2018). O mundo popular: trabalho e condições de vida. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens. e a construção positiva (no sentido de buscar uma afirmação ao invés de negar o seu oposto) do que considera como estratégias de vida e sobrevivência elucidam que, ao contrário de encararmos a informalidade como apenas o espelho invertido do assalariamento, é necessário enxergar as práticas existentes nesse universo como legítimas e reveladoras do modo de vida de um enorme contingente da população brasileira. Analisar a subjetividade do trabalhador em meio à uberização é, portanto, considerar sua trajetória enquanto classe e as práticas econômicas e sociais antes por ela desenvolvidas.

Além disso, mudanças concretas surgiram nesse universo de práticas populares econômicas, sobretudo a partir da década de 1990. As formas de obtenção da renda e as estratégias de vida se alteraram com grandes proporções nos grandes centros urbanos. As incertezas e a necessidade de traçar cálculos e estratégias diante delas permanecem, mas o horizonte do assalariamento dá lugar a um cenário cuja proteção social perde o grau como referência a ser buscada pelos trabalhadores. Telles (2010)TELLES, V. (2010). A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte, Argumentum. situa essa dinâmica de maneira bastante precisa, olhando para a cidade de São Paulo, mas num processo que, podemos dizer, pode ser observado nos demais centros urbanos brasileiros:

[...] a economia informal, desde sempre presente na cidade (e no país) expande-se por meio de novas articulações entre a tradicional economia de sobrevivência, os mercados locais, que se espalham pelas regiões, mesmo as mais distantes da cidade, e os circuitos globalizados da economia. Trata-se aqui de novas conexões e de uma escala de redefinições inteiramente em fase com o mundo globalizado, que redesenham espaços e territórios urbanos nas trilhas de redes de subcontratação que chegam aos pontos extremos das periferias pelas vias de uma meada inextricável de intermediários e intermediações que reativam o trabalho a domicílio e redefinem o chamado trabalho autônomo, ao mesmo tempo que os mercados locais são, também eles, redefinidos na junção das circunstâncias da chamada economia popular com máfias locais e comércio clandestino de bens lícitos ou ilícitos de procedência variada. (p. 9)

A plataforma Cornershop e a atividade dos shoppers

A Cornershop é uma startup chilena criada em 2015 e que, no início, atuava apenas no Chile, Peru, México e Canadá, com foco no mercado latino-americano, segundo Oskar Hjertonsson, seu fundador.3 3 Ver: Uber compra startup chilena de entregas de mercado Cornershop. Disponível em: https://link.estadao.com.br/noticias/empresas,uber-compra-startup-chilena-de-entregas-de-mercado,70003046303 . Acesso em: 8 nov 2020. Em outubro de 2019, a Uber adquiriu participação majoritária na empresa. Chegou, assim, ao mercado brasileiro no início de 2020 e gradativamente ampliou as cidades e regiões em que atuava.4 4 Ver: Cornershop: como funciona o serviço de mercado em parceria com Uber. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/listas/2020/08/cornershop-como-funciona-o-servico-de-mercado-em-parceria-com-uber.ghtml . Acesso em: 8 nov 2020. Em junho de 2021, a Uber assumiu 100% da startup após desembolsar U$1,4 bilhão.5 5 Ver: Uber assume 100% da Cornershop por mais de U$ 1,4 bilhão. Disponível em: https://neofeed.com.br/blog/home/uber-assume-100-da-cornershop-por-mais-de-us-14-bilhao/ . Acesso em: 17 dez 2021.

A agora denominada Cornershop by Uber é um aplicativo que intermedeia a compra e venda entre lojas e supermercados e consumidores previamente cadastrados. Na outra ponta, para garantir essa relação, estão aqueles que farão as compras demandadas, indo até as lojas registradas, selecionando os produtos escolhidos, comprando-os e entregando-os nos domicílios. São os shoppers , termo cunhado pela própria empresa e aderido pelos concorrentes do segmento. Assim como em outros aplicativos, há versões diferentes para clientes e shoppers, ambas disponíveis para download em sistemas Android e iOS .

Tornar-se um shopper é semelhante a se tornar um motorista da Uber: é preciso ter mais de 18 anos, carteira nacional de habilitação e um veículo em bom estado com ano igual ou superior ao de 1999 com permissão para circulação.6 6 Na Uber, entretanto, é solicitado um carro cuja fabricação date de até 10 anos. Essa é uma vantagem comparativa para quem deseja se tornar um shopper , uma vez que não precisa ter um carro tão novo. Algumas etapas, contudo, precisam ser cumpridas após o cadastro inicial:7 7 Essas etapas são baseadas nos relatos dos shoppers por nós analisados e no contexto de produção dos vídeos que utilizamos. Algumas dessas etapas, porém, foram alteradas ao longo do tempo de atuação da plataforma, como um encurtamento da capacitação on-line e a dispensa de um teste de aprovação dos conhecimentos. Contudo, optamos por descrever aquelas que vigoravam quando do início da produção dos vídeos e relatos dos dois s hoppers que estudamos, por volta de abril de 2020. (1) apresentação on-line da empresa; (2) envio de documentos e curso on-lin e de instruções e regras de funcionamento do aplicativo, com expectativa de 90% de acerto no teste; (3) se aprovado, assinatura de contrato e treinamento com shopper experiente; (4) retirada de material da empresa: cartão de débito e crédito para realizar as compras, máscaras e álcool em gel, sacolas retornáveis e a camiseta com nome à frente. Assim, os shoppers são pessoas facilmente identificáveis nos supermercados, literalmente “vestindo a camisa da empresa”, mesmo que atuem como trabalhadores autônomos.

O horário em que as atividades podem ser desempenhadas é o que as lojas estão, em sua maioria, abertas: das 7 às 23 horas; esse horário, segundo a empresa, fornece maior segurança ao trabalhador. Já a remuneração do shopper se dá em dois momentos: um na compra dos produtos, com um valor fixo mais um variável segundo peso e quantidade dos produtos; e outro nos deslocamentos até o supermercado e até a casa da pessoa que realizou o pedido, sendo o valor condicionado à quilometragem e, novamente, ao peso dos produtos. Para receber esses valores acumulados, o shopper cadastra-se como Microempreendedor Individual (MEI), alternativa incentivada pela plataforma, ou emite um Recibo de Pagamento Autônomo (RPA). O pagamento ocorre sempre às sextas-feiras e se refere aos ganhos da semana anterior.

Figura 1
– Trabalhador shopper com a camisa fornecida pela empresa

Assim como em outras plataformas, há incentivos e promoções que a empresa Cornershop destina para regular a oferta e a demanda e para cobrir determinadas regiões. Estes produzem impactos psicológicos e na tomada de decisões dos shoppers, seja impulsionando o surgimento de pessoas interessadas, seja incentivando cargas maiores de trabalho e expedientes prolongados.

A seção de “Benefícios” das Perguntas Frequentes na aba “Seja um shopper ”, do site da Cornershop9 9 Disponível em: https://cornershopapp2.helpsite.com/ . Acesso em: 27 jul 2021. é bastante elucidativa da relação profissional estabelecida entre trabalhador e empresa. Há a menção sobre um seguro para shoppers , que se aplica apenas durante o período de realização do pedido. Ele cobre morte acidental, invalidez permanente total ou parcial por acidente, despesas médicas, hospitalares e odontológicas e diária por internação hospitalar por acidente. Esse seguro, importante notar, surgiu apenas no começo de 2021. Não conseguimos rastrear se havia agentes responsáveis por exercer essa pressão junto à empresa ou se foi uma ação tomada diretamente, possivelmente para equiparar os tipos de seguros já previstos no transporte de passageiros. Surgiu, também mais recentemente, a possibilidade de gorjetas por parte dos consumidores, repassadas integralmente ao shopper. Este também possui o benefício de uma entrega grátis por semana para usufruir da plataforma como consumidor. E ainda há um sistema de incentivo preestabelecido, o “ Shopper 5 estrelas”, que “busca reconhecer os Shoppers que têm um ótimo atendimento e uma excelente parceria com a Cornershop”.10 10 Disponível em: https://cornershopapp2.helpsite.com/articles/66973-boletim-do-shopper . Acesso em: 27 jul 2021.

Em suma, observa-se uma relação profissional que emula certos elementos de uma relação empregatícia: benefícios para o funcionário, programa de incentivos e bonificações e cobertura médica. No entanto, esses elementos são efêmeros e insuficientes para representar uma real segurança e estabilidade ao trabalhador. O benefício de ter uma compra semanal apenas realça a vinculação do indivíduo à plataforma em que atua, colocando-o, ainda que uma única vez na semana, na posição de consumidor, que, por sua vez, irá avaliar e julgar o serviço de outro trabalhador. A cobertura médica fornecida ocorre apenas durante o período de atendimento do pedido, sendo inválida para momentos em que o shopper esteja, por exemplo, conectado ao aplicativo, mas não esteja atendendo ninguém. Da mesma maneira, o trajeto de sua casa até o supermercado, e vice-e-versa, não possui nenhuma segurança por parte da empresa, assim como as compras e os veículos envolvidos em eventuais acidentes não estão inclusos no seguro fornecido.

Por fim, o sistema de premiação “ Shopper 5 estrelas” associa a avaliação do trabalhador ao consumidor, que não possui qualquer compromisso com essa tarefa e pode variar nos níveis de exigência e parâmetros de qualidade. São, portanto, elementos característicos do trabalho por aplicativos e do capitalismo de plataforma atualmente vigente, mesmo que busquem aspectos que transmitam maior sensação de acolhimento do trabalhador, como os benefícios e premiações, possivelmente para se adequar a uma sociedade marcada ainda pelo horizonte do assalariamento e da segurança por ele proporcionada. Nesse sentido, as medidas tomadas não se colocam através de uma iniciativa marcante de regulamentação dessa atividade profissional que exija parâmetros mínimos e garantias ao trabalhador shopper no exercício de sua atividade. Ainda que por vezes seja instado a atuar junto ao transporte de passageiros, dada a abrangência e repercussão da profissão uber nos centros urbanos, o Estado ainda não se inseriu em algum tipo de proteção social ao shopper.

Conhecendo os canais analisados

Adentraremos, agora, na descrição e análise dos dois canais de shoppers selecionados para este artigo. Antes, porém, convém explicar a metodologia empregada para a escolha e a leitura desse conteúdo. Nesse sentido, é importante explicar que este é um objeto de interesse surgido por volta de abril de 2020, quando a cidade de São Paulo vivenciava períodos de isolamento mais rigorosos, inclusive com a antecipação de feriados municipais e estaduais e até rodízio diário na circulação de automóveis. Isso é importante de ser colocado, pois nessa época é que a empresa Cornershop passou a expandir sua abrangência de atuação, tanto nas cidades em que já estava presente, com um crescimento de shoppers que se inscreviam no aplicativo, quanto em termos nacionais, em que a empresa inaugurava sua atuação em outras grandes cidades e capitais. Tratava-se, portanto, de um contexto em que a vacinação ainda era uma realidade muito incerta e distante, e a proteção da população que possuía alguma comorbidade se fazia ainda mais urgente. Sendo assim, era frequente ver, nos mercados conveniados com a empresa, uma série de trabalhadores shoppers , homens e mulheres, mas em sua maioria homens, de camisetas vermelhas da Cornershop fazendo compras e consultando constantemente seus smartphones .

Foi nessa esteira que buscamos saber mais sobre esse tipo de atividade, e encontramos, no YouTube , alguns poucos canais, ainda, de shoppers que passaram a expor seus cotidianos, transmitir conhecimento prático e dar dicas para quem se interessasse a seguir os mesmos rumos.

Um vídeo de Valmir Cavalcante, cujo canal iremos explorar a seguir, intitulado “Cornershop – Meu primeiro dia como shopper – comprador/link”11 11 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ENGt6YSrWsQ&ab_channel=ValmirCavalcante . Acesso em: 30 jul 2021. e que data do dia 22 de março de 2020, revela com bastante nitidez esse contexto de início tanto da pandemia quanto desse tipo de atividade. Valmir, nesse vídeo, resume, enquanto dirige, a atividade que irá desempenhar: “ Eu não levo passageiro, eu só levo a compra . [...] Pessoal pede no aplicativo, eu faço a compra e vou fazer a entrega. É o que tem pra fazer. Mercado lotado, muita gente comprando por aplicativo, comprando muito, e eu vou fazer esse trabalho de shopper. Shopper, shopper.” [00’35”]. O final dessa frase expressa, ainda, o começo da identificação de Valmir com sua atividade, alterando a pronúncia da nova palavra de seu vocabulário, até definir uma, com o “o” mais aberto. Lê-se: “xóper”.

Assim, a escolha dos dois canais sobre os quais iremos nos debruçar se deu sob a primazia de conteúdos que refletissem o cotidiano de trabalho dos recém-surgidos shoppers , também prezando por uma certa continuidade das publicações no YouTube , o que aumentaria a diversidade de tópicos abordados e dos momentos vivenciados, refletindo variações importantes para nossa análise. Também é relevante considerar o estímulo do algoritmo do mecanismo de busca do YouTube , que indicou canais de maior destaque sobre o tema pesquisado. Desse modo, para além das visualizações, os algoritmos indicaram os canais como consequência do engajamento e articulação entre produtores e espectadores, levando a um denominador comum de narrativa coesa para o segmento analisado (tema, palavras-chave, perfis em comum que acessaram esse tipo de conteúdo). Uma vez que, neste artigo, importa-nos mais o discurso, a construção narrativa dos shoppers , do que a quantidade de acessos e curtidas, é que analisamos canais e vídeos não necessariamente no topo da audiência no YouTube.

A decisão de ter apenas dois canais como objeto de estudo corrobora a busca pelo foco na construção narrativa dos indivíduos analisados, o que exige maior detalhamento dos conteúdos expostos para o estudo das expressões e discursos desses profissionais. Na perspectiva de análise da subjetividade do shopper , consideramos que esse detalhamento garantiria que captássemos mais nuances, ambiguidades e reflexões do que um estudo, por exemplo, de base quantitativa sobre vários canais de shoppers no YouTube . Esta, porém, é também uma pesquisa interessante para a sequência de estudos sobre essa categoria de trabalhador nesse tipo de enquadramento midiático, assim como outras abordagens qualitativas merecem desenvolvimento. De tal maneira que nosso artigo e o recorte proposto por ele permitem apenas um primeiro olhar sobre o fenômeno social aqui descrito, havendo muito espaço para explorá-lo através de um universo maior em eventuais pesquisas futuras.

As descrições e as análises a seguir buscarão compreender quem são os shoppers escolhidos, coletando informações sobre suas trajetórias biográficas e profissionais e, também, desenhando um panorama do canal que possuem: descrição, representação gráfica, tipos de vídeos e playlists criadas, interação com outras redes sociais. Isso nos permitirá inferir certos aspectos de suas subjetividades, que serão explorados com vídeos deles enquanto shoppers , quando selecionaremos algumas falas e atividades que melhor auxiliam na construção desses sujeitos. Como adiantado na Introdução, os elementos selecionados são baseados no interesse de observação de como esses shoppers descrevem suas atividades e relacionam-se com as plataformas e seus colegas de trabalho e na maneira como constroem a narrativa de si, expressando seus posicionamentos perante a sociedade e sua subjetividade.

Uber do Marcelo, o Uber fora da curva

Este canal é gerenciado por Marcelo Ribeiro, que se descreve da seguinte maneira:

4 Anos de Uber, mais de 15.000 viagens, primeiro motorista do RS a chegar na incrível nota 5.0, atualmente o motorista mais premiado do Brasil provando que "SIM, as estrelinhas pagam as contas e muito mais". Ajudando outros motoristas do país inteiro a chegar na nota 5.0 e também serem reconhecidos pela excelência no atendimento.

Sem nunca trabalhar com transporte ou viver do trânsito, descobri na Uber uma excelente oportunidade de ganhar dinheiro e conhecer pessoas novas todos os dias. 12 12 Disponível em: https://www.youtube.com/c/UberdoMarcelooUberforadacurva/about . Acesso em: 25 jul 2021.

O canal de Marcelo possui 105 mil inscritos e mais de 12 milhões de visualizações e foi criado em 14 de abril de 2016. Há um papel de parede na página inicial com uma foto de Marcelo em frente a um veículo e o seguinte texto na imagem: “Método Motorista Fora da Curva: rode utilizando as melhores estratégias a seu favor, conquiste as melhores notas e fature muito mais do que você imagina!”. Os logos das plataformas Uber, 99 e Cabify também são exibidos, bem como hiperlinks para acessar as páginas de Marcelo no Instagram e no Facebook .13 13 Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCyMLM7sI0xssm3MQHCiSHyA . Acesso em: 30 jul 2021.

Percebemos, portanto, que Marcelo criou uma espécie de metodologia de trabalho, o Método “Fora da Curva”, que ajudasse os motoristas a terem maiores rendimentos e boas avaliações, numa espécie de “otimização” do esforço empregado. Como o foco deste artigo é sobre o trabalho como shopper , não examinaremos como essa metodologia é desenhada e aplicada. Porém, vale notar uma menção que faz Marcelo de um curso com “ aulas dinâmicas e diretas com exemplos práticos para auxiliar VOCÊ a ganhar mais dinheiro como motorista de aplicativo ”. Essa menção é encontrada em sua página de Facebook , na qual há um link que, em teoria, remeteria ao curso, mas que, quando clicamos, a página parece já estar fora do ar.14 14 O link que tentamos acessar é o: https://motoristaforadacurva.com.br/curso-mfc/ .

É válido também mencionar o título reivindicado por Marcelo em sua página no Instagram, de eleito como “Melhor Uber do Brasil”. Esse título advém de sua nota 5.00 de avaliação, ao menos em maio de 2019, reconhecida pela empresa Uber como a única no País. Na entrevista concedida por Marcelo ao jornal gaúcho Zero Hora , quando de sua premiação, conseguimos identificar que ele é morador de Porto Alegre e trabalha com um carro que é alugado.15 15 Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/paulo-germano/noticia/2019/05/a-estrategia-que-fez-de-um-porto-alegrense-o-melhor-motorista-de-uber-do-brasil-cjvh9og6q02r401mazj8q8w3s.html . Acesso em: 26 jul 2021. Em outra entrevista, concedida a uma empresa que desenvolve aplicativos de transporte, conseguimos saber que, antes do trabalho por aplicativos, Marcelo foi vendedor de uma loja de esportes, no formato de carteira assinada, e que também atuou no ramo da venda de carros, no qual diz não ter obtido sucesso.16 16 Disponível em: https://machine.global/entrevista-com-motorista-marcelo-o-uber-fora-da-curva/ . Acesso em: 27 jul 2021.

Até aqui, todos os elementos mobilizados nos levam a pensar que Marcelo apenas trabalha no transporte de passageiros, manifestando sua identidade profissional como um trabalhador que é somente uber . No entanto, um exame das playlists existentes no seu canal revela uma especificamente dedicada ao tema “Cornershop”. Essa playlist contém 124 vídeos. As demais playlists , que, de certa maneira, organizam as atividades representadas por Marcelo, estão no Quadro 1 , elencadas da mais antiga para a mais recente.

Quadro 1
Playlists do canal “Uber do Marcelo, o Uber fora da curva”

De certo modo, a associação de Marcelo como um uber e não um shopper advém da maneira como as atividades da Cornershop adentraram na sociedade brasileira. No contexto de início da pandemia do novo coronavírus, em que houve uma queda significativa do número de corridas no transporte de passageiros, por muitas pessoas terem adotado medidas de isolamento social, tornar-se shopper soava como uma alternativa para quem já era uber . Se essa atividade substituiria sua antecessora ou seria com ela partilhada no futuro seria difícil dizer, e essa determinação ainda hoje está em constante definição. Porém, a pergunta que muitos ubers se faziam era: Vale a pena fazer delivery de supermercado? . Essa era exatamente a frase que constava na imagem de capa do terceiro vídeo da playlist que Marcelo dedicou ao assunto “Cornershop”. Esse vídeo, de 23 de abril de 2020,17 17 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CU_USAG4m4c&list=PL2ZY-ssZ5ECAQR1L3CriZ4aMKtv1Jx60y&index=3 . Acesso em: 27 jul 2021. relata a primeira entrega feita pelo recém- shopper , dando continuidade a uma fase em que passava as primeiras impressões sobre o aplicativo. Quatro dias atrás, em 19 de abril, Marcelo havia postado o primeiro vídeo da série, intitulado “Primeiras Impressões da Cornershop”.

No vídeo sobre sua primeira entrega como shopper , Marcelo mobiliza elementos de valorização de capacidades pessoais, entre elas a paciência. Quem não tivesse esse atributo, segundo ele, deveria “ ir para a obra” (02’00”). Outro momento que o shopper mobiliza as habilidades interpessoais da atividade é quando ele diz que “ tu vai pegando a manha “de fazer compras e melhora sua eficiência, pois o aplicativo vai remunerar melhor e te indicar mais vezes para outras compras. Percebe-se, então, uma relação de admiração inicial pelo aplicativo, que consegue organizar e quantificar as relações de trabalho envolvidas na experiência. Ao final desse vídeo, fica evidente a construção de uma imagem positiva vinculada ao trabalho como shopper e como uber , manifestando novamente qualidades individuais que exaltam aquele que persiste enquanto outros criticam sua posição, numa posição similar a quem é empreendedor de si mesmo. Esses “outros” são vistos, assim, como fracassados: “[...] vai ter um monte de fracassado dizendo para ti que isso, que isso não vale, é vida de escravo, que não sei o que … é Uber, é Cornershop blábláblá. Tu é que sabe onde teu calo aperta, tu é que sabe onde tem que tirar a força para sair de casa todo dia [...]” (05’50’’).

Se, nos vídeos iniciais, havia certo deslumbramento com a forma com que o aplicativo da Cornershop operava, após algum tempo de vivência como shopper, Marcelo passa a questionar certas estratégias da plataforma. Em 5 de maio de 2020, ele grava o vídeo intitulado “Cornershop reduz as tarifas e os incentivos”18 18 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MR9aOOxeHFo&list=PL2ZY-ssZ5ECAQR1L3CriZ4aMKtv1Jx60y&index=8 . Acesso em: 27 jul 2021. e o inicia perguntando “Cornershop ainda tá valendo a pena?”. Em seguida ao questionamento, ele descreve situações de redução dos valores ganhos e dos incentivos que, no começo da operação, eram tão presentes para os shoppers . Ao mesmo tempo que tece críticas, Marcelo busca explicar a lógica por trás do comportamento das empresas para as quais presta serviços. Há, então, um caráter dual, entre crítica e compreensão e que resulta em certa resignação, associada a tentativas de não ser explorado: “ Quando tá bom os aplicativos, eu falo. Quando os aplicativos tão uma porcaria, eu também falo. Falo por quê? Porque a gente tem que tentar não ser explorado, somente ser explorado, pelos aplicativos. Tem que tentar explorar alguma coisa deles também” (04’38”). Marcelo explica a lógica econômica da plataforma nos locais que ela chega, dizendo que buscam injetar dinheiro no início, fornecendo incentivos aos shoppers , momento que mais compensa fazer compras e entregas por esse aplicativo. Depois que a empresa se consolida no local, segundo ele, esse investimento deixa de acontecer. A lógica econômica e a responsabilização das plataformas são sucedidas por uma leitura conjuntural de que há muita gente à disposição dos aplicativos, pois muitas pessoas estão desempregadas, o que resulta em poucas chamadas para cada shopper. Em certa medida, deposita parte da responsabilidade pelos baixos ganhos ao próprio trabalhador. A saída é, novamente, investir em si próprio e nas capacidades individuais, mobilizando pequenos cálculos econômicos e de tempo, ao mesmo tempo que “tentar” e persistir acabam sendo atitudes mais e mais aconselhadas. A tentativa, para Marcelo, diante da inevitabilidade da forma de atuação da Cornershop, é “ explorar para não ser tão explorado ”.

Dá pra ganhar dinheiro? Dá. Mas cada vez mais, como eu sempre falei, tem que saber trabalhar. Cada vez mais tu vai ter que saber onde tu tá gastando, qual o tempo que tá na rua, se tá valendo a pena ficar à disposição do aplicativo, quanto tempo tu vai ficar on-line… tenta jogar com outros aplicativos, tenta jogar com Uber, com 99, com InDriver. Tenta, sabe, porque… hoje as tarifas estão muito ruins, as tarifas estão muito baixas. Seja em Uber, InDriver, 99, tá muito complicado. A tarifa aqui da Cornershop tá caindo também. Então a gente vai ter que saber explorar ao máximo pra não ser tão explorado pelos aplicativos. (06’00” ao 06’37”)

É importante notar que, apesar do caráter individualista presente no discurso de Marcelo, e mobilizado principalmente pela ideia que se aproxima de um ethos empreendedor, de superação das adversidades e constante leitura do cenário econômico, vemos também que há uma busca pela formação de uma rede de trabalhadores em condições similares à dele. Essa rede também é ambígua, pois a associação de mais pessoas ao seu canal e suas redes sociais garante, por sua vez, mais visualizações ao seu conteúdo e maior monetização dele. Além disso, no começo da operação da Cornershop no País, havia também muitos incentivos financeiros para que um shopper convidasse um colega a ingressar no ramo. Assim, aquele que indicasse mais pessoas obteria mais vantagens. Ademais, mesmo considerando esses aspectos de cunho individualista, observa-se uma constante troca de experiências e situações que, ao mesmo tempo que auxilia o dia a dia no trabalho, também ajuda a ser formada uma, mesmo que frágil, identidade profissional. São muitas as vezes em que Marcelo dá dicas de como agir em determinadas situações, inclusive ilustrando exemplos de colegas que conheceu, muito por conta da atuação do canal. Um exemplo de como é formada uma coletividade dessa atividade profissional, ainda que com vínculos frágeis, é o apoio a paralizações de motoristas de aplicativo que Marcelo demonstra no vídeo: “Greve na Uber, 99 pop e InDriver. você vai parar também?? dia 3 de novembro”.19 19 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tCKqBclgyd4&list=PL2ZY-ssZ5ECAQR1L3CriZ4aMKtv1Jx60y&index=80&ab_channel=UberdoMarcelo%2CoUberforadacurva . Acesso em: 27 jul 2021. Apesar de não fazer referência explícita ao trabalho como shopper , esse vídeo consta da playlist dedicada ao assunto, mostrando mais uma vez como as categorias shopper e uber estão imbricadas em seu discurso. No vídeo, Marcelo diz apoiar todo tipo de paralização, mas reivindica mais união na definição das datas para as greves da categoria. Para ele, deve haver uma estratégia, pois é possível “ parar de forma inteligente. Até nisso, a gente pode ganhar dinheiro. A gente pode ganhar dinheiro, a gente pode mostrar e a gente pode fazer um efeito... mais forte, né, dar no rim, ali, dos aplicativos ”. (01’07”). Essa é uma importante descrição da estratégia “ explorar para não ser tão explorado ”, presente no discurso de Marcelo, e dá conta de representar a complexidade de sua subjetividade. Essa complexidade e o posicionamento político de Marcelo ficam mais nítidos no final do vídeo “Como eu trabalho na pandemia”,20 20 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eQLLoAHnmUI&list=PL2ZY-ssZ5ECAQR1L3CriZ4aMKtv1Jx60y&index=46&ab_channel=UberdoMarcelo%2CoUberforadacurva . Acesso em: 30 jul 2021. de 18 de agosto de 2020, também presente na playlist dedicada ao tema Cornershop. Ao tocar nos cuidados sanitários que toma rotineiramente em seu veículo e expressar preocupação com a gravidade da pandemia do novo coronavírus, possivelmente ao observar que esse era um tema politicamente controverso, Marcelo diz:

Tem uns aí que são de extrema esquerda, outros são de extrema direita... Tem uns que falam, já misturam política no negócio, não quero nem saber disso, nem discuto política, num ganho nada com esses políticos de merda. Nem de esquerda, nem de direita, não interessa o teu partido, o meu partido é o do trabalho, eu que faço o meu dinheiro. Político nenhum me ajuda, só me atrapalha e suga o meu, suga o meu dinheiro através dos impostos. Então, galerinha, quero saber a tua opinião aqui nos comentários. Deixa o teu like, te inscreve no canal e até o próximo vídeo fora da curva!

Marcelo aparentemente não tem feito tantas atividades como shopper em 2021 como foi no começo da pandemia da Covid-19. No vídeo “Quase perdi minha conta na Cornershop”,21 21 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bzz-qRp9yp8&list=PL2ZY-ssZ5ECAQR1L3CriZ4aMKtv1Jx60y&index=100&ab_channel=UberdoMarcelo%2CoUberforadacurva . Acesso em: 27 jul 2021. de 19 de janeiro de 2021, ele relata que já não fazia tantas corridas pelo aplicativo, provavelmente tendo retomado suas atividades como trabalhador uber, de tal forma que foi desabilitado na plataforma por ficar muito tempo sem utilizá-la. A explicação, segundo Marcelo, é que muitas pessoas querem entrar no ramo, e aqueles que ficam muito tempo sem utilizar acabam por ficar com a vaga dos que desejam ingressar.

Valmir Cavalcante

Valmir é mais sucinto na descrição de seu canal, que leva somente seu nome e sobrenome. Descreve ele: “Vídeos sobre meus trabalhos!”22 22 Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCvXhwd_7xuWh_9-F-VEWWrg/about . Acesso em: 29 jul 2021. . O canal possui um alcance muito menor em relação ao de Marcelo, com apenas 2,07 mil inscritos, embora seja mais antigo, com sua inscrição em 10 de novembro de 2013. Até a escrita deste artigo, foram 403.583 visualizações no canal. O papel de parede diz o seguinte: “Máscaras [ emoji de alguém com máscara] atacado”, o que, se analisarmos a foto de perfil de Valmir, que veste uma máscara caseira escrita, de um lado, seu nome, e de outro, o logo do YouTube , nos permitiria concluir que a atividade de Valmir como shopper, se não foi descontinuada, ao menos concorre com outros de seus “trabalhos”, termo por ele empregado na descrição. O vídeo mais recente dele falando sobre a Cornershop, porém, esclarece de vez a situação. Num comentário, um usuário questiona: “ Vc saiu da cornershop? Está postando vídeos de vendas agora ”. E Valmir, em uma das respostas, resume sua atividade profissional atual: “ Cornershop me ajudou muito, mas hj em dia só vendo máscaras, distribuo para todo Brasil ”.23 23 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cyON6HbO_bo&ab_channel=ValmirCavalcante . Acesso em: 29 jul 2021.

Embora não haja playlists criadas no canal de Valmir Cavalcante, fizemos abaixo um pequeno agrupamento dos assuntos dos vídeos por ele postados no canal. O agrupamento busca seguir uma cronologia a partir dos vídeos mais antigos para os mais recentes. Assim, percebemos que Valmir, entre 2016 e 2017, era um caminhoneiro, ou um truck, como nomeava seu canal até 2020: Truck Valmir Cavalcante. Há cerca de dois anos, passou a trabalhar como uber , alternando, por um tempo, as atividades como caminhoneiro. Em março de 2020, tornou-se shopper , dessa vez alternando com as atividades de uber. A partir de maio do mesmo ano, já existem vídeos de Valmir relatando suas vendas de máscara por atacado. Essa função, assim como das outras vezes, foi combinada com atividades como shopper e uber , até o momento em que ele relata se dedicar às máscaras com exclusividade.24 24 É importante frisar que esta é uma descrição que inferimos a partir dos vídeos publicados por Valmir e as respectivas datas, podendo haver imprecisões nos momentos dos “trabalhos” desenvolvidos.

É possível que, pelo fato de desempenhar uma série de “virações” e trabalhos que variam conforme as oportunidades aparecem e se esvaem, Valmir não manifesta, como ocorre com Marcelo, uma identidade como um uber ou shopper . Um atento olhar aos vídeos que publica e à narrativa que constrói de si nos indica que Valmir é tudo isso ao mesmo tempo, evocando novas identidades à medida que um aplicativo é conectado e outro é desconectado ou conforme muda o produto ou serviço a ele demandado para ser entregue. O primeiro vídeo de Valmir como shopper, intitulado “Cornershop, Shopper comprador em mercados”,25 25 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bt-sdvNLVqE&ab_channel=ValmirCavalcante . Acesso em 29 de jul. 2021. de 18 de março de 2020, ilustra essa polifonia de identidades profissionais, que, pelas palavras dele, poderíamos afirmar que se aproxima de uma visão de alguém que é um empreendedor de si mesmo, iniciando novos empreendimentos:

Quadro 2
– Assuntos dos vídeos do canal “Valmir Cavalcante”

Estou indo fazer um treinamento pra um novo empreendimento aí. É... o que que é esse empreendimento que eu vou fazer agora? [...] Eu vou ser um shopper. O que que é um shopper? O shopper é um comprador. Então vou ser um comprador. Um comprador de mercado. Então, agora já tá tendo várias empresas, eu tô indo fazer o treinamento de uma, mas já tem mais duas aí que eu posso tá me cadastrando também. Eu vou ficar no mercado, então posso trabalhar com dois aplicativos. Igual, tipo, Uber e 99. Só que eu vou fazer compras, não vou ter passageiro. [...] Então vou ser shopper já dessa empresa que é... shopper é comprador. Eu vou lá, faço a compra, separo os itens e levo até o... até o cliente . (00’03” a 01’23”)

Assim como Marcelo, Valmir grava muito de seus vídeos dentro do carro, mas, em geral ele os faz durante os deslocamentos até o supermercado ou até a residência de algum consumidor da Cornershop. Por essa razão, muitas vezes suas falas são interrompidas pelo comando de voz do GPS ou então ele precisa fazer algumas pausas nos relatos para se atentar ao trânsito à sua volta. Outros vídeos também são gravados nos estacionamentos dos supermercados ou dentro deles, fazendo as compras e narrando algumas dicas e acontecimentos. Esse recurso não é muito mobilizado por Marcelo, que geralmente faz seus relatos num mesmo local e com o carro parado.

O vídeo de Valmir, “Cornershop – trabalhando por 12 horas”,26 26 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-GB1eOEWPr4 . Acesso em: 29 jul 2021. de 6 de abril de 2020, é um exemplo dessa forma de gravar do shopper em questão. Porém, mais do que isso, é um vídeo elucidativo das condições de trabalho encaradas por Valmir. Num domingo, ainda que uma referência generalizada de um dia de descanso, ele relata ter passado 12 horas trabalhando como shopper. Ele inicia o vídeo após sua terceira compra no dia, dentro do seu carro em um estacionamento de supermercado. Em sua quarta compra, ele se mostra ansioso ao comentar que o valor da compra encomendada não cobria a gratuidade do estacionamento, o que o obrigou a entrar em contato com o suporte da empresa de plataforma para conseguir o reembolso. Outra dificuldade relatada é a de precisar caminhar muito para fazer algumas entregas.

Em outros momentos do vídeo, percebemos a disposição permanente de Valmir para aquela atividade, exemplificando com nitidez a noção do trabalhador just-in-time ( Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. (2020). Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, v. 34, n. 98. ): primeiramente, ele comenta que precisava agilizar uma entrega porque o aplicativo já tinha indicado outra compra a ser feita; depois, revela: “ trabalhei cara, não parei nem um minuto. O único tempo que eu parei foi meia hora, fiz uma refeição e continuei [...]” (05’37’’); no final do vídeo, quando já está retornando para casa, aponta que só vai comer, dormir e depois acordar cedo para outra jornada de trabalho de 12 horas.

Está presente, nesse vídeo, novamente a ideia do empreendedor de si, que mobiliza o imperativo de ser ágil para aumentar seu ganho, ao mesmo tempo que se preocupa com sua reputação, buscando escolher bem os produtos para não ter problemas com os clientes e preocupando-se com o sistema de avaliação do aplicativo (49 avaliações com 5 estrelas e 1 com 4 estrelas). Esse mesmo vídeo ainda elucida como Valmir lidava com o trabalho em dois aplicativos e atividades distintos, buscando combiná-los de modo a atenuar gastos de seu deslocamento pela cidade. Afinal, muitas vezes, quando acaba o expediente, ele está longe de sua casa: “ Terminei longe . Como a gente não é bobo, acabei de ligar o Uber. Direcionei, se pegar um passageiro, ele vai ajudar na despesa” (5’00’’; grifos nossos).

Valmir desenvolve uma relação semelhante à de Marcelo, em alguns aspectos, com a plataforma Cornershop. Ambos aliam críticas a determinadas lógicas de funcionamento com explicações e justificativas sobre a maneira como a empresa opera. Contudo, é possível dizer que Valmir manifesta maior resignação quanto à Cornershop do que Marcelo. Se este falava em greve dos motoristas de aplicativo e era mais incisivo nas críticas, Valmir parece mais preocupado em explicar os modos de funcionamento da plataforma, mesmo que não deixe de manifestar cansaço e ansiedade pelas condições de trabalho enfrentadas. O vídeo “Cornershop proíbe você trabalhar com outro App”,27 27 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_vrqCGtsFio . Acesso em: 29 jul 2021. de 6 de junho de 2020, embora pareça tratar de uma manifestação de desagravo à empresa, na verdade é uma explicação de Valmir de que não há nenhum impeditivo de trabalhar com mais de um aplicativo, desmentindo certo boato que dizia o contrário. Ele explica que havia incentivos para que os shoppers ficassem on-line no aplicativo por determinado período, pois ganhavam um valor a mais por isso, não havendo um porquê de se conectar a outras plataformas. Com a diminuição desses incentivos, Valmir conta que passou a valer mais a pena trabalhar com outras plataformas simultaneamente, desde que tendo o cuidado de desligar uma delas quando uma corrida ou compra chegasse na outra. Mas reforça que essa exclusividade com a Cornershop nunca ocorreu: “ Simplesmente, se você não, é... não tiver conectado, cê num vai receber... é… pedido nenhum. Quem tiver conectado vai receber pedido, e é assim que funciona. Tá? Eu tô fazendo vídeo e tá conectado. De repente pode tocar aqui… ” (03’33” ao 03’48”).

Outro aspecto importante para a descrição do canal de Valmir é sua interação com outros trabalhadores shoppers. Há muitos vídeos relatando a experiência de trabalho com outros colegas, sejam pessoas que estavam iniciando suas atividades como shoppers naquele momento, sejam colegas que ele relata ter contato através de grupos no WhatsApp , e que decidiu gravar uma experiência de compra ao lado deles. Este é o caso do vídeo “Cornershop 31/12, Última compra do ano”,28 28 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qHwOydo7DFM&ab_channel=ValmirCavalcante . Acesso em: 29 jul 2021. de 31 de dezembro de 2020, quando Valmir grava seu colega atendendo a um pedido, e os dois vão fornecendo dicas de como prestar aquele serviço com mais qualidade e agilidade. A animação e efusividade de Valmir ao gravar vídeos com seus colegas denotam alguma solidariedade coletiva em torno da atividade como shopper, ao mesmo tempo que podem indicar uma busca por mobilizar seu próprio canal, atraindo visualizações para sua atividade. Nesse aspecto, na comparação com Marcelo, vemos que este age de modo distinto: suas interações aparecem nos vídeos através de relatos dele sobre conversas que teve com colegas, sem, contudo, mobilizar nomes e vídeos inteiramente dedicados a isso. Possivelmente pela diferença de magnitude dos canais e pelo número de inscritos e visualizações, Valmir parece se ocupar mais de dar visibilidade a outros shoppers, mesmo que não haja uma continuidade dessas interações em seu canal.

Por fim, politicamente, podemos ver que Valmir não se coloca de maneira enfática, evitando posicionar-se, mesmo em momentos em que aparentemente iria expressar sua opinião com mais clareza. Mais especificamente, no vídeo “Uber – táxi! vereador Amadeu️”,29 29 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XlEbAQDuv_o&ab_channel=ValmirCavalcante . Acesso em: 29 jul 2021. de 1º de agosto de 2020, Valmir começa falando de como o vereador Adilson Amadeu, reconhecido representante da categoria de taxistas em São Paulo, havia ficado bravo e descontente com certa estratégia da empresa Uber em buscar abarcar o público taxista. Valmir dá sinais de que começará a criticar o vereador e, em alguns momentos, aparenta defender a Uber, mas termina o vídeo dizendo que, apesar de serem mudanças boas para o passageiro, no sentido de que ele terá mais opções de escolha, “ vai dar muita briga, isso aí vai dar muito o que falar. Certo? Mas vamo ver o resultado daqui pra frente ” (07’00”). Um pouco antes, ponderou sobre o vereador: “ No ponto de vista dele, ele tá certo. Tá lutando aí pelos taxistas... ”. Esse episódio ainda elucida a maneira como se dá o debate em torno das iniciativas de regulamentação do trabalho por aplicativos, em que lógicas privadas e corporativas – dos taxistas – buscam intervenção junto ao Estado, este já permeado pelos interesses econômicos das plataformas e pela lógica gerencial de governança. Os direitos e a proteção das categorias pouco representadas e desassistidas de uma real regulamentação de suas condições acabam negligenciados por uma concepção neoliberal de justiça, que entende as desigualdades sociais como justificáveis e, por isso, aceitas ( Fonseca, 2014FONSECA, F. (2014). A concepção neoliberal de justiça. REBAP. Revista Brasileira de Administração Política, v. 12, pp. 15-41 ).

Conclusões

Podemos começar analisando as descrições expostas acima observando que a maneira como a atividade de shopper é descrita por Marcelo e por Valmir mobiliza diferentes elementos. Aqui não se trata de uma comparação entre os dois, mas de uma complementaridade que nos auxilia a traçar aspectos da subjetividade do trabalhador shopper. Ao descrever suas atividades, Valmir traz as condições extenuantes de trabalho a que essa categoria é submetida, como jornadas de trabalho extensas, baixa remuneração, ausência de estrutura para deslocamento casa-trabalho e a ausência de condições importantes para a saúde do trabalhador, como horário adequado de almoço e preocupações com o esforço físico empregado nas tarefas. Isso tudo sem contar nos quase nulos direitos de trabalho considerados pela plataforma Cornershop como “benefícios”. Essas condições se convertem em manifestações de cansaço físico e psicológico, bem como em diversos momentos de ansiedade e preocupação, advindos do afã de desempenhar bem a função shopper, mas também das inseguranças propiciadas pela lógica de funcionamento das plataformas. Valmir toca em atributos pessoais que um shopper deveria prezar e desenvolver nesse cenário, mas é Marcelo quem explora isso com mais detalhamento. Ele traz o ethos empreendedor em suas falas e ações, demandando sempre uma atitude de perseverança diante de tais condições encaradas, sem deixar de denunciá-las, vale notar. Mas o modo como Marcelo descreve seu trabalho permite enquadrá-lo como um empreendedor de si mesmo ( Dardot e Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo. ), que atravessa uma jornada difícil, mas para a qual é preciso “extrair força”, superando barreiras como o Estado que o “suga” através dos impostos, as plataformas que o exploram e os “fracassados” que transmitem negatividade àquela ocupação.

Ser um shopper, portanto, é mais como um “passar a ser” um shopper, é encarar mais um “empreendimento” na vida desses indivíduos, é uma condição que pode ser desativada ou reativada conforme progridem os cálculos, estratégias e oportunidades. No caso da pandemia do novo coronavírus, essa foi a oportunidade para que muitos que se viam como uber ou, como usualmente se nomeiam, “motoristas de aplicativo” passassem a atuar como shoppers . De todo modo, nunca se deixa uma atividade completamente. A incerteza e a insegurança quanto às condições de trabalho e os ganhos que serão obtidos acarretam uma impossibilidade de planejar o futuro a médio e longo prazo, como já havia adiantado Sennett (1999SENNETT, R. (1999). A corrosão do caráter. Rio de Janeiro, Record. e 2006SENNETT, R. (2006). A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record. ). O planejamento ocorre conforme as informações disponíveis, e a velocidade dos cálculos e raciocínios para ingressar numa determinada atividade ou ligar e desligar determinado aplicativo precisa ser muito fugaz. Isso explica a fragilidade e a dificuldade de se construir uma identidade em torno do shopper , mas também em torno de outras ocupações moduladas pela uberização ( Abílio, 2019ABÍLIO, L. C. (2019). Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, pp. 41-51. e 2020ABÍLIO, L. C. (2020). Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, v. 34, n. 98. ). Assim, é latente a presença do trabalho amador, como descreveu Abílio (2020)ABÍLIO, L. C. (2020). Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, v. 34, n. 98. , dada a indeterminação de tempo e espaço nas tarefas desempenhadas. Isso produz efeitos na formação de uma solidariedade coletiva e nas possibilidades desse sujeito social intervir no Estado.

Não significa dizer, porém, que não há uma identidade e uma subjetividade a ser notada no trabalhador shopper. Ela existe e pode ser vista nas falas dos sujeitos aqui analisados e na maneira como eles dialogam com seus semelhantes. Mas essa identidade possui vínculos frágeis e fugazes, embora sempre reativáveis, como descrevem Boltanski e Chiapello (2009)BOLTANSKI, L. e CHIAPELLO, È. (2009). O novo espírito do capitalismo. São Paulo, Martins Fontes. sobre o mundo conexionista de projetos e redes que se formou no capitalismo contemporâneo. Talvez seja mais nítido de notar essa identidade coletiva, ainda que permaneça seu caráter instável, se olharmos para os shoppers também como ubers, entregadores, trucks , ou seja, trabalhadores modulados por aplicativos gerenciados por grandes empresas, as plataformas. Como toda generalização, perderemos nuances importantes se encararmos dessa maneira, mas é um modo que considera a própria narrativa e representação de si feitas por Marcelo e Valmir, por exemplo.

A permanência do trabalho por aplicativos, porém, ajuda a explicar as atividades desempenhadas pelos dois, mas não encerra as estratégias por eles traçadas para ganharem a vida. Marcelo, por exemplo, buscou capitalizar sua atuação enquanto youtuber para tentar ofertar um curso para outros motoristas de aplicativo. Já Valmir, identificando que o trabalho como shopper não propiciava os ganhos que estava esperando, passou a utilizar as redes e seu canal para vender máscaras no atacado, outra lacuna identificada por ele com o advento da pandemia do novo coronavírus. Numa narrativa empreendedora clássica, diríamos que Valmir identificou uma oportunidade de mercado e buscou explorá-la para conquistar seus ganhos. Esta não é uma descrição incorreta, mas preferimos situá-la como uma prática constante e estruturante das estratégias de vida e sobrevivência das camadas populares ( Machado da Silva, 2018MACHADO DA SILVA, L. A. (2018). O mundo popular: trabalho e condições de vida. Rio de Janeiro, Papéis Selvagens. ), ou como um imperativo de sobrevivência no mundo da informalidade, considerando o contexto histórico e socioeconômico brasileiro, ainda que sob dimensões e intensidades distintas na atualidade ( Telles, 2010TELLES, V. (2010). A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte, Argumentum. ).

Percebe-se nas falas dos shoppers analisados uma frustração com a política (e com os políticos). Fica clara a ideia de que eles estão por conta própria e evitam se posicionar politicamente, com receio de que sua visão possa trazer algum prejuízo para sua atividade, principalmente com seus clientes. Marcelo, por exemplo, diz que procura “não meter política no meio”. Ainda assim, é possível verificar certa insatisfação e descontentamento com as plataformas e certas lógicas de funcionamento. Contudo, sem uma representação coletiva, como no caso dos taxistas citado por Valmir, e na ausência de mecanismos de proteção social, é realçada a percepção de que estão “sozinhos”. Por isso precisam usar de todas as estratégias para aumentar seu rendimento: “ explorar para não ser tão explorado ”, como afirmou Marcelo. A frase de Valmir, aparentemente corriqueira e despretensiosa, “ Como a gente não é bobo, acabei de ligar o Uber ", na verdade é simbólica da representação das estratégias adotadas para encararem o cenário de incertezas e desproteções.

Por fim, percebe-se que os shoppers, ou, num geral, os trabalhadores de aplicativo, que permeiam o tecido das metrópoles contemporâneas, são sujeitos que buscam práticas que passam pela ideia de “novidades”, algo que quebre com a estrutura de ganhos e condições vivenciadas, como foi a atividade de shopper , principalmente no período da pandemia do novo coronavírus. As incertezas vivenciadas nesse contexto se convertem em indefinições quanto às suas identidades e sentimentos de vinculação e reconhecimento, que se somam a um contexto urbano dominado por uma razão neoliberal que enseja a falta de proteção e regulamentação de milhões de trabalhadores, por vezes vistos a si mesmos como empreendedores de suas próprias vidas e buscando construir alternativas de renda e trabalho.

Referências

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Notas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2021
  • Aceito
    4 Out 2021
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