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Porto Alegre como máquina de crescimento: a produção habitacional recente na metrópole

Resumo

A produção de habitação nas metrópoles brasileiras apresenta vinculação à expansão e ao fortalecimento do setor imobiliário nos espaços urbanos, muitas vezes independentemente dos ciclos econômicos do País. Porto Alegre não foge ao padrão brasileiro; entretanto, este artigo verifica a hipótese de Molotch, denominada “Máquina de Crescimento”. Para isso, examina e discute a dinâmica imobiliária e a construção habitacional na última década na cidade de Porto Alegre. Utilizam-se como referência dados do Sinduscon-RS, além dos dados sobre a produção habitacional do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) entre 2009 e 2020. A partir da hipótese, demonstra-se a importância que os setores ligados à dinâmica imobiliária têm na produção do espaço na cidade.

produção habitacional; máquina do crescimento; mercado imobiliário; Porto Alegre

Abstract

Housing production in Brazilian metropolises is linked to the expansion and strengthening of the real estate sector in urban spaces, often independently of the country's economic cycles. Porto Alegre does not deviate from the Brazilian pattern; however, this article verifies Molotch’s hypothesis called “Growth Machine”. To accomplish this, it examines and discusses the real estate dynamics and housing construction in the last decade in the city of Porto Alegre. Data from SINDUSCON-RS are used as reference, in addition to housing production data from the Minha Casa Minha Vida Program (PMCMV) between 2009 and 2020. Based on the hypothesis, the article demonstrates the importance that sectors linked to the real estate dynamics have in the production of space in the city.

housing production; growth machine; real estate market; Porto Alegre

Introdução

A produção de habitação no Brasil tem se caracterizado historicamente pela forte vinculação à expansão e ao fortalecimento do setor imobiliário nos espaços urbanos, principalmente aqueles mais densificados, sendo estes também os lugares de concentração dos maiores índices de desigualdades socioespaciais. Essa forte presença do mercado imobiliário se impõe de forma clara em relação ao comportamento do crescimento econômico do País, que se apresenta, nesta última década, bastante inferior ao da década passada (2001-2010), quando houve um boom no mercado imobiliário brasileiro, motivado, entre outras razões, pela oferta de crédito às famílias e ao próprio mercado. Igualmente, a crescente produção de novas moradias também parece estar descolada do crescimento populacional, visto que há uma tendência de redução do aumento da população no País, sobretudo nas suas metrópoles mais consolidadas.

Em Porto Alegre, a exemplo de outras metrópoles brasileiras, o volume de imóveis novos colocados à venda, apesar de variações conjunturais e anuais, continuou elevado e crescente na década entre 2011 e 2019, revelando sinais de expansão, mesmo com a recessão experimentada pelo País a partir de 2016. Essa dinâmica crescente e autônoma evidencia que a produção de habitação consiste em um vetor importante de investimento imobiliário, sendo fortemente relacionada com o mercado financeiro e com o suporte do próprio Estado.

Este artigo busca examinar e discutir a dinâmica imobiliária e a construção de habitações nos últimos nove anos na cidade de Porto Alegre, utilizando, como referência, os dados do Sindicato das Indústrias da Construção Civil no Estado do Rio Grande do Sul, o Sinduscon-RS. Utilizam-se, também, os dados sobre a produção habitacional do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), no período entre 2009 e 2020, dando sequência a análises semelhantes realizadas anteriormente ( Lahorgue, 2015LAHORGUE, M. L. (2015). “O mercado imobiliário em Porto Alegre e a Copa do Mundo de 2014”. In: SOARES, P. R. R. (org.). Porto Alegre: os impactos da Copa do Mundo 2014. Porto Alegre, Deriva. ).

Discute-se a contínua e forte presença do setor imobiliário na economia urbana porto-alegrense a despeito de, por exemplo, radicais mudanças na condução da política econômica nacional e do virtual encerramento do PMCMV, com importantíssimo papel no boom imobiliário recente no Brasil, dando fortes evidências da existência de uma “máquina de crescimento” presente na capital gaúcha.

O artigo estrutura-se em cinco seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira, é dada uma leitura panorâmica das mudanças socioespaciais recentes na metrópole como um todo; a segunda seção apresenta a produção habitacional voltada às classes de renda média e alta na metrópole na última década e a produção imobiliária do Programa Minha Casa Minha Vida; na terceira, são utilizados dados demográficos de Porto Alegre para demonstrar a relativa autonomia do mercado imobiliário diante da dinâmica populacional; na quarta, discute-se o espaço urbano como o lugar privilegiado da acumulação de capital e da concentração de investimentos, sobretudo, pelo mercado imobiliário; por fim, apresenta-se a reflexão de Molotch sobre a máquina de crescimento constituída pela elite vinculada ao capital imobiliário, evidenciando que as coalizões recentes que estão governando Porto Alegre estruturam a economia política da cidade a partir dessas premissas.

Porto Alegre: mudanças na metrópole no século XXI

Estamos tratando de uma metrópole com significativas mudanças socioeconômicas, socioespaciais e políticas neste século XXI e, especialmente, no período estudado. Essas mudanças já vêm se configurando de um período precedente, conforme apontaram análises anteriores do período de transição na ordem urbana (1980-2010) encontradas em Soares e Fedozzi (2018)SOARES, P. R. R.; FEDOZZI, L. (2018). “Porto Alegre: transformações na metrópole e na região metropolitana mais meridional do Brasil - 1980/2010”. In: RIBEIRO, L. C. Q.; RIBEIRO, M. (orgs.). Metrópoles brasileiras: síntese da transformação na ordem urbana 1980 a 2010. Rio de Janeiro, Letra Capital. .

Em termos socioeconômicos, podemos apontar as mudanças da transição de uma metrópole (e de uma região metropolitana) industrial e fordista para uma metrópole de serviços e pós-fordista. Em termos socioespaciais, a metrópole (e a região metropolitana) transita de um modelo mais centralizado e monocêntrico, para um modelo descentralizado e policêntrico. Embora, nesse caso, a policentralidade manifeste-se com centralidades desiguais e hierarquizadas (centro metropolitano, centros comerciais, centralidades especializadas). Finalmente, em termos políticos, especialmente no núcleo metropolitano (o município de Porto Alegre), a grande mudança foi a transição de um modelo de gestão que praticava (ainda que com limitações) a gestão participativa, para um modelo de gestão neoliberal, centrado na iniciativa privada e capitaneado pelos agentes do mercado. Importante citar o período das chamadas “obras da Copa” (2008-2014), pois Porto Alegre foi uma das sedes do Mundial de Futebol de 2014. Embora muitas dessas obras não tenham sido concluídas ou se concretizado, a sua projeção ou início já permitiu que amplos setores da cidade (especialmente os incluídos na chamada “área prioritária de investimentos”) chamassem a atenção do mercado imobiliário para investimentos.1 1 Sobre os impactos da Copa do Mundo de 2014 em Porto Alegre, ver os diversos artigos reunidos em Soares (2015) .

Assim, esse conjunto de mudanças aponta também para a modificação no processo de produção da metrópole, destacando-se, aqui, o papel da indústria da construção civil e da promoção imobiliária no processo de acumulação urbana, conforme analisaremos mais adiante.

Em termos de modelo espacial, podemos considerar também que estamos na transição para uma metrópole mais extensa, com as expansões para a zona sul e extremo-sul do município, bem como para outros municípios da região metropolitana, acompanhando os principais eixos viários. Evidentemente que essa expansão é diferencial, com a produção de novas periferias, tanto para os grupos sociais de alta renda, nos condomínios fechados e agora nos “bairros planejados”, como para a população de faixas de renda mais baixas, como foi no caso da expansão dos condomínios do Programa Minha Casa Minha Vida. Ou seja, temos aqui a reprodução e a intensificação da segregação socioespacial nas novas periferias. E o setor imobiliário, com a sua maior segmentação e direcionamento de novos produtos, é um importante agente dessa segregação.

Esta última, a segregação socioespacial, se manifesta especialmente nos espaços interiores da metrópole, no tecido urbano já consolidado, que também passa por um processo de mudança de conteúdo econômico e social. Podemos nos referir a um “novo ciclo” imobiliário na metrópole. Há um processo de valorização de bairros, de ocupação por condomínios residenciais e empreendimentos comerciais das antigas áreas industriais, assim como um processo de gentrificação que é mais evidente no chamado 4º Distrito (bairros Floresta, Navegantes, São Geraldo, São João, Farrapos e Humaitá), a antiga grande área industrial na zona norte da cidade.2 2 Sobre o 4º Distrito, ver o artigo de Almeida e Campos (2022) .

Todo esse movimento é realizado a partir da concertação entre o setor público e diversos agentes urbanos (construtores, empreendedores, consultores, agências internacionais), entre os quais a indústria da construção civil e a promoção imobiliária têm destaque, revelando a importância da análise que realizaremos.

O mercado imobiliário na capital gaúcha na última década

Nesta segunda seção, vamos descrever a situação da cidade ante os investimentos imobiliários mais recentes. Contextualizando um período um pouco mais longo, o Gráfico 1 mostra-nos a quantidade de imóveis novos ofertados entre 2002 e 2018, compreendendo, portanto, o período com dados consolidados e disponíveis pelo Sinduscon/RS.

Gráfico 1
– Imóveis novos ofertados: 2002-2018

Portanto, ao longo de 17 anos, foram construídos e ofertados mais de 5.000 imóveis por ano. Ainda que com oscilações, não é possível dizer que algum ano tenha sido fraco nessa atividade econômica. Tanto que o total é de 109.146 unidades. Observe-se que não são somente unidades residenciais, assim como também é importante lembrar que não estão contabilizadas construções individuais (casas feitas por empreitada, por exemplo), somente as erguidas por construtoras. Ainda assim, é um número bastante expressivo e que coloca a importância da construção civil e do mercado imobiliário na economia da cidade.

Agora, focando na última década (entre 2011 e 2018), foram construídas e ofertadas 56.450 unidades novas, novamente incluídas unidades comerciais. Também foi nesse período que tivemos os anos com o maior número absoluto de novas construções na cidade: em 2012 e 2013, mais de 8.000 novos imóveis foram construídos em cada ano. A Tabela 1 permite observar alguns detalhes que escapam no primeiro gráfico mais geral deste texto. O primeiro é o predomínio absoluto da construção de edifícios em relação às casas. Das pouco mais de 52 mil unidades residenciais (casas + apartamentos), 94,63% são habitações tipo apartamento.

Tabela 1
– Distribuição da oferta de imóveis novos em Porto Alegre (2011-2018)

Desse modo, nos últimos anos temos presenciado um reforço do fato de Porto Alegre ser uma das cidades mais verticalizadas3 3 Verticalização, aqui, é entendida simplesmente como construção e predomínio de tipologia de edifícios. Não está em discussão, por exemplo, altura de edificações. do País ( Lahorgue, 2015LAHORGUE, M. L. (2015). “O mercado imobiliário em Porto Alegre e a Copa do Mundo de 2014”. In: SOARES, P. R. R. (org.). Porto Alegre: os impactos da Copa do Mundo 2014. Porto Alegre, Deriva. , p. 36). Dentro da tipologia apartamento, o mais visível é o predomínio absoluto das unidades de dois dormitórios, representando 51,66% de todas as unidades verticais. Também é interessante observar que unidades tipo um dormitório, apesar de numericamente bastante inferiores às tipologias dois e três dormitórios, têm apresentado consistentemente crescimento, ano a ano.

Em relação à construção de unidades comerciais, percebe-se que elas representam apenas 7,30% das unidades ofertadas no período considerado. Há oscilações de ano para ano, mas o comportamento do mercado nos dois últimos anos, com crescimento da participação das unidades comerciais, pode indicar um início de mudança – ou pelo menos maior participação – do segmento comercial no investimento imobiliário.

A produção imobiliária do Programa Minha Casa Minha Vida em Porto Alegre

É importante agregar, à nossa discussão, os dados do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Após um período de indisponibilidade, o Governo Federal voltou a ofertar abertamente as informações sobre o Programa. Por essa razão, mesmo que extrapole o período analisado, mostraremos os dados completos do MCMV em Porto Alegre. Assim, esses dados correspondem ao período de 2009 a 2020, distribuídos por faixa de renda dos beneficiários com base no salário-mínimo: a Faixa 1 corresponde à renda mensal até 3 salários-mínimos; a Faixa 2, de 3 até 6 salários-mínimos; e a Faixa 3, de 6 até 10 salários-mínimos. A exceção é a Faixa 1,5, cujos dados aparecem entre 2017 e 2020.4 4 No período estudado, 2009-2020, o Programa Minha Casa Minha Vida estava dividido em três faixas (1, 2 e 3), correspondendo ao perfil de renda dos contemplados. Em 2016, houve alteração nas regras do Programa e nas faixas de renda. Ficaram quatro faixas, da seguinte forma: Faixa 1: até R$ 1.800,00 de renda; Faixa 1,5: até R$ 2.600,00; Faixa 2: até R$ 4.000,00; e Faixa 3: até R$ 9.000,00. A partir de agosto de 2020, o Programa foi formalmente substituído por outro, o "Casa Verde Amarela". A comparação entre as quantidades por faixa de renda, principalmente as Faixas 2 e 3, auxilia a compreensão da disparidade entre os empreendimentos voltados aos beneficiários que necessitam fortemente de suporte do Estado (Faixa 1) e a aderência do PMCMV à dinâmica do setor imobiliário em Porto Alegre no período entre 2009 e 2020 (Faixas 2 e 3), conforme pode ser verificado na Tabela 2 .

Tabela 2
– MCMV em Porto Alegre – unidades concluídas e entregues por faixa de renda

Os dados sobre as unidades contratadas e entregues por faixa de renda também demonstram que há diferenças recorrentes em todos os anos apresentados, sendo sempre menores as quantidades dos empreendimentos entregues à Faixa 1. Já, nas demais faixas, há uma compatibilidade precisa entre as duas categorias (contratadas e entregues), o que revela o baixo atendimento às demandas sociais para os beneficiários mais carentes. Destaca-se, ainda, que, especificamente na Faixa 1, as unidades contratadas correspondem a, aproximadamente, duas vezes o número das unidades entregues, havendo anos em que não houve entrega de unidades residenciais (2015, 2019 e 2020). Nos anos de 2012, 2014 e 2016 há contratação, mas não há entrega. A Faixa 2 destaca-se como a que mais teve contratações e entregas, superando em 38% a quantidade contratada da Faixa 1.

As disparidades aparecem não apenas nas quantidades de empreendimentos contratados e entregues, mas nos valores investidos. No Gráfico 2 , aparecem as diferenças de distribuição dos valores de operação (previsto no contrato) e do efetivamente liberado para a construção/aquisição dos imóveis em cada faixa de renda, com grande destaque para os valores empreendidos da Faixa 2. Considere-se que, entre 2012 e 2020, o Banco do Brasil também participou como agente financeiro, além da Caixa Econômica, para as três maiores faixas de renda, o que também tende a abrir opções aos beneficiários nessas condições.

Gráfico 2
– MCMV em Porto Alegre – Valores de operação e liberados por faixas de renda – 2009 a 2020

Observa-se, no Gráfico 2 , que o valor liberado para a Faixa 1 equivale a 30,30% do que foi liberado para a Faixa 2, demonstrando, mais uma vez, a importância da construção de mercado na produção do espaço da cidade e, por consequência, um reforço na máquina de crescimento.

Assim, considerando agora esses números em conjunto com as ofertas de imóveis novos disponibilizados pelo Sinduscon, é possível ter uma ideia da importância que o Programa Minha Casa Minha Vida teve como incentivador da indústria da construção civil e do próprio mercado imobiliário.

Então, temos uma situação que pode ser resumida da seguinte forma:

  1. Porto Alegre manteve, nessa última década, o processo de contínua expansão na construção de novos empreendimentos e edificações.

  2. O Programa Minha Casa Minha Vida contribuiu com esse dinamismo do mercado, ainda que sempre possa ser dito que o PMCMV é um mercado específico, que não engloba a classe média mais tradicional e a alta renda. Mesmo assim, certamente o PMCMV contribuiu para o grande número de unidades construídas.

  3. A máquina de crescimento foi tão avassaladora, que os próprios dados do Minha Casa Minha Vida mostram a imensa dificuldade em enfrentar o déficit habitacional nos extratos mais carentes da população. Apesar de estar aí a maior necessidade de moradias, foi na Faixa 1 que não só poucas unidades foram construídas, como também houve dificuldades até mesmo na contratação e finalização das obras. A pouca importância que as dinâmicas aqui descritas deram para os mais pobres fica evidente também quando se percebe que o site do antigo Demhab (Departamento Municipal de Habitação), responsável por todos os programas de Habitação de Interesse Social na cidade, contabiliza a entrega de 1.456 unidades em 7 empreendimentos até 2020, destoando dos dados oficiais do Governo Federal.

O mercado imobiliário apresenta, ao mesmo tempo, concentração e pulverização. São mais de 300 empresas atuando na construção de imóveis; no entanto, 15 empresas (7,81% do universo) concentram 50,67% do total de unidades em oferta ( Sinduscon-RS, 2019SINDUSCON-RS (2019). 21º Censo do Mercado Imobiliário de Porto Alegre. Disponível em: https://www.sinduscon-rs.com.br/produtos-e-servicos/pesquisas-e-indices/mercado-imobiliario/. Acesso em: 11 maio 2020.
https://www.sinduscon-rs.com.br/produtos...
, p. 5). Esses dados são de 2018, mas refletem uma estrutura que não se alterou nos últimos anos e tem sistematicamente aparecido nos levantamentos e censos imobiliários.

As principais construtoras

Nesse processo de produção imobiliária, temos a atuação de diversas construtoras, de diferentes origens em termos de capitais. O ciclo da construção civil iniciado em 2008-2009 promoveu uma reestruturação do setor, tanto em termos de concentração do capital das empresas, como também nas diferentes escalas de atuação delas no território nacional, agora muito mais ampla para as grandes construtoras e incorporadoras ( Sanfelici, 2013SANFELICI, D. de M. (2013). A financeirização do circuito imobiliário como rearranjo escalar do processo de urbanização. Confins - Revista franco-brasileira de Geografia, n. 18. [On-line em 22 jul 2013]. ).

Soares e Aita (2019)SOARES, P. R. R.; AITA, J. A. B. (2019). A produção financeirizada do espaço na metrópole de Porto Alegre: a ação das principais construtoras. In: XVI SIMPURB – SIMPÓSIO NACIONAL DE GEOGRAFIA URBANA. Anais... Vitória, UFES, v. 1, pp. 335-354. analisaram a atuação de quatro importantes empresas do setor imobiliário em Porto Alegre: Cyrela Goldsztein, Melnick Even, Nex Group e Rossi. Nos primeiros anos do período analisado, estas foram as mais atuantes no mercado imobiliário de Porto Alegre. Essas quatro construtoras, entre 2007 e 2018, realizaram quase uma centena de empreendimentos em Porto Alegre, bem como a Melnick e a Nex Group atuaram em grandes empreendimentos em municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), especialmente em Canoas, adjacente a Porto Alegre e segunda maior cidade da região metropolitana.

As quatro incorporadoras citadas são todas empresas de grande porte. Duas delas são o resultado de associações entre empresas locais e paulistas (Goldsztein-Cyrela, Melnick-Even). A Nex Group é resultado da fusão das locais Capa Engenharia, DHZ Construções, EGL Engenharia e Lomando, Aita, ocorrida em 2011, justamente para ganhar escala e resistir à entrada dos grandes players no mercado local-regional (se considerarmos a região metropolitana). A Rossi pode ser uma exceção, pois atuou sozinha no mercado imobiliário de Porto Alegre, porém sua atuação se concentrou mais na primeira metade do período de análise e hoje realiza poucos empreendimentos. Também podemos incluir nessa relação dois outros atores "externos" de atuação nacional: a MRV que está se destacando na produção habitacional voltada para os setores médios e popular; e a Multiplan Empreendimentos Imobiliários, do Rio de Janeiro, que está desenvolvendo um megaprojeto na orla do Guaíba.

Atualmente, a principal construtora do mercado imobiliário porto-alegrense é a Melnick Even, fundada em 1970. Ela está, portanto, há mais de 50 anos atuando no mercado da construção civil local e regional, no qual se autodenomina “a empresa líder em alto padrão”. Em 2008, associou-se com a Even de São Paulo, empresa da qual se tornou acionista majoritária em 2015, através do fundo de investimentos Melpar, braço financeiro do sócio-proprietário da Melnick e de outras grandes fortunas do RS. Em setembro de 2020, tornou-se a primeira incorporadora do sul do Brasil a abrir capital no novo mercado da Bolsa de Valores do Brasil ( Melnick Even, 2020MELNICK EVEN (2020). Disponível em: www.melnickeven.com.br. Acesso em: 20 março 2021.
www.melnickeven.com.br...
). Possui um grande número de empreendimentos de alto padrão, a maioria edifícios, mas também condomínios residenciais, conjuntos comerciais, malls e usos mistos (residencial e comercial), com atuação em Porto Alegre e em Canoas. Com relação aos condomínios fechados, atua em Porto Alegre e nos municípios de Eldorado do Sul (RMPA) e Xangri-lá (litoral norte).

Um grande projeto da construtora é o chamado Hub da Saúde, com a construção de conjuntos e residenciais voltados para os serviços de saúde. Esse projeto é realizado em aliança com o hospital Moinhos de Vento (um dos principais hospitais privados de Porto Alegre) e com o grupo Zaffari (super e hipermercados, shopping centers ). Estão previstos cinco hubs , quatro em Porto Alegre e um em Canoas; destes, quatro já estão em construção. Esse projeto conta, ainda, com apoio da prefeitura de Porto Alegre, uma vez que a conversão da cidade em um “centro de excelência nacional e continental de saúde” se encontra entre as prioridades econômicas do município ( Melnick Even, 2016MELNICK EVEN (2016). Proposta inovadora para a saúde dos gaúchos. ME Magazine, ano 10, n. 30, pp. 14-24. ). Dois projetos recentes da Melnick relacionam-se com empreendimentos iniciados por outras construtoras. É o caso dos empreendimentos Supreme, realizados no bairro planejado Central Parque (grande projeto iniciado pela Rossi), e do megaprojeto do Pontal, um dos maiores empreendimentos em realização na metrópole, bastante relacionado com a questão da reestruturação da orla do Guaíba ( Rodrigues, 2019RODRIGUES, M. B. (2019). A Orla do Guaíba em transformação: Pontal do Estaleiro, o grande projeto urbano da orla central em Porto Alegre - RS. Trabalho de Conclusão de Curso. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ). Este foi iniciado em 2006 pela BM Par Empreendimentos, e a Melnick assumiu oficialmente a parceria em 2018. A atual configuração do projeto inclui shopping com 25.000 m2 2 Sobre o 4º Distrito, ver o artigo de Almeida e Campos (2022) . de área bruta locável, 160 lojas, cinemas, além de centro de eventos, hub da Saúde e um hotel com bandeira da rede Hilton ( Melnick Even, 2018MELNICK EVEN (2018). Novo símbolo da orla da cidade reconecta porto-alegrenses ao Guaíba. ME Magazine, ano 12, n. 36, pp. 12-27. ).

Outra grande construtora com atuação na cidade é a Cyrela Goldsztein, a maior empresa do setor em valor de mercado ( Exame, 2021EXAME (2021). Por que as construtoras sofrem na bolsa, apesar das vendas recordes? Disponível em: https://exame.com/invest/por-que-as-construtoras-sofrem-para-subir-na-bolsa-apesar-do-bom-momento/. Acesso em: 23 mar 2020.
https://exame.com/invest/por-que-as-cons...
). Trata-se, como a Melnick, da fusão de uma empresa local (Goldsztein) com uma de atuação nacional (Cyrela), aliança iniciada com uma joint venture em 2006 e concluída com a incorporação definitiva da Goldsztein pela Cyrela em 2009. A construtora atua no segmento de alto padrão, disputando o mercado local com a Melnick, no ramo tanto residencial como no comercial, no qual desenvolve o produto Medplex (complexo de consultórios médicos e serviços de saúde), o qual concorre diretamente com os hubs da Melnick.

Finalmente, nesta parte, cabe destacar a Multiplan Empreendimentos e sua relação com a orla do Guaíba. A construtora atua na região metropolitana desde 2008, com a construção do BarraShoppingSul, um grande shopping center localizado na zona sul de Porto Alegre e que alterou significativamente as centralidades desse setor da cidade. A partir de 2011, passou a empreender também em torres comerciais e residenciais adjacentes ao shopping . Em 2017, a Multiplan inaugurou o ParkShopping em Canoas, o maior shopping center da RMPA fora do núcleo metropolitano. Atualmente, leva adiante o megaprojeto do “bairro planejado e privativo” Golden Lake, um conjunto de 18 torres residenciais em uma área de 160 mil m2 2 Sobre o 4º Distrito, ver o artigo de Almeida e Campos (2022) . e cujo Valor Geral de Vendas (VGV) pode chegar a 3 bilhões de reais. Localiza-se em antigo terreno do Jockey Club de Porto Alegre, adjacente ao BarraShoppingSul (que também ocupou terrenos pertencentes ao Jockey) e de frente para o Guaíba ( Zero Hora, 2021ZERO HORA (2021). Veja imagens do bairro planejado com 18 torres, praia artificial e até aquário em Porto Alegre. Zero Hora, 9 de março. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/giane-guerra/noticia/2021/03/veja-imagens-do-bairro-planejado-com-18-torres-praia-artificial-e-ate-aquario-em-porto-alegre.html. Acesso em: 15 mar 2021.
https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunist...
). Esse empreendimento e o Pontal, bastante próximos, são as “locomotivas” da reestruturação do setor da orla do Guaíba em curso, indicando a possibilidade de configuração de um novo “regime de acumulação urbana” na metrópole de Porto Alegre.5 5 A Teoria dos Regimes Urbanos é posterior e pode ser considerada um desdobramento ou ampliação da ideia de “máquina de crescimento” que trabalhamos neste artigo. Para uma leitura ampla dessa teoria, ver texto de França (2019) .

Esse regime urbano decorre de uma ampla reestruturação produtiva, que deslocalizou a indústria do núcleo metropolitano, sendo o capital imobiliário o atual grande responsável pela acumulação urbana, como veremos adiante.

A atuação dessas grandes construtoras e incorporadoras, dados o volume, a variedade e a complexidade dos capitais mobilizados, aponta para o já reconhecido processo de financeirização da produção imobiliária.6 6 A literatura recente sobre o processo de financeirização é bastante ampla. Sugerimos a leitura dos diversos capítulos do livro organizado por Ribeiro (2020b). As empresas atualmente dominantes no mercado imobiliário se capitalizam na bolsa de valores, além de se relacionarem com fundos de investimentos (na composição acionária) e de se utilizarem de papéis financeiros (fundos imobiliários, certificados de recebíveis) que viabilizam os maiores empreendimentos. A Melnick tem seu próprio fundo de investimentos, o Fundo Melpar, que adquiriu o controle acionário da Even, além de realizar outras operações em outros ramos de investimentos. O projeto Pontal conta com fundos imobiliários para alavancar seus subprojetos, especialmente o do hotel.

A seguir discutiremos a questão do crescimento populacional de Porto Alegre, demonstrando a distância entre este e o crescimento do setor imobiliário local.

O crescimento populacional

Imóveis precisam de mercado comprador. À primeira vista, é necessário examinar se existe efetivamente um público com capacidade – basicamente renda disponível – para comprar esses imóveis. Em uma cidade que não é turística e nem um polo importante de conexão global, como Porto Alegre, o potencial comprador será majoritariamente um morador local. Por essa razão, compreender a dinâmica populacional é importante.

Porto Alegre é uma das capitais do País que historicamente (desde o Censo de 1991) vem apresentando taxas de crescimento demográfico muito baixas, não só nos períodos intercensitários, mas também nas estimativas de população. Comecemos pelos dados censitários, apresentados na Tabela 3 .

Tabela 3
– Porto Alegre – População residente por sexo e grupos de idades selecionados (2000-2010)

Entre os dois últimos Censos Demográficos (2000 e 2010), a população teve um incremento de apenas 48.760 pessoas. Também é perceptível o processo de envelhecimento, com diminuição do efetivo de jovens (diminuição absoluta entre 0 e 19 anos de idade), pequeno aumento entre 20 e 39 anos de idade (quando a maioria das pessoas acessa ao mercado imobiliário) e o aumento de idosos (aumento absoluto nas faixas de idade a partir de 50 anos). Ora, se lembrarmos que todo o marketing das empresas imobiliárias está voltado para a aquisição de imóveis por novos – e jovens – casais, percebe-se uma contradição: o público-alvo cresce em velocidade cada vez mais reduzida. A faixa etária de 20 a 39 anos aumentou 24.900 pessoas entre 2000 e 2010 (diferença de 24.900 pessoas ou 12.450 casais, numa conta puramente matemática). Uma pesquisa disponível ( Revista Exame , março de 2015) indica que a idade média do comprador de primeiro imóvel estava em 33 anos.

Entre 1991 e 2000, houve acréscimo de 60.874 domicílios; e, entre 2000 e 2010, houve acréscimo de 66.947 domicílios. Não houve diminuição do número de domicílios vagos nesse intervalo de 20 anos, pois estes correspondem a praticamente 10% do estoque de domicílios do município.

Uma analogia interessante, que não esgota a questão nem todas as nuanças, mas ajuda a pensar sobre o volume de novas edificações na cidade, é comparar o incremento de população com o incremento da oferta de imóveis. Entre os dois Censos, o acréscimo de imóveis à venda (ver Gráfico 1 ), ainda que não tenhamos disponíveis dados de 2001, foi de 52.699 imóveis (2002 a 2010). Se lembrarmos, como colocado acima, que o incremento populacional, entre 2000 e 2010, foi de 48.760 pessoas, o mercado imobiliário ofertou mais unidades que todo o crescimento populacional da cidade . Equivale a dizer que todo novo morador na década tinha disponível para compra um imóvel novo, recém-construído.

Além disso, as mudanças no comportamento reprodutivo, aliadas à dinâmica de transição demográfica, têm provocado, consistentemente, diminuição no tamanho das famílias e, por consequência, a redução na média de moradores por domicílios. Isto é válido tanto para a população em geral quanto para a população residente em aglomerados subnormais, como pode ser constatado na Tabela 4 . Esta poderia ser uma das razões para o alto número de novas edificações, já que, teoricamente, diminuição no tamanho das famílias e aumento, por exemplo, de imóveis com um único morador implicariam necessidade de mais habitações. Mas, novamente, se olharmos os dados de número médio de habitantes por domicílio no último Censo e multiplicarmos pelo número de novas unidades no período, temos o seguinte resultado: 2,75 X 52.699 = 144.922,25. Em outras palavras: o estoque produzido para a venda na década seria suficiente para mais de 144 mil pessoas. Um número muito maior que o incremento populacional.

Tabela 4
– Porto Alegre – Domicílios particulares ocupados e média de moradores

Quanto aos anos mais recentes, os dados demográficos são estimativas, mas ajudam a refletir se a dinâmica entre população e produção de imóveis continua semelhante.

As estimativas de população feitas pelo IBGE apontam um incremento ao redor de 75 mil pessoas entre 2011 e 2020. Como temos dados imobiliários até 2018, podemos equalizar datas: o incremento populacional, entre 2011 e 2018, está estimado em 66.007 pessoas. Apesar de indicar uma leve curva ascendente – uma fertilidade um pouco maior – em relação à década precedente, os números ainda apontam para a continuidade do baixo crescimento populacional, resultado tanto da fertilidade abaixo da taxa de reposição quanto do arrefecimento das migrações em direção ao coração da metrópole.

Se o levantamento no próximo Censo (2022) confirmar um acréscimo um pouco maior de população na cidade, desta vez teríamos um crescimento maior de habitantes do que de imóveis, que, como vimos, são 52.327 novas ofertas de imóveis residenciais. Ainda assim, o questionamento da relação entre o reduzido crescimento populacional e a intensa atividade construtiva em Porto Alegre continua válido.

Tabela 5
– Porto Alegre – Estimativas de população: 2011-2020

O espaço urbano como lugar da acumulação de capital

A urbanização, como venho argumentando há tempos, tem sido um meio fundamental para a absorção dos excedentes de capital e de trabalho ao longo de toda a história do capitalismo. Tem uma função muito particular na dinâmica da acumulação do capital devido aos longos períodos de trabalho e rotatividade e a longevidade da maior parte dos investimentos no ambiente construído. Também tem uma especificidade geográfica tal que a produção de espaço e dos monopólios espaciais se tornam parte integrante da dinâmica da acumulação, não apenas em virtude da natureza dos padrões mutáveis do fluxo de mercadorias no espaço, mas em virtude da natureza mesma dos espaços e lugares criados e produzidos em que esses movimentos ocorrem. Contudo, exatamente por toda essa atividade – que, a propósito, é um campo de enorme importância em que se dá a produção de valor e mais-valia – ocorrer em tão longo prazo, alguma combinação de capital financeiro e engajamento estatal é absolutamente fundamental para seu funcionamento. Essa atividade é claramente especulativa no longo prazo, e sempre corre o risco de replicar, muito mais tarde e em maior escala, as mesmas condições de sobreacumulação que, de início, tenta atenuar. ( Harvey, 2014HARVEY, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins Fontes. , pp. 92-93)

Harvey, como ele mesmo informa na epígrafe acima, tem insistido na importância de entendermos que o investimento na multiplicação do ambiente construído vai além dos efeitos locais e está conectado com o processo mais geral de acumulação de capital. Este é um interessante ponto de partida, mas não explica todas as diferenças entre processos de acumulação e distintos ritmos de crescimento de diversas cidades ao longo do globo, assim como não é suficiente para percebermos as nuanças e mesmo disparidades das políticas locais. Portanto, agregar outras explicações é fundamental.

Lefebvre (1976)LEFEBVRE, Henri (1976). Espacio y politica: el derecho a la ciudad II. Barcelona, Península. alertava que, exatamente porque a construção proporciona lucros superiores à média, através do espaço, o dinheiro produz dinheiro (p. 101). Ao mesmo tempo que esse fenômeno ajuda a explicar por que o setor imobiliário – e a produção de ambientes construídos – é parte integrante da dinâmica de acumulação, também mostra contradições. Isto porque a propriedade da terra é anterior ao desenvolvimento do capitalismo. O desenvolvimento do capitalismo, é verdade, transforma a propriedade, mas não a elimina. E não a elimina, como lembra Harvey (2013HARVEY, D. (2013). Os limites do capital. São Paulo, Boitempo. , p. 462), seguindo os passos de Marx, pois, se a terra estivesse à livre disposição de todos, não seria possível a formação de uma classe possuída apenas de sua força de trabalho, condição necessária para o desenvolvimento da produção capitalista. Essa contradição leva à outra. A terra não pode estar livremente à disposição, mas pode (e deve) ser um valor de troca, pois a propriedade privada da terra desempenha uma função legitimadora da propriedade privada em geral (e especialmente dos meios de produção). Significa, em termos práticos, que a busca por propriedade privada (por exemplo, moradia própria) deve ser estimulada, inclusive, para as classes trabalhadoras. O resultado, nítido nas cidades atuais, é a pulverização da propriedade privada, possibilitando – em teoria – a quase todos terem acesso a algum grau na renda da terra.

Portanto, há um interesse geral na valorização dos ativos imobiliários. Todos os proprietários, inclusive aqueles donos de apenas um pequeno imóvel na periferia, veem com bons olhos processos que aumentam preços, pois eles enxergam a valorização do seu próprio imóvel. É claro que essa valorização geral na verdade não resulta em ganhos iguais para todos; aliás, nem todos ganham.

Ganharão os que têm capacidade de transformar renda capitalizada em renda potencial do solo. Como explica Smith (2012SMITH, N. (2012). La nueva frontera urbana: ciudad revanchista y gentrificación. Madrid, Traficantes de Sueños. , p. 11), a renda capitalizada do solo é a quantidade de renda da terra que é apropriada pelo dono da terra, levando em consideração o uso presente do solo. Aqui já é possível ver que a simples pulverização da propriedade não resulta em ganho para todos. O proprietário de uma única vivenda (a sua), não consegue capitalizar a não ser que venda sua casa. Mas como isto praticamente o obrigará a comprar outra para seguir vivendo em condições mínimas, a apropriação dessa renda é anulada por essa necessidade, o que significa que a renda inicial acaba em outras mãos, acumulada por outros.

Resulta que quem detém capital buscará mais de uma propriedade nas cidades – ou pelo menos o constante investimento em propriedades –, como forma de rentabilizar seus ganhos. Mas, além de rentabilizar o uso presente, a especulação pode tomar uma outra forma. Qual o potencial de uso que uma determinada porção de terra pode ter? Por exemplo: um bairro qualquer de classe média teve uma ocupação majoritariamente através de casas. Com o crescimento urbano, esse bairro, inicialmente afastado da zona considerada central, passa agora a ser considerado como parte da centralidade. No caso de Porto Alegre, a exemplificação desse processo pode ser visualizada com a regionalização empregada pelo Orçamento Participativo (OP). A “Região Centro” do OP é uma área que compreende não só o Centro Histórico e inclui bairros adjacentes, como Bom Fim, Cidade Baixa, Menino Deus, Independência, Moinhos de Vento, Rio Branco, Petrópolis, bairros de classe média e classe média alta. Se for lembrado que o Menino Deus surgiu como um “arraial” de casas, algumas delas como segundas casas de veraneio de uma elite, e hoje é um bairro verticalizado, com a maior parte dos terrenos ocupados por edifícios, é possível entender o processo. Quando o terreno nesse bairro está ocupado por uma casa, ele pode capitalizar uma certa quantidade de renda da terra. Se o Plano Diretor, como aconteceu com o Plano de 1999, permite edificações com maior altura que antes, isto significa que o uso permitido agora é diferente. Logo, a renda potencial do solo é a quantidade que poderá ser capitalizada através de um melhor ou mais elevado uso da terra. Ou, dito de outra forma, por conta da localização, o bairro agora poderá, potencialmente, capitalizar maiores quantidades de renda com um diferente uso do solo e do espaço (ibid., p. 118). Quem consegue capturar essas diferenças obterá rendas muito mais elevadas que outros. Esta é a essência da especulação imobiliária.7 7 Cabe salientar que outros bairros da Região Centro passam por esse processo, como o Moinhos de Vento, Rio Branco e Petrópolis.

A cidade, assim, ao mesmo tempo é formada por uma disputa de localizações ( Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). O espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Lincoln Institute. ) e por uma disputa por quem consegue capturar mais renda da terra. Essas duas disputas, evidentemente, estão interligadas. Não só interligadas entre si, mas imbricadas com a política urbana.

A economia política da cidade: a máquina do crescimento

A casa própria tem sido louvada nos Estados Unidos como uma ferramenta para construir patrimônio, reviver bairros e cidades em decadência, reduzir a pobreza e engajar os civicamente desengajados. Quando a casa própria chegou a 69% dos habitantes dos EUA, em 2006, muitos celebraram o fato de que um vasto número de americanos, incluindo pessoas de cor, haviam conseguido conquistar o sonho americano – adquirir um lar. Mas nem todos estavam celebrando. Depois de décadas de trabalho para reverter decadência e desinvestimento em seus bairros, algumas organizações comunitárias se encontraram na incomum posição de questionar se o fluxo de capital que seus bairros experimentaram desde os anos 90 foi benéfico ou prejudicial. Enquanto alguns celebraram, outros começaram a questionar se sua vizinhança teve mais acesso ao capital ou se o capital é que aumentou seu acesso às comunidades. A disputa é sobre se o acesso ao capital produziu um benefício aos proprietários e às comunidades ou se isto facilitou a acumulação de capital com poucos benefícios públicos. Habitação, naturalmente, além de “lar” é também um grande componente das economias dos Estados Unidos e de outros países. ( Newman, 2012NEWMAN, K. (2012). “The new economy and the city: foreclosures in Essex County New Jersey”. In: AALBERS, M. Subprime cities: the political economy of mortgage markets. Oxford, Blackwell Publishing. , p. 219)

A construção e a aquisição de imóveis não são somente uma questão técnica ou de legislação, assim como não são apenas uma questão econômica; são também uma questão política. Nas cidades, isto é um componente essencial para compreensão das disputas econômicas e políticas.

Molotch (1988)MOLOTCH, H. (1988). Strategies and constraints of growth machines. Disponível em: https://whorulesamerica.ucsc.edu/power/molotch_1988.html. Acesso em: 6 maio 2020.
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argumenta que, virtualmente, todas as cidades dos Estados Unidos são dominadas por uma reduzida elite, cujos membros têm interesses profissionais e de negócios diretamente ligados ao crescimento e desenvolvimento local. Esses interesses e negócios estão ligados à propriedade da terra. Isto porque, como a terra e as benfeitorias urbanas (construções) podem ser compradas e vendidas como mercadoria, o espaço urbano torna-se uma arena em que essa elite de empreendedores procura usar o governo local e outras instituições civis para maximizar o retorno de seus investimentos. De fato, o autor é extremamente assertivo ao afirmar que esse crescimento é a essência do governo local; não somente uma das funções desempenhadas pelo poder municipal, mas a função principal ( Molotch, 1976MOLOTCH, H. (1976). The city as a growth machine: toward a political economy of place. American Journal of Sociology. Chicago, v. 82, n. 2, pp. 309-332. , p. 313). Por isso a expressão máquina de crescimento . As cidades são desenhadas para maximizar lucros dessa elite ligada ao setor imobiliário. Assim, não é preciso necessariamente ser um grande proprietário de terra, por exemplo. A coalizão de poder local inclui não só empreendedores imobiliários, mas todos que de uma forma ou outra devem suas fortunas ao crescimento de uma determinada área da cidade. Envolve instituições financeiras, pela razão óbvia de que investimentos imobiliários requerem adiantamento de capital para a construção e incorporação; envolve a mídia local, pois, como pode ser facilmente notado, os jornais impressos locais veiculam grande quantidade de propaganda de lançamentos imobiliários e defendem arduamente o “progresso” que adviria desses novos investimentos. Crescimento interessa também a pequenos investidores. Áreas em valorização atraem novos negócios e serviços, como escritórios de advocacia, padarias, restaurantes, bares, etc.; e, em outro patamar, empresas de material de construção, filiais de imobiliárias, lojas de móveis para casa e/ou escritório, etc. Essa pequena lista serve para mostrar por que a ideologia do crescimento funciona.

É interessante notar que essa máquina de crescimento urbano não necessariamente está vinculada ao processo de acumulação de capital produtivo. Aliás, como muitas pesquisas empíricas no Brasil já constataram, processos que provocam encarecimento de áreas urbanas podem ter como efeito colateral desindustrialização dos centros urbanos. A indústria desloca-se para a periferia metropolitana para fugir das desvantagens de aglomeração, mas isto não necessariamente diminui o preço da terra no núcleo central da metrópole . A acumulação de capital é contraditória; não é um processo em que todos ganham da mesma forma. Essas relações acabam por ajudar a definir diferentes formas urbanas, que estão, portanto, relacionadas a diferentes maneiras como operam e se conectam nas cidades as várias frações do capital e as diferentes frações de rentistas.

Mas, como afirmado, o que torna a constituição e o desenvolvimento das cidades tão parecidas umas com as outras é a constituição de coalizões – políticas – que têm interesse direto na cidade como máquina de crescimento.

Voltemos a olhar para Porto Alegre. E façamos uma pequena digressão ao passado recente. Uma das marcas da década de 1990 na cidade foi a sucessiva eleição de governos de centro-esquerda, liderados por uma coalizão em torno do Partido dos Trabalhadores. Como é bem conhecido, houve uma tentativa de aprofundar formas de democracia que não fossem puramente representativas, como a demonstra a constituição do Orçamento Participativo ( Abers, 1998ABERS, R. (1998). Inventando a democracia: distribuição de recursos públicos através da participação popular em Porto Alegre, RS. CIDADE: Centro de Assessoria e Estudos Urbanos. Porto Alegre. Disponível em: https://www.ufrgs.br/nph/ong/?p=25. Acesso em: 12 dez 2020.
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; Fedozzi, 1997FEDOZZI, L. (1997). Orçamento Participativo: reflexões sobre a experiência de Porto Alegre. Porto Alegre, Tomo editorial. ; Tartaruga, 2003TARTARUGA, I. G. P. (2003). O orçamento participativo de Porto Alegre: o lugar e o território do cidadão? Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ). Não há dúvida de que foi um período em que as frações ligadas ao capital e à renda fundiária tiveram que ceder algum espaço para a realização de políticas públicas redistributivas e democráticas. Mas, e isto é importante lembrar, nunca houve impedimentos para empreendimentos imobiliários de todos os portes. O que se fez foi colocar em prática instrumentos de regulação para a intervenção no solo capazes de redistribuir parte dos ganhos do capital imobiliário. Por exemplo: um hipermercado foi autorizado a se instalar na Zona Sul como parte inicial de um grande projeto urbano no qual, alguns anos mais tarde, seria construído um shopping center anexo ao hipermercado (BarraShoppingSul). A permissão de instalação foi feita tendo como contrapartida a construção de novas habitações para as famílias que ocupavam de forma precária (e irregular) a área do empreendimento. Para isso, foi proposta a lei n. 8093/1997 autorizando a permuta de imóveis entre os empreendedores e a Prefeitura Municipal. Literalmente:

Art. 3º – Sobre a área a ser transferida ao Município, os Empreendedores implantarão as unidades habitacionais e respectiva urbanização, conforme Estudo de Viabilidade Urbanística – E.V.U. aprovado (Processo Administrativo n. 2.284147.00.9), para possibilitar o reassentamento das famílias hoje ocupantes das vilas identificadas como Campos do Cristal, Estaleiro Só e Foz do Arroio Cavalhada (trecho da Av. Diário de Notícias até os limites das Cavalariças do Jockey Club do Rio Grande do Sul). ( Porto Alegre, 1997PORTO ALEGRE (1997). Lei n. 8093 de 17 de dezembro de 1997. Desafeta área de uso comum do povo, autoriza o Município de Porto Alegre a permutar imóvel desafetado com os Empreendedores do Cristalshopping. DOPA: Diário Oficial de Porto Alegre, 18/12/1997. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/cgi-bin/nph-brs?s1=000021822.DOCN.&l=20&u=/netahtml/sirel/simples.html&p=1&r=1&f=G&d=atos&SECT1=TEXT. Acesso em: 13 maio 2020.
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)

Não está em discussão aqui a provável melhora nas condições de vida dos moradores da ocupação que receberam novas casas, e sim lembrar que o que permitiu aos empreendedores aceitar essas condições foi a existência de uma renda potencial de solo muito maior do que a renda a ser capturada com a construção de habitações populares. Na verdade, não só maior do que a renda capitalizada no loteamento popular, mas suficiente para cobrir com folga os custos do reassentamento. Dito de outra forma: a dinâmica da máquina de crescimento, na qual o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso da terra sempre esteve presente na cidade, mesmo quando a coalizão formalmente no Governo Municipal procurava enfatizar a democratização da cidade.

Como colocado anteriormente, esta foi uma digressão no sentido de exemplificar; uma pesquisa sobre a dinâmica do setor imobiliário na época da administração popular em Porto Alegre certamente traria mais exemplos para reforçar a tese. Mas este é um texto com base em dados da última década; portanto avancemos.

Nos dias atuais (2020), a administração popular parece cada vez mais uma pequena utopia distante. Em época de inflexão ultraliberal (Ribeiro, 2020a), o governo municipal vem cumprindo fielmente com os preceitos que indicam o domínio de uma coalizão dedicada à máquina de crescimento. Em Porto Alegre, essa inflexão inicialmente não foi radical. A não reeleição de coligações em torno do Partido dos Trabalhadores, em 2004, foi o marco da inflexão. De início, timidamente liberal; aos poucos, cada vez mais assumindo uma postura em direção ao ultraliberalismo, representado pela eleição do último prefeito (2017-2020), Nelson Marchezan Jr., e de seu sucessor, Sebastião Mello, eleito em 2020; que, embora em “oposição” partidária ao anterior mandatário, ao longo de 2021 ampliou o programa ultraliberal, agora com maioria mais folgada no legislativo municipal.

Como definiu Siqueira (2019)SIQUEIRA, L. F. (2019). Democracia e cidade: da democracia participativa à desdemocratização na experiência de Porto Alegre. Tese de doutorado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. , a dinâmica da democracia em Porto Alegre vem experimentando um deslocamento do poder, no sentido de força decisória, nas instâncias participativas, como o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA) e o próprio Orçamento Participativo (OP). Como colocado no parágrafo anterior, esse deslocamento, em direção ao ultraliberalismo, foi lento e gradual. Começou com a criação da Secretaria Municipal de Coordenação Política e Governança Local, em 2004, na gestão que sucedeu os governos petistas. A Governança Local acabou por se constituir em um fórum acima do OP, até então uma das instâncias máximas de deliberação em Porto Alegre, subordinando-o a um planejamento pré-consensuado, neutralizando conflitos e passando a ideia de uma solidariedade em torno do espaço urbano que é ideológica no sentido clássico (ocultação de interesses e discurso lacunar).

Um exemplo: mostrando todo o processo de tramitação da lei complementar n. 721/2013, que, segundo a ementa, “estabelece medidas de incentivo e apoio à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente empresarial, acadêmico e social no Município de Porto Alegre e dá outras providências”, Siqueira (ibid., pp. 180-182) revela que a Lei apresenta repercussão direta no espaço urbano, pois elenca uma série de incentivos em uma área que compreende vários bairros da cidade e libera total ou parcialmente os investimentos em impostos municipais, tais como IPTU, ITBI, ISSQN entre outros. Para poder aprovar tamanha alteração, foi necessário proceder modificações no Plano Diretor. Como convencer os conselheiros do CMDUA ligados à representação popular a aprovarem constantemente alterações no Plano Diretor que facilitassem empreendimentos de empresários? Através da instituição de contrapartidas ao empreendimento. E o esforço das novas estruturas de governo em aprovar projetos de seu interesse:

A Secretaria Municipal de Governança Solidária Local destinou um funcionário para participar do Escritório de Licenciamento exclusivamente para acompanhar a tramitação de projetos cujas medidas compensatórias apresentem potencial de atendimento às demandas através do que ficou conhecido entre os conselheiros como “contrapartidas sociais” (Ata Ordinária n. 003/2016). Após identificadas tais “contrapartidas”, o funcionário deverá levar aos conselheiros do OP, que discutirão a destinação através da temática HOCDUA – Habitação e Organização da Cidade Desenvolvimento Urbano Ambiental.

Mesmo sendo uma ação diretamente relacionada ao Escritório de Licenciamento, também é vinculada ao CMDUA pois é imprescindível que o conselho analise os projetos de grande impacto na cidade após tramitar pelo escritório de licenciamento.

O processo citado acima, proposto pela Governança Solidária Local, leva a um paradoxo. Para que alguma comunidade tenha demanda contemplada através de medida compensatória ou TCAP, o projeto deverá, necessariamente, ser aprovado em todas as instâncias, inclusive no CMDUA. Portanto, fica comprometido, assim, o voto do representante do OP no CMDUA. A tendência é que o voto seja sempre favorável ao projeto. (Ibid., p. 182)

O exemplo trazido na citação anterior é elucidativo na transformação prática em direção a uma coalizão mais explicitamente dedicada à máquina de crescimento. E é extremamente interessante porque também mostra que toda coalizão governamental bem-sucedida (entendendo por esse termo capacidade de colocar em prática propostas de governo) precisa da participação de diversos atores, inclusive do consentimento de atores que, em teoria, deveriam apresentar oposição a diversas medidas do governo em questão. O resultado prático é um reforço na importância e no poder do setor imobiliário na produção do espaço urbano em Porto Alegre e a criação de uma dependência de setores populares em aceitar o protagonismo desse setor, como contrapartida para o atendimento de demandas e obras em suas comunidades. Aliás, nesse sentido, a analogia com “máquina” é perfeita: como toda máquina, ao mesmo tempo depende da condução de pessoas que a dirigem e colocam para funcionar, mas também, depois que a máquina é “ligada”, ela é capaz de funcionar com relativa autonomia em relação a essas mesmas pessoas.

Por fim, deve ser lembrado que a inflexão ultraliberal está largamente associada à financeirização. Basicamente, financeirização significa disseminação profunda e geral das características do capital portador de juros no sistema como um todo ( Fix e Paulani, 2019FIX, M.; PAULANI, L. (2019). Considerações teóricas sobre a terra como puro ativo financeiro e o processo de financeirização. Revista de Economia Política, v. 39, n. 4 (157), pp. 638-657. ). A complexidade aqui é que, na cidade, através da renda e da capitalização da terra, o financeiro sempre esteve presente. O capital portador de juros é elemento essencial em todo o sistema imobiliário. Ele aparece, para o consumidor final dessa mercadoria, como acesso ao crédito. Foi exatamente o acesso ao crédito um dos elementos que permitiu toda a explosão de investimentos imobiliários e a constituição do Minha Casa Minha Vida. E, como os dados mostrados anteriormente neste artigo evidenciam, não há como negar que a imbricação desses elementos (o financeiro e o complexo imobiliário) é um dos principais responsáveis pela produção do espaço urbano em Porto Alegre.

Uma outra evidência dessa imbricação são os resultados apresentados pela pesquisa de Melo (2021)MELO, E. O. (2021). Financeirização, governança urbana e poder empresarial nas cidades brasileiras. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 23, n. 50, pp. 41-66. . O autor mostra que as coalizões de poder presentes nas metrópoles brasileiras conformam um complexo urbano-imobiliário-financeiro (Cuif), ou seja, uma confluência de interesses entre setores econômicos ligados à acumulação urbana e ao mercado financeiro (p. 46). Examinando os dados das doações eleitorais nas eleições municipais, é visto que, das doações de pessoas jurídicas identificadas em Porto Alegre, mais de 65% são oriundas de setores ligados à Cuif. Sozinho, o setor de construção respondeu por mais de 45% do total das contribuições aos partidos e candidatos. E essas informações também são importantes por mostrarem os limites da financeirização nas metrópoles brasileiras. O setor financeiro, ao não despender muito dinheiro no financiamento de campanhas eleitorais municipais, demonstra que não é nessa escala que está sua principal atuação. Nesse sentido, é interessante associar com outra pesquisa recente. Godechot (2015)GODECHOT, O. (2015). Financialization is marketization! A study on the respective impact of various dimensions of financialization on the increase in global inequality. MaxPo Discussion Paper 15/3. Paris, Max Planck Sciences Po Center. , ao estudar o impacto da financeirização no crescimento da desigualdade em 18 países da OCDE e medir o papel das várias formas possíveis de financeirização, conclui que o papel da financeirização de firmas não financeiras e das residências é marginal perto do que ele definiu como mercantilização da financeirização, ou seja, o crescente volume (e energia gastos) de comércio/troca de instrumentos financeiros nos mercados financeiros. Em outras palavras, o volume principal, inclusive em termos monetários, envolvido na financeirização da economia diz respeito à transformação de instrumentos financeiros em uma mercadoria, transacionada como se fosse uma mercadoria como outra qualquer.

Molotch (1976MOLOTCH, H. (1976). The city as a growth machine: toward a political economy of place. American Journal of Sociology. Chicago, v. 82, n. 2, pp. 309-332. e 1988), como exposto anteriormente, afirma que a máquina do crescimento é a essência das cidades norte-americanas. Poderíamos dizer o mesmo de Porto Alegre? O exposto até aqui mostra evidências que sim, setores empresariais ligados de alguma forma ao mercado imobiliário desempenham um papel primordial na produção do espaço na cidade, e o conceito de máquina do crescimento ajuda-nos a compreender esse processo. Além disso, a história recente dessa metrópole, com a presença de coalizões de centro-esquerda governando a cidade em vários períodos, torna patente que, certamente, a máquina do crescimento é muito mais contraditória do que parece à primeira vista e muitas vezes precisa ceder a outros atores para continuar atuando.

Considerações finais

O presente artigo mostrou dados sobre os fortes investimentos na produção habitacional pelo capital imobiliário em Porto Alegre na última década, levando em conta o volume de acréscimo de novos empreendimentos na cidade, seja pela construção direta do mercado, seja através do PMCMV.

Os dados apresentados revelam uma consistente permanência de alto volume dos investimentos imobiliários. Também ficou demonstrado que a proporção dos investimentos imobiliários voltados à construção de unidades habitacionais é muito maior que os concentrados em imóveis comerciais. Na mesma linha, a quantidade de empreendimentos vinculados ao PMCMV expressa a sua relevância no contingente total de edifícios produzidos para habitação em Porto Alegre.

Outro aspecto é a atuação ao mesmo tempo concentrada e pulverizada do mercado imobiliário na cidade, resultado da atuação de mais de 300 empresas com atuação na construção de imóveis. Tudo isto revela que nunca houve uma recessão na produção habitacional em Porto Alegre, com acréscimo de mais de 5.000 unidades habitacionais por ano, mesmo com oscilações de outros indicadores econômicos e a diminuição do ritmo de atividades em outros segmentos da economia.

Como forma de contextualização dessa tendência permanente e ininterrupta de crescimento da produção imobiliária habitacional, observaram-se as taxas de crescimento da população residente na metrópole, que poderiam justificar esse aumento, mas que têm caminhado no sentido oposto, apresentando índices cada vez menores.

Assim, o artigo aponta para uma certa autonomia do mercado de produção de habitações na metrópole, que se torna uma arena em que uma elite de empreendedores se beneficia do acesso ao governo local e a outras instituições civis, visando ampliar o retorno de investimentos. Tal situação encontra, na reflexão de Molotch (1976)MOLOTCH, H. (1976). The city as a growth machine: toward a political economy of place. American Journal of Sociology. Chicago, v. 82, n. 2, pp. 309-332. sobre a máquina do crescimento, uma representação coerente e muito próxima do que ocorre em Porto Alegre.

Para finalizar, este artigo indica também a necessidade de se pensar a constituição de um “regime urbano” em Porto Alegre voltado, em forte medida, para a contínua expansão de um complexo de atores ligados ao setor imobiliário, o que anuncia uma coalizão em torno do Estado e do setor imobiliário. Assim, os indicadores revelam essa promoção imobiliária assistida por um sistema público que acaba por favorecer a manutenção dessa ideia de máquina de crescimento.

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Notas

  • 1
    Sobre os impactos da Copa do Mundo de 2014 em Porto Alegre, ver os diversos artigos reunidos em Soares (2015)SOARES, P. R. R. (org.) (2015). Porto Alegre: os impactos da Copa do Mundo 2014. Porto Alegre, Deriva. .
  • 2
    Sobre o 4º Distrito, ver o artigo de Almeida e Campos (2022)ALMEIDA, N. L. de; CAMPOS, H. A. (2022). Dinâmica imobiliária da habitação em bairros adjacentes ao centro de Porto Alegre/RS. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 24, n. 53, pp. 283-310. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2236-9996.2022-5311. Acesso em: 3 jan 2022.
    https://doi.org/10.1590/2236-9996.2022-5...
    .
  • 3
    Verticalização, aqui, é entendida simplesmente como construção e predomínio de tipologia de edifícios. Não está em discussão, por exemplo, altura de edificações.
  • 4
    No período estudado, 2009-2020, o Programa Minha Casa Minha Vida estava dividido em três faixas (1, 2 e 3), correspondendo ao perfil de renda dos contemplados. Em 2016, houve alteração nas regras do Programa e nas faixas de renda. Ficaram quatro faixas, da seguinte forma: Faixa 1: até R$ 1.800,00 de renda; Faixa 1,5: até R$ 2.600,00; Faixa 2: até R$ 4.000,00; e Faixa 3: até R$ 9.000,00. A partir de agosto de 2020, o Programa foi formalmente substituído por outro, o "Casa Verde Amarela".
  • 5
    A Teoria dos Regimes Urbanos é posterior e pode ser considerada um desdobramento ou ampliação da ideia de “máquina de crescimento” que trabalhamos neste artigo. Para uma leitura ampla dessa teoria, ver texto de França (2019)FRANÇA, B. L. P. de O. (2019). Da teoria urbana ao regime Urbano: contribuições como teoria e como método para interpretar as relações de poder interativas na cidade. Texto para Discussão 2. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2019/09/TD-002-2019_Barbara-Franca_Final.pdf. Acesso em: 15 dez 2021.
    https://www.observatoriodasmetropoles.ne...
    .
  • 6
    A literatura recente sobre o processo de financeirização é bastante ampla. Sugerimos a leitura dos diversos capítulos do livro organizado por Ribeiro (2020b).
  • 7
    Cabe salientar que outros bairros da Região Centro passam por esse processo, como o Moinhos de Vento, Rio Branco e Petrópolis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    5 Abr 2021
  • Aceito
    3 Jul 2021
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