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Política de urbanização de favelas no Rio de Janeiro: dimensões institucionais e normativas

Slum upgrading policies in Rio de Janeiro: institutional and normative aspects

Resumo

A capacidade institucional e o aparato normativo do Estado são importantes campos de disputas pela produção do espaço e pelo reconhecimento de direitos sociais. Tais disputas ganham especial relevância na cidade do Rio de Janeiro, marcada por intensas desigualdades sociais. Nesse quadro, as políticas de urbanização de favelas consolidadas entre as décadas 1990 e 2010 representam importante reconhecimento das favelas enquanto espaços de moradia popular. Este artigo analisa as políticas de urbanização de favelas realizadas no Rio de Janeiro nesse período, focando nos modelos institucionais e conteúdos normativos, situando-as nas conjunturas políticas locais e tendo o direito à moradia como norteador. Observam-se a continuidade e centralidade relativa dessas políticas no período analisado, contudo, são ressaltadas importantes contradições e limitações.

favelas; Rio de Janeiro; políticas habitacionais; urbanização de favelas; habitação social

Abstract

The state’s institutional capacity and regulatory framework are important fields of disputes over space production and recognition of social rights. Such disputes gain special relevance in the city of Rio de Janeiro, marked by intense social inequalities. In this context, slum upgrading policies consolidated between the 1990s and 2010s represent an important recognition of slums as popular housing spaces. The article analyzes the slum upgrading policies implemented in Rio de Janeiro during this period, focusing on institutional models and regulatory frameworks. It places the policies within the local political contexts, having the right to adequate housing as a guide. The study reveals the continuity and relative centrality of these policies in the analyzed period; however, it highlights important contradictions and limitations.

slums; Rio de Janeiro; housing policies; slum upgrading policy; social housing

Introdução

Ao longo da evolução urbana e da consolidação da ocupação da cidade do Rio de Janeiro, a presença das favelas esteve continuamente atravessada por relações contraditórias, com conflitos e tensões (Valladares, 1978VALLADARES, L. do P. (1978). Passa-se uma casa. Análise de um programa de remoção de favelas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Zahar.; Machado da Silva, 2020MACHADO DA SILVA, L. A (2020). “A continuidade do problema da favela”. In: MACHADO DA SILVA, L. A. (org.). Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro, MV Serviços e Editora, pp. 279-305.; Burgos, 2006BURGOS, M. B. (2006). “Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro”. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV.; Gonçalves, 2007GONÇALVES, R. S (2007). A construção jurídica das favelas do Rio de Janeiro: das origens ao Código de Obras de 1937. Os Urbanitas – Revista de Antropologia Urbana. São Paulo, v. 4, pp. 1-19., 2013GONÇALVES, R. S (2013). Favelas do Rio de Janeiro. História e Direito. Rio de Janeiro, Pallas, Ed. PUC-Rio.). Enquanto a estrutura social conformada depende da participação dos moradores de favelas para os processos de reprodução do capital e crescimento da cidade, não é garantido a essa população o direito de ser reconhecida como parte legítima ou de acessar plenamente a cidade que ajudam a construir (Gonçalves, 2013GONÇALVES, R. S (2013). Favelas do Rio de Janeiro. História e Direito. Rio de Janeiro, Pallas, Ed. PUC-Rio.). O Estado, como campo de disputas dos agentes produtores do espaço urbano, é parte indissociável desse quadro. Nesse sentido, a secular permanência das favelas como locais de moradia dos pobres urbanos pode ser lida como parte dos efeitos das ações do próprio Estado, na medida em que conjugam exclusão e estigmas territoriais (Roy, 2009ROY, A. (2009). Planejamento e gestão espacial da pobreza. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 11, n. 1, pp. 129-139.).

Na segunda metade do século XX, em meio ao regime político imposto pelo golpe militar de 1964, foram realizadas violentas erradicações de favelas na cidade do Rio de Janeiro, que promoveram deslocamentos forçados de dezenas de milhares de famílias (Burgos, 2006BURGOS, M. B. (2006). “Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro”. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV.; Brum, 2013BRUM, M. S. I. (2013). Favelas e remocionismo ontem e hoje: da Ditadura de 1964 aos Grandes Eventos. O Social em Questão, ano XVI, n. 29, pp. 179-208.). Ao longo do processo de redemocratização, as remoções forçadas tornaram-se, paulatinamente, residuais, e a urbanização de favelas foi incorporada ao planejamento urbano e à agenda política local (Davidovich, 2000DAVIDOVICH, F. (2000). Um repensar da favela: tendências e questões. Cadernos Metrópole. São Paulo, n. 4, pp. 119-133.). A inclusão dessa política na agenda pública acompanhou a abertura dos canais democráticos e o fortalecimento de um movimento mais amplo de garantia do direito à cidade e do direito à moradia digna por meio de políticas públicas (Machado da Silva e Figueiredo, 1981MACHADO DA SILVA, L. A.; FIGUEIREDO, A. (1981). Urbanização x remoção: uma polarização recente. In: V ANPOCS. Anais. Friburgo, pp. 19-21.). Essas conquistas se deram em uma relevante mudança de conjuntura política nacional e foram frutos da luta das periferias e das favelas brasileiras que pautavam a redefinição de seus locais de moradia no planejamento das cidades e, de forma mais ampla, no sistema hegemônico de valores vigentes (Rolnik, 2019ROLNIK, R. (2019). Paisagens para a renda, paisagens para a vida. Revista interdisciplinar. Belo Horizonte, v. 5, pp. 20-43.).

A partir desse momento teve início, na cidade do Rio de Janeiro, o que se consolidaria como uma longa trajetória em que as políticas de urbanização de favelas seriam realizadas de forma contínua e com centralidade na agenda política local. Como destaque, temos o Programa Favela Bairro, que contou com recursos municipais somados a volumosos recursos oriundos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), promovendo melhoria da qualidade de vida nas favelas, e que teve forte repercussão nacional e internacional, reverberando positivamente na difusão e na legitimação da urbanização de favelas (Cardoso, 2005CARDOSO, A. L. (2005). “O Programa Favela-Bairro – Uma avaliação”. In: ZENHA, R; FREITAS, C. Seminário de Avaliação de Projetos IPT em Habitação e Meio Ambiente: assentamentos urbanos precários. Anais. Brasília, Ministério da Ciência e Tecnologia.; Gonçalves, 2013GONÇALVES, R. S (2013). Favelas do Rio de Janeiro. História e Direito. Rio de Janeiro, Pallas, Ed. PUC-Rio.). A partir dessa experiência, o Brasil passou a ser objeto de interesse de planejadores urbanos de grandes cidades do Sul Global por fomentar esperança nas possibilidades de transformação da produção do espaço a partir da mobilização do aparato do planejamento. Na mesma medida, têm sido desenvolvidas robustas análises sobre essa experiência, colocando em questão as limitações das políticas de urbanização de favelas diante de processos mais amplos e estruturais que levam à precarização da vida (Roy, 2009ROY, A. (2009). Planejamento e gestão espacial da pobreza. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 11, n. 1, pp. 129-139.).

A experiência do Programa Favela Bairro foi seguida pelo grande volume de investimentos federais para a urbanização de favelas por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em sua modalidade de Urbanização de Assentamentos Precários (UAP). O PAC foi um marco nas políticas de urbanização de favelas do País, sendo a primeira vez em que o governo federal destinou um volume significativo de recursos para esse fim (Cardoso e Denaldi, 2018CARDOSO, A. L.; DENALDI, R. (orgs.). (2018). Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro, Letra Capital.; Denaldi e Cardoso, 2021DENALDI, R.; CARDOSO, A. L. (2021). Slum Upgrading beyond incubation: exploring the dilemmas of nation-wide large scale policy interventions in Brazil´s growth acceleration programme (PAC). International Journal of Urban Sustainable Development, v. 13, n. 3, pp. 530-545.). Na cidade do Rio de Janeiro, foram investidos quase R$3 bilhões na urbanização de 30 favelas, com projetos de escopo variado e diferentes graus de complexidade, sendo a cidade brasileira que mais recebeu investimentos do programa para essa finalidade (Cardoso et al., 2018CARDOSO, A. L.; XIMENES, L.; PATRICIO, N. A.; JAENISCH, S. T (2018). “O PAC nas favelas do Rio de Janeiro: caracterização das intervenções e arranjos institucionais”. In: CARDOSO, A. L.; DENALDI, R. (orgs.). Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro, Letra Capital, v. 1, pp. 107-138.).

Esses dois programas (Programa Favela Bairro e PAC) compõem, portanto, a longa trajetória que desejamos pôr em evidência neste texto, na qual a urbanização de favelas, enquanto componente da política habitacional, foi experienciada com ampla mobilização de capacidade institucional, administrativa e técnica e com disponibilidade significativa de recursos na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo do artigo consiste, desse modo, em colocar em destaque a evolução do papel do Estado na implementação de políticas habitacionais a partir dos anos 1990, concentrando a análise sobre as estratégias institucionais e as medidas normativas que acompanharam e sustentaram as principais políticas de urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro. Pretende-se demonstrar como o acúmulo de experiências e o aprimoramento de algumas medidas criaram um terreno favorável ao avanço das intervenções públicas em favelas, ao mesmo tempo que novas conjunturas políticas e econômicas geraram medidas contraditórias e anacrônicas.

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa que analisou a trajetória das políticas de urbanização e regularização de assentamentos precários no Rio de Janeiro, buscando identificar os modelos institucionais e os conteúdos normativos que acompanharam e sustentaram essas políticas (Cardoso et al., 2021CARDOSO, A. L.; LUFT, R.; XIMENES, L.; PINA, A. M.; NOHL, A. (2021). Direito à Cidade e Habitação: condicionantes institucionais e normativas para a implementação de políticas (programas e projetos) de urbanização de favelas no Município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, UFRJ/IPPUR/ INCT Observatório das Metrópoles.). Para atender aos objetivos da pesquisa, realizou-se análise da literatura existente no campo, assim como levantamento, sistematização e exame de legislações e regulamentos municipais que tratam da política habitacional, dedicando especial atenção ao plano diretor e às áreas de especial interesse social enquanto instrumentos da política urbana. Foram realizadas, ainda, entrevistas e oficinas com atores-chave, particularmente gestores públicos, que participaram da implementação dessas políticas em seus diferentes momentos. As entrevistas ofereceram uma diversidade de elementos e interpretações sobre os aspectos pesquisados a partir de relatos de experiências e trajetórias na gestão pública.1 1 Foram entrevistados: Márcia Bezerra (27 e 29 de janeiro de 2020), Ângela Regina de Jesus (25 de março de 2020) e Antônio Augusto Veríssimo (1º de dezembro de 2020) – técnicos com trajetórias relevantes no setor público, especificamente nas políticas habitacionais desenvolvidas em âmbito municipal – e, também, Roberta Athayde (4 de dezembro de 2020) – técnica com experiência em projetos de regularização fundiária junto ao poder público por meio da prestação de serviço em empresas privadas e no terceiro setor. A apresentação dos entrevistados, assim como os temas abordados nas entrevistas, está disponível no relatório de pesquisa (Cardoso et al., 2021). A todos agradecemos a colaboração e o comprometimento. Destacamos, ainda, que as entrevistas foram realizadas através de reuniões virtuais em decorrência da pandemia da covid-19, condição esta que impactou significativamente as possibilidades de investigação. Além disso, posteriormente, os entrevistados foram convidados para um momento de debate coletivo com a equipe de pesquisa, no formato de oficina, tendo em vista a validação das análises desenvolvidas e o diálogo entre diferentes perspectivas.2 2 Foram realizadas duas oficinas, também virtuais, subsidiadas por uma versão preliminar do relatório de pesquisa compartilhado previamente com os convidados. A primeira oficina ocorreu em 1º de junho de 2021, com participação de todos os entrevistados e a equipe de pesquisa. Já a segunda oficina foi realizada em 7 de julho de 2021, com a presença de pesquisadores do grupo Habitação e Cidade e pesquisadores parceiros convidados, a saber: Fabrício Leal de Oliveira, Rafael Soares Gonçalves e Julia Ávila Franzoni. Aos três agradecemos as ricas contribuições. Essas atividades trouxeram subsídios para a compreensão articulada das diferentes dimensões que contribuíram para a implementação dos programas habitacionais (política, institucional, financeira, social, etc.).3 3 Neste artigo, utilizamos diretamente alguns trechos de entrevistas que servem como fonte primária de informações ou que evidenciam a percepção dos interlocutores sobre os eventos analisados. Porém, é importante destacar que as informações levantadas em entrevistas, diálogo com interlocutores e pesquisadores parceiros serviram de importante subsídio às análises desenvolvidas de forma mais ampla.

O texto está organizado de forma cronológica, com o objetivo de estabelecer as continuidades e inflexões que caracterizaram essa trajetória singular. Após uma breve apresentação dos principais marcos da relação entre o Estado e favelas cariocas, entre as décadas de 1960 a 1980, debruçando-nos sobre o período que se estende do final da década de 1980 até 2008, reconhecido pela consolidação e continuidade dos programas municipais de urbanização e regularização de assentamentos precários, que ganham prioridade na agenda política e alcançam relativa estabilidade institucional. Seguimos, então, para a segunda parte do texto, na qual nos detemos ao período que vai de 2009 a 2016, caracterizado pela mobilização de vultosos investimentos na transformação do espaço urbano, a partir da realização de grandes eventos esportivos internacionais e conjugados à expressiva atuação da prefeitura e do governo do Estado nas favelas cariocas por meio do PAC. Tendo em vista a consistente produção disponível sobre o Programa Favela Bairro, dedicamos maior esforço analítico a esse segundo período, ressaltando continuidades e descontinuidades em relação à experiência que lhe antecede.

Buscamos apresentar, para cada período, a condição de centralidade da urbanização de favelas na agenda política, os recursos disponibilizados e como se deram a construção e a implementação do aparato institucional e normativo. Conforme será detalhado, esses fatores estiveram relacionados às conjunturas políticas, sendo os programas habitacionais aqui analisados determinados por confluências (parcialmente) exitosas das diferentes dimensões das políticas públicas – institucional, processual, política e material (Frey, 2000FREY, K. (2000). Políticas Públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas públicas no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas, n. 21, pp. 211-259.). Concentramo-nos no período que decorre do processo de abertura política e redemocratização, quando a agenda do debate crítico sobre a produção do espaço urbano avança para experiências locais e ganha lastro nos marcos normativos. Entretanto, reconhecemos ser essencial a compreensão dos processos que lhe antecederam e, assim, faremos nos tópicos seguintes uma breve passagem sobre as experiências precursoras ao longo da segunda metade do século XX, mais especificamente entre os anos 1962 e 1988.

Antecedentes ao período democrático

Em 1960, a população residente em favelas atingia cerca de 335.000 pessoas (10% da população da cidade), tendo praticamente dobrado em relação ao total levantado pelo Censo em 1950 (169.305). Como acentuado pela consistente literatura que trata das favelas cariocas como espaços de moradia popular e das relações estabelecidas com o Estado (Valladares, 1978VALLADARES, L. do P. (1978). Passa-se uma casa. Análise de um programa de remoção de favelas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Zahar.; Machado da Silva, 2020MACHADO DA SILVA, L. A (2020). “A continuidade do problema da favela”. In: MACHADO DA SILVA, L. A. (org.). Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro, MV Serviços e Editora, pp. 279-305.; Burgos, 2006BURGOS, M. B. (2006). “Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro”. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV.; Brum, 2013BRUM, M. S. I. (2013). Favelas e remocionismo ontem e hoje: da Ditadura de 1964 aos Grandes Eventos. O Social em Questão, ano XVI, n. 29, pp. 179-208., dentre outros), as décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por um violento processo de erradicação de favelas. As primeiras grandes remoções nesse período foram viabilizadas pelo apoio do governo norte-americano à administração de Carlos Lacerda (primeiro governador do recém-criado estado da Guanabara, eleito em 1960) no âmbito da “Aliança para o Progresso”, dando origem a dois grandes conjuntos habitacionais: Vila Aliança e Vila Kennedy. Na gestão de Lacerda, foi criada, ainda, a Companhia de Habitação Popular da Guanabara (Cohab-GB), responsável pela política habitacional, sob a coordenação da Secretaria de Serviços Sociais, que tinha Sandra Cavalcanti em sua chefia.4 4 A criação dessa secretaria se deu conjugada à extinção da Coordenação de Serviços Sociais, órgão que agregava políticas para as favelas e que tinha, em sua chefia, José Arthur Rios, sociólogo com relevante contribuição na produção de informações sobre as favelas, na realização de obras em mutirão e na organização de associações comunitárias. Alguns anos depois, Sandra Cavalcanti participaria ativamente da formulação do Banco Nacional de Habitação (BNH), tornando-se sua primeira presidente.

Após o golpe militar de 1964 e com a criação do BNH, a política para as favelas passa a ser conduzida pelo governo federal. Em 1968, foi então criada a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam), com o objetivo de definir uma política unificada para as favelas dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, intervindo diretamente no governo estadual e assentada na pretensão de “exterminar as favelas do Rio de Janeiro” (Burgos, 2006BURGOS, M. B. (2006). “Dos parques proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro”. In: ZALUAR, A.; ALVITO, M. Um século de favela. Rio de Janeiro, Editora FGV., p. 36). Em um quadro de reforço ao estigma de “favelado”, a Chisam buscava eliminar as favelas da paisagem urbana e deslocar seus moradores para conjuntos habitacionais (Brum, 2013BRUM, M. S. I. (2013). Favelas e remocionismo ontem e hoje: da Ditadura de 1964 aos Grandes Eventos. O Social em Questão, ano XVI, n. 29, pp. 179-208.). Assim, era anunciada a conquista dos então moradores de favelas à condição de proprietários de suas moradias e a oferta da oportunidade de livrarem-se do estigma que carregavam. Além disso, a repressão política desse período agiu fortemente contra movimentos populares de resistência (como a recém-criada Federação de Favelas do Estado da Guanabara – Fafeg). Importante reconhecer, como exceção nesse período, a atuação da Companhia de Desenvolvimento Comunitário (Codesco) que elaborou planos de urbanização e regularização fundiária com participação popular para três favelas, dentre elas o caso emblemático de Brás de Pina (Machado e Figueiredo, 1981). Embora limitada, essa experiência se tornou um importante contraponto à atuação do BNH.

No final da década de 1970, surgem expressivas experiências de urbanização e regularização de favelas e loteamentos, e são criadas as bases institucionais que permitiram o desenvolvimento de programas mais consolidados. Dentre as experiências, destacamos: o Projeto Rio, desenvolvido no âmbito do Programa de Erradicação das Sub-habitações (Promorar) do BNH; os programas de regularização fundiária e de urbanização e assentamentos precários, desenvolvidos com Leonel Brizola5 5 Brizola havia sido deputado federal pela Guanabara, contrapondo-se ao governador Lacerda. Ganhou as eleições estaduais de 1982 e, a partir de então, consolidou uma importante corrente política. (1983-1987) à frente do governo estadual; e a criação, pela prefeitura, do Projeto Mutirão, que realizou obras de melhoramentos em favelas com mão de obra local.

A gestão de Brizola seria reconhecida por sua abordagem inovadora na política de segurança pública, pelo fortalecimento da segurança da posse dos moradores de favelas e pela ampliação do acesso a serviços básicos nessas áreas. Em seu governo, é lançado o Cada Família Um Lote (Cful), ambicioso programa de regularização fundiária, sob responsabilidade da recém-criada Secretaria Estadual de Trabalho e Habitação.

Já a prefeitura, embora limitada pelo esvaziamento institucional promovido pela fusão entre o estado do Rio de Janeiro e o estado da Guanabara,6 6 Entre 1960 e 1975, a cidade do Rio de Janeiro era uma cidade-estado, o estado da Guanabara. Em 1974, o governo federal decidiu pela realização da fusão entre o estado da Guanabara e o estado do Rio de Janeiro, passando a cidade do Rio a ser a capital do novo estado. buscou uma ação nas favelas caracterizada pela realização de obras de urbanização. Nesse sentido, a atuação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), criada em 1979, seria estratégica, principalmente por meio do Projeto Mutirão. Destaca-se, ainda, a criação da Fundação Municipal de Planejamento (RioPlan),7 7 A RioPlan (atual Instituto Pereira Passos – IPP) avançou significativamente na organização e na sistematização das informações para apoiar a gestão municipal, implantando sistemas informatizados e realizando os primeiros mapeamentos das favelas. responsável pela elaboração de cadastro e de mapeamento das favelas.

Do ponto de vista da estrutura normativa, a década de 1980 foi marcada por experiências essenciais para o desenvolvimento das políticas habitacionais no município, dentre elas, a criação da Zona Especial 10 (ZE-10). Esta seria a primeira experiência de flexibilização do zoneamento para promoção de habitação popular como parte do Promorar, proposta para viabilizar a regularização fundiária do Morro do Timbau, na favela da Maré; e a criação do Núcleo de Regularização de Loteamentos (NRL), importante articulação interinstitucional com forte participação de moradores de loteamentos populares na zona oeste.8 8 O que denominamos aqui como zona oeste corresponde à forma como os agentes sociais e o poder público nomeavam as Regiões Administrativas de Bangu, Campo Grande e Santa Cruz, que se constituíam – e ainda hoje se constituem – como periferia da cidade.

O relevante conjunto de iniciativas consolidou uma articulação entre setores técnicos da prefeitura e do governo do estado e permitiu a criação de uma política de urbanização de favelas mais ampla e consistente. Nesse quadro se deu a elaboração da proposta da Lei Municipal de Desenvolvimento Urbano, que seria o embrião do Plano Diretor de 1992 (PD92), coordenada por membros do corpo de técnicos da Superintendência de Planejamento (órgão da Secretaria Municipal de Urbanismo – SMU), do grupo da SMDS ligado ao Projeto Mutirão e de técnicos oriundos do governo do estado transferidos para a prefeitura, acompanhados por representações da sociedade civil organizada no Fórum de Acompanhamento do Plano Diretor.

Consolidação da urbanização de favelas na agenda local (1993-2008)

O amplo debate e o conjunto de experiências realizados na década de 1980 culminam na aprovação do Plano Diretor, em 1992, que refletiu, em grande medida, as pautas da luta dos movimentos sociais urbanos. O PD92 surge na sequência da promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual incumbiu, aos municípios, a promoção da política de desenvolvimento urbano, tendo como base a lei do Plano Diretor e os preceitos da função social da propriedade e da cidade. Tem como relevante precedente, ainda, a aprovação da Lei Orgânica Municipal (LOM), em 1990, que instituiu princípios fundamentais para a garantia da segurança de posse das populações moradoras das favelas. Dentre esses princípios, está o da “não remoção”, que prevê que que a urbanização, a regularização fundiária e a titulação das áreas faveladas devam se dar sem a remoção dos moradores, à exceção dos casos em que estes corriam risco de vida pelas condições de moradia.9 9 Ver art. 429, VI da LOM. Nesse caso, a legislação vigente prevê que deve haver laudo técnico, participação popular e reassentamento em locais próximos da moradia ou do local de trabalho, caso a remoção seja entendida como necessária.

O PD92 avançou significativamente na incorporação das propostas de política fundiária progressistas, incluindo instrumentos como o parcelamento e a edificação compulsórias, o IPTU progressivo e a desapropriação por interesse social. No entanto, esses instrumentos ficaram submetidos a uma regulamentação posterior, permanecendo sem efetividade. No capítulo dedicado à questão da habitação, o PD92 propõe uma política ampla, com ênfase na urbanização de favelas e na regularização de loteamentos. Nesse contexto, foram instituídas as Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis), caracterizadas como instrumentos básicos da política habitacional, podendo se aplicar tanto a terrenos não utilizados considerados necessários a programas habitacionais, quanto a áreas ocupadas por favelas, loteamentos irregulares ou conjuntos habitacionais, destinadas a programas de urbanização e regularização fundiária.

Na eleição municipal de 1992 se dá uma importante transição, com a derrota do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e a eleição de Cesar Maia, então candidato pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Oriundo do núcleo brizolista, Maia desloca-se em direção a um campo mais conservador, buscando montar uma plataforma política que tivesse repercussão positiva junto às camadas médias. Sua eleição demarca um novo momento na política carioca, a chamada “Era Maia”, com quatro mandatos sucessivos à frente do poder municipal, seja diretamente, seja por intermédio de Luiz Paulo Conde (1997-2000). Apesar de adotar um padrão de gestão que se aproxima do empreendedorismo urbano, particularmente pela adoção do planejamento estratégico (Compans, 2005COMPANS, R. (2005). Empreendedorismo urbano. Entre o discurso e a prática. São Paulo, Unesp.), os recursos obtidos junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) induziram o governo Maia a garantir um importante espaço para a urbanização de favelas.

Nesse período, foi criado o Geap (Grupo Executivo de Programas Especiais de Trabalho de Assentamentos Populares), responsável por estabelecer os princípios da política municipal de habitação e formular um conjunto ambicioso de programas que tiveram como objetivo central a urbanização de favelas e a regularização de loteamentos. Com base nesses princípios, foi criada, em 1994, a Secretaria Municipal de Habitação (SMH), com quadro composto por funcionários e técnicos com relevante acúmulo de experiências.10 10 Quando criada, a SMH tinha em sua chefia o arquiteto urbanista Sérgio Magalhães, a quem foi destinada a responsabilidade de desenvolver as propostas no campo da habitação. A política habitacional foi, então, estruturada em torno de seis programas: (a) Programa Regularização Urbanística e Fundiária de Loteamentos de Baixa Renda; (b) Programa Favela Bairro; (c) Programa Regularização Fundiária e Titulação; (d) Programa Novas Alternativas; (e) Programa Morar Carioca; e, (f) Programa Morar Sem Risco. Cabe destacar que Magalhães coordenava ainda o Geap. O Geap permaneceu como estrutura institucional até o ano de 2000, com o objetivo de articular a atuação dos diferentes órgãos responsáveis pela implementação das políticas de habitação.

Dentre os programas lançados pela nova secretaria estava o Programa Favela Bairro, naquele momento contando apenas com recursos próprios municipais. Em 1997, com um pequeno grupo de favelas já atendidas pela fase inicial do programa, a prefeitura passou a contar com recursos do BID por meio do Programa de Urbanização de Assentamentos Populares do Rio de Janeiro (Proap-RIO).11 11 O Proap-RIO constituiu-se com dois componentes centrais: a urbanização de favelas (por meio do Programa Favela Bairro) e a regularização de loteamentos (pelo NRL). Esses componentes dividiam os investimentos, com a maior parte destinada à urbanização. Originalmente, a cooperação entre prefeitura e BID encaminhava-se para abranger ações de saneamento básico promovidas pela Secretaria Municipal de Obras. Entretanto, uma mobilização de técnicos do Geap junto à então gestão municipal e representantes do BID garantiu que a urbanização de favelas ganhasse protagonismo, incluindo, ainda, a regularização de loteamentos no escopo da cooperação.12 12 Informações levantadas em entrevista concedida por Antônio Augusto Veríssimo, arquiteto urbanista, funcionário da prefeitura municipal da cidade do Rio de Janeiro (PCRJ), hoje aposentado, tendo ocupado os cargos de Subsecretário de Habitação, Coordenação do NRL, participando do desenvolvimento do Programa Favela Bairro.

As Aeis criadas no PD92 tiveram papel fundamental para viabilizar esse novo arranjo, uma vez que, até então, o BID entendia ser inviável o financiamento de intervenções físicas em áreas com irregularidade fundiária. Para responder às exigências, foi então pactuada a delimitação prévia das áreas de intervenção como Aeis e a preponderância dos investimentos em logradouros que viriam a ser reconhecidos formalmente como áreas públicas.13 13 De acordo com Márcia Bezerra, o emprego do instrumento das Aeis tornou possível que houvesse segurança na viabilidade do investimento, por parte do BID, nas áreas de atuação do Programa sem que fosse necessária a prévia desapropriação de terrenos privados. Informação levantada em entrevista realizada no âmbito da pesquisa Urbanização de Favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC (Cardoso e Denaldi, 2018). Marcia Bezerra é arquiteta urbanista, funcionário da PCRJ, hoje desligada da função, tendo ocupado o cargo de Gerente de Terras e Reassentamentos na SMH e desempenhado importante função no Programa Favela Bairro. Esse foi um marco importante para o desenho das políticas habitacionais promovidas pela prefeitura, tornando, desde então, a demarcação de Aeis pressuposto para a realização de investimentos públicos nas áreas de favelas e para a regularização de loteamentos populares atendidos pelo NRL.

A partir de 1997, já na gestão de Conde (1997-2000) e contando com recursos do BID, houve a ampliação do escopo das intervenções em favelas. Com o Programa Favela Bairro atuando até então em favelas de porte médio (com 500 a 2.400 domicílios), foram lançados dois novos programas, o Grandes Favelas e o Bairrinho, este último voltado para comunidades de 100 a 500 domicílios. No ano de 2000 seria assinado um novo contrato com o BID para a realização do Proap-RIO II, mantendo a engenharia financeira, mas com ampliação do escopo do programa. O Proap-RIO II estendeu-se até os mandatos seguintes de Maia (2001-2008), quando teve início a negociação da terceira etapa do programa. No entanto, o Proap-RIO III seria assinado apenas na gestão de Eduardo Paes. O conjunto de favelas atendidas pelo programa ao longo de sua atuação está especializado na Figura 1, destacando as intervenções viabilizadas com recursos próprios, em uma etapa inicial do programa, e aquelas inseridas no Bairrinho e no Grandes Favelas (tendo o programa realizado intervenções em apenas três favelas cariocas).

Figura 1
– Mapa das áreas de intervenção do Programa Favela Bairro na cidade do Rio de Janeiro

Ao analisarmos o período em que Maia teve protagonismo no poder municipal, é importante ressaltarmos as diferenças existentes entre as gestões em relação ao desenvolvimento das políticas habitacionais. Entre 1993 e 2001, houve maior garantia de proteção das políticas habitacionais municipais diante das injunções político-partidárias, particularmente no atendimento a demandas pontuais colocadas por lideranças políticas externas à gestão. Já nas gestões municipais de 2001 a 2009, houve expressiva mudança, passando-se a incorporar a intermediação com os vereadores e lideranças políticas locais nos processos decisórios da SMH. A seguir, destacamos dois pequenos trechos de entrevistas com técnicos atuantes nas políticas habitacionais municipais ao longo desse período que evidenciam a mudança.

Quando César Maia retorna para a prefeitura, em 2001, veio decidido a não nomear mais técnicos para os cargos de secretário. Até então o secretário da SMH era um técnico, um arquiteto, não era um político [...] o trabalho era executado sem muita intervenção política. Essa mudança impactou os trabalhos da SMH, muitos perderam em qualidade. (Ângela Regina de Jesus,14 14 Ângela Regina de Jesus é arquiteta urbanista, funcionária da PCRJ, hoje aposentada, tendo ocupado o cargo de Gerente de Regularização Urbanística e Fundiária na SMH entre os anos de 2009 e 2015. em entrevista concedida à pesquisa em 25 de março de 2020)

Na segunda gestão [2001-2004] ele já loteou a prefeitura. Aquela tese “função de governo e função de estado” que funcionava no primeiro governo, no segundo passou a não funcionar, [...] tornou a própria Secretaria (SMH) em um canal de favorecimentos políticos e tudo mais. Descaracterizou muito. (Antônio Augusto Veríssimo,15 15 Vide nota 12. em entrevista concedida à pesquisa em 1º de dezembro de 2020)

Cabe destacar ainda que, com a eleição de Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), para a Presidência da República, em 2003, Maia coloca-se em oposição ao governo federal, levando a prefeitura a adotar uma postura mais distanciada dos programas implementados pelo Ministério das Cidades.

Apesar dos relevantes avanços na consolidação da política de urbanização de favelas, com ampliação do arcabouço normativo e da capacidade institucional (Cardoso, 2007CARDOSO, A. L. (2007). Avanços e desafios na experiência brasileira de urbanização de favelas. Cadernos Metrópole. São Paulo, n. 17, pp. 219-240.), mantinha-se o foco sobre as intervenções físicas para urbanização e havia pouco avanços na regularização fundiária e na titulação dos moradores dessas áreas.16 16 Conforme o decreto de instituição do Proap-RIO, as iniciativas de regularização incluíam pesquisa fundiária, elaboração de projetos de alinhamento e reconhecimento de logradouros públicos. No entanto, a regularização fundiária era central à atuação do NRL nos loteamentos populares que, apesar de caracterizados pela irregularidade urbanística e fundiária, já tinham em grande parte sido contemplados com obras de urbanização ao longo da década de 1980. Para os que ainda necessitavam de intervenções físicas, elas foram em grande medida realizadas no âmbito do Proap-RIO I.

Já, para a regularização urbanística de favelas nesse período, os Postos de Orientação Urbanística e Social (Pousos) tiveram expressiva contribuição. Eles surgem como unidades administrativas instituídas pela SMH em 1996, orientadas para a manutenção das melhorias urbanísticas e preservação dos equipamentos implantados pelo Programa Favela Bairro, por meio da presença de equipes multidisciplinares em escritórios de campo. Os Pousos foram essenciais à regulamentação de uma parcela das Aeis, elaborando materiais técnicos que levaram a regulamentações de uso e ocupação do solo e reconhecimentos de logradouros para fins de regularização urbanística e edilícia.17 17 Dentro do universo de Aeis, poucos foram os regulamentos editados (apenas 34 decretos de uso e ocupação do solo), entretanto eles indicam um avanço jurídico-institucional nas iniciativas para a regularização urbanística e fundiária (Cardoso et al., 2021). Essa atividade se deu de forma mais substancial desde a sua criação até o ano 2000, período de auge do programa, sucedido por um estreitamento dos objetivos iniciais, que ficaram limitados ao monitoramento do cumprimento das “regras urbanísticas” (Magalhães, 2013MAGALHÃES, A. F (2013). O direito das favelas. Rio de Janeiro, Letra Capital.). A trajetória dos Pousos, com importantes contribuições e posterior esvaziamento do programa, é reforçada no trecho a seguir:

A equipe do Pouso era responsável por fazer um levantamento detalhado [com] largura de via, gabarito... [Eles] faziam um reconhecimento da morfologia da favela. Elaboravam vários mapas. Em cima disso se definiam os parâmetros que eram aprovados por decreto municipal. O Pouso dava orientação urbanística e orientação social, com o objetivo de legalizar e controlar as construções irregulares e evitar a expansão das favelas. Essa equipe atuava também na resolução de alguns conflitos. Morador que queria fazer alguma obra, uma reforma, uma ampliação, consultava o Pouso... Com o passar do tempo essa equipe, que sempre foi pequena para atender à grande demanda, foi ficando cada vez menor. Uma pena porque era uma presença importante da prefeitura na área e os moradores reconheciam isso. (Ângela Regina de Jesus, em entrevista concedida em 25/3/2020)

A ação dos Pousos e as intervenções físicas para a urbanização tornaram-se cada vez mais difíceis pela emergência do tráfico de drogas como expressão do chamado “crime organizado”, que passou a exercer um controle violento dos territórios populares ao longo das décadas de 1990 e 2000. Nessas circunstâncias, era muitas vezes necessária a “negociação”, tanto dos agentes públicos quanto das empresas contratadas para prestação de serviços, com lideranças locais do tráfico para viabilizar intervenções e trabalhos de campo. Essa situação se agravou ao longo do tempo com o fortalecimento das facções no controle das redes do varejo de drogas em favelas cariocas, as guerras concorrenciais entre facções e a consolidação das milícias como estruturas de controle territorial violento, baseado no pagamento de taxas de proteção (da vida e de bens) e do controle sobre serviços coletivos.

Avanços e contradições na urbanização de favelas no ciclo recente (2009-2016)

O período entre 2009 e 2016 possuiu conjuntura econômica e política bastante singular para a cidade do Rio de Janeiro. A trajetória de perda de competitividade econômica e o acirramento das questões sociais que vinham se estendendo desde a década de 1980 pareciam ter à frente um momento positivo de inflexão, especialmente os avanços na indústria petroquímica e a inclusão da cidade como protagonista no “ciclo olímpico”. A primeira eleição de Sérgio Cabral Filho (pelo então PMDB) para governador do Estado, em 2007, rompia um longo período de protagonismo do grupo político de Anthony Garotinho,18 18 Político de origem norte fluminense, com trajetória em meios de comunicação e em igrejas evangélicas. que mantinha oposição em relação ao governo federal. Esse reposicionamento político deu espaço para a aliança entre o governo estadual e o governo federal, reflexo da articulação entre o PT e PMDB. As eleições municipais de 2008 também seguiram esse caminho, com o fim do mandato de Maia, a eleição de Eduardo Paes (também pelo PMDB) e a nomeação de Jorge Bittar19 19 Jorge Bittar é engenheiro, foi eleito vereador em 1992 e deputado federal em 1998 pelo PT. Chegou a ser Secretário Estadual de Planejamento entre 1999 e 2000, na gestão de Garotinho, então ainda em aliança com o PT. (PT) com Secretário de Habitação. A expressiva demanda por políticas habitacionais, a realização dos grandes eventos esportivos e a aliança entre os representantes dos três entes federativos implicaram o grande volume de recursos federais investidos na cidade, notadamente por meio do PAC e do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) (Jaenisch e Ximenes, 2021JAENISCH, S.; XIMENES, L. (2021). “As favelas do Rio de Janeiro e suas camadas de urbanização. Vinte anos de políticas de intervenção sobre espaços populares da cidade”. In: CARDOSO, A.; D’OTTAVIANO, C. (orgs.). Habitação e direito à cidade: desafios para as metrópoles em tempos de crise (recurso digital). Rio de Janeiro, Letra Capital, Observatório das Metrópoles, pp. 449-490.). Apesar dos avanços no reconhecimento das favelas como espaços legítimos de moradia, os processos de remoções por iniciativa do poder público tornaram-se mais intensos, e a insegurança da posse foi agravada com o reforço da alegação do risco geológico (ibid.).20 20 A vulnerabilidade socioambiental de favelas tornou-se ainda mais latente com os temporais ocorridos em 2010, que provocaram deslizamentos de terra na capital e, principalmente, na região serrana do Estado, levando, à morte, centenas de pessoas.

A violência urbana e as políticas de segurança pública mantiveram-se como questões essenciais à condição de vida da população moradora de favelas e ao desenvolvimento das políticas de urbanização. Na zona oeste, as milícias cresceram, expandiram-se e fortaleceram-se como forma de controle social violento, de alta intensidade, sobre a vida cotidiana (Rocha e Bazoni da Motta, 2020ROCHA, L. M.; BAZONI DA MOTTA, J. W. (2020). Entre Luzes e Sombras: o Rio de Janeiro dos Megaeventos e a militarização da vida na cidade. Interseções. Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, pp. 225-248.). Já, para as favelas localizadas nas áreas mais valorizadas da cidade, a militarização esteve presente por meio das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), programa de segurança pública lançado pelo governo do estado em parceria com a prefeitura no final de 2008. Sob o discurso oficial de pacificar conflitos por meio de uma “polícia de proximidade” e combater o tráfico de drogas, as UPPs promoveram a ocupação militar permanente de favelas, especialmente aquelas localizadas no entorno dos equipamentos que receberiam eventos esportivos internacionais. Como analisado por Cavalcanti (2013)CAVALCANTI, M. (2013). À espera, em ruínas: urbanismo, estética e política no Rio de Janeiro da “PACificação”. DILEMAS – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 6, n. 2, pp. 191-228., a urbanização de favelas e o controle militar por meio da “pacificação”, nesse período, conformaram-se como duas partes da mesma agenda pública de promoção da “chegada do Estado” às favelas. A forma imbricada como as intervenções do PAC em favelas e as áreas de atuação das UPPs se dão na cidade fica mais clara na Figura 2, na qual também se evidencia a escassa presença dessas políticas na zona oeste.

Figura 2
– Mapa das intervenções em favelas com financiamento do PAC na cidade do Rio de Janeiro, com destaque para as áreas de atuação das UPPs e de implantação de equipamentos olímpicos

O primeiro mandato de Paes deu grande destaque ao lançamento do Programa Morar Carioca, que se propunha a aperfeiçoar a experiência do Programa Favela Bairro. A partir da aliança com o governo federal, com a renovação do financiamento do BID, e contando com promessas de recursos para construir um “legado social” das Olimpíadas, Paes anunciava a intenção de urbanizar todas as favelas consideradas “urbanizáveis” da cidade (Jaenisch e Ximenes, 2021JAENISCH, S.; XIMENES, L. (2021). “As favelas do Rio de Janeiro e suas camadas de urbanização. Vinte anos de políticas de intervenção sobre espaços populares da cidade”. In: CARDOSO, A.; D’OTTAVIANO, C. (orgs.). Habitação e direito à cidade: desafios para as metrópoles em tempos de crise (recurso digital). Rio de Janeiro, Letra Capital, Observatório das Metrópoles, pp. 449-490.). O Morar Carioca gerou grandes expectativas por sua ambição de ampliar e aprimorar o escopo da urbanização de favelas; entretanto, sofreu com seu esvaziamento ao longo das gestões de Paes, perdendo as características inovadoras presentes na sua concepção e limitando-se a abrigar contratos já em andamento por meio do Proap-RIO e as novas intervenções com financiamento do PAC, sendo aplicado, então, como uma marca para todas as intervenções em favelas da cidade (ibid.).

A trajetória do Morar Carioca pode ser lida como parte das importantes mudanças que se deram entre o primeiro e o segundo mandatos de Paes. Nessa passagem, ocorre a mudança de comando na SMH, com a saída de Bittar (acompanhado por diversos técnicos), tem início um período de maior rotatividade de gestores à frente da pasta, de refreamento dos programas e de progressiva perda de prestígio político e enfraquecimento institucional da SMH.21 21 Pierre Batista (PT) substituiu Bittar e permaneceu no cargo até 2014. A sua saída da chefia da SMH marca, ainda, a ruptura do protagonismo do PT sobre a pasta. A SMH tem como novo secretário Carlos Portinho, filiado ao Partido Social Democrático (PSD), partido que teria expressiva presença na SMH a partir de então. Em 2015, a antiga SMH passa a se chamar Secretaria Municipal de Habitação e Cidadania (SMHC) e, em 2017, Secretaria de Infraestrutura, Habitação e Conservação (SMIHC).

Enquanto a SMH teve no primeiro mandato de Paes um momento importante de formulação de políticas e realização de intervenções em favelas, tramitava na Câmara de Vereadores a revisão do plano diretor da cidade (agora como Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Sustentável), sobre a qual se debruçava a equipe de técnicos da SMU. Esse processo legislativo teve cerca de 10 anos de uma longa e polêmica tramitação antes da sua aprovação e transformação na lei complementar n. 111/2011.22 22 Originalmente apresentado por meio do projeto de lei n. 25/2001, que veio a ter subsequentes substitutivos. Além dessa frente, a SMU mantinha suas atividades voltadas para o planejamento urbano fortemente orientado pelo planejamento estratégico.23 23 Dando seguimento à prática iniciada ainda nas gestões de Maia, foi elaborado, em 2009, o Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro III (PECRJ III), que seria revisado em 2013 e intitulado como “Pós-2016: Rio mais integrado e competitivo”. Apesar das grandes mudanças trazidas pela revisão, o PD2011 manteve os dispositivos mais importantes do Estatuto da Cidade, porém vinculando a sua aplicação a uma regulamentação posterior que não chegou a acontecer para a maioria dos instrumentos urbanísticos previstos, sobretudo os de caráter redistributivo. Ainda assim, preservou a centralidade das Aeis para as políticas habitacionais.

O instrumento da Aeis mantém e amplia seu relevante papel de facilitador dos trânsitos entre as atividades e os produtos desenvolvidos para fins de regularização urbanística e fundiária e suas respectivas aprovações e ratificações (Cardoso et al. 2021CARDOSO, A. L.; LUFT, R.; XIMENES, L.; PINA, A. M.; NOHL, A. (2021). Direito à Cidade e Habitação: condicionantes institucionais e normativas para a implementação de políticas (programas e projetos) de urbanização de favelas no Município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, UFRJ/IPPUR/ INCT Observatório das Metrópoles.). Cabe destacar que todos os contratos de urbanização de favelas via PAC tinham em seu escopo a regularização urbanística e fundiária e que todas as favelas com intervenções haviam sido declaradas previamente como Aeis, o que se mostrou essencial para a abertura de processos administrativos como o reconhecimento de logradouros e a aprovação de parcelamentos do solo. Apesar disso, os decretos regulamentadores de uso e ocupação do solo que se aplicavam a favelas específicas continuaram tendo baixa representatividade dentro do universo de Aeis, restringindo-se a poucos casos. Para a ampla maioria das Aeis instituídas que não possuíam regulamentação específica, foi editado um único decreto em 2009 com diretrizes e regras gerais.24 24 Decreto n. 30.875 de julho de 2009.

Continuidades e rupturas em relação à experiência precedente de urbanização de favelas

O grande volume de investimento do governo federal em urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro por meio do PAC tornou possível a realização de intervenções maiores e mais complexas do que as experimentadas até então (Cardoso et al., 2018CARDOSO, A. L.; XIMENES, L.; PATRICIO, N. A.; JAENISCH, S. T (2018). “O PAC nas favelas do Rio de Janeiro: caracterização das intervenções e arranjos institucionais”. In: CARDOSO, A. L.; DENALDI, R. (orgs.). Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro, Letra Capital, v. 1, pp. 107-138.; Denaldi e Cardoso, 2021DENALDI, R.; CARDOSO, A. L. (2021). Slum Upgrading beyond incubation: exploring the dilemmas of nation-wide large scale policy interventions in Brazil´s growth acceleration programme (PAC). International Journal of Urban Sustainable Development, v. 13, n. 3, pp. 530-545.). O governo estadual foi o gestor dos contratos de urbanização das favelas Cantagalo e Pavão-Pavãozinho e das três maiores favelas da cidade: Rocinha, Alemão e Manguinhos. Já o governo municipal teve uma parte relevante de seus contratos vinculados ao PAC firmados ainda ao final da última gestão de Maia, porém, concentrou a execução desses projetos e firmou novos contratos ao longo da gestão de Paes. Esse primeiro grupo de contratos incluía a participação nas obras de urbanização gerenciadas pelo governo do estado nas grandes favelas e ainda complementações de obras de urbanização do Programa Favela Bairro.

Ao analisarmos a trajetória das políticas de urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro é possível perceber que a chegada do novo programa federal levou à coexistência de duas tendências. A primeira é de continuidade em relação ao histórico consolidado, com intervenções voltadas para a melhoria das condições de moradia com base nas necessidades preexistentes nos territórios. Dentre as intervenções no âmbito do PAC, podemos identificar essa tendência como mais presente naquelas promovidas pela prefeitura. Por sua vez, a segunda tendência surge como uma ruptura, proeminente nas intervenções gerenciadas pelo governo do estado, com a adoção de modelos de intervenções alinhados à inserção dessa política na agenda pública de preparação da cidade para o “ciclo olímpico”, com intensa transferência internacional de políticas, modelos e tecnologias. São traços dessa segunda tendência as obras emblemáticas da implantação do teleférico na favela do Alemão e da passarela Niemeyer, construída sobre a autoestrada Lagoa-Barra na Rocinha, ambas voltadas para a criação de marcos na paisagem dessas duas grandes favelas (Cardoso et al., 2018CARDOSO, A. L.; XIMENES, L.; PATRICIO, N. A.; JAENISCH, S. T (2018). “O PAC nas favelas do Rio de Janeiro: caracterização das intervenções e arranjos institucionais”. In: CARDOSO, A. L.; DENALDI, R. (orgs.). Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro, Letra Capital, v. 1, pp. 107-138.). Destacamos a seguir alguns aspectos que tornam mais visíveis como as duas tendências se conjugaram nas intervenções realizadas por meio do PAC.

Apesar do PAC ter sido elemento-chave para uma recondução da política local de urbanização de favelas, tornando viável, às gestões locais (municipal e estadual), o desenvolvimento de intervenções de maior porte e complexidade em grandes favelas, enfrentando problemas até então não tratados, é notável a permanência de algumas favelas como áreas prioritárias dessa política, concentradas nas regiões mais valorizadas e consolidadas da cidade (a Figura 2 mostra essa concentração de intervenções do PAC e a relação de proximidade com equipamentos olímpicos). Analisando o conjunto de favelas que receberam intervenções por meio do PAC, evidencia-se uma grande sobreposição a intervenções de programas de urbanização anteriores, levando ao acúmulo de camadas de urbanização (Jaenisch e Ximenes, 2021JAENISCH, S.; XIMENES, L. (2021). “As favelas do Rio de Janeiro e suas camadas de urbanização. Vinte anos de políticas de intervenção sobre espaços populares da cidade”. In: CARDOSO, A.; D’OTTAVIANO, C. (orgs.). Habitação e direito à cidade: desafios para as metrópoles em tempos de crise (recurso digital). Rio de Janeiro, Letra Capital, Observatório das Metrópoles, pp. 449-490.). Em contraposição a esse ciclo de reinvestimento, tem-se a permanência de um expressivo universo de favelas que não acumulam tais camadas e que seguiram alheias aos volumosos investimentos feitos nesse período.

É importante ressaltar que, entre os anos de 2000 e 2010, período em que se deu a formulação dos contratos de urbanização de favelas via PAC, a população moradora de favelas na cidade do Rio de Janeiro cresceu em valores superiores aos da população total, sobretudo nas regiões da Barra da Tijuca e da Baixada de Jacarepaguá. Dessa forma, os ciclos de reinvestimentos em favelas localizadas majoritariamente na zona norte e zona sul (esta última abrigando apenas 12% da população residente em favelas na cidade) deixam exposta uma demanda emergente (ibid.).

Nesse quadro inaugurado pelo protagonismo do PAC, nas políticas locais de urbanização de favelas, a participação popular efetiva foi exígua, com a ausência de espaços abertos à sociedade civil que incidissem sobre os processos decisórios. Apesar da existência de alguns poucos espaços institucionais, como conselhos setoriais, a urbanização de favelas ocorreu ao longo desse período sem que houvesse gestão democrática, especialmente quanto às áreas e aos escopos das intervenções.

A ausência de participação popular foi acompanhada pela retomada das remoções forçadas. Se, no período anterior, foi notória a prevalência das ações de melhoria em favelas sem que houvesse grandes remoções, nesse novo ciclo há uma relevante ruptura, na qual as grandes intervenções se tornaram motores aceleradores dos processos de remoções. Até então, na estrutura administrativa municipal, as remoções e os reassentamentos eram realizados pela Gerência de Terras e Reassentamentos da SMH. Entretanto, novos arranjos formaram-se como resposta a cronogramas e tempos políticos que preponderavam nesse período, e, assim, surgiram também novos agentes que trouxeram consigo procedimentos distintos dos consolidados até então pelo corpo técnico da SMH. Como agravante desse quadro, a provisão habitacional como componente da urbanização de favelas esteve aquém da grande demanda colocada pelas remoções. Enquanto, nas intervenções via PAC, a produção de novas unidades habitacionais foi bastante restrita (Cardoso et al., 2018CARDOSO, A. L.; XIMENES, L.; PATRICIO, N. A.; JAENISCH, S. T (2018). “O PAC nas favelas do Rio de Janeiro: caracterização das intervenções e arranjos institucionais”. In: CARDOSO, A. L.; DENALDI, R. (orgs.). Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro, Letra Capital, v. 1, pp. 107-138.), o PMCMV tornou-se suporte à produção massiva de condomínios para reassentamento em áreas periféricas da cidade (Cardoso e Jaenisch, 2014CARDOSO, A. L.; JAENISCH, S. T. (2014). Nova política, velhos desafios: problematizações sobre a implementação do programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Revista E-Metropolis. Rio de Janeiro, v. 5, pp. 6-19.; Cardoso, Aragão e Jaenisch, 2017).

Dentre as continuidades que atravessam as fases anteriores e se intensificam nesse período, temos ainda os entraves nos diálogos institucionais. Eles podem ser percebidos tanto na (não) integração horizontal (entre as secretarias municipais ou entre poderes legislativo e executivo por exemplo), quanto na (não) integração vertical, na relação entre entes federativos. As dificuldades tornam-se mais agudas e evidentes pela dimensão territorial da política de urbanização de favelas e pelos entraves na combinação entre o desenho proposto para o PAC e a longa trajetória local.

Apesar do alinhamento político entre as gestões municipal e estadual, e de ambas compartilharem o papel de executores da política de urbanização de favelas nesse período, a atuação deu-se de forma desarticulada, mesmo naquelas favelas em que ambos estiveram presentes concomitantemente (Cardoso et al., 2018CARDOSO, A. L.; XIMENES, L.; PATRICIO, N. A.; JAENISCH, S. T (2018). “O PAC nas favelas do Rio de Janeiro: caracterização das intervenções e arranjos institucionais”. In: CARDOSO, A. L.; DENALDI, R. (orgs.). Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro, Letra Capital, v. 1, pp. 107-138.). Como prática corrente, houve apenas a definição de limites territoriais da atuação de cada ente, priorizando a autonomia na execução dos seus respectivos contratos. Para além dos problemas de integração entre as intervenções físicas executadas, muitas vezes justapostas em uma mesma favela, essa situação resultou também no agravamento da dificuldade de interlocução entre moradores e técnicos, uma vez que não havia clareza para os moradores sobre os limites das competências e responsabilidades de cada ente, seus respectivos técnicos e profissionais contratados.

Já, na esfera da prefeitura, os entraves nos diálogos institucionais são percebidos entre as secretarias atravessadas pelas diversas atividades e produtos que compõem o escopo da urbanização de favelas. As dificuldades no diálogo entre SMH e SMU implicaram especialmente o andamento dos projetos de regularização urbanística e fundiária vinculados às intervenções do PAC, para os quais a prévia demarcação de Aeis se mostrou essencial. Contudo, essas contradições interinstitucionais se traduzem nas novas configurações assumidas pelas Aeis (Cardoso et al., 2021CARDOSO, A. L.; LUFT, R.; XIMENES, L.; PINA, A. M.; NOHL, A. (2021). Direito à Cidade e Habitação: condicionantes institucionais e normativas para a implementação de políticas (programas e projetos) de urbanização de favelas no Município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, UFRJ/IPPUR/ INCT Observatório das Metrópoles.). Além disso, destaca-se a atuação da Secretaria Municipal de Obras (SMO) na urbanização de favelas ao longo dessa fase, porém estabelecendo poucos diálogos com os seus formuladores e reforçando a tendência de ruptura com a trajetória de intervenções voltadas para as necessidades locais.

Por fim, o lugar ocupado pelo governo federal como financiador das políticas de urbanização de favelas desencadeou mudanças no escopo das intervenções. Como um dos principais pontos desse quadro, temos a inclusão da regularização urbanística e fundiária como componente intrínseco às ações de urbanização, junto às intervenções físicas e trabalho técnico social. A inclusão desse item na urbanização de favelas levou a mudanças na estrutura administrativa municipal, dentre elas a criação da Gerência de Regularização Urbanística e Fundiária (Gruf), composta por técnicos que possuíam experiência no NRL. Essa nova gerência tinha como objetivo tratar prioritariamente das ações de regularização fundiária atreladas à urbanização de favelas por meio do PAC. Apesar de representar um expressivo avanço na formulação e execução das políticas locais, essa mudança não foi suficiente para provocar o reposicionamento da regularização fundiária na agenda política, mantendo-se a preponderância das intervenções físicas em detrimento dos demais componentes, inclusive quanto à destinação díspar de recursos.

Além de lidar com o escasso orçamento disponível, a inclusão da regularização fundiária no escopo das intervenções enfrentou a dificuldade de adequar o tempo de operacionalização dos procedimentos à necessidade de aprendizados técnicos e institucionais. Demandou esforço, ainda, a recondução dos trabalhos diante das profundas transformações decorrentes da lei federal n. 11.977, importante marco legal para a regularização fundiária no Brasil, que, em 2009, trouxe formas inovadoras de operação de instrumentos jurídicos e administrativos.

Como resultado desses fatores, houve o descolamento da execução dos contratos de regularização fundiária em relação às intervenções físicas e ao trabalho social, estes dois últimos iniciados previamente na ampla maioria das favelas atendidas pelo PAC. O descompasso da tríade levou a entraves, dentre os quais se destacam as demandas em campo para lidar com possíveis descontentamentos dos moradores causados por problemas de execução de obras, já encerradas ou em conclusão, e as tensões decorrentes da demarcação de áreas de risco com restrição de ocupação do solo e remoções forçadas.

Considerações finais

As experiências analisadas apontam convergências e divergências em relação à atuação do Estado nos dois períodos tratados ao longo deste artigo. Em ambos, a continuidade das melhorias habitacionais está no centro dos programas implementados, ainda que tenham sido mantidas diretrizes locacionais similares e, com isso, a escassa atuação nos mesmos territórios da cidade. Destaca-se a permanência de uma frágil participação social, com exceção para a regularização de loteamentos na fase inicial do NRL. As iniciativas nos dois períodos pecam, também, por apresentarem fragmentado diálogo institucional vertical e horizontal, mesmo que o período mais recente tenha sido marcado por um alinhamento político nos três níveis federados. Já o acúmulo gerado no quadro de servidores da prefeitura e a base institucional fornecida pelos planos diretores e pelas Aeis são confluências que merecem destaque.

No entanto, o período mais recente, em que se deram as intervenções em favelas por meio do PAC, diferencia-se do anterior ao adotar modelos emblemáticos de marketing urbano; ao retomar com potência as remoções forçadas – criando, para isso, estruturas institucionais de exceção –, oferecendo soluções de reassentamento insuficientes e em locais periféricos; ao incluir, na agenda, a regularização urbanística e fundiária; e ao conferir, às Aeis, novos papéis. A Figura 3 busca expor uma síntese dos principais marcos normativos, programas e políticas habitacionais e marcos relevantes à capacidade institucional do município, concentrando-se sobre os dois períodos analisados ao longo do texto.

Figura 3
– Quadro-síntese dos principais marcos da trajetória das políticas de urbanização e regularização de assentamentos precários na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1992 e 2016

A longa trajetória das políticas de urbanização de favelas analisada neste texto tem como principais destaques a continuidade e a centralidade relativa dessas políticas na agenda dos poderes públicos na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1990 e 2010. Os programas de urbanização de favelas consolidados ao longo da década de 1990, assim como a atuação em loteamentos populares, deram-se de forma conjugada à criação de um quadro técnico, administrativo e normativo, que não deu suporte apenas à manutenção dos recursos financeiros, mas também à atuação continuada das gestões locais por meio desses programas. É relevante destacar o forte aprendizado institucional conquistado ao longo dessa trajetória, que fez com que as intervenções pudessem apresentar resultados efetivos e aprimorados, ampliar seus escopos e complexificar as soluções adotadas, levando a “urbanização de favela para além do estágio de incubação” (Denaldi e Cardoso, 2021DENALDI, R.; CARDOSO, A. L. (2021). Slum Upgrading beyond incubation: exploring the dilemmas of nation-wide large scale policy interventions in Brazil´s growth acceleration programme (PAC). International Journal of Urban Sustainable Development, v. 13, n. 3, pp. 530-545.). Entretanto, as políticas de urbanização de favelas analisadas neste texto apresentaram limitações e contradições que puderam ser observadas de forma mais aguda nas intervenções vinculadas ao PAC.

A experiência carioca mostra a importância de repensarmos as práticas de intervenção em favelas, considerando suas complexidades, heterogeneidades e a existência desses espaços como formas de moradia popular historicamente consolidadas. O retorno das grandes remoções de favelas para a agenda pública vai de encontro à compreensão de que a ocupação de terras para moradia, tal como as favelas cariocas, é parte intrínseca do processo brasileiro de urbanização que restringe o acesso de grande parte da população à cidade e à moradia diante do elevado preço do solo urbano potencializado pela profunda desigualdade social (Maricato, 2005MARICATO, E. (2005). Questão fundiária urbana no Brasil e o Ministério das Cidades. In: 1º CONGRESO NACIONAL DEL SUELO URBANO. México, Unam.). Além disso, expõe a permanência dos estigmas atribuídos às favelas e seus moradores, sistematicamente renovados e fortalecidos, sendo parte importante das engrenagens que legitimam os deslocamentos forçados (Brum, 2013BRUM, M. S. I. (2013). Favelas e remocionismo ontem e hoje: da Ditadura de 1964 aos Grandes Eventos. O Social em Questão, ano XVI, n. 29, pp. 179-208.; Rolnik, 2015ROLNIK, R. (2015) Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo, Boitempo.).

Por sua vez, o acesso à moradia por meio de políticas públicas mostra-se, historicamente, insuficiente e inadequado. Tais políticas têm priorizado a transferência da propriedade privada individual, fortalecendo a condição da moradia como mercadoria em detrimento do seu entendimento como direito social. As avaliações e críticas sobre o PMCMV têm reforçado essa leitura e demonstrado como, apesar dos volumosos subsídios à produção em massa de novas moradias populares, o Programa reforçou precariedades, segregações socioespaciais e foi usado como suporte para viabilizar remoções forçadas, realizando reassentamentos em áreas periféricas (Santo Amore, Shimbo e Rufino, 2015; Cardoso e Jaenisch, 2014CARDOSO, A. L.; JAENISCH, S. T. (2014). Nova política, velhos desafios: problematizações sobre a implementação do programa Minha Casa Minha Vida na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Revista E-Metropolis. Rio de Janeiro, v. 5, pp. 6-19.; Cardoso, Aragão e Jaenisch, 2017). No sentido oposto, é necessário avançar na formulação de políticas públicas que enfrentem essa questão e que incorporem formas de produção e apropriação da moradia não pautadas pela mercantilização, como a produção coletiva da moradia conduzida por movimentos sociais e a organização de mutirões autogestionários (D’Ottaviano, 2021D’OTTAVIANO, C. (org.). (2021). Habitação, autogestão e cidade. Rio de Janeiro, Letra Capital, Observatório das Metrópoles.), assim como a adoção de políticas de locação social e outros mecanismos.

Diante do relevante papel desempenhado pelo instrumento da Aeis para a atuação do poder público na urbanização de favelas e regularização urbanística e fundiária ao longo da trajetória local analisada, é possível vislumbrar, ainda, um expressivo potencial de avanço no seu emprego como instrumento de planejamento urbano e como suporte à política habitacional de forma ampla. Enfrentando os desafios postos, esse instrumento pode ganhar ainda mais força na medida em que o quadro normativo firme a sua articulação com estratégias de gestão pública do parque imobiliário para moradia social, com fundos setoriais dotados de instrumentos de controle social e, em especial, com a criação de espaços de participação para a gestão democrática da cidade.

Analisar e compreender essa trajetória colabora sobremaneira com o desafio de avançarmos em políticas públicas consistentes orientadas pela garantia do direito à moradia e, no limite, do direito à vida. O avanço nas políticas de urbanização de favelas é ainda mais latente na conjuntura nacional recente, de precarização das condições de vida diante das crises política, econômica e social potencializadas pela pandemia de covid-19. Como alertado por Rolnik (2015)ROLNIK, R. (2015) Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo, Boitempo., essa conjuntura está imersa ainda em uma ampla crise da segurança da posse nos países do Sul Global, decorrente da nova relação entre capital e espaço, embasada sobre a ascensão do capital rentista e a escassez de terras e recursos naturais.

Com o encerramento desta longa trajetória, enfrentamos, na cidade do Rio de Janeiro (assim como em âmbito nacional), a ausência de políticas de urbanização de favelas e de políticas habitacionais de forma mais ampla. Tornou-se explícito que os avanços normativos e institucionais, por si só, não garantem a continuidade das políticas para as quais são suporte essenciais. Essa situação, apesar de extremamente crítica, traz consigo a possibilidade de percebermos lacunas emergentes, de alimentarmos as análises do campo e projetarmos novos futuros. Pretendemos com este texto lançarmos uma contribuição e um incentivo a esse desafio coletivo.

Referências

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  • VALLADARES, L. do P. (1978). Passa-se uma casa. Análise de um programa de remoção de favelas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Zahar.

Notas

  • 1
    Foram entrevistados: Márcia Bezerra (27 e 29 de janeiro de 2020), Ângela Regina de Jesus (25 de março de 2020) e Antônio Augusto Veríssimo (1º de dezembro de 2020) – técnicos com trajetórias relevantes no setor público, especificamente nas políticas habitacionais desenvolvidas em âmbito municipal – e, também, Roberta Athayde (4 de dezembro de 2020) – técnica com experiência em projetos de regularização fundiária junto ao poder público por meio da prestação de serviço em empresas privadas e no terceiro setor. A apresentação dos entrevistados, assim como os temas abordados nas entrevistas, está disponível no relatório de pesquisa (Cardoso et al., 2021CARDOSO, A. L.; LUFT, R.; XIMENES, L.; PINA, A. M.; NOHL, A. (2021). Direito à Cidade e Habitação: condicionantes institucionais e normativas para a implementação de políticas (programas e projetos) de urbanização de favelas no Município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, UFRJ/IPPUR/ INCT Observatório das Metrópoles.). A todos agradecemos a colaboração e o comprometimento. Destacamos, ainda, que as entrevistas foram realizadas através de reuniões virtuais em decorrência da pandemia da covid-19, condição esta que impactou significativamente as possibilidades de investigação.
  • 2
    Foram realizadas duas oficinas, também virtuais, subsidiadas por uma versão preliminar do relatório de pesquisa compartilhado previamente com os convidados. A primeira oficina ocorreu em 1º de junho de 2021, com participação de todos os entrevistados e a equipe de pesquisa. Já a segunda oficina foi realizada em 7 de julho de 2021, com a presença de pesquisadores do grupo Habitação e Cidade e pesquisadores parceiros convidados, a saber: Fabrício Leal de Oliveira, Rafael Soares Gonçalves e Julia Ávila Franzoni. Aos três agradecemos as ricas contribuições.
  • 3
    Neste artigo, utilizamos diretamente alguns trechos de entrevistas que servem como fonte primária de informações ou que evidenciam a percepção dos interlocutores sobre os eventos analisados. Porém, é importante destacar que as informações levantadas em entrevistas, diálogo com interlocutores e pesquisadores parceiros serviram de importante subsídio às análises desenvolvidas de forma mais ampla.
  • 4
    A criação dessa secretaria se deu conjugada à extinção da Coordenação de Serviços Sociais, órgão que agregava políticas para as favelas e que tinha, em sua chefia, José Arthur Rios, sociólogo com relevante contribuição na produção de informações sobre as favelas, na realização de obras em mutirão e na organização de associações comunitárias.
  • 5
    Brizola havia sido deputado federal pela Guanabara, contrapondo-se ao governador Lacerda. Ganhou as eleições estaduais de 1982 e, a partir de então, consolidou uma importante corrente política.
  • 6
    Entre 1960 e 1975, a cidade do Rio de Janeiro era uma cidade-estado, o estado da Guanabara. Em 1974, o governo federal decidiu pela realização da fusão entre o estado da Guanabara e o estado do Rio de Janeiro, passando a cidade do Rio a ser a capital do novo estado.
  • 7
    A RioPlan (atual Instituto Pereira Passos – IPP) avançou significativamente na organização e na sistematização das informações para apoiar a gestão municipal, implantando sistemas informatizados e realizando os primeiros mapeamentos das favelas.
  • 8
    O que denominamos aqui como zona oeste corresponde à forma como os agentes sociais e o poder público nomeavam as Regiões Administrativas de Bangu, Campo Grande e Santa Cruz, que se constituíam – e ainda hoje se constituem – como periferia da cidade.
  • 9
    Ver art. 429, VI da LOM. Nesse caso, a legislação vigente prevê que deve haver laudo técnico, participação popular e reassentamento em locais próximos da moradia ou do local de trabalho, caso a remoção seja entendida como necessária.
  • 10
    Quando criada, a SMH tinha em sua chefia o arquiteto urbanista Sérgio Magalhães, a quem foi destinada a responsabilidade de desenvolver as propostas no campo da habitação. A política habitacional foi, então, estruturada em torno de seis programas: (a) Programa Regularização Urbanística e Fundiária de Loteamentos de Baixa Renda; (b) Programa Favela Bairro; (c) Programa Regularização Fundiária e Titulação; (d) Programa Novas Alternativas; (e) Programa Morar Carioca; e, (f) Programa Morar Sem Risco. Cabe destacar que Magalhães coordenava ainda o Geap.
  • 11
    O Proap-RIO constituiu-se com dois componentes centrais: a urbanização de favelas (por meio do Programa Favela Bairro) e a regularização de loteamentos (pelo NRL). Esses componentes dividiam os investimentos, com a maior parte destinada à urbanização.
  • 12
    Informações levantadas em entrevista concedida por Antônio Augusto Veríssimo, arquiteto urbanista, funcionário da prefeitura municipal da cidade do Rio de Janeiro (PCRJ), hoje aposentado, tendo ocupado os cargos de Subsecretário de Habitação, Coordenação do NRL, participando do desenvolvimento do Programa Favela Bairro.
  • 13
    De acordo com Márcia Bezerra, o emprego do instrumento das Aeis tornou possível que houvesse segurança na viabilidade do investimento, por parte do BID, nas áreas de atuação do Programa sem que fosse necessária a prévia desapropriação de terrenos privados. Informação levantada em entrevista realizada no âmbito da pesquisa Urbanização de Favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC (Cardoso e Denaldi, 2018CARDOSO, A. L.; DENALDI, R. (orgs.). (2018). Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro, Letra Capital.). Marcia Bezerra é arquiteta urbanista, funcionário da PCRJ, hoje desligada da função, tendo ocupado o cargo de Gerente de Terras e Reassentamentos na SMH e desempenhado importante função no Programa Favela Bairro.
  • 14
    Ângela Regina de Jesus é arquiteta urbanista, funcionária da PCRJ, hoje aposentada, tendo ocupado o cargo de Gerente de Regularização Urbanística e Fundiária na SMH entre os anos de 2009 e 2015.
  • 15
    Vide nota 12.
  • 16
    Conforme o decreto de instituição do Proap-RIO, as iniciativas de regularização incluíam pesquisa fundiária, elaboração de projetos de alinhamento e reconhecimento de logradouros públicos.
  • 17
    Dentro do universo de Aeis, poucos foram os regulamentos editados (apenas 34 decretos de uso e ocupação do solo), entretanto eles indicam um avanço jurídico-institucional nas iniciativas para a regularização urbanística e fundiária (Cardoso et al., 2021CARDOSO, A. L.; LUFT, R.; XIMENES, L.; PINA, A. M.; NOHL, A. (2021). Direito à Cidade e Habitação: condicionantes institucionais e normativas para a implementação de políticas (programas e projetos) de urbanização de favelas no Município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, UFRJ/IPPUR/ INCT Observatório das Metrópoles.).
  • 18
    Político de origem norte fluminense, com trajetória em meios de comunicação e em igrejas evangélicas.
  • 19
    Jorge Bittar é engenheiro, foi eleito vereador em 1992 e deputado federal em 1998 pelo PT. Chegou a ser Secretário Estadual de Planejamento entre 1999 e 2000, na gestão de Garotinho, então ainda em aliança com o PT.
  • 20
    A vulnerabilidade socioambiental de favelas tornou-se ainda mais latente com os temporais ocorridos em 2010, que provocaram deslizamentos de terra na capital e, principalmente, na região serrana do Estado, levando, à morte, centenas de pessoas.
  • 21
    Pierre Batista (PT) substituiu Bittar e permaneceu no cargo até 2014. A sua saída da chefia da SMH marca, ainda, a ruptura do protagonismo do PT sobre a pasta. A SMH tem como novo secretário Carlos Portinho, filiado ao Partido Social Democrático (PSD), partido que teria expressiva presença na SMH a partir de então. Em 2015, a antiga SMH passa a se chamar Secretaria Municipal de Habitação e Cidadania (SMHC) e, em 2017, Secretaria de Infraestrutura, Habitação e Conservação (SMIHC).
  • 22
    Originalmente apresentado por meio do projeto de lei n. 25/2001, que veio a ter subsequentes substitutivos.
  • 23
    Dando seguimento à prática iniciada ainda nas gestões de Maia, foi elaborado, em 2009, o Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro III (PECRJ III), que seria revisado em 2013 e intitulado como “Pós-2016: Rio mais integrado e competitivo”.
  • 24
    Decreto n. 30.875 de julho de 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2022
  • Aceito
    13 Abr 2023
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