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Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras: mudanças e permanências em 40 anos

Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar os resultados da análise da estrutura sócio-ocupacional das principais metrópoles do Brasil, entre os anos de 1982 e 2021, focando em sua composição e no comportamento das desigualdades de renda. Buscamos responder às seguintes questões: "Que mudanças e/ou permanências ocorreram na composição da estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras?” e “Como as desigualdades de renda se apresentaram nessa estrutura sócio-ocupacional no período em análise?”. Foram utilizados dados Pnad, de 1982, e PnadC, de 2021, do IBGE. Os principais resultados encontrados apontam para a manutenção de uma estrutura social representada pelo modelo piramidal, apesar de mudanças importantes ocorridas ao longo de 40 anos, e para a redução das desigualdades de renda.

estrutura social; desigualdades de renda; metrópoles

Abstract

This article analyzes the socio-occupational structure of the main Brazilian metropolises between 1982 and 2021, focusing on their composition and on the behavior of income inequalities. We seek to answer the following questions: “What changed and what remained the same in the composition of the socio-occupational structure of Brazilian metropolises?” and “How did income inequalities appear in this socio-occupational structure in the period under analysis?” PNAD data from 1982 and PNADC data from 2021, provided by IBGE, were used. Although important changes occurred in the 40-year period, the study’s main results point to the maintenance of a social structure represented by the pyramidal model and to a reduction in income inequalities.

social structure; income inequalities; metropolises

Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar os resultados da análise da estrutura sócio-ocupacional das principais metrópoles do Brasil, entre os anos de 1982 e 2021, focando em sua composição e no comportamento das desigualdades de renda. Para tanto, utilizamos a estrutura sócio-ocupacional elaborada e revista recentemente pelo Observatório das Metrópoles (Observatório, 2023), que é considerada uma representação da estrutura social, na medida em que busca definir as classes, as frações de classe e as categorias sócio-ocupacionais como expressão da posição que os agentes ocupam no espaço social ( Bourdieu, 2008BOURDIEU, P. (2008). A distinção: crítica social do julgamento . São Paulo, Edusp; Porto Alegre, Zouk. ). Sob essa abordagem, definem-se as posições de classe construídas a partir da ocupação do mercado de trabalho, tendo em vista que essa variável (ocupação) é capaz de expressar posições distintas e relacionais no espaço social.

A análise do período de quatro décadas da estrutura sócio-ocupacional metropolitana brasileira é feita a partir das mudanças estruturais econômicas, bem como das societárias e políticas, que marcaram esse período. No começo dos anos 1980, já se apresentavam os sinais de esgotamento do processo de desenvolvimento econômico que havia configurado uma estrutura político-econômica de base urbano-industrial nas décadas anteriores e, ao mesmo tempo, anunciavam-se alguns dos conflitos sociais que seriam aprofundados nas décadas seguintes, a partir da reconfiguração da estrutura político-econômica que emergia e de sua base material de sustentação – urbana e de serviços. Passados quarenta anos, podemos avaliar as transformações ocorridas nesse período, especialmente a partir do processo de desindustrialização da estrutura produtiva brasileira, das transformações da tecnologia da informação e da comunicação, da globalização, neoliberalização e financeirização do capitalismo contemporâneo.

No processo de intensa urbanização brasileira, ocorrido entre 1940 e 1980, conformou-se uma rede urbana com a presença de algumas metrópoles, que se configuraram como os espaços de concentração populacional devido a sua importância econômica e, por conseguinte, ao seu mercado de trabalho. Essas metrópoles eram os espaços de concentração das principais atividades produtivas industriais e das atividades de comando e dos serviços modernos, mas também de atividades econômicas informais, precárias e de baixa remuneração, constituindo uma estrutura social marcada por grandes desigualdades nesse período ( Valle Silva, 2004VALLE SILVA, N. (2004). “Cambios sociales y estratificación en el Brasil contemporáneo (1945-1999)”. In: FRANCO, R.; LEÓN, A.; RAÚL, A. (orgs.). Estratificación y movilidad social em América Latina: transformaciones estructurales de um cuarto de siglo. Santiago/Chile, Cepal. ). Nas últimas quatro décadas, o Brasil urbanizou-se ainda mais, fazendo avançar o processo de metropolização, diante das transformações estruturais ocorridas no capitalismo, em geral, e na estrutura econômica brasileira, em particular, reconfigurando a importância das metrópoles, que se tornaram mais estratégicas no mundo globalizado ( Ribeiro e Rodrigues, 2019RIBEIRO, M. G.; RODRIGUES, J. (2019). As metrópoles brasileiras na divisão socioespacial do trabalho. In: XVIII ENANPUR. Anais. Natal. ). Por conseguinte, a análise da estrutura social que nesses espaços tem se conformado e/ou reproduzido se torna muito relevante para a compreensão das transformações sociais do País.

Portanto, neste artigo, a fim de estabelecer uma análise da estrutura social, a partir da estrutura sócio-ocupacional supracitada, buscamos responder às seguintes questões: (1) que mudanças e/ou permanências ocorreram na composição da estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras? e (2) como as desigualdades de renda se apresentaram nessa estrutura sócio-ocupacional no período em análise?

Para a análise realizada neste artigo, foram utilizados dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), de 1982, e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PnadC), de 2021, ambas produzidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A estrutura sócio-ocupacional utilizada foi elaborada pelo Observatório das Metrópoles, a partir da variável ocupação do mercado de trabalho, buscando expressar as distintas posições existentes no espaço social (Observatório, 2023), por conseguinte expressão das posições de classe. A partir dela, será realizada, também, a análise das desigualdades de renda, considerando o rendimento do trabalho principal das pessoas de 14 anos de idade ou mais. Toda a análise é feita para o conjunto das principais metrópoles brasileiras,1 1 As metrópoles utilizadas neste trabalho foram: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Brasília. considerando aquelas que têm disponibilidade de dados nos dois levantamentos utilizados.

O artigo está organizado em seis seções, incluindo esta introdução. Na segunda seção, será realizada uma discussão sobre estrutura social e desigualdades de renda, recuperando parte do debate internacional sobre esse tema e, também, do recente debate brasileiro. Na terceira seção, serão apresentados os aspectos teórico-conceituais que orientam a construção da estrutura sócio-ocupacional. Na quarta seção, serão apresentados os aspectos metodológicos para o estabelecimento da análise evolutiva entre 1982 e 2021, considerando as bases de dados utilizadas para cada um dos anos. Na quinta seção, serão apresentados e discutidos os resultados que buscam responder às perguntas elencadas acima, na perspectiva de elaboração de uma interpretação das mudanças/permanências da estrutura social das principais metrópoles brasileiras. Na última seção, como considerações finais, serão sumarizados os principais resultados encontrados.

Estrutura social nas últimas décadas

O processo de industrialização brasileira, ocorrido entre 1930 e 1980, foi o momento em que se difundiram as formas de produção capitalista em todos os setores de atividade econômica, mas ainda preservando formas pretéritas de produção ou de sobrevivência. Foi nesse período que se constituíram as ocupações modernas nos setores produtivos e de serviços, além da ampliação das ocupações tradicionais e de rotinas, que acompanharam esse dinamismo, e da constituição das classes médias ( Valle Silva, 2004VALLE SILVA, N. (2004). “Cambios sociales y estratificación en el Brasil contemporáneo (1945-1999)”. In: FRANCO, R.; LEÓN, A.; RAÚL, A. (orgs.). Estratificación y movilidad social em América Latina: transformaciones estructurales de um cuarto de siglo. Santiago/Chile, Cepal. ). Ao final desse período, encontrava-se nas principais metrópoles brasileiras um sistema de estratificação social mais complexo e diversificado em relação ao que havia existido até os anos de 1930.

A partir da década de 1980, ocorreu, na economia brasileira, o esgotamento da política de substituição de importação, que havia possibilitado o seu processo de industrialização. Num contexto de mudanças significativas que ocorria no capitalismo mundial, as políticas econômicas adotadas posteriormente no País se caracterizaram pela abertura comercial e financeira e pela estabilização monetária numa perspectiva econômica ortodoxa. Essas políticas contribuíram decisivamente para a perda de competitividade da indústria nacional, exigindo que as empresas estabelecessem um processo de reestruturação produtiva. A consequência disso foi a redução dos postos de trabalho industriais – ou devido às mudanças nas forças produtivas que elevaram a produtividade do trabalho, ou devido à transferência de algumas atividades industriais para o setor de serviços – e o estabelecimento do processo de desindustrialização brasileiro.

Esse processo de desindustrialização decorrente da reestruturação produtiva foi associado aos efeitos da globalização do capitalismo,2 2 A globalização significou, em linhas gerais, alteração no padrão de relacionamento comercial entre os estados nacionais por meio de empresas transnacionais e também de mudanças nas próprias formas de organização produtiva e dos processos de trabalho a ela vinculados, transformando a relação espaço-temporal (Ianni, 2001) tendo em vista os avanços ocorridos nas tecnologias da informação e comunicação, acelerando e intensificando os fluxos comerciais e financeiros entre os países do mundo. Nesse contexto do capitalismo mundial, surgiu o debate das chamadas cidades globais, que eram os espaços centrais de articulações entre as diversas economias, caracterizados pela concentração de atividades financeiras e de comando e controle da dinâmica econômica ocorrida em todo o planeta ( Sassen, 2001SASSEN, S. (2001). The global city: New York, London, Tokyo . Nova Jersey, Princenton University Press. ). A constituição das cidades globais levaria, por sua vez, às mudanças de suas estruturas sociais, em que tenderia a prevalecer um tipo de estrutura mais dual, do tipo ampulheta, com a crescimento dos segmentos sociais de posições mais elevadas e dos segmentos sociais de posições inferiores da estrutura social, ao contrário de uma estrutura social piramidal,3 3 A imagem da estrutura piramidal para retratar a estrutura social busca refletir a ideia de que a sua base, portanto as posições inferiores, é ocupada pela maior parcela da população e seu topo, por um contingente muito pequeno. As posições médias seriam numericamente menores que as posições da base e mais expressivas do que as do topo. característica do período anterior.

Esse debate também alimentou a discussão sobre as mudanças da estrutura social das metrópoles brasileiras, tendo em vista a inserção do País no processo de globalização a partir, principalmente, dos anos 1990, e das consequências do processo de desindustrialização decorrente da reestruturação produtiva, diminuindo a participação da atividade industrial por falência das unidades industriais ou por deslocamento para outras regiões do País. Por um lado, buscava-se analisar se estava ocorrendo o surgimento de atividades financeiras e de comando e controle típicas das cidades globais nas principais metrópoles do País. Por outro lado, buscava-se compreender os efeitos do processo de desindustrialização para a estrutura econômica das metrópoles. Alguns resultados corroboravam a perspectiva das cidades globais, pelo aumento proporcionalmente mais elevado das posições superiores da estrutura social ( Ribeiro e Lago, 2000RIBEIRO, L. C. de Q.; LAGO, L. C. (2000). O espaço social das grandes metrópoles brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Cadernos Metrópole . São Paulo, n. 4, pp. 9-32. e Ribeiro e Ribeiro, 2015RIBEIRO, L. C. de Q; RIBEIRO, M. G. (2015). “Segregação residencial: padrões e evolução”. In: RIBEIRO, L. C. de Q. (org.). Rio de Janeiro: transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro, Letra Capital e Observatório das Metrópoles. ).

Apesar do avanço do processo de desindustrialização devido ao efeito-China – de ampliação das exportações de bens primários para esse país e de importação de produtos manufaturados – e à manutenção de políticas econômicas de desestímulos à competitividade das atividades industriais, o debate sobre a estrutura social ganhou novas conotações a partir dos anos 2000 ( Cano, 2012CANO, W. (2012). A desindustrialização no Brasil. Economia e Sociedade [online], v. 21, pp. 831-851. ). Com o crescimento econômico que passou a se constituir, baseado principalmente nas exportações de produtos primários, pelo aumento do gasto público e pelo aumento do consumo, verificou-se a expansão dos empregos no mercado de trabalho. Essa dinâmica de expansão do mercado de trabalho, associada à política de valorização do salário-mínimo e à política de transferência de renda para as famílias mais vulneráveis, contribuiu para que ocorresse no País redução das desigualdades de renda, tendo em vista o aumento de rendimento mais elevado dos segmentos de menor renda.

Nesse contexto econômico-social, Neri (2008)NERI, M. (2008). A nova classe média . Rio de Janeiro, Centro de Políticas Sociais/FGV Editora. difundiu, no debate público e acadêmico, a ideia da constituição de uma nova classe média na sociedade brasileira. Essa nova classe média, também chamada de classe C, seria caracterizada pelo segmento intermediário de renda da população, que ampliava sua capacidade de consumo de bens e serviços que antes estavam restritos à classe média tradicional. Em reação a essa perspectiva, outros trabalhos foram realizados no País em contestação a essa visão. Souza (2010)SOUZA, J. (2010). Os batalhadores brasileiros . Nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte, UFMG Editora. disse se tratar da existência de uma classe de trabalhadores, caracterizados como batalhadores, tendo em vista as duras condições a que esse segmento se submetia para a aquisição de renda e o baixo capital cultural que possuíam. Pochmann (2012)POCHMANN, M. (2012). Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira . São Paulo, Boitempo. apontou que estava havendo a ampliação da classe trabalhadora, correspondente ao segmento social que ocupa a base da pirâmide social. Salata (2015)SALATA, A. R. (2015). Quem é classe média no Brasil? Um Estudo sobre Identidades de Classe. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 58, n. 1, pp. 111-149. , a partir de investigação sobre identidade e percepção de classe, demonstrou que as pessoas de posição intermediária de renda não se identificavam como classe média. Além disso, a percepção sobre classe média recaia sobre as pessoas de mais elevado poder socioeconômico.

Com a crise econômica ocorrida a partir de 2015 e seus efeitos sobre o mercado de trabalho, o debate sobre a constituição de uma nova classe média, praticamente, desapareceu. No lugar dessa discussão, voltou o debate do aumento da pobreza e da extrema pobreza e o recrudescimento das desigualdades de renda no País e, especialmente, em suas metrópoles. Esse debate foi ampliado com a ocorrência da pandemia da covid-19, que, ao desarticular as atividades econômicas devido à política de isolamento social, provocou elevação do desemprego e aumento das desigualdades de renda, da pobreza e da extrema pobreza. Além disso, evidenciaram-se as formas precárias de moradia existentes nas metrópoles do País, especialmente nos espaços de favela e nas periferias urbanas.

No entanto, a discussão realizada atualmente que recai sobre a estrutura social ocorre num contexto de transformações significativas, tendo em vista as mudanças ocorridas no capitalismo contemporâneo e as mudanças particulares da economia brasileira. O processo de financeirização do capitalismo, ao ser compreendido como um regime de acumulação sob domínio financeiro ( Chesnais, 2002CHESNAIS, F. (2002). A teoria do regime de acumulação financeirizado: conteúdo, alcance e interrogações. Economia e Sociedade . Campinas, v. 11, n. 1 (18), pp. 1-44, jan./jun. Disponível em: http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643086. Acesso em: 10 out 2022.
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), caracteriza-se pela prevalência das finanças sobre os processos produtivos. Isso tem como consequência para um país periférico, como o Brasil, o estabelecimento de uma burguesia mais rentista que, propriamente, produtiva, em que seus ganhos passam a se orientar, principalmente, mais pela realização de aplicação financeira do que por investimentos produtivos. Isso, portanto, contribui demasiadamente para a intensificação do processo de desindustrialização da estrutura econômica brasileira.

Além disso, no capitalismo contemporâneo, novas dinâmicas produtivas e de circulação de mercadorias têm se constituído, com mudanças nos segmentos da logística e comercialização, por exemplo, e novas atividades têm se estabelecido em decorrência do processo de plataformização . A plataformização constitui-se a partir do surgimento e aperfeiçoamento da microeletrônica e da internet, o que culminou na inteligência artificial, no big data , na internet das coisas, estabelecendo plataformas digitais que reorganizam a dinâmica econômica e a vida social de maneira geral. Esse processo faz surgir novas ocupações no mercado de trabalho, controladas por empresas transnacionais por meio de plataformas digitais. Isso tem levado à discussão das novas formas de trabalho precarizados, também chamado de uberização ( Antunes, 2020ANTUNES, R. (org.) (2020). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo, Boitempo. ). É sob esse contexto de mudanças estruturais que a análise da estrutura sócio-ocupacional será realizada neste trabalho.

Estrutura social segundo o espaço social

A estrutura social das metrópoles brasileiras toma como referência a estrutura sócio-ocupacional elaborada e revista pelo Observatório das Metrópoles recentemente (Observatório, 2023), que foi originalmente desenvolvida para realizar a análise dos processos de segregação socioespacial metropolitana ( Ribeiro e Ribeiro, 2013RIBEIRO, L. C. de Q; RIBEIRO, M. G. (2013). Análise social do território: fundamentos teóricos e metodológicos. Rio de Janeiro, Letra Capital. ). Nesse sentido, a estrutura sócio-ocupacional, como estrutura de posições de classe, apresenta-se como representação da estrutura social, mesmo reconhecendo que a estrutura sócio-ocupacional não encerra todas as propriedades constituidoras da estrutura social.

A construção da referida estrutura sócio-ocupacional assenta-se na abordagem teórica formulada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu sobre o conceito de espaço social (Bourdieu, 2008). Esse conceito foi elaborado a partir do resultado de diversas pesquisas empíricas que o autor realizou sobre a realidade francesa, conjugando, por sua vez, diferentes procedimentos metodológicos, que permitiram a compreensão do modo como se estruturava a sociedade francesa da época dos estudos realizados. Assim, foi possível formular o conceito de espaço social como sendo multidimensional, constituído por diversas propriedades (profissão, raça, sexo, idade, bairro de residência, escolaridade etc.).

Apesar disso, foi identificado, por Bourdieu (ibid.), que havia três propriedades principais que conformariam o espaço social, podendo ser representado por meio de um plano cartesiano a partir das duas primeiras delas. A primeira propriedade (eixo vertical) dizia respeito ao volume global de capitais (cultural, econômico, social e político) que diferenciava os agentes ou grupos sociais. A segunda propriedade (eixo horizontal) referia-se à estrutura de capitais, que dizia respeito ao modo como os diferentes capitais se distribuíam entre os diferentes agentes ou grupos sociais, especialmente aqueles que eram mais decisivos como mecanismo de distinção social para a realidade francesa – capital cultural e capital econômico. A terceira dimensão era referida pela trajetória que os agentes ou grupos sociais realizavam no espaço social ao longo da vida, podendo ser ascendente, descendente ou de imobilidade social.

Vale ressaltar que, apesar da representação gráfica construída por meio dos eixos do volume global de capitais e da estrutura de capitais, a posição dos agentes ou grupos no espaço social configurava-se a partir do conjunto de propriedades identificadas pelo autor. Foi a partir do relacionamento desse conjunto de propriedades que se pôde formular o conceito de espaço social e, por conseguinte, representá-lo graficamente a partir daquelas propriedades principais conformadoras do espaço social francês.

Assim, foi possível realizar, por sua vez, a elaboração da definição de classe e de fração de classe a partir da posição ocupada pelos diversos agentes ou grupo no espaço social, tendo em vista que o espaço social se apresentava como um espaço relacional. Além disso, considerava-se que os agentes ou grupos sociais que ocupavam posições semelhantes no espaço social tinham grande probabilidade de possuir estilos de vida, práticas sociais, gostos etc. semelhantes entre si e diferentes dos agentes ou grupos sociais que ocupavam posições sociais distantes no espaço social. Portanto, posições sociais semelhantes eram, ao mesmo tempo, expressão de condições sociais, de disposições incorporadas ( habitus ) e de tomadas de posição semelhantes (ibid., 2008).

Nesse sentido, por meio do espaço social se poderia construir uma representação de estrutura de classes e das frações de classe que as constituem. Para Bourdieu (ibid.), através do volume global de capitais se poderia separar os diversos agentes ou grupos sociais em três classes: classe dominante, classe média e classe popular. A classe dominante definia-se pela elevada acumulação de capitais, constituindo-se, portanto, dos agentes sociais que dominavam o espaço social, como sendo aqueles agentes sociais com maior poder e status sociais. A classe média constituía-se como uma classe dotada de menor volume de capital em relação à classe dominante, mas com maior volume em relação à classe popular; trata-se, portanto, de uma classe intermediária. Apesar disso, a classe média apresentava estrutura de capitais semelhante à classe dominante e tendia a estabelecer estratégias que permitiam sua ascensão para a classe dominante. A classe popular definia-se como aquela de menor volume de capitais, ocupando posições de subordinação no espaço social, especialmente pelo domínio exercido pela classe dominante e, em menor medida, pela classe média. Por meio da estrutura de capitais, seria possível separar os agentes ou grupos sociais dentro de uma mesma classe, tendo em vista as diferentes composições de capitais que cada um deles possuía, sendo que alguns detinham mais capital cultural que capital econômico, outros mais capital econômico que cultural, e outros, ainda, apresentam relativo equilíbrio entre a quantidade de capital econômico e de capital cultural, podendo ser elevado ou reduzido.

Essas representações de classe e de frações de classe foram relacionadas a partir das diferentes profissões que os agentes sociais possuíam, o que levava a sua designação por meio de terminologias que expressavam essa condição no mercado de trabalho, mas apresentando-se, em termos de frações de classe, como sendo grande burguesia, profissionais liberais, pequena burguesia, proletários etc.

Para a revisão e a elaboração da estrutura sócio-ocupacional do Observatório das Metrópoles (Observatório, 2023), considerou-se que a representação do espaço social elaborada por Bourdieu para a sociedade francesa serviria como expressão do espaço social brasileiro, especialmente no que se refere às suas metrópoles, principalmente pelo estabelecimento das três classes que conformam o espaço social: classe dominante, classe média e classe popular. Ao tomar essa representação de classe para a realidade das metrópoles brasileiras, buscou-se constituir as frações de classe a partir de uma estrutura sócio-ocupacional, composta por categorias sócio-ocupacionais (CAT) construídas segundo a ocupação do mercado de trabalho.

No entanto, essa construção da estrutura sócio-ocupacional considerou a particularidade da formação social do Brasil e de sua estrutura de classes para a definição das frações de classe e das próprias categorias sócio-ocupacionais.4 4 É ilustração disso o fato de a classe média brasileira ser identificada como aquela que ocupa o topo da hierarquia social ( Salata, 2015 ), motivo pelo qual a classe média-alta neste estudo foi considerada como pertencendo à classe dominante. Além disso, fez-se a partir da análise das transformações ocorridas na estrutura econômica brasileira ( Ribeiro e Clementino, 2020RIBEIRO, M. G.; CLEMENTINO, M. do L. M. (orgs.) (2020). Economia metropolitana e desenvolvimento regional: do experimento desenvolvimentista à inflexão ultraliberal. Rio de Janeiro, Letra Capital. ) e no seu mercado de trabalho ( Ribeiro e Aragão, 2020RIBEIRO, M. G.; ARAGÃO, T. A. (orgs.) (2020). Transformações no mundo do trabalho [recurso eletrônico]: análise de grupos ocupacionais no Brasil metropolitano e não metropolitano em quatro décadas. Rio de Janeiro, Letra Capital. ), tendo em vista o surgimento de novas ocupações, o desaparecimento de antigas e as mudanças de posição de algumas ocupações no espaço social. Assim, chegou-se à seguinte conformação da estrutura de classes: a classe dominante constituída pelas frações de classe da classe dirigente e da classe média-alta; a classe média (ou intermediária) constituída pelas frações de classe da classe média-média e da classe média-baixa; e a classe popular constituída pelas frações de classe do proletariado da indústria, do proletariado dos serviços, do proletariado da produção do ambiente construído, do subproletariado e dos trabalhadores rurais. A composição das frações de classe segundo as categorias sócio-ocupacionais está ilustrada no Quadro 1 .

Quadro 1
– Classe, fração de classe e categorias sócio-ocupacionais

Embora a formulação do conceito de espaço social seja feita a partir de múltiplas dimensões, como um conjunto de propriedades que o conforma, a estrutura sócio-ocupacional foi construída apenas pela variável ocupação do mercado de trabalho,5 5 Também são utilizadas outras variáveis da base de dados, como filtros de diferenciação da posição social das ocupações, como setor público e privado para o caso dos dirigentes e o setor de atividade econômica para algumas ocupações da classe popular. Ver sobre isso Observatório (2023). como representação da estrutura social. Desse modo, a perspectiva que utilizamos neste artigo se utiliza de uma estrutura sócio-ocupacional que é construída com base na concepção de espaço social de Bourdieu (2008)BOURDIEU, P. (2008). A distinção: crítica social do julgamento . São Paulo, Edusp; Porto Alegre, Zouk. – conceito construído a partir de propriedades multidimensionais –, adaptada para a realidade brasileira contemporânea por meio da variável ocupação do mercado de trabalho.

Aspectos metodológicos

Para a realização da análise da estrutura social das principais metrópoles brasileiras, no período de quatro décadas, utilizamos dados de pesquisas domiciliares produzidas pelo IBGE, tendo em vista que somente essas pesquisas possuem o escopo necessário do ponto de vista espacial, temporal e das características das variáveis utilizadas. Porém, para que esta análise pudesse ser feita, foi necessário realizar algumas adaptações que permitissem compatibilizar o objeto empírico entre as pesquisas de 1982 e de 2021, as quais descrevemos abaixo.

O IBGE, desde que foi criado, em 1938, é o órgão estatal do País responsável pela realização do censo demográfico brasileiro, que se constitui a maior pesquisa domiciliar do Brasil ( Livi-Bacci, 2002LIVI-BACCI, M. (2002). 500 anos de demografia brasileira: uma resenha. Revista Brasileira de Estudos de População , v. 19, n. 1. ). No entanto, desde o final dos anos 1960, o IBGE passou a realizar a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que também é pesquisa domiciliar, ao lado de tantas outras, como era a Pesquisa Mensal de Empregos (PME). A Pnad era uma pesquisa domiciliar realizada anualmente, com exceção dos anos em que ocorria o censo demográfico, por apresentar praticamente os mesmos dados desse levantamento. Porém, a Pnad, sendo um levantamento amostral, só disponibilizava dados para a abrangência nacional, das unidades da federação e de nove regiões metropolitanas do País. Não havia, portanto, a possibilidade de realização de análise municipal ou mesmo intraurbana a partir dessa pesquisa, o que somente poderia ser feito por meio dos dados do censo demográfico. A Pnad existiu até 2015, quando foi substituída pela PnadC (Pnad Contínua).

A PnadC é resultado da junção da Pnad com a PME, que era realizada mensalmente, mas com dados para apenas seis regiões metropolitanas do País. A PnadC significou um grande aperfeiçoamento do levantamento de dados realizado pelo IBGE, porque foi desenhada para que cada domicílio sorteado fosse pesquisado por cinco rodadas trimestralmente. Como, em cada mês, há um conjunto de domicílios amostrados, na prática todos os meses do ano há domicílios sendo investigados. Isso tem como consequência que a PnadC possui três tipos de bases de dados: mensal, trimestral e anual. Além disso, a abrangência espacial da PnadC também se ampliou, passando a divulgar dados para 20 regiões metropolitanas do País6 6 Além dessas regiões metropolitanas, também se divulgam dados para a Região Administrativa Integrada de Desenvolvimento da Grande Teresina (PI), que possui municípios do Piauí e do Maranhão. – aquelas que têm como núcleo uma capital de estado – e para todos os municípios que são capitais de estados do País.

Como pode-se observar, apesar de serem pesquisas domiciliares amostrais, o desenho de investigação de cada uma delas é muito diferente. A Pnad realizava levantamento de dados tendo como referência o mês de setembro de cada ano. A base anual da PnadC é constituída por dados levantados mensalmente de cada uma das visitas aos domicílios realizadas. Somente as bases anuais da primeira e da quinta visitas possuem dados referentes às ocupações no mercado de trabalho. E, para o ano de 2021, o IBGE só divulgou a base anual da quinta visita, motivo pelo qual foi esta a utilizada. Embora haja essas diferenças, consideramos possível realizar a comparação da estrutura social nesse período utilizando-se dessas duas pesquisas, como demonstraremos abaixo.

A escolha dos anos de 1982 e de 2021 para a realização da análise decorreu do fato de a análise estrutural ser mais bem apreendida se considerado um período mais amplo. Assim, consideraram-se as transformações mais significativas ocorridas no Brasil nas últimas décadas, que têm, no começo dos anos de 1980, o marco do esgotamento do processo de desenvolvimento econômico assentado no processo de industrialização, a partir da política de substituição de importações, e, por conseguinte, da emergência das condições que marcaram o período posterior. Especificamente, a escolha de 1982 deu-se pela existência nessa pesquisa de todas as variáveis que seriam utilizadas para a realização da análise que pretendíamos.7 7 A pesquisa mais ampla, da qual esse artigo se originou, realiza cruzamento com outras variáveis. Somente a partir de 1982 é que, na Pnad, há dados referentes à variável racial. Antes disso, somente na Pnad de 1976 havia essa informação, mas se tratava de uma base de dados de difícil operacionalização. O ano de 2021 foi escolhido por ser a base de dados que retrata o período mais recente de nossa investigação.

Como já foi apresentado, na Pnad, os dados são disponibilizados para todo o País, para as unidades da federação e para nove regiões metropolitanas. Na PnadC, os dados são disponibilizados para todo o País, para as unidades da federação e para 20 regiões metropolitanas. Para a realização da análise pretendida, foi necessário compatibilizar a abrangência espacial, de modo a podermos verificar processos sociais de mudança ou de permanência no período considerado para o mesmo espaço geográfico. Sendo assim, foi considerado, nos dois anos, as seguintes regiões metropolitanas: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém, Curitiba e Porto Alegre. Também foram incorporados os dados de Brasília, correspondentes ao Distrito Federal. A análise realizada foi feita para o conjunto dessas nove regiões metropolitanas e do Distrito Federal, as quais consideramos as principais metrópoles do País.

Apesar de região metropolitana e metrópole serem conceitualmente diferente, principalmente no Brasil, tendo em vista que a primeira decorre da institucionalização de um conjunto de municípios por meio de lei e a segunda expressa um espaço de integração territorial, populacional e econômico, com papel de comando em atividades empresariais e de gestão pública, que influência outras cidades da rede urbana do País, como destacado pelo Regic/IBGE (2020), essas 9 primeiras regiões metropolitanas mencionadas correspondem exatamente às primeiras metrópoles existentes no país, tendo aqui incorporado Brasília que se tornou também uma metrópole. E como os dados da Pnad ou da Pnadc referidas a esses espaços não designam exatamente quais são os municípios selecionados para a coleta de dados, consideramos que sejam os mais importante na sua conformação, o que corresponderiam aos espaços denominados como metropolitano.

A escolha pela análise de conjunto desses espaços decorreu do fato de utilizarmos uma estrutura sócio-ocupacional constituída por 35 categorias para aplicação em pesquisas amostrais, como são a Pnad e a PnadC. Como os dados utilizados decorrem de expansão amostral para representação de toda a população, consideramos que haveria menor erro amostral na análise de conjunto das metrópoles do que em análise específica de cada uma delas ou mesmo a partir de análise comparativa.

Na medida em que a estrutura sócio- -ocupacional que utilizamos foi elaborada considerando-se o conjunto de transformações econômicas e do mercado de trabalho das últimas décadas, para a realização da análise evolutiva, entre 1982 e 2021, foi necessário realizar a compatibilização das ocupações do mercado de trabalho apresentada pelas classificações ocupacionais de cada levantamento.

A classificação ocupacional utilizada pelo IBGE, em 1982, era diferente da utilizada em 2021. A estrutura sócio-ocupacional que utilizamos foi construída a partir do censo demográfico de 2010, que possui a mesma classificação ocupacional existente na PnadC, o que tornou muito simples a realização de sua adaptação. Porém, como em 1982 utilizava-se outra classificação ocupacional, foi necessário estabelecer a compatibilização das ocupações para a nova estrutura sócio-ocupacional do Observatório das Metrópoles. Esse esforço de compatibilização foi feito seguindo os critérios utilizados para essa nova estrutura sócio-ocupacional. De todo modo, não se tratou de compatibilização das classificações ocupacionais existentes em cada pesquisa, mas da compatibilização de cada uma dessas classificações à estrutura sócio-ocupacional. Ou seja, tratou-se de uma adaptação conceitual, pois se baseou na concepção do que representam as ocupações em termos de posição social e, portanto, de enquadramento em cada categoria sócio-ocupacional, motivo pelo qual se justifica a própria realização de pesquisa comparada a partir de bases de dados que são resultado de desenhos amostrais diferentes.

A consequência desse procedimento é que a análise comparativa e evolutiva é feita sob o olhar da estrutura sócio-ocupacional construída para o momento atual. Julgamos que esse procedimento seria mais adequado do que comparar diferentes estruturas sócio-ocupacionais – uma para 1982 e outra para 2021 –, porque estaríamos comparando categorias de representação social construídas sob critérios distintos, o que não faria sentido em termos comparativos para o objetivo que possuímos.

Para a análise das desigualdades de renda da estrutura social, foi utilizado o rendimento do trabalho principal, existente em ambas as bases de dados. Para a utilização dessa variável, foram retiradas da análise as pessoas que não possuíam informação de rendimento, o que permitiu calcular o rendimento médio das pessoas com rendimentos zero e positivo. Os dados de rendimento de 1982 foram deflacionados8 8 Esse procedimento foi realizado a partir de índice de deflacionamento obtido na Calculadora do Cidadão, existente no site do Banco Central do Brasil. para o mês de dezembro de 2021. A partir disso, foi possível realizar a análise das diferenças de rendimento médio entre as categorias conjugadas e entre os anos analisados. Porém, para a demarcação da análise de desigualdade de renda, foi realizada para cada ano a razão de rendimento médio de cada categoria conjugada em relação ao rendimento médio dos trabalhadores domésticos, por se tratar da categoria sócio-ocupacional que apresenta o menor nível de rendimento em ambos os anos analisados.

Na Pnad em geral, a divulgação dos dados da população economicamente ativa, da qual a população ocupada é contida, era para pessoas de 10 anos de idade ou mais, tendo em vista que historicamente, no Brasil, crianças e adolescentes se inseriam cedo no mercado de trabalho. Porém, na PnadC, a divulgação sempre foi para as pessoas de 14 anos de idade ou mais, pois essa situação de trabalho infantil foi reduzida substancialmente no País, apesar de ainda haver crianças e adolescentes no mercado de trabalho. A fim de estabelecermos a comparação entre os anos, foram consideradas as pessoas de 14 anos ou mais de idade na análise que realizamos.

Análise dos resultados

Composição da estrutura sócio-ocupacional

Em 40 anos, a composição da estrutura sócio-ocupacional das principais metrópoles do País apresentou mudanças importantes. Apesar de essas mudanças terem ocorrido com o aumento da população ocupada que dobrou no período – passando de 14,3 milhões, em 1982, para 28,6 milhões, em 2021 –, a sua participação relativa na população ocupada do País se manteve – era de 32,9% e passou a ser de 32,5%. A manutenção dessa participação relativa significa que as metrópoles acompanharam o crescimento populacional ocorrido no Brasil e mantiveram seu peso no mercado de trabalho do País. Portanto, o efeito do crescimento demográfico precisa ser relativizado para podermos analisar as mudanças na composição da estrutura sócio-ocupacional das metrópoles brasileiras – e, também, suas permanências –, a partir da análise de suas frações de classe e das categorias sócio-ocupacionais, conforme disposto na Tabela 1 .

Tabela 1
Brasil metropolitano 1 1 As metrópoles utilizadas neste trabalho foram: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Brasília. : freqüência absoluta e relativa das pessoas ocupadas de 14 anos ou mais de idade segundo as frações de classe e as categorias sócio-ocupacionais - 1982 e 2021

No período de quatro décadas, sob o ponto de vista de sua composição, a estrutura sócio-ocupacional permaneceu representada por uma estrutura piramidal, mesmo tendo ocorrido o comportamento de maior afunilamento na base da pirâmide e de crescimento no meio e no topo dela. Apesar da redução observada na participação da Classe Popular – que era de 63,5%, em 1982 –, essa classe ainda representou mais de 50% das pessoas ocupadas no mercado de trabalho, em 2021. A redução na participação da Classe Popular deu-se com aumento de 29,2% para 35,5% da Classe Intermediária e de 7,3% para 12,3% da Classe Dominante. Portanto, embora o conjunto das categorias de trabalhadores manuais continue a ser maior numericamente na composição da estrutura sócio-ocupacional, tem havido expressivo aumento das categorias de trabalhadores caracterizados pelo trabalho não manual, ou seja, aquelas de maior exigência de escolaridade e/ou de qualificação para o seu exercício.

A redução da participação da Classe Popular aconteceu com comportamentos contrários entre as frações de classe que a constituíram. Enquanto houve redução na participação do Proletariado da indústria, do Proletariado da produção do ambiente construído, do Subproletariado e dos Trabalhadores rurais, ocorreu aumento da participação do Proletariado dos serviços. Esta última fração de classe ampliou sua participação na estrutura sócio-ocupacional de 17,4%, em 1982, para 25,3%, em 2021, quase triplicando o número de pessoas ocupadas (de 2,5 milhões para 7,2 milhões). Das demais frações de classe que apresentaram redução de sua participação, somente o Proletariado da indústria decorreu de redução absoluta do número de pessoas ocupadas (era 2,6 milhões, em 1982, e passou a ser 2,2 milhões, em 2021), o que resultou numa queda de sua participação de 18,1% para 7,7%. A redução da participação das demais frações de classe ocorreu com aumento do número absoluto de pessoas ocupadas.

A Classe Intermediária apresentou crescimento na participação da estrutura sócio-ocupacional tanto da Classe média-baixa quanto da Classe média-média, passando a corresponder a pouco mais de um terço da população ocupada do conjunto das metrópoles. O aumento da participação da Classe média-média foi mais elevado – aumento de 3,9 pontos percentuais (pp.) –, devido ao crescimento importante ocorrido entre os Profissionais dos serviços pessoais e sociais (de 3 pp.). Na Classe média-baixa, o crescimento de 2,4 pp. foi puxado, principalmente, pelos Técnicos em processos produtivos e de suporte (+1,7 pp.), Agentes comerciais (+1,5 pp.) e Técnicos e agentes de saúde (+1,2 pp.), que compensaram a queda relativa dos Trabalhadores do apoio administrativo (-3,1%), que, mesmo assim, ainda continuaram a apresentar a maior participação na estrutura sócio-ocupacional (10,8%). Apesar de crescimento positivo pequeno, ou mesmo de redução relativa, todas as demais categorias sócio-ocupacionais da Classe média-média e da Classe média-baixa tiveram crescimento absoluto no número de pessoas ocupadas.

O crescimento na participação da estrutura sócio-ocupacional observado da Classe Dominante foi devido ao expressivo aumento apresentado pela Classe média-alta (+5,6 pp.), tendo em vista que a Classe Dirigente apresentou pequena redução relativa na sua participação (-0,6 pp.). Essa redução da Classe Dirigente decorreu de queda relativa dos Grandes empregadores (-0,4 pp.) e dos Dirigentes do setor público (-0,5 pp.), pois houve aumento dos Dirigentes do setor privado (+0,3 pp.). Na Classe média-alta, todas as categorias aumentaram sua participação na estrutura sócio-ocupacional, com destaque, principalmente, para os Profissionais da gestão e dos negócios (+3,4 pp.) e para os Profissionais da tecnologia da informação (+1 pp.).

Nesse sentido, ao afirmamos que a estrutura social das principais metrópoles brasileiras continua sendo representada por um modelo piramidal, apesar dos processos de mudanças que têm provocado maior afunilamento de sua base e crescimento no meio e no topo dessa pirâmide, procuramos elucidar em maior detalhe os processos de mudança e de permanência ocorridos nos últimos 40 anos.

O afunilamento da base da estrutura social pode ser explicado, principalmente, pelo processo de desindustrialização da economia brasileira, que tinha nas metrópoles a sua principal localização. Uma evidência desse fato decorre da redução do Proletariado da indústria, que foi a única fração de classe que, ao mesmo tempo, diminuiu relativa e absolutamente o número de ocupados entre 1982 e 2021. A redução absoluta dos Operários da indústria é demonstração de que o processo de desindustrialização tem ocorrido com o fechamento de postos de trabalho, provavelmente devido ao fechamento de plantas industriais.

O processo de desindustrialização, quando se deu explicado pela reestruturação produtiva, significou também a transferência de postos de trabalho da indústria para o setor de serviços, principalmente daquelas ocupações que podem ser contratadas pelas firmas industriais de empresas terceirizadas. Isso pode ajudar a explicar o expressivo aumento do Proletariado dos serviços, principalmente nas categorias dos Trabalhadores do transporte de carga e logística e dos Trabalhadores dos serviços de vigilância, mas, também, na dos Trabalhadores dos serviços de limpeza, que integra o Subproletariado.

Outra evidência da redução da base da estrutura social é observada pela diminuição relativa e absoluta do número de ocupados dos Trabalhadores domésticos. Apesar de a redução absoluta ter sido de apenas 3,5%, ela contribuiu para que sua participação na estrutura sócio-ocupacional caísse pela metade. Isso significou, portanto, estagnação do número de postos de trabalho dessa categoria no período de 40 anos. Esse fato pode ser explicado por mudanças culturais na sociedade brasileira, em que o trabalho doméstico tem deixado de ser realizado pela contratação de empregadas, ou pela redução do nível de renda de parcela das classes médias, que sempre se configuraram como seus principais empregadores.

De todo modo, há que se considerar o expressivo aumento do Proletariado dos serviços, que quase triplicou em 40 anos, passando a representar um quarto de toda a população ocupada das metrópoles. Por esse motivo, o afunilamento da base da estrutura social não é maior. Esse crescimento, que em parte é explicado pela desindustrialização, pode também buscar explicação em mudanças demográficas e culturais ocorridas na sociedade de brasileira, o que fez surgir novas ocupações ou o aumento de algumas das já existentes. Este é o caso das ocupações que integram a categoria dos Trabalhadores dos serviços do cuidado e da beleza pessoal. Nessa categoria, encontram-se os serviços de cabeleireiro, manicure, pedicure, etc. que se ampliaram com o aumento populacional, mas também com mudanças nos hábitos da população, com a elevação do número de pessoas no acesso a esses serviços, assim como com a incorporação do público masculino. Também integra aquela categoria os serviços do cuidado, que correspondem às ocupações tanto de cuidado de crianças quanto do cuidado de idosos. Este último tipo de ocupação é típico das mudanças demográficas, que têm se caracterizado pelo aumento do envelhecimento populacional.

As mudanças dos processos produtivos associadas às novas tecnologias da informação e comunicação podem contribuir com a explicação do aumento do número de ocupados nas categorias dos Trabalhadores dos transportes de cargas e logística, dos Trabalhadores dos transportes de passageiro, dos Trabalhadores do comércio e dos Trabalhadores dos serviços de alojamento e alimentação, que fazem parte do Proletariado dos serviços, mas, também, da categoria dos Trabalhadores dos serviços de entrega, que integra o Subproletariado. Estas talvez sejam as categorias sócio-ocupacionais, caracterizadas pelo trabalho manual, que mais têm sofrido os efeitos do processo de plataformização no capitalismo e se traduzem em processos de precarização do trabalho ou de uberização .

Embora tenha havido redução da participação relativa, as categorias dos Trabalhadores dos serviços de reparo e manutenção e dos Trabalhadores ambulantes apresentaram crescimento absoluto. Essas categorias, que se constituíram no processo de urbanização brasileira, quando ocorreu sua industrialização, ainda continuam tendo importância no mercado de trabalho das principais metrópoles do País. Em grande medida, caracterizadas como ocupações informais e precárias, o seu crescimento absoluto evidencia a manutenção e a persistência de formas pretéritas do trabalho precário.

O crescimento no meio e no topo da estrutura social demonstra que o modelo em que ela tem se configurado não é do tipo ampulheta, tendo em vista que o aumento da participação da Classe Intermediária na composição da estrutura sócio-ocupacional foi em proporção superior ao aumento da Classe Dominante. Ao contrário da representação de estrutura social referida às cidades globais ( Sassen, 2001SASSEN, S. (2001). The global city: New York, London, Tokyo . Nova Jersey, Princenton University Press. ) e que havia sido constatado para algumas metrópoles brasileiras a partir de uma estrutura sócio-ocupacional construída antes das transformações estruturais da economia ( Ribeiro e Lago, 2000RIBEIRO, L. C. de Q.; LAGO, L. C. (2000). O espaço social das grandes metrópoles brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Cadernos Metrópole . São Paulo, n. 4, pp. 9-32. e Ribeiro e Ribeiro, 2015RIBEIRO, L. C. de Q; RIBEIRO, M. G. (2015). “Segregação residencial: padrões e evolução”. In: RIBEIRO, L. C. de Q. (org.). Rio de Janeiro: transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro, Letra Capital e Observatório das Metrópoles. ), a análise evidencia que o segmento intermediário continua a ser expressivo, além de ampliar a sua importância, na estrutura social das principais metrópoles do País.

A categoria dos Técnicos em processos produtivos e de suporte foi a que apresentou o maior crescimento proporcional na Classe média-baixa. Esse crescimento pode ser em parte explicado pela reestruturação produtiva que ocorreu nas indústrias de transformação, que, ao modificar sua composição de capital, passaram a requerer mão de obra de maior qualificação. Também, pode ter sido decorrente da expansão da indústria extrativa, principalmente aquela vinculada ao setor de petróleo e gás, em que sua mão de obra tende a ser de maior qualificação. Ainda pode ser decorrente do processo de mecanização da produção agrícola do País, que passa a requerer trabalho técnico mais especializado. Ou ainda pela ampliação das atividades que são expressão das novas tecnologias da comunicação e informação. Todos esses tipos de ocupações estão contidos naquela categoria sócio-ocupacional, o que dificulta a sua interpretação. De todo modo, constata-se que a estrutura produtiva contemporânea tem exigido, cada vez mais, trabalho técnico, especializado e qualificado.

As demais categorias sócio-ocupacionais da Classe média-baixa também apresentaram crescimento relativo e absoluto de pessoas ocupadas, no período de 40 anos. Por suas características, parece evidente que esse crescimento se deu devido à própria ampliação da estrutura econômica – Agentes comerciais e Trabalhadores do apoio administrativo e Agentes de capacitação – e, também, do crescimento populacional – Técnicos e agentes de saúde e Artesãos e agentes da cultura, da arte, do desporto e da religião. Apesar de os trabalhadores do Apoio Administrativo terem aumentado em mais de 1 milhão o número de ocupados, sua participação na estrutura sócio-ocupacional diminuiu, ainda que tenha preservado a maior participação entre todas as categorias sócio-ocupacionais.

O elevado crescimento da participação dos Profissionais dos serviços pessoais e sociais, que integram a Classe média-média, evidenciam o aumento de ocupações profissionais vinculadas aos serviços do cuidado, como são os profissionais da enfermagem, da psicologia ou do serviço social, por exemplo. O aumento desses profissionais deve decorrer de variadas transformações que têm ocorrido na sociedade, principalmente aquelas de ordem demográfica, cultural e, mesmo, econômica, que afetam as condições de saúde, sociais e emocionais das pessoas em geral.

As demais categorias sócio-ocupacionais da Classe média-média estão vinculadas às atividades de comando ou de controle da estrutura econômica (pública ou privada) – Pequenos empregadores, Gerentes e supervisores e Agentes da administração e segurança públicas – ou às atividades artísticas e de comunicação. O crescimento expressivo dos Pequenos empregadores é digno de nota, porque expressa o aumento de um tipo de ocupação em que as pessoas buscam ser patrão de si mesmos, além de se tornarem empregadores. Esse comportamento sempre esteve presente na sociedade brasileira desde a abolição da escravidão ( Cardoso, 2010CARDOSO, A. M. (2010). A construção da sociedade do trabalho no Brasil . Rio de Janeiro, FGV, v. 1. ) e hoje é ressignificado por meio da ideologia do empreendedorismo. Evidentemente, a análise dessa ideologia não se aplica apenas aos pequenos empregadores, mas eles tendem a ser expressão de sua ocorrência.

Os aumentos mais elevados que ocorreram na Classe média-alta se deram nas categorias dos Profissionais da tecnologia da informação e dos Profissionais da gestão e dos negócios. Essas categorias são expressivas das mudanças societárias e produtivas de incorporação das tecnologias modernas e que exigem grau elevado de qualificação, assim como do aprofundamento de uma nova estrutura econômica, que se baseia em profissões voltadas para a gestão, o planejamento, o controle e comando, típicas das cidades globais. Isso significa que o fato de a estrutura social por aqui, nas metrópoles da periferia do capitalismo, não tem se configurado como ampulheta, não quer dizer que as profissões características das cidades globais não tenham se desenvolvido e ampliado. E essa ampliação deve decorrer do aprofundamento de uma economia cada vez mais urbana e de serviços.

Muitas das ocupações que compõem a categoria dos Profissionais da gestão e dos negócios já existiam antes das transformações que aconteceram nas últimas quatro décadas, porém o seu elevado crescimento relativo e absoluto torna evidente o aprofundamento dessa economia urbana e de serviços. Sustenta ainda mais esse argumento o fato de ter havido também importante crescimento dos Professores universitários, apesar de ainda ser uma categoria com pequena participação na estrutura sócio-ocupacional. De todo modo, o fato de ter mais que quadruplicado o número de pessoas ocupadas evidencia a importância que têm tomado a formação de profissionais e a geração de conhecimento na sociedade.

As demais categorias sócio-ocupacionais da Classe média-alta – Profissionais da medicina, Profissionais da engenharia e arquitetura e Profissionais das ciências – são constituídas por profissões tradicionais, apesar de ter ocorrido maior diversificação e especialização na formação de engenheiros e também de médicos. De modo geral, elas representam posições sociais elevadas na estrutura social e se ampliaram nas últimas quatro décadas decorrentes do próprio processo de expansão das atividades econômicas e do crescimento populacional das metrópoles do País.

Na Classe Dirigente, é expressivo o crescimento dos Dirigentes do setor privado, categoria que mais do que dobrou nas últimas quatro décadas, como decorrente da expansão da estrutura econômica. Algo semelhante aconteceu com os Grandes empregadores, tendo em vista que seu crescimento foi de praticamente a metade de quatro décadas atrás. Porém, o baixo crescimento dos Dirigentes do Setor Público pode ser explicado pelo estabelecimento de uma organização do setor público baseada em contratação de empresas terceirizadas e de pequena realização de concursos públicos, como se buscou adotar no País desde a realização de sua Reforma Administrativa dos anos 1990, em que se procurava implantar a concepção do estado mínimo.

Como vimos, a composição da estrutura sócio-ocupacional das principais metrópoles brasileiras tem se tornado mais diversificada, principalmente, com a ampliação de categorias que ocupam posições intermediárias e superiores da estrutura social, apesar de ainda prevalecer uma representação piramidal dessa estrutura. Como essas mudanças têm se traduzido nas desigualdades de renda? É o que veremos agora.

Estrutura sócio-ocupacional e desigualdades de renda

Observamos que praticamente não houve alteração nos rendimentos médio e mediano da população ocupada no mercado de trabalho, no período de 40 anos. O rendimento médio do trabalho principal do conjunto das pessoas ocupadas era, em 1982, de R$2.951,72 e passou a ser, em 2021, de R$3.025,12, uma elevação de apenas R$73,40. Já o rendimento mediano aumentou R$58,79, pois passou de R$1.641,21 para R$1.700,00, no mesmo período, conforme ilustrado na Tabela 2 . O rendimento médio se demonstrar superior ao rendimento mediano e em magnitudes semelhantes significa que as desigualdades de renda se apresentaram com mais da metade das pessoas ocupadas ganhando valor inferior ao rendimento médio. Em outras palavras, trata-se de uma estrutura de desigualdades em que uma menor parcela das pessoas ocupadas tem níveis de remuneração elevados (acima da média), ao contrário da maior parcela que possui níveis de remuneração mais baixos.

Tabela 2
Brasil metropolitano 1 1 As metrópoles utilizadas neste trabalho foram: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Brasília. : rendimento médio, mediano e razão de renda do trabalho principal das pessoas ocupadas de 14 anos ou mais de idade e variação percentual do rendimento médio, segundo as frações de classe e as categorias sócio-ocupacionais - 1982 e 2021

De modo geral, quando se consideram as frações de classe, apesar das mudanças nos rendimentos médios e medianos de algumas delas, a estrutura de desigualdades de renda, praticamente, manteve-se entre 1982 e 2021. As mudanças mais significativas ocorreram com a redução dos rendimentos médios e medianos da Classe média-alta e da Classe média-baixa, o que monstra apenas perda de renda interna em cada grupo, e aumento do rendimento médio e manutenção do rendimento mediano da Classe média-média, demonstrando aumento das desigualdades internas. Também ocorreu redução do rendimento médio da Classe Dirigente, do Proletariado da indústria, do Proletariado dos serviços e do Proletariado da produção do ambiente construído, apesar de terem mantido, respectivamente, o mesmo nível do rendimento mediano. Isso significa que, com a redução do rendimento médio e a manutenção do rendimento mediano, a desigualdade de renda reduziu-se dentro de cada fração de classe. A fração de classe do Subproletariado e a dos Trabalhadores rurais apresentaram aumento dos rendimentos médios e medianos, demonstrando aumento de renda dentro de cada uma delas. Mesmo com as mudanças observadas em cada uma dessas frações de classe, não houve alteração na hierarquia de renda entre elas. Desse modo, as frações de classe que estão em posições mais elevadas continuaram apresentando os maiores rendimentos e aquelas que estão em posições inferiores, os rendimentos mais baixos.

No entanto, apesar de a hierarquia de renda continuar sendo praticamente a mesma, houve redução das desigualdades de renda entre 1982 e 2021. Procedemos a análise das desigualdades de renda calculando a razão do rendimento médio de cada fração de classe ou categoria sócio-ocupacional pelo rendimento médio dos trabalhadores domésticos, por ser a categoria de menor renda em ambos os anos considerados. Mesmo tendo tido variação positiva de 53,7% no rendimento médio dos trabalhadores domésticos, ainda assim, continuou a ser o menor rendimento médio na estrutura sócio-ocupacional. Em 1982, o rendimento médio dessa categoria era de R$667,66, e o valor do salário-mínimo era de R$757,14. Em 2021, o rendimento médio era de R$1.023,03 e o salário-mínimo, de R$1.212,00. Ou seja, apesar do aumento do rendimento médio, os trabalhadores domésticos sempre ganharam, em média, valor inferior ao salário de referência básica do mercado de trabalho. A redução das desigualdades de renda deve-se, em parte, a essa variação positiva do rendimento médio dos trabalhadores domésticos, pois, mesmo as categorias sócio-ocupacionais que tiveram variação positiva, tiveram-na em patamar inferior ao obtido pelos trabalhadores domésticos.9 9 A única exceção foram os Agentes da administração e segurança públicas, que tiveram variação positiva de 55%. A maioria das categorias sócio-ocupacionais teve variação negativa nos seus rendimentos médios, tornando a sua razão de renda, em 2021, inferior àquela observada em 1982.

Como a maioria das categorias sócio-ocupacionais reduziu sua razão de renda em relação aos trabalhadores domésticos devido à variação negativa dos seus rendimentos médios, para que o nível de rendimento médio do conjunto das pessoas ocupadas se mantivesse no mesmo patamar, principalmente em situação de redução das desigualdades, foi necessário que algumas categorias sócio-ocupacionais tivessem ganhos mais elevados de renda. As categorias sócio-ocupacionais que tiveram variação positiva nos seus rendimentos médios foram: (1) Grandes empregadores, (2) Dirigentes do setor público, (3) Profissionais da medicina, (4) Pequenos empregadores, (5) Profissionais dos serviços pessoais e sociais, (6) Agentes da administração e segurança públicas, (7) Técnicos e agentes de saúde, (8) Operários da construção civil, (9) Trabalhadores dos serviços de entrega, (10) Trabalhadores dos serviços de limpeza e (11) Trabalhadores rurais. Porém, somente as seis primeiras categorias apresentaram rendimento médio acima do rendimento médio do conjunto das pessoas ocupadas. Vale destacar que, delas, os Agentes da administração e segurança públicas tiveram aumento de 55% no seu rendimento médio, os Profissionais da medicina, de 36,5%, e os Grandes empregadores, de 30,4%. Portanto, a manutenção da média do rendimento do conjunto da população ocupada, em situação de redução das desigualdades, deu-se com o aumento proporcionalmente mais elevado dessas categorias sócio-ocupacionais.

No entanto, somente os Profissionais da medicina, os Pequenos empregadores e os Profissionais dos serviços pessoais e sociais que tiveram ganho positivo no seu nível médio de renda apresentaram, ao mesmo tempo, aumento na proporção de pessoas ocupadas entre 1982 e 2021. Todas as demais categorias que tiveram ganho de renda apresentaram redução ou manutenção da participação relativa na composição da estrutura sócio-ocupacional. Aliás, as categorias que apresentaram variação negativa nos seus rendimentos médios tiveram elevação da participação relativa na composição da estrutura sócio-ocupacional. Ou seja, de modo geral, o aumento relativo do número de pessoas nas categorias sócio-ocupacionais levou a sua desvalorização em termos de renda. E o fechamento relativo da composição das categorias sócio-ocupacionais proporcionou o aumento da média de renda.

Considerações finais

A estrutura social das principais metrópoles brasileiras passou por processos de mudanças significativos nas últimas quatro décadas, mas continua sendo representada por um modelo piramidal, apesar de ter havido afunilamento na sua base e crescimento do meio e do topo dessa pirâmide. Além disso, essa estrutura social piramidal continua apresentando semelhança na estrutura de desigualdades de renda entre as frações de classe e as categorias sócio-ocupacionais, embora essas desigualdades tenham se reduzido no período de 40 anos.

Procuramos explicar as mudanças de composição da estrutura sócio-ocupacional a partir dos processos econômicos (des)estruturadores mais significativos que aconteceram no período analisado, como tem sido o processo de desindustrialização, mas, também, das mudanças tecnológicas mais expressivas do capitalismo contemporâneo, que têm tido efeito sobre a dinâmica do mercado de trabalho. Além disso, procuramos tratar, ainda, de mudanças societárias importantes, como as demográficas e culturais capazes de elucidar o comportamento de algumas das categorias sócio-ocupacionais.

A redução das desigualdades de renda deu-se, principalmente, pela desvalorização das categorias sócio-ocupacionais que tiveram aumento proporcionalmente maior de pessoas ocupadas. Tanto é assim que as categorias que tiveram redução relativa do número de ocupados conseguiram ampliar o seu nível de renda. Porém, essa redução esconde o fato de que esse comportamento foi, também, decorrente do aumento proporcionalmente maior do rendimento médio dos Trabalhadores domésticos, que utilizamos como referência no cálculo das desigualdades. Se o aumento do rendimento médio dessa categoria não tivesse ocorrido, a redução das desigualdades de renda teria acontecido, mas em magnitude menor. Ocorre que o aumento do rendimento médio daquela categoria não foi suficiente sequer para atingir o valor do salário-mínimo utilizado como referência no mercado de trabalho, o que demonstra como, em geral, os níveis de remuneração são baixos no mercado de trabalho das metrópoles do País. No entanto, algumas categorias sócio-ocupacionais conseguiram elevar o seu nível de rendimento. Isso aconteceu com a redução relativa do número de ocupados. Contudo, os Profissionais da medicina, os Pequenos empregadores e os Profissionais dos serviços pessoais e sociais conseguiram aumentar o seu rendimento médio, mesmo tendo ampliado relativamente o seu número de ocupados.

Vale ressaltar que a estrutura de desigualdade de renda observada em 2021 se apresentou num contexto socioeconômico complicado para o mercado de trabalho brasileiro, em que se apresentavam os efeitos perversos advindos da crise econômica instalada no País desde 2015 e da pandemia da covid-19 em 2020. Esse contexto expressa a reversão do processo de crescimento econômico, de ampliação da renda e redução das desigualdades que aconteceram entre 2004 e 2014. Significa que, não fossem as crises econômicas e sanitárias, possivelmente o quadro de desigualdades de renda seria menor do que pudemos observar. De todo modo, a estrutura de desigualdades de renda de 2021 ainda se configurou como sendo menor do que a observada em 1982, ou seja, durante a Ditadura Militar. Isso significa que, mesmo diante de muitos processos que apresentaram consequências negativas para a economia brasileira – como foi o processo de desindustrialização, por exemplo –, a dinâmica democrática, como a que se instalou no Brasil a partir de 1985, é muito mais favorável para a construção de uma sociedade menos desigual.

Nota de agradecimento

Gostaria de agradecer o financiamento concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq para a realização da pesquisa em que se insere este trabalho por meio da concessão da Bolsa Produtividade em Pesquisa Nível 2, Processo Nº 314227/2020-2. Também agradecer o financiamento concedido pela Faperj – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – por meio da bolsa de pesquisa Jovem Cientista do Nosso Estado, Processo Nº E26/200.279/2023.

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  • RIBEIRO, M. G. (org.) (2020). Economia metropolitana e desenvolvimento regional: do experimento desenvolvimentista à inflexão ultraliberal. 1. ed. Rio de Janeiro, Letra Capital.
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  • RIBEIRO, M. G.; CLEMENTINO, M. do L. M. (orgs.) (2020). Economia metropolitana e desenvolvimento regional: do experimento desenvolvimentista à inflexão ultraliberal. Rio de Janeiro, Letra Capital.
  • SALATA, A. R. (2015). Quem é classe média no Brasil? Um Estudo sobre Identidades de Classe. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 58, n. 1, pp. 111-149.
  • SASSEN, S. (2001). The global city: New York, London, Tokyo . Nova Jersey, Princenton University Press.
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Notas

  • 1
    As metrópoles utilizadas neste trabalho foram: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Brasília.
  • 2
    A globalização significou, em linhas gerais, alteração no padrão de relacionamento comercial entre os estados nacionais por meio de empresas transnacionais e também de mudanças nas próprias formas de organização produtiva e dos processos de trabalho a ela vinculados, transformando a relação espaço-temporal (Ianni, 2001)
  • 3
    A imagem da estrutura piramidal para retratar a estrutura social busca refletir a ideia de que a sua base, portanto as posições inferiores, é ocupada pela maior parcela da população e seu topo, por um contingente muito pequeno. As posições médias seriam numericamente menores que as posições da base e mais expressivas do que as do topo.
  • 4
    É ilustração disso o fato de a classe média brasileira ser identificada como aquela que ocupa o topo da hierarquia social ( Salata, 2015SALATA, A. R. (2015). Quem é classe média no Brasil? Um Estudo sobre Identidades de Classe. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 58, n. 1, pp. 111-149. ), motivo pelo qual a classe média-alta neste estudo foi considerada como pertencendo à classe dominante.
  • 5
    Também são utilizadas outras variáveis da base de dados, como filtros de diferenciação da posição social das ocupações, como setor público e privado para o caso dos dirigentes e o setor de atividade econômica para algumas ocupações da classe popular. Ver sobre isso Observatório (2023).
  • 6
    Além dessas regiões metropolitanas, também se divulgam dados para a Região Administrativa Integrada de Desenvolvimento da Grande Teresina (PI), que possui municípios do Piauí e do Maranhão.
  • 7
    A pesquisa mais ampla, da qual esse artigo se originou, realiza cruzamento com outras variáveis. Somente a partir de 1982 é que, na Pnad, há dados referentes à variável racial. Antes disso, somente na Pnad de 1976 havia essa informação, mas se tratava de uma base de dados de difícil operacionalização.
  • 8
    Esse procedimento foi realizado a partir de índice de deflacionamento obtido na Calculadora do Cidadão, existente no site do Banco Central do Brasil.
  • 9
    A única exceção foram os Agentes da administração e segurança públicas, que tiveram variação positiva de 55%.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2023
  • Aceito
    14 Abr 2023
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