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Plataformas digitais e fluxos urbanos: dispersão e controle do trabalho precário

Resumo

O espraiamento recente das plataformas digitais tem provocado novas dinâmicas da relação entre trabalho e cidade. O objetivo deste artigo é analisar os fluxos urbanos dos entregadores de aplicativos pela metrópole de São Paulo para explorar empiricamente as condições em que esse trabalho se inscreve na cidade. Argumentamos que a dispersão de milhares de trabalhadores pela metrópole, ancorada por uma gestão algorítmica, somente se realiza por um controle incisivo do tempo, do território e do próprio trabalho e pela intensa vulnerabilidade dos trabalhadores. Mobilizando dados obtidos por meio de incursões etnográficas, entrevistas e elaboração de material cartográfico, buscaremos discutir as dinâmicas de (re)produção das desigualdades centro-periferia de um trabalho que se espacializa sob gestão centralizada das empresas de plataforma.

plataformas digitais; trabalho; fluxos urbanos; controle; precariedade

Abstract

The recent spread of digital platforms has produced new dynamics in the relationship between work and the city. The aim of this article is to analyze urban flows of app-based delivery workers in the São Paulo metropolis to explore empirically the conditions under which this work is inscribed in the city. We argue that the dispersion of thousands of workers throughout the metropolis, supported by an algorithmic management, can only be carried out through an incisive control of time, territory, and of the work itself, as well as through the workers’ intense vulnerability. Using data obtained by means of ethnographic incursions, interviews, and by the development of cartographic material, we seek to discuss the dynamics of (re)production of central-peripheral inequalities along with work that is spatialized under the centralized management of platform companies.

digital platforms; work; urban flows; control; precariousness

Introdução

O trabalho controlado por plataformas digitais é um fenômeno relativamente recente e vem ganhando maior expressividade no Brasil há menos de uma década. Apesar de ser um fenômeno amplamente globalizado, adquire traços particulares em um cenário nacional no qual amplas camadas da classe trabalhadora urbana sempre conviveram com graus elevados de desproteção social e insegurança econômica, situações agravadas diante dos processos de neoliberalização e corrosão do frágil arcabouço de proteção do trabalho, conquistado durante décadas de lutas sociais. Dada sua expressão e velocidade de expansão, a plataformização do trabalho tem se tornado objeto privilegiado de estudos sobre precarização, subordinação e desregulamentação, bem como provocado questionamentos acerca dos impactos da multiplicação de trabalhadores geridos por plataformas na vida urbana de grandes metrópoles.

Segundo Guimarães (2021)GUIMARÃES, F. (2021). Cerca de 11,4 milhões de brasileiros dependem de aplicativos para ter uma renda. Estado de S.Paulo, 12 de abril. Disponível em: < https://www.estadao.com.br/economia/brasileiro-depende-mais-de-aplicativos-para-ter-renda/ >. Acesso em: 6 mar 2023.
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, a partir de levantamento do Instituto Locomotiva, no ano de 2021, aproximadamente 11,4 milhões de trabalhadores utilizavam os aplicativos como complemento ou principal fonte de renda. Como observam Machado e Zanoni (2022)MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (2022). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos . Curitiba, UFPR – Clínica Direito do Trabalho. , essa ascensão das formas de trabalho mediado pelas plataformas digitais pode ser explicada por três processos articulados entre si. O primeiro deles refere-se ao espraiamento do acesso à internet e às novas tecnologias da informação e da comunicação, engendrando novos modelos de negócios e de organização e exploração do trabalho. Nesse quadro, e desempenhando importante papel para a disseminação das plataformas digitais, merece destaque o aumento do consumo de smartphones no Brasil, especialmente a partir dos anos 2012, conforme pesquisa divulgada pela Reuters/G1 (2013), bem como dos inúmeros aplicativos oferecendo os mais variados serviços por meio de plataformas digitais.

O segundo processo responsável por alavancar as relações de trabalho por meio das plataformas digitais refere-se ao contexto de reformas neoliberais precarizantes que, como observam Cardoso e Azaïs (2019)CARDOSO, A.; AZAÏS, C. (2019). Reformas trabalhistas e seus mercados: uma comparação Brasil-França. Caderno CRH. Salvador, v. 32, n. 86, pp. 307-324. , fez com que os trabalhadores brasileiros perdessem direitos como nunca antes em um período tão curto, que compreende especialmente o ano de 2017, quando foram aprovadas a lei que retirou obstáculos para a terceirização em todos os setores econômicos e a Reforma Trabalhista, que regulamentou antigas e novas práticas de exploração do trabalho. Como detalha Filgueiras (2021)FILGUEIRAS, V. A. (2021). “É tudo novo”, de novo: as narrativas sobre as grandes mudanças no mundo do trabalho como ferramenta do capital. São Paulo, Boitempo. , perpetuam-se narrativas empresariais que legitimam e propagam a ideia de que a flexibilização é necessária para mais formalizações e empregos. As figuras emergentes dos trabalhadores em plataformas multiplicam-se em harmonia com esse cenário de flexibilização das relações de trabalho, fragilização de formas contratuais relativamente estáveis e erosão das garantias aos trabalhadores ( Carelli e Oliveira, 2021CARELLI, R.; OLIVEIRA, M. (2021). As Plataformas Digitais e o Direito do Trabalho: como entender a tecnologia e proteger as relações de trabalho no Século XXI. São Paulo, Dialética. ).

O último fator refere-se à crise social e econômica aprofundada pela pandemia da covid-19, catalisando processos que já estavam em curso atrelados à precarização e à informalização do trabalho. O desemprego e a necessidade de complementar renda levaram muitos trabalhadores a se engajar no trabalho plataformizado para a garantia de sobrevivência. Este é o caso das centenas de milhares de entregadores de aplicativo. Pesquisas têm demonstrado que houve crescimento da procura por essa atividade (Abílio, Amorim e Grohmann, 2021; Machado e Zanoni, 2022MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (2022). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos . Curitiba, UFPR – Clínica Direito do Trabalho. ; Véras de Oliveira e Festi, 2023VÉRAS DE OLIVEIRA, R.; FESTI, R. C. (2023). Entregadores de aplicativos no Brasil: entre a subordinação e a “autonomia”. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, v. 13, n. 1. ), que não foi interrompida, pois considerada essencial, e que, portanto, caracterizou-se como uma oportunidade para aqueles que se viram sem trabalho ou com renda insuficiente. Com o aumento no número de trabalhadores, houve queda nos rendimentos e aumento das jornadas para a maioria dos entregadores (Abílio, Amorim e Grohmann, 2021).

Esse espraiamento recente das plataformas digitais, que engajam milhares de trabalhadores somente na metrópole de São Paulo,1 1 Segundo dados fornecidos à CPI dos Aplicativos da Câmara Municipal, eram 563 mil motoristas de aplicativos ativos cadastrados na cidade ( Rodrigues, 2021 ). Já o Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipal do Estado de São Paulo (Sindimoto SP) estima 280 mil entregadores de aplicativos (de moto ou bicicleta) na região da Grande São Paulo ( Saraiva, 2020 ). principalmente nos aplicativos de transporte individual e de entrega, ao mesmo tempo em que expõe desigualdades já existentes no espaço urbano, também produz novas práticas espaciais e relações cotidianas, reconfigurando morfologias urbanas que vêm ganhando grande expressividade.

Nesse contexto, o objetivo deste artigo é descrever e analisar novas dinâmicas da relação entre trabalho e cidade disparadas pela expansão do trabalho plataformizado. De modo específico, serão evidenciados os fluxos urbanos de entregadores de aplicativo pela metrópole de São Paulo, que, através dos deslocamentos empreendidos por esses trabalhadores entre os locais de moradia e as centralidades com alta potencialidade para entregas, revelam novos mecanismos de (re)produção das desigualdades centro-periferia. Tais fluxos urbanos serão analisados por meio de sua inscrição em relações de trabalho que se realizam pela dispersão de milhares de trabalhadores just in time (Abílio, 2020a; De Stefano, 2016DE STEFANO, V. (2016). The rise of the "just-in-time workforce": on-demand work, crowdwork and labour protection in the "gig-economy". International Labor Office, Inclusive Labour Markets, Labour Relations and Working Conditions Branch. Conditions of work and employment series, n. 71, Genbra. Disponível em: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/---travail/documents/publication/wcms_443267.pdf. Acesso em: 25 ago 2023.
http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/...
) pela metrópole, ancoradas por uma gestão algorítmica que somente se efetiva por um rigoroso controle do tempo, do território e do próprio trabalho.

A pesquisa tem sido desenvolvida no âmbito do projeto de cooperação internacional Fapesp-ANR “Zonas cinzentas e território: a transformação do trabalho e a figura emergente do trabalhador de plataforma: uma comparação França-Brasil” (Regreyz&Co),2 2 O projeto “Zonas cinzentas e território: a transformação do trabalho e a figura emergente do trabalhador de plataforma: uma comparação França-Brasil” é financiado por meio de um convênio entre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e a Agence Nationale de la Recherche (processo Fapesp 2021/04086-3). cujo propósito geral é investigar, a partir da abordagem heurística das zonas cinzentas do trabalho, as modulações entre velhas e novas formas de precariedade inscritas nas condições de vida e na atividade de entregadores de aplicativos, nos contextos distintos do Brasil e da França. Para isso, a imersão nos cotidianos e práticas de trabalho tem sido um esforço fundamental para a prospecção de material empírico que permita o esforço comparativo. Neste texto, apresenta-se, então, parte do trabalho empírico realizado em São Paulo, com incursões etnográficas e entrevistas em diversos locais de concentração de entregadores, de janeiro de 2022 a março de 2023. Nesse período, foram realizadas trinta e quatro entrevistas semiestruturadas e mais de uma centena de conversas informais com entregadores. A partir dos dados cedidos por esses trabalhadores e obtidos em levantamento documental sobre as empresas de plataforma, também foi possível elaborar o material cartográfico que será apresentado.

O artigo está dividido em três seções, além da introdução e das considerações finais. A primeira delas aborda brevemente as dinâmicas cotidianas do trabalho, mostrando que a flexibilidade e a informalidade das relações de trabalho plataformizadas se realizam também por um incisivo controle do tempo e do espaço. Na segunda, procuramos detalhar e representar os fluxos urbanos especialmente dos cicloentregadores, articulando o trabalho nas e pelas plataformas digitais, as condições de vida desses trabalhadores e o próprio espaço urbano. Por fim, na última seção, evidencia-se uma importante contradição que atravessa o trabalho por plataformas digitais: ao mesmo tempo que são produzidas e reproduzidas formas ultraprecarizadas de engajamento laboral, também há resignação ou, ao menos, consentimento por parte desses entregadores, contribuindo para legitimar e difundir novas formas de controle, gestão e subordinação dos trabalhadores.

Trabalho plataformizado: controle pela instabilidade

Heiland (2021)HEILAND, H. (2021). Neither timeless, nor placeless: control of food delivery gig work via place-based working time regimes. Human Relations, v.75, n.9, pp. 1824-1848. DOI: https://doi.org/10.1002/hrm.22168.
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, recuperando a fórmula marxista, argumenta que uma dimensão central dos serviços plataformizados de entrega se encontra na “anulação do espaço pelo tempo (Marx, 2015)”, visto que a execução da “última milha” ( the last mile ), ou seja, a entrega do produto nas mãos do cliente, é um importante desafio para o setor. Segundo o autor, esse momento se torna uma espécie de gargalo por se mostrar mais resistente à racionalização e ao controle, sendo uma das etapas mais custosas do processo logístico. Esse é o desafio técnico e econômico que as empresas de aplicativo investem para superar, racionalizando a coordenação entre restaurantes, entregadores e consumidores. A gestão algorítmica do trabalho no setor de entregas visa incidir justamente sobre a redução de custos e maior controle do trabalhador na execução dessa tarefa.

Uma série de estudos tem, então, discutido os mecanismos que possibilitam o controle da massa de trabalhadores dispersos engajados nessa rede (Griesbach, Elliott-Negri e Milkman, 2019; Veen, Barratt e Goods, 2020; Abílio, Amorim e Grohmann, 2021; Heiland, 2021HEILAND, H. (2021). Neither timeless, nor placeless: control of food delivery gig work via place-based working time regimes. Human Relations, v.75, n.9, pp. 1824-1848. DOI: https://doi.org/10.1002/hrm.22168.
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). Entre os aspectos destacados, evidenciam-se a própria estrutura tecnológica do controle algorítmico e os sistemas de avaliações, recompensas e bloqueios que permitem uma gestão extremamente flexível e arbitrária da força de trabalho. Central para isso é o modelo de remuneração do trabalho na forma de pagamento por entregas realizadas a trabalhadores constantemente disponíveis, ou seja, a mobilização de trabalhadores just in time ( De Stefano, 2016DE STEFANO, V. (2016). The rise of the "just-in-time workforce": on-demand work, crowdwork and labour protection in the "gig-economy". International Labor Office, Inclusive Labour Markets, Labour Relations and Working Conditions Branch. Conditions of work and employment series, n. 71, Genbra. Disponível em: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/---travail/documents/publication/wcms_443267.pdf. Acesso em: 25 ago 2023.
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; Abílio, Amorim e Grohmann, 2021). A relação de subordinação do trabalho ao capital é anunciada como uma relação entre dois atores livres que se encontram no mercado da oferta e demanda. Remunera-se apenas pelo serviço efetivamente realizado, liberando a empresa de arcar com os “tempos mortos” da jornada em que os entregadores comumente permanecem mais de 10h disponíveis, por vezes sem descanso semanal.

Segundo dados de pesquisa interna encomendada pelo iFood ao Instituto Locomotiva, revelados pela Agência Pública em 2022,3 3 Disponível em: < https://apublica.org/2022/08/ifood-nao-revelou-detalhes-da-jornada-de-trabalho-de-entrega dores-na-cpi-dos-apps>. Acesso em: 5 jan 2023. 61% dos entregadores cadastrados na plataforma (que é a maior do setor no Brasil) declararam trabalhar 7 dias por semana. Além disso, cerca de 47% dos entregadores disseram trabalhar mais de 10 horas por dia, e 17% fazem uma jornada de mais de 12 horas ( Cícero, 2022CÍCERO, J. (2022). iFood tem contrato que prevê direitos trabalhistas. Agência Pública, 22 maio. Disponível em: < https://apublica.org/2022/05/sem-que-entregadores-saibam-ifood-tem-contrato-que-preve-direitos-trabalhistas/ >. Acesso em: 13 fev. 2023.
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). Esses dados expressam não apenas uma extensão da jornada de trabalho, mas a própria implosão das balizas que definem tal jornada, que passa a ter como limite fundamental a disposição e a capacidade física dos trabalhadores.

As empresas de plataforma afirmam ser simplesmente mediadoras entre os clientes e os trabalhadores, considerados como “parceiros” ou “colaboradores”, os quais teriam supostamente a autonomia para trabalhar quando, como e se quiserem. Não haveria, portanto, uma relação de subordinação e configuração de vínculo empregatício. No entanto, trabalhadores dependem efetivamente das plataformas digitais para sua manutenção econômica, e se identifica uma assimetria nítida de poder entre as empresas e os trabalhadores ( Kalil, 2020KALIL, R. B. (2020). A regulação do trabalho via plataformas digitais. São Paulo, Blucher. ). Estes são submetidos a avaliações e ranqueamento constantes de sua atividade ( Figuras 1 e 2 ), não tendo conhecimento e controle das regras do jogo que incidem sobre a distribuição do serviço (quem receberá, por exemplo, determinada corrida ou entrega), sobre sua remuneração ou sobre o andamento de seu próprio trabalho.

Figura 1
– Captura de tela do aplicativo Rappi

Figura 2
– Captura de tela do aplicativo iFood

Assim, outro aspecto crucial do processo de gestão plataformizada da força de trabalho identifica-se na capacidade das empresas de plataforma de “definir as regras do jogo sem fixá-las” (Abílio, Amorim e Grohmann, 2021, p. 39). Essa extrema flexibilidade no uso racionalizado da força de trabalho no tempo e no espaço é conquistada por meio do gerenciamento algorítmico do trabalho, que mobiliza processos automatizados de coleta e processamento de grandes quantidades de dados, envolvendo tanto dinâmicas georreferenciadas de consumo até padrões de comportamento, deslocamentos e interação dos entregadores com as plataformas.

A partir desse volume de informações e da capacidade técnica de processá-los, e com a condição de uma massa de trabalhadores sem contrato e sem direitos, as plataformas são capazes de incidir sobre aumento, diminuição, localização espacial e jornada dessa força de trabalho. Para isso, mobilizam recursos como alterações constantes no valor das remunerações, bloqueios e desligamentos arbitrários, assim como o estabelecimento de zonas dinâmicas, com o aumento das bonificações em lugares e horários de maior demanda (principalmente em situações que desestimulariam a realização do trabalho, como momentos de chuva intensa e enchentes).4 4 Essas bonificações são chamadas de promoções pelos entregadores. Obtivemos informações do aplicativo iFood, nos smartphones, de entregadores registrando que estes recebiam cerca de R$3,00 a mais por entrega durante os períodos e zonas de promoções. Geralmente, em dias de chuva e em regiões e períodos de maior demanda, como as noites de sextas-feiras e fins de semana ou, ainda, em eventos esporádicos nos quais há grande demanda e uma quantidade menor de trabalhadores, como nos dias de jogo do Brasil na Copa do Mundo em 2022, quando as promoções ofereciam um acréscimo de R$8,00 por entrega. É consenso entre os entregadores que trabalhar durante a oferta de promoções gera impacto substancial sobre sua renda mensal.

A quantidade de entregas pode variar bastante, dependendo, ao menos: a) da demanda e distribuição de pedidos onde se realizam as entregas; b) do tempo de aprovação do cadastro de cada entregador, já que os mais antigos tendem a receber mais entregas se estiverem com boa pontuação no aplicativo; c) do dia de semana, uma vez que há mais pedidos às sextas-feiras e aos fins de semana, e do dia do mês, com mais pedidos no início de cada mês, quando geralmente as famílias recebem pagamento; d) do horário, com maior demanda no período noturno em bairros residenciais e para almoço e café da manhã em bairros comerciais; e) da jornada diária de cada trabalhador, que pode ultrapassar 16 horas; f) da capacidade física e experiência do cicloentregador ou do motoboy (que implica aspectos como a facilidade de circulação pelos espaços da cidade e melhor manejo dos empecilhos para coletar e, sobretudo, entregar as mercadorias); e g) da modalidade de cadastro do entregador (se como “nuvem” ou “OL”, como será detalhado na próxima seção do artigo).

É evidente, então, que esses trabalhadores just in time estão submetidos a uma ampla instabilidade no exercício do trabalho. Há uma completa ausência de regulamentações sobre os limites da jornada e garantias mínimas de condições seguras para o trabalho. É bastante nítido, particularmente nos motoboys, os riscos de acidentes. Segundo Ribeiro (2022)RIBEIRO, P. V. (2022). Motociclistas são 70% dos internados no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, diz médica na CPI dos Aplicativos. The Intercept Brasil, 16 dez. Disponível em: <https://theintercept.com/2022/12/12/entregadores-de-apps-sao-70-dos-internados-no-instituto-de-ortopedia-e-traumatologia-do-hospital-das-clinicas-diz-medica/ >. Acesso em: 14 mar 2023.
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, a partir de dados da CPI dos Aplicativos da Câmara Municipal de São Paulo, os motoboys correspondiam a 20%, em 2015 e 2016, dos internados no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da USP. Já, em 2022, representaram 70% dos atendimentos do setor de traumas ( Ribeiro, 2022RIBEIRO, P. V. (2022). Motociclistas são 70% dos internados no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, diz médica na CPI dos Aplicativos. The Intercept Brasil, 16 dez. Disponível em: <https://theintercept.com/2022/12/12/entregadores-de-apps-sao-70-dos-internados-no-instituto-de-ortopedia-e-traumatologia-do-hospital-das-clinicas-diz-medica/ >. Acesso em: 14 mar 2023.
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).

Os custos dos instrumentos necessários para o exercício da atividade estão geralmente sob responsabilidade dos trabalhadores. Os entregadores precisam arcar com uma série de equipamentos essenciais que raramente são fornecidos pelas empresas de plataforma, desde os mais evidentes, como os meios de locomoção (motocicletas e bicicletas), até aqueles menores mais fundamentais para a atividade, como a bag (mochila térmica), capacete, capa de chuva e um smartphone com GPS preciso, bateria durável e acesso pago à internet móvel, bem como a alimentação diária. O conjunto desses custos captura parcela significativa dos rendimentos desses entregadores, o que induz à realização de maiores jornadas de trabalho para compensar essa redução.

O tempo dedicado ao trabalho torna-se ainda mais extenso quando consideramos que grande parte dos entregadores de aplicativos em São Paulo é moradora das periferias da cidade, tal como identificado em nossa pesquisa e em outras investigações (Abílio, 2020a; Braga e Silva, 2022BRAGA, R.; SILVA, D. (2022). The meanings of uberism: Work platforms, informality and forms of resistance in the city of São Paulo. Revista de Ciências Sociais Política & Trabalho, n. 56, pp. 118-136. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/article/view/61446. Acesso em: 11 mar 2023.
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). Assim, além dos tempos não remunerados em que estão disponíveis para as plataformas (tempos de espera entre entregas e durante as entregas, ao aguardar o pedido ser entregue pelo restaurante ou serem recebidos pelo cliente), os entregadores, sobretudo os que fazem uso de bicicletas, ainda enfrentam horas de deslocamento de seus locais de habitação até as centralidades de maiores demandas para os serviços de entrega (regiões de maior poder aquisitivo). É nesse cenário que identificamos a importância de pensar articuladamente a gestão plataformizada do trabalho e a reprodução de desigualdades urbanas. A seguir, apresentaremos com maior ênfase dados obtidos na nossa pesquisa de campo, que demonstram empiricamente a profundidade dessa conexão.

Dinâmicas cotidianas do trabalho: controle do tempo e espaço

O iFood tem se consolidado como a principal empresa do setor de entregas por aplicativo, no Brasil, com mais de 200 mil trabalhadores cadastrados.5 5 Informação disponível em: < https://news.ifood.com.br/em-meio-a-alta-dos-combustiveis-ifood-aumenta-repasse-a-200-mil-entregadores/> . Acesso em: 12 mar 2023. Por isso, a grande maioria dos entregadores que encontramos em campo está vinculada a essa empresa. Importa registrar que existem duas formas de engajamento na atividade de entrega do iFood: nuvem ou OL, sigla de Operador Logístico. O operador logístico é uma empresa intermediária entre a empresa da plataforma e os entregadores, responsável pelas chamadas subpraça ou sub-regiões específicas da cidade. Os entregadores nuvem podem entregar onde preferirem e ficam disponíveis para entrega, após aprovação do cadastro, assim que fazem o login no aplicativo. O pagamento é feito semanalmente e o recebimento das entregas e do pagamento, diretamente com a plataforma. Já os entregadores OL apenas podem retirar pedidos nas áreas delimitadas em cada subpraça e podem receber por dia (com pagamento de uma taxa), semana ou quinzena. Os OL, porém, têm prioridade na distribuição dos pedidos, de acordo com informações consensuais entre entregadores entrevistados (OL e nuvem).

Muitos entregadores, pelo que se constatou em trabalhos de campo, aderem ao sistema OL para aprovar o cadastro rapidamente, receber mais entregas por dia do que os entregadores nuvem ou por necessitar do pagamento diário. Um funcionário da empresa, o chamado líder da praça, coloca cada entregador em seu turno de trabalho: a partir de enquetes elaboradas no Google Forms e enviadas em grupos de WhatsApp ou Telegram, os entregadores informam em quais horários preferem trabalhar naquele dia ou no dia seguinte, e o líder da praça indica, no aplicativo do iFood, os entregadores responsáveis por determinada subpraça naquele turno de trabalho. Por ficarem responsáveis por garantir que certa quantidade de entregadores esteja disponível em cada subpraça nos dias e horários determinados pelo iFood, as OLs recebem um percentual sobre cada entrega.6 6 As intermediárias OLs são criadas muitas vezes por entregadores que acabaram se destacando e receberam um convite do iFood para “criar uma empresa”. Tais escolhas dos supervisores ou líderes de OL asseguram, ao iFood, um controle também sobre a dinâmica da própria OL, ao garantir que, nessas intermediárias, haja determinado perfil de supervisor ou líder, alinhado a seus discursos e demandas. O iFood, além de assegurar as entregas por meio de uma empresa intermediária, criada por sua própria iniciativa, acaba também se esquivando de processos trabalhistas, uma vez que, nessas OLs, há relações contratuais que preveem explicitamente direitos trabalhistas.

Segundo dados cedidos pelo iFood à Agência Pública, 20% de seus trabalhadores seriam engajados como OL em 2020. Trabalhos de campo e as entrevistas, no entanto, pareceram indicar uma proporção maior e crescente de OLs, ao menos no último semestre de 2022. Entrevistas com líderes de OLs realizadas em São Paulo, em junho de 2022, indicavam de 30% a 50% a quantidade de entregadores engajados como OLs em relação aos engajados como nuvem. Na cidade de São Paulo, ainda segundo entrevistas, são de 15 a 700 trabalhadores por OL.

Muitos entregadores, especialmente no segundo semestre de 2022, também relataram ter aderido ao sistema OL porque como nuvem não estavam mais recebendo chamadas. Além disso, o fato de como nuvem receberem semanalmente e como OL poderem receber por dia, ao menos desde meados de 2022, parece ter atraído muitos entregadores para essa forma de engajamento. Nesse sentido, a própria vulnerabilidade na vida cotidiana pode levar a essa forma de engajamento, não somente por receberem mais entregas como OL, mas também por precisarem de um retorno mais rápido de seus rendimentos. Trabalhadores que recebem por dia, em algumas OLs, podem “folgar” somente um dia por semana e precisam cumprir todos os turnos escolhidos, diferentemente daqueles que optam pelo pagamento semanal ou mesmo quinzenal, que, em algumas OLs, acabam tendo mais flexibilidade para ter mais dias de folga e não ficar no turno, se assim desejarem. Pode-se concluir, a partir disso, que quanto maior e mais imediata a necessidade do trabalhador, maior seu grau de subordinação às OLs.

O monopólio de entregas do iFood na cidade de São Paulo7 7 O iFood detinha 83% da participação do mercado brasileiro em 2021, seguido pela Rappi, com 13% ( Petropouleas, 2022) . Machado e Zanoni (2022) apontam, por meio de outra metodologia, uma fatia menor: de 58% dos trabalhadores de entrega do modelo três pontas (caracterizado por deslocamentos que abrangem a empresa-aplicativo, a empresa fornecedora, como um restaurante ou um mercado, e o cliente final) no Brasil em junho de 2021. Vale destacar que, em fevereiro de 2023, o iFood perdeu a exclusividade com grandes redes de restaurantes, após decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e de acusações de concorrência desleal por parte de outras empresas, como a Rappi (G1/Reuters, 2023). Essa e outras medidas do Cade podem enfraquecer o monopólio do iFood em São Paulo, em dinâmicas que possivelmente, caso de fato ocorram, só serão apreendidas em trabalhos de campo e entrevistas no segundo semestre de 2023, após o prazo de seis meses, dado ao iFood, para implementar tais mudanças. e o possível aumento da forma de engajamento dos trabalhadores no sistema OL observado ao menos até dezembro de 20228 8 Em dezembro de 2022, foi decretada a falência a OL SIS Motos, que, segundo reportagem de Moncau (2022) , era a maior OL do Brasil, com filiais em 24 estados do Brasil e operando com 5 mil entregadores. A falência da SIS Motos e de outras OLs devido, segundo relatos em campo, ao pagamento de direitos trabalhistas a entregadores (que conseguiram comprovar a configuração de vínculo empregatício), não necessariamente aponta para o fim das OLs, uma vez que outras empresas OLs podem surgir, inclusive a partir de convites do próprio iFood, para substituir aquelas que faliram. são indícios de limites dessa instantaneidade e autossuficiência algorítmica das plataformas digitais. O iFood intensifica – e ao mesmo tempo evidencia os limites da gestão pelos algorítmicos – seu controle sobre uma massa de trabalhadores just in time , ao delimitar subpraças e assegurar que haja determinado número de entregadores em cada uma delas, por meio do controle humano e aproximado efetivado pelas OLs. Essas revelam estratégias sofisticadas de controle territorial.

O mapa da Figura 3 é de uma operadora logística que atua em São Paulo e é divulgado para os entregadores por meio de questionário no Google Forms para que escolham em qual subpraça desejam atuar.

Figura 3
– Delimitação de subpraças realizada por uma Operadora Logística

Nos trabalhos de campo, foi possível observar não somente um controle do território, como também um forte controle do tempo. Há a imposição de quantos minutos o entregador tem para chegar ao restaurante ou a localização do cliente (sob risco de penalizações) ( Figura 4 ), como também um controle que o entregador precisa ter do seu próprio trabalho: é preciso, no caso da Rappi, reservar os horários que em estará logado no aplicativo ( Figura 5 ) ou, no caso dos cicloentregadores do iFood, agendar a retirada da bicicleta compartilhada que será utilizada no dia seguinte ( Figura 6 ). Neste último caso, foi frequente o relato dos entregadores sobre a necessidade de acessar o aplicativo meia-noite, sob o risco de ficarem sem bicicleta no dia seguinte. No caso dos trabalhadores engajados como OL, é necessário também responder a enquetes diárias nos grupos de WhatsApp ou Telegram com os turnos de trabalho. Alguns dos entregadores entrevistados comentam deixar o celular para despertar para não perder a enquete e deixar de “ficar no turno” ( Figura 7 ).

Figura 4
– Tempo estipulado pelo aplicativo iFood a ser percorrido por entregador

Figura 5
– Reserva de horários para trabalho no aplicativo da Rappi

Figura 6
– Reserva de turno dos trabalhadores engajados em sistema OL do iFood

Figura 7
– Reserva de bicicleta compartilhada da base do iFood Pedal

A partir das diversas formas de controle do trabalho e do território realizadas por essas empresas de plataforma, pode-se afirmar, conforme Tozi (2020)TOZI, F. (2020). Da nuvem ao território nacional: uma periodização das empresas de transporte por aplicativo no Brasil. Geousp – Espaço e Tempo (on-line), v. 24, n. 3, pp. 487-507. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/168573 >. Acesso em: 14 mar 2023.
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, que as plataformas digitais são também plataformas territoriais, gerenciando um trabalho just in time e just in place (Tozi, Duarte e Castanheira, 2021). A plasticidade da acumulação flexível ( Harvey, 2008HARVEY, D. (2008). Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural . São Paulo, Loyola. ) realiza-se, nesse sentido, por meio da atualização de elementos associados à rigidez fordista, como o incisivo controle do tempo e do espaço. Nesse trabalho plataformizado, no entanto, as mediações formais e os dispositivos de uma regulação coercitiva do trabalho, que caracterizaram o desenvolvimento da economia industrial, como o relógio de ponto, cedem lugar a outras e sofisticadas formas de controle que, embora não estejam mais marcadas pelo confinamento ao local de trabalho, implicam novas estratégias de administração do tempo e também do espaço, mais flexíveis e dissimuladas.

Os trabalhadores engajados nas e pelas plataformas digitais precisam não somente gerenciar o próprio tempo (realizando reservas nos aplicativos das bicicletas compartilhadas e do horário de trabalho no dia seguinte, prolongando suas jornadas de trabalho e intensificando o emprego de sua força de trabalho quando há bonificações, etc.), como também adotar estratégias vinculadas ao território: onde aguardar mais pedidos e quais táticas escolher em relação aos próprios deslocamentos. Como será detalhado na próxima seção, essas táticas no espaço e no tempo praticadas pelos entregadores são influenciadas diretamente pela centralização e pelo gerenciamento dessas empresas sobre a cidade, que definem ou contribuem para configurar territórios de trabalho desses trabalhadores pela metrópole. Cabe também destacar que fica no poder dessas empresas o acesso a imensuráveis dados georreferenciados produzidos pelos deslocamentos diários de milhares de trabalhadores pelas vias públicas da cidade. Essas informações são cedidas compulsoriamente pelos trabalhadores durante o exercício do seu trabalho e revelam muito a respeito da dinâmica urbana (como trajetos urbanos, uso de ciclovias, no caso dos entregadores de bicicleta, e trânsito, especialmente para os entregadores de moto).

Como afirma Abílio (2020b), essas empresas plataformizadas conseguem efetivar suas estratégias por meio de mecanismos de dispersão, centralização e controle. Tal controle do território realizado pelas empresas de plataforma é ancorado em uma constante busca para diminuir ao mínimo possível seus custos, repassados para o próprio trabalhador, e a propriedade de ativos fixos. Nesse sentido, ao mesmo tempo que essas empresas de plataforma contam com um elevado grau de desenvolvimento tecnológico, o que corrobora o controle e o gerenciamento de um imenso contingente de trabalhadores just in time , também desenvolvem estratégias territoriais extremamente plásticas. Casos emblemáticos envolvem as repentinas saídas do Brasil das empresas de transporte de passageiros Cabify, em junho de 2021, e da empresa Uber Eats, de entregas, em março de 2022.

Em trabalhos de campo realizados ao longo de todo o ano de 2022, também foi possível observar uma rápida reconfiguração das localizações dos pontos de bicicletas compartilhadas do iFood em São Paulo. Na Figura 8 , nota-se que, somente em 2022, cinco bases de retirada de bicicletas elétricas para entregadores do iFood foram desativadas e, ao menos até março de 2023, estavam concentradas somente em Pinheiros (rua Cardeal Arcoverde) e Jardim Paulista (rua Augusta), indicando maior centralização dos fluxos urbanos desses trabalhadores para ter acesso ao instrumento de trabalho. Essas mudanças relativamente ágeis de fechamento de uma base e abertura de outra só são possíveis pelas estruturas provisórias, facilmente desmontáveis e de baixo custo ( Figura 9 ).9 9 Ver Lima (2022) e Rosin (2023) para mais detalhes sobre o funcionamento das bases do iFood Pedal e de sua infraestrutura.

Figura 8
– Mapa das bases do iFood Pedal desativadas e ativas, em 2023

Figura 9
– Foto de base do iFood Pedal da rua Augusta

Fluxos urbanos e a relação centro-periferia

As figuras emergentes dos trabalhadores em plataformas produzem e materializam fluxos urbanos a partir da necessidade de se deslocarem rapidamente pelo espaço urbano. Esses percursos podem ser explicados por conteúdos do espaço urbano e pelas condições do trabalho just in time dos entregadores. Diante da precariedade da atividade (na qual precisam arcar com os riscos e custos) e da baixa remuneração de um trabalho sob demanda (para cada tarefa/entrega realizada), os entregadores procuram intensificar o emprego da própria força de trabalho, otimizando seus deslocamentos e prolongando as jornadas diárias de trabalho. Para isso, buscam não somente estar em regiões com maior demanda de pedidos, aumentando as possibilidades de receberem mais entregas por dia e diminuindo o intervalo entre cada uma delas, como também em regiões onde as bonificações são mais frequentes, de modo a aumentar o que ganham por entrega.10 10 Um dos aspectos vinculado especificamente aos cicloentregadores é a concentração do meio de trabalho, no caso das bicicletas compartilhadas disponíveis nos pontos iFood Pedal e bicicletas convencionais do Itaú. Segundo Fioravanti (2022) , no vetor sudoeste, que corresponde a 3% da área do município de São Paulo, estava metade das bicicletas compartilhadas de janeiro a maio de 2022.

Nesse sentido, destacam-se três elementos que ajudam a explicar os deslocamentos em busca da redução dos tempos improdutivos do trabalho, seja dos entregadores de bicicleta seja dos motoboys. O primeiro deles é a evidente desigualdade social estabelecida entre os consumidores de delivery , especialmente de comida, e os que trabalham por meio das plataformas digitais. Seguramente, os entregadores também podem ser consumidores em determinados momentos. Mas o que pretendemos destacar aqui é que, além do fato dos clientes de delivery solicitarem entregas de suas casas, no geral, em áreas mais valorizadas da metrópole (Mapa 2), também realizam pedidos em seus locais de trabalho, especialmente no almoço e café da manhã, e em centralidades importantes do setor corporativo (como nas avenidas Faria Lima e Luís Carlos Berrini), o que revela de configurações espaciais das desigualdades urbanas.

O segundo elemento é a concentração de restaurantes em determinadas regiões da metrópole, como nos distritos de Itaim Bibi e de Pinheiros. Especificamente em relação aos cicloentregadores, é crucial estarem nas regiões não somente de maior demanda de pedidos, mas também nas de onde irão retirá-los (Mapa 2). Isso porque realizam entregas menores, no geral de até 3 km entre o restaurante e a casa do cliente. A concentração de restaurantes contribui para criar “zonas de pouso” desses entregadores, como nas proximidades ou estacionamentos de shoppings centers ou em demais locais onde se reúnem e aguardam mais pedidos – ou, como dizem, o aplicativo tocar ( Figuras 10 e 11 ).11 11 Esses locais são geralmente próximos de pontos comerciais onde podem carregar o celular, esquentar comida, beber água ou utilizar o banheiro. Além de aguardar pedidos, realizam refeições (como o almoço, no meio da tarde, após o horário de pico das entregas) e manutenção de suas bicicletas próprias convencionais ou troca de óleo das motos, além de tecer relações de sociabilidade e compartilhar estratégias de exercício da atividade. É interessante destacar que esses pontos de encontro e pouso dos entregadores são geralmente distintos entre os cicloentregadores e os motoboys, ainda que próximos uns dos outros.

Figura 10
– Foto de zona de pouso de motoboys

Figura 11
– Foto de zona de pouso de cicloentregadores

Já o terceiro elemento evidenciado neste texto é o sistema de bonificações em regiões delimitadas da cidade, as “promo por zona”, no caso do iFood. Esse sistema contribui para os deslocamentos de trabalhadores de diversos pontos da Região Metropolitana não somente onde podem realizar mais entregas, mas também onde têm maior ganho em cada uma delas. Conforme informações coletadas em trabalhos de campo e no mapa de Fioravanti (2022)FIORAVANTI, L. M. (2022). Concentração de entregadores nas regiões mais ricas da capital paulista. Le Monde Diplomatique, 5 out. Disponível em: < https://diplomatique.org.br/concentracao-de-entregadores-nas-regioes-mais-ricas-da-capital-paulista/ >. Acesso em: 6 mar 2023.
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, grande parte da Zona Leste não é abrangida por essas áreas de bonificação. Assim, os entregadores precisam exercer deslocamentos diários entre o local de moradia, geralmente nas periferias da cidade, para as centralidades com alta possibilidade de realizar entregas.

Esses deslocamentos para as centralidades da metrópole, já representados por Fioravanti (2023)FIORAVANTI, L. M. (2023). Espaço urbano e plataformas digitais: deslocamentos e condições de trabalho dos entregadores de bicicleta da metrópole de São Paulo. GEOUSP, no prelo. e debatidos por Rizek, Rangel e Fioravanti (2023)FIORAVANTI, L. M. (2023). Espaço urbano e plataformas digitais: deslocamentos e condições de trabalho dos entregadores de bicicleta da metrópole de São Paulo. GEOUSP, no prelo. , eram estimulados pelo próprio site do iFood voltado para os entregadores,12 12 O iFood mantém um site denominado “Portal do entregador”, no qual disponibiliza informações e propagandas voltadas para os entregadores e eventuais interessados em trabalhar com a plataforma. que, no primeiro semestre de 2022, destacava as “top regiões para entrega”. A partir da Figura 12 , elaborada a partir de imagens disponibilizadas nesse site , observa-se claramente que o centro e certos distritos, como Pinheiros e Itaim Bibi, são indicados como regiões recomendadas para fazer entregas. Embora os critérios adotados pelo iFood não tenham sido explicitados, a maior parte delas coincide com aquelas onde já existe concentração de entregas, restaurantes, bicicletas compartilhadas e bonificações. Embora, no mapa da Zona Leste (Sapopemba, São Mateus, Vila Prudente e Água Rasa) e Zona Sul (Campo Grande, Socorro, Cidade Dutra e Cidade Ademar), estejam destacadas regiões como recomendadas para entregar por bicicleta, não contam com tanta demanda de pedidos e bonificações ou com qualquer ponto de retirada de bicicletas compartilhadas.

Figura 12
– Melhores regiões para entrega, segundo o iFood, 2022

Esses trabalhadores precarizados just in time gastam tempo e recursos próprios buscando regiões onde possam usar intensivamente sua força de trabalho, em um processo no qual a própria cidade se configura como local de trabalho. As empresas de plataforma pagam um custo ínfimo por aquilo que possibilita concretamente os fluxos desses trabalhadores pelo e no urbano, ou seja, as infraestruturas (como as vias urbanas, arcadas pelo próprio Estado) e os serviços públicos (custeados também pelo trabalhador, como o transporte utilizado pelos cicloentregadores para ter acesso aos pontos de retirada de bicicletas).

Mesmo o pagamento de impostos é reduzido, na medida em que há uma série de brechas legais que permite que essas empresas se proclamem como empresas de tecnologia e não de entregas. O recolhimento do Imposto Sobre Serviços (ISS) não é destinado para as cidades nas quais há mais entregas, mas sim para onde se localiza a sede das empresas. As sedes do iFood, da Rappi, da Loggi e da Uber estão em Osasco, município a oeste da Região Metropolitana, cujo ISS é menor do que o de São Paulo. Com a mudança da sede do iFood para Osasco, a cidade de São Paulo deixa de arrecadar R$82 milhões por ano, segundo Rodrigues (2021)RODRIGUES, R. (2021). Cidade de SP tem 563 mil motoristas de aplicativos ativos, diz Prefeitura; 74% dos carros têm placa da própria cidade. G1. Disponível em: < https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/12/04/cidade-de-sp-tem-563-mil-motoristas-de-aplicativos-ativos-diz-prefeitura-74percent-dos-carros-tem-placa-da-propriacidade.ghtml >. Acesso em: 6 mar 2021.
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a partir da dados da CPI dos Aplicativos.

Os fluxos urbanos a cada entrega

Esses trabalhadores just in time não somente precisam reduzir tempos de espera deslocando-se até onde podem receber mais, como procuram gerenciar e otimizar os deslocamentos realizados no decorrer das entregas, adotando estratégias no tempo e no espaço em relação ao emprego de sua força de trabalho, ponderando sobre quais entregas devem aceitar a partir da taxa mínima oferecida, da distância envolvida (até o restaurante e a até casa do cliente), do trajeto (mais ou menos íngreme, no caso dos cicloentregadores, ou com maior engarrafamento e semáforos, no caso dos motoboys) e do tempo estipulado pelo aplicativo para a realização de cada tarefa (muitas vezes, insuficiente considerando-se a distância e as características do percurso).

Voltar para uma mesma região é necessário no caso dos entregadores em regime de OL, que precisam retirar os pedidos nas subpraças para as quais são destinados ( Figura 13 ). É também uma opção de muitos entregadores nuvem, que retornam a determinadas ruas por já conhecerem os restaurantes e os caminhos a serem percorridos, bem como já terem relações de sociabilidade com demais trabalhadores em certas “zonas de pouso”. Como se verificou em trabalhos de campo, muitos entregadores procuram retornar às regiões que já conhecem e evitam ir muito longe, o que dificultaria também a devolução das bicicletas elétricas no iFood Pedal, para aqueles que a utilizam, e aumentaria o risco de ultrapassar o limite de quatro horas para cada retirada. Essa estratégia facilita otimiza os deslocamentos por dispensar o uso de GPS para chegar ao destino e indicar os locais em que chegam mais chamadas. Conhecer a região também ajuda a evitar os restaurantes que demoram para entregar o pedido. Caso a espera pelo pedido ultrapasse 30 minutos, os entregadores recebem o equivalente à metade da taxa. Para muitos, seria mais compensador usar esse tempo em outra entrega mais rápida.

Figura 13
– Deslocamento de um dia de trabalho de um entregador engajado em sistema de OL, usando bicicleta convencional (não elétrica)

Há um dinamismo e uma complexidade enormes no universo dos deslocamentos empreendidos pelos entregadores. No centro de São Paulo, é frequente o uso de bicicletas próprias, inclusive devido à topografia mais plana que torna menos necessário o uso das bicicletas elétricas compartilhadas, em relação à região da avenida Paulista, por exemplo. Vale destacar que nos calçadões do centro da cidade é possível transitar somente a pé ou de bicicleta, o que explica um menor número de motoboys em determinados lugares da região central. De modo similar, em distritos atravessados por rodovias de intenso movimento e alta velocidade de automóveis, como a rodovia Raposo Tavares (Zona Oeste) e avenida Radial Leste (Zona Leste), é muito mais frequente o uso de motos em relação às bicicletas.

Na região central, também é comum que muitos entregadores utilizem bicicletas motorizadas (bicicleta convencional adaptada com motor a combustão) ou mobilete. Apesar de maiores custos que os das elétricas, estas permitem otimizar o emprego de sua própria força de trabalho e realizar mais entregas. A utilização de cada meio de transporte (bicicleta compartilhada convencional, bicicleta compartilhada elétrica, bicicleta motorizada ou mobilete) implica trajetos diários também diferenciados ( Figura 14 ).

Figura 14
– Mapa representando os deslocamentos realizados em um dia de trabalho a partir de diferentes formas de engajamento de um mesmo entregador de bicicleta, 2022

Observa-se que o uso de bicicleta motorizada permitiu que um entregador percorresse um trajeto bem maior por dia, indo do centro da cidade até o distrito do Itaim Bibi (111km como nuvem). Nesse dia, esse trabalhador fez 20 entregas. Com bicicleta motorizada, mas vinculado a uma OL, realizou 27 entregas, percorrendo uma distância menor (108km), mas em uma jornada de trabalho maior (possivelmente, por escolher no dia anterior quais turnos ficaria logado e por também receber mais pedidos e prolongar o tempo de trabalho para receber mais). Tanto com bicicleta convencional quanto com motorizada, quando esteve engajado como OL, esse entregador retornava para a subpraça da República para voltar a ficar disponível para mais entregas (no caso da OL) ou mesmo por já conhecer a região (no caso de nuvem). O uso da bicicleta convencional, seja como nuvem, seja como OL, foi acompanhado de uma jornada diária de trabalho menor, possivelmente pelo próprio desgaste físico. Como nuvem, com bicicleta convencional, trabalhou quase 2 horas a mais do que como OL, provavelmente buscando realizar mais entregas, que, como OL, obtêm em um intervalo de tempo menor.

O transitar desses trabalhadores é permeado por uma série de constrangimentos para que tenham inclusive seu trabalho assegurado: percorrem rapidamente as vias da cidade, mas frequentemente enfrentam dificuldades para que de fato permaneçam em determinados locais ou transitem dignamente pelos espaços. Foi possível, ao longo do ano de 2022, observar diversos conflitos no uso do espaço. Em mais de um trabalho de campo, trabalhadores comentaram que algumas das tomadas da estação de metrô são desligadas para evitar que permaneçam ali enquanto carregam seus celulares. Também precisam utilizar a entrada de serviço de grande parte dos restaurantes, onde também raramente têm acesso a água, alimentação ou mesmo local para sentar enquanto aguardam o pedido. Quando retiram pedidos em shoppings , na maior parte das vezes, não podem entrar com a bag nas costas, sendo necessário deixá-la nas docas do estacionamento ou mesmo na rua. Em Pinheiros, obtivemos a informação de que dois parklets (área dos restaurantes com mesa e cadeiras nas calçadas) foram retirados para impedir a permanência dos entregadores nesses locais após reclamações de moradores da vizinhança. Já, em Itaquera, um restaurante, inclusive com grande demanda de entregas pelo iFood, bloqueava o sinal da internet móvel do lado externo para impedir que os entregadores ficassem muito próximos, obrigando-os a aguardar em locais mais distantes.13 13 Esses deslocamentos são perpassados por diversos constrangimentos, mas também por microrresistências, como entregar de moto, mas realizar cadastro como entrega por bicicleta (almejando, assim, receber trajetos mais curtos a cada entrega e, dessa forma, também otimizar os deslocamentos e economizar combustível), ou alugar conta de terceiros para continuar o trabalho em caso de bloqueios no aplicativo.

Percepções do trabalho: subordinação e consentimento

Com as sofisticadas tecnologias de controle, as empresas de plataforma têm se mostrado relativamente eficientes na tarefa de mascarar a relação de subordinação. Isso tem sido promovido desde o tratamento dos trabalhadores como “parceiros” e a cuidadosa apresentação do escopo do negócio – sempre como facilitadoras do encontro entre ofertantes de serviços e clientes – até aspectos da execução prática do trabalho, em que os trabalhadores, em tese, poderiam escolher quando trabalhar.

Contudo, como já discutido, os custos de execução do trabalho são repassados aos trabalhadores, que utilizam suas próprias motos, bicicletas, celulares e serviços de internet, e precisam arcar com as despesas relacionadas ao transporte para a região de trabalho e à alimentação durante a jornada. Nesse quadro de evidente precariedade do trabalho, no exercício de longas e incertas jornadas, e de “subsunção real” dos entregadores às plataformas (Abílio, 2017), chama a atenção, no entanto, que muitos dos entregadores transmitam percepções positivas sobre a ocupação.14 14 “Não posso falar mal dos aplicativos”, “Foi por onde comecei”, “Me deram oportunidade”, foram algumas das frases que ouvimos frequentemente durante a pesquisa de campo. Essas introduções, ainda que seguidas de críticas e contrariando outros tantos testemunhos de exploração, surpreenderam-nos por sua repetição. Uma certa postura de gratidão pela chance de trabalhar e obter renda, muitas vezes “escapando” de empregos formais considerados menos atrativos, foi aspecto repetitivo nos relatos coletados. Na pesquisa de campo, o destaque dado às dimensões da autonomia, liberdade e possibilidade de alcançar maior renda do que em outras situações de trabalho foi mais do que frequente.

[...] o bom é que eu sou autônoma, então eu trabalho para mim, eu faço os meus horários, eu escolho o dia que eu venho trabalhar, se eu quiser folgar eu folgo, então acho que eu tenho mais vida, agora, no meu antigo trabalho não, eram 14 horas por dia ( uma hora de almoço e eu fazia coisas além da minha função, aqui eu só entrego e está bom ) , então para mim é melhor, perigoso, mas melhor. (Cicloentregadora)

Eu também amo as entregas, sabia ? É que nem eu falo, trocaria [por um emprego registrado] se fosse para receber 4 mil. "Mas você recebe 4 mil no iFood ?". Não, não recebo, mas eu tenho a minha liberdade . (Cicloentregadora)

Abílio, Amorim e Grohmann (2021) elaboram essa manifestação de autonomia nos termos de um “autogerenciamento subordinado”, entendido como um modo de subjetivação vinculado a processos de subordinação em que os sujeitos se percebem responsáveis por suas próprias condições de vida, convertendo suas estratégias de sobrevivência inventivas em recursos apropriados pelo capital. Essa perspectiva se conecta a um esforço de pensar os sentidos desse trabalho a partir de uma perspectiva do Sul Global e periférica. Os autores identificam, na expansão do trabalho plataformizado, uma generalização dos modos de vida periféricos, cuja gestão da sobrevivência em condições de vida sem garantias modula tanto as trajetórias dos sujeitos como a estrutura do mercado de trabalho.

Como já observado, a ocupação de entrega por aplicativos expandiu-se largamente durante a crise provocada pela pandemia de covid-19. Além disso, a positivação desse trabalho se verifica em um contexto em que o Brasil observa mais de 8,6 milhões de pessoas desempregadas, e cerca de 38,6 milhões na informalidade no último trimestre de 2022 ( IBGE, 2023IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2023). PNAD Contínua - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9173-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-trimestral.html. Acesso em: 9 mar 2023.
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). A categoria dos entregadores cresce trabalhando em longas jornadas e arriscando a vida para atingir uma renda de R$500,00 a R$1.000,00 por semana, em um País em que quase 33 milhões de pessoas estão em insegurança alimentar ( II Vigisan, 2022II VIGISAN (2022). Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. São Paulo, SP, Fundação Friedrich Ebert, Rede Penssan. Disponível em: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf. Acesso em: 9 mar 2023.
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). A precarização geral das condições de vida é um fator relevante para a positivação relativa do trabalho dos entregadores.

Entre os entregadores entrevistados durante a pesquisa, ao longo de todo o ano de 2022, e tanto com motoboys quanto com cicloentregadores, a questão dos rendimentos do trabalho apareceu como uma das principais razões para a positivação desse trabalho. Se situações adversas em outros trabalhos ou mesmo casualidades nas trajetórias pessoais possam ter conduzido os sujeitos a esses mercados, é pela relativa autonomia e possibilidade de maiores rendimentos que eles justificam a permanência nessas atividades. De fato, como registrado, muitos conseguem atingir patamares de renda que dificilmente alcançariam como assalariados no mercado de trabalho formal, sobretudo quando levados em consideração aspectos como escolaridade, formação profissional e qualificações formais. Como estudos sobre as formas de ganhar a vida nas periferias urbanas de São Paulo têm demonstrado ( Telles, 2006TELLES, V. da S. (2006). Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo social , v. 18, pp. 173-195. ; Rizek, 2012RIZEK, C. S. (2012). Trabalho, moradia e cidade: zonas de indiferenciação? Revista Brasileira de Ciências Sociais , v. 27, pp. 41-49. ; Feltran, 2014FELTRAN, G. de S. (2014). Valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo. Caderno CRH , n. 27, pp. 495-512. ), não estão mais disponíveis, para esses trabalhadores, as formas clássicas de emprego formal que mobilizaram gerações em busca de acesso a cidadania, dignidade no trabalho, previdência e mobilidade.

Assim, é preciso considerar o lugar do trabalho plataformizado nas trajetórias ocupacionais desses trabalhadores, majoritariamente sujeitos periféricos. Se, do ponto de vista dos processos de acumulação, a relativa sensação de liberdade pode ser interpretada como mistificação da exploração do trabalho pelo capital, considerar as percepções dos sujeitos permite apreender a experiência e as dimensões simbólicas e subjetivas de pessoas de carne e osso. Como já observado em outras pesquisas ( Braga e Silva, 2022BRAGA, R.; SILVA, D. (2022). The meanings of uberism: Work platforms, informality and forms of resistance in the city of São Paulo. Revista de Ciências Sociais Política & Trabalho, n. 56, pp. 118-136. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/article/view/61446. Acesso em: 11 mar 2023.
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), em muitos casos, a positivação do trabalho precário e desprotegido aparece se contrapondo justamente à situação de submissão que caracteriza o trabalho assalariado, uma condição de submissão que não é apenas relacionada à hierarquia das funções dentro de uma empresa, mas também à indissociável submissão subjetiva, que tende a vir atrelada à situação de venda da força de trabalho, especialmente em contextos de extrema desigualdade como o brasileiro. Trata-se da obrigação não contratual de se submeter a todo um conjunto de ofensas, humilhações e reprimendas percebidas como injustas ( Rangel, 2021RANGEL, F. (2021). A empresarização dos mercados populares: trabalho e formalização excludente . Belo Horizonte, Fino Traço. ).

Percepções como esta acerca das possibilidades concretamente disponíveis em ocupações informais ou empregos formais de baixa qualidade foram expressas por muitos dos cicloentregadores entrevistados. Muitos deles passaram por ocupações comuns entre trabalhadores periféricos na cidade de São Paulo: operadores de telemarketing, funcionários de redes de fast-food , segurança e toda uma sorte de trabalhos informais. Os mesmos discursos de frustração com o cotidiano nos empregos de baixa remuneração, ante pressões, cobranças e experiências de desrespeito por parte de superiores, repetiram-se nos depoimentos. E, diante desse horizonte encurtado de possibilidades de trabalho considerado digno, mesmo a atividade precária e estigmatizada da entrega por aplicativos pode ganhar verniz relativamente positivo no discurso dos sujeitos. Ao mesmo tempo, a ampla vulnerabilidade que marca a vida desses trabalhadores, constrangendo suas aspirações, emerge como condição de possibilidade para a expansão do trabalho plataformizado.

Considerações finais

No exercício de um trabalho precarizado, esses trabalhadores realizam deslocamentos tanto entre seus locais de moradia e as centralidades com alta potencialidade para entregas quanto a cada uma das várias entregas que efetivam por dia. São dinâmicas que, ao mesmo tempo que são responsáveis pela reconfiguração das formas de experimentação do espaço urbano, também reproduzem as desigualdades centro-periferia. A informalidade, a flexibilidade e a precariedade do trabalho dos entregadores engajados por plataformas digitais contribuem para intensificar os onerosos deslocamentos centro-periferia e comprometem parte da jornada desses entregadores somente para que possam tentar garantir ou otimizar o uso de sua própria força de trabalho.

A dispersão desses trabalhadores just in time se realiza pela forte centralização das empresas de plataforma na organização dos fluxos urbanos do trabalho, por meio do estabelecimento de regiões prioritárias de entrega ou nas quais as bonificações são mais frequentes. Nos diversos trabalhos de campo, entrevistas e incursões etnográficas, foi possível apreender que, ao mesmo tempo que essa dispersão ocorre pelos mais avançados recursos tecnológicos, também coloca a necessidade de um rigoroso controle do tempo e do espaço, tanto realizado pelas empresas quanto, em certa medida e compulsoriamente, pelos próprios trabalhadores. Além disso, evidencia os limites dos refinados e enigmáticos mecanismos de controle dessa gestão algorítmica do trabalho, visto o crescente recurso a formas de controle e subordinação direta, próxima e humana, como evidenciado na ação das OLs.

Esse trabalho que opera nos e pelos fluxos urbanos é marcado por uma grande heterogeneidade atrelada às condições de vida, aos modais de transporte e às diversas práticas e formas de mediação. São formas de engajamento laboral que, embora distintas das formas tradicionais de exploração e gestão da força de trabalho, são rigidamente controladas e imersas em uma precariedade que pode ser consentida e mesmo legitimada. Trata-se de um processo no qual a dispersão concentrada dos trabalhadores pelo território se efetiva de maneira fortemente centralizada pelas empresas de plataforma, tendo como condição de possibilidade a intensa vulnerabilidade que marca a vida de grande parcela da classe trabalhadora urbana e periférica.

Referências

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    » https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf

Notas

  • 1
    Segundo dados fornecidos à CPI dos Aplicativos da Câmara Municipal, eram 563 mil motoristas de aplicativos ativos cadastrados na cidade ( Rodrigues, 2021RODRIGUES, R. (2021). Cidade de SP tem 563 mil motoristas de aplicativos ativos, diz Prefeitura; 74% dos carros têm placa da própria cidade. G1. Disponível em: < https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/12/04/cidade-de-sp-tem-563-mil-motoristas-de-aplicativos-ativos-diz-prefeitura-74percent-dos-carros-tem-placa-da-propriacidade.ghtml >. Acesso em: 6 mar 2021.
    https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/notici...
    ). Já o Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipal do Estado de São Paulo (Sindimoto SP) estima 280 mil entregadores de aplicativos (de moto ou bicicleta) na região da Grande São Paulo ( Saraiva, 2020SARAIVA, J. (2020). Total de entregadores na Grande São Paulo tem aumento de 20%. Valor Econômico. jun. Disponível em: < https://valor.globo.com/publicacoes/suplementos/noticia/2020/06/09/total-de-entregadores-na-grande-sao-paulo-tem-aumento-de-20.ghtml >. Acesso em: 11 fev. 2023;
    https://valor.globo.com/publicacoes/supl...
    ).
  • 2
    O projeto “Zonas cinzentas e território: a transformação do trabalho e a figura emergente do trabalhador de plataforma: uma comparação França-Brasil” é financiado por meio de um convênio entre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e a Agence Nationale de la Recherche (processo Fapesp 2021/04086-3).
  • 3
    Disponível em: < https://apublica.org/2022/08/ifood-nao-revelou-detalhes-da-jornada-de-trabalho-de-entrega dores-na-cpi-dos-apps>. Acesso em: 5 jan 2023.
  • 4
    Essas bonificações são chamadas de promoções pelos entregadores. Obtivemos informações do aplicativo iFood, nos smartphones, de entregadores registrando que estes recebiam cerca de R$3,00 a mais por entrega durante os períodos e zonas de promoções. Geralmente, em dias de chuva e em regiões e períodos de maior demanda, como as noites de sextas-feiras e fins de semana ou, ainda, em eventos esporádicos nos quais há grande demanda e uma quantidade menor de trabalhadores, como nos dias de jogo do Brasil na Copa do Mundo em 2022, quando as promoções ofereciam um acréscimo de R$8,00 por entrega. É consenso entre os entregadores que trabalhar durante a oferta de promoções gera impacto substancial sobre sua renda mensal.
  • 5
  • 6
    As intermediárias OLs são criadas muitas vezes por entregadores que acabaram se destacando e receberam um convite do iFood para “criar uma empresa”. Tais escolhas dos supervisores ou líderes de OL asseguram, ao iFood, um controle também sobre a dinâmica da própria OL, ao garantir que, nessas intermediárias, haja determinado perfil de supervisor ou líder, alinhado a seus discursos e demandas. O iFood, além de assegurar as entregas por meio de uma empresa intermediária, criada por sua própria iniciativa, acaba também se esquivando de processos trabalhistas, uma vez que, nessas OLs, há relações contratuais que preveem explicitamente direitos trabalhistas.
  • 7
    O iFood detinha 83% da participação do mercado brasileiro em 2021, seguido pela Rappi, com 13% ( Petropouleas, 2022)PETROPOULEAS, S. (2022). Saída da Uber Eats acirra briga entre iFood e Rappi e preocupa restaurantes. Folha de S.Paulo, 18 fev. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/02/saida-da-uber-eats-acirra-briga-entre-ifood-e-rappi-e-preocupa-restaurantes.shtml >. Acesso em: 1º ago 2022.
    https://www1.folha.uol.com.br/mercado/20...
    . Machado e Zanoni (2022)MACHADO, S.; ZANONI, A. P. (2022). O trabalho controlado por plataformas digitais no Brasil: dimensões, perfis e direitos . Curitiba, UFPR – Clínica Direito do Trabalho. apontam, por meio de outra metodologia, uma fatia menor: de 58% dos trabalhadores de entrega do modelo três pontas (caracterizado por deslocamentos que abrangem a empresa-aplicativo, a empresa fornecedora, como um restaurante ou um mercado, e o cliente final) no Brasil em junho de 2021. Vale destacar que, em fevereiro de 2023, o iFood perdeu a exclusividade com grandes redes de restaurantes, após decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e de acusações de concorrência desleal por parte de outras empresas, como a Rappi (G1/Reuters, 2023). Essa e outras medidas do Cade podem enfraquecer o monopólio do iFood em São Paulo, em dinâmicas que possivelmente, caso de fato ocorram, só serão apreendidas em trabalhos de campo e entrevistas no segundo semestre de 2023, após o prazo de seis meses, dado ao iFood, para implementar tais mudanças.
  • 8
    Em dezembro de 2022, foi decretada a falência a OL SIS Motos, que, segundo reportagem de Moncau (2022)MONCAU, G. (2022). "Sistema jagunço": por que o iFood tenta esconder sua relação com empresas intermediárias (OL)? Brasil de Fato, 14 de abr. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2022/04/14/ifood-tenta-censurar-video-que-mostra-relacao-com-empresas-intermediarias >. Acesso em: 6 mar 2023.
    https://www.brasildefato.com.br/2022/04/...
    , era a maior OL do Brasil, com filiais em 24 estados do Brasil e operando com 5 mil entregadores. A falência da SIS Motos e de outras OLs devido, segundo relatos em campo, ao pagamento de direitos trabalhistas a entregadores (que conseguiram comprovar a configuração de vínculo empregatício), não necessariamente aponta para o fim das OLs, uma vez que outras empresas OLs podem surgir, inclusive a partir de convites do próprio iFood, para substituir aquelas que faliram.
  • 9
    Ver Lima (2022)LIMA, L. (2022). Ifood Pedal: o funcionamento e a localização das bases de empréstimos de bicicletas para os entregadores Ifood em São Paulo. In: ENCONTRO NACIONAL DE GEÓGRAFOS. Anais. Disponível em: < https://www.eng2022.agb.org.br/site/anais?AREA=6#L >. Acesso em: 6 mar 2023.
    https://www.eng2022.agb.org.br/site/anai...
    e Rosin (2023)ROSIN, A. (2023). Trabalho de plataforma: desregulamentações, práticas no urbano e fluxos. Relatório de Qualificação. São Paulo, Universidade de São Paulo. para mais detalhes sobre o funcionamento das bases do iFood Pedal e de sua infraestrutura.
  • 10
    Um dos aspectos vinculado especificamente aos cicloentregadores é a concentração do meio de trabalho, no caso das bicicletas compartilhadas disponíveis nos pontos iFood Pedal e bicicletas convencionais do Itaú. Segundo Fioravanti (2022)FIORAVANTI, L. M. (2022). Concentração de entregadores nas regiões mais ricas da capital paulista. Le Monde Diplomatique, 5 out. Disponível em: < https://diplomatique.org.br/concentracao-de-entregadores-nas-regioes-mais-ricas-da-capital-paulista/ >. Acesso em: 6 mar 2023.
    https://diplomatique.org.br/concentracao...
    , no vetor sudoeste, que corresponde a 3% da área do município de São Paulo, estava metade das bicicletas compartilhadas de janeiro a maio de 2022.
  • 11
    Esses locais são geralmente próximos de pontos comerciais onde podem carregar o celular, esquentar comida, beber água ou utilizar o banheiro. Além de aguardar pedidos, realizam refeições (como o almoço, no meio da tarde, após o horário de pico das entregas) e manutenção de suas bicicletas próprias convencionais ou troca de óleo das motos, além de tecer relações de sociabilidade e compartilhar estratégias de exercício da atividade. É interessante destacar que esses pontos de encontro e pouso dos entregadores são geralmente distintos entre os cicloentregadores e os motoboys, ainda que próximos uns dos outros.
  • 12
    O iFood mantém um site denominado “Portal do entregador”, no qual disponibiliza informações e propagandas voltadas para os entregadores e eventuais interessados em trabalhar com a plataforma.
  • 13
    Esses deslocamentos são perpassados por diversos constrangimentos, mas também por microrresistências, como entregar de moto, mas realizar cadastro como entrega por bicicleta (almejando, assim, receber trajetos mais curtos a cada entrega e, dessa forma, também otimizar os deslocamentos e economizar combustível), ou alugar conta de terceiros para continuar o trabalho em caso de bloqueios no aplicativo.
  • 14
    “Não posso falar mal dos aplicativos”, “Foi por onde comecei”, “Me deram oportunidade”, foram algumas das frases que ouvimos frequentemente durante a pesquisa de campo. Essas introduções, ainda que seguidas de críticas e contrariando outros tantos testemunhos de exploração, surpreenderam-nos por sua repetição. Uma certa postura de gratidão pela chance de trabalhar e obter renda, muitas vezes “escapando” de empregos formais considerados menos atrativos, foi aspecto repetitivo nos relatos coletados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2023
  • Aceito
    29 Maio 2023
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