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Espaços de “lazer” em ambientes de trabalho na “Sociedade de desempenho”

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre a crescente inserção de espaços de lazer em ambientes de trabalho. Parte-se da hipótese de que esses espaços constituem uma forma de apropriação, por parte do empregador, do tempo de não trabalho de seus empregados. As referências conceituais vêm, principalmente, das noções de “Sociedade disciplinar” (Foucault), com a ideia de corpos dóceis conformados pela vigilância, e de “Sociedade de desempenho” (Han), mostrando como a vivência nesses espaços de exploração do tempo livre dos empregados pode ser facilmente confundida com uma experiência de liberdade. Conclui-se assinalando a participação ativa do trabalhador na sua própria exploração e apontando a necessidade de discutir as implicações psicossociais advindas dessa prática em franca expansão no capitalismo contemporâneo.

arquitetura e urbanismo; lazer; trabalho; vigilância; desempenho

Abstract

This article proposes a reflection on the increasing trend of integrating leisure spaces into work environments. It begins with the hypothesis that such spaces constitute a form of appropriation, by employers, of their employees' non-working time. The conceptual references primarily stem from the notions of Disciplinary Society (Foucault), involving the idea of docile bodies shaped by surveillance, and Performance Society (Han), demonstrating how the experience within these spaces that exploit employees' free time can easily be mistaken for a sense of freedom. The article concludes by highlighting the worker’s active participation in their own exploitation and pointing out the need to discuss the psychosocial implications arising from this rapidly expanding practice within contemporary capitalism.

architecture and urbanism; leisure; work; surveillance; performance

Introdução

Richard Sennett, em seu livro Construir e habitar: Ética para uma cidade aberta (2018), narra sua experiência ao visitar o Googleplex, em Nova York. Segundo o autor, o Googleplex é "na cidade, mas não dela" ( Sennett, 2018SENNETT, R. (2018). Construir e habitar. Ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro, Record. , p. 170), sendo “um espaço concebido para ser autossuficiente” (ibid., p. 171), de forma que os seus funcionários não tenham a necessidade de sair do local de trabalho para realizar uma série de atividades como, por exemplo, ir a uma consulta médica ou até mesmo dormir – para descansar após estender a jornada de trabalho até mais tarde.

O oferecimento de comodidades, de espaços de lazer, de encontro e de espaços de descanso, além de todos os argumentos para justificar a adoção desses espaços,1 1 Os argumentos dos empregadores para justificar a adoção desses espaços, segundo matérias jornalísticas a respeito do fenômeno no Brasil ( Ferreira, 2014 ; Formiga, 2015 ; Grego, 2018 ; Melo, 2014 ; Pivetti, 2017 ), são: aposta no estímulo à criatividade e à comunicação, aumento do bem- -estar e da produtividade dos funcionários. tornam o complexo Google inspiração para os escritórios das chamadas "classes criativas"2 2 Expressão criada por Florida (2011) para designar os trabalhadores das áreas de softwares, games , audiovisual, música, mídia, editoração, moda, publicidade, entre outros. Florida escreveu, em 2002, sobre a ascensão do papel das classes criativas na contemporaneidade e acreditava que as cidades poderiam se beneficiar com o estímulo a uma política cultural, sem discutir uma consequente gentrificação desses contextos. ao redor de todo o globo. No Brasil, escritórios de empresas maiores, como Walmart ( Figura 1 ), Unilever, Vivo ( Figuras 2 e 3 ), Serasa, OLX ( Figura 4 ) e Locaweb, a empresas menores, como OutPromo, SolveSystem, Arizona e tantas outras, também incorporaram espaços dedicados ao lazer e ao descanso em seus ambientes de trabalho.

Figura 1

Figura 2

Figura 3

Figura 4

Quais são as implicações, porém, da inserção de espaços de lazer nos locais de trabalho?3 3 Em um trabalho acadêmico de caráter conceitual, Duerden, Courtright e Widmer (2017) buscam lançar luz sobre o fenômeno, compreendendo a inserção do lazer no trabalho como uma possibilidade de maior propensão ao florescimento individual e coletivo nas organizações. E por que, de modo geral, a produção, a proliferação e a adoção desses espaços não são suficientes para revelar, ao trabalhador, a apropriação, por parte do empregador, do seu tempo de não trabalho, a ponto de serem percebidos por eles como motivadores e benéficos?4 4 Resende (2018) apresenta achados em pesquisa realizada com funcionários de empresas que possuem espaços de lazer em seus ambientes de trabalho, na qual esses funcionários relacionam a existência desses espaços com maior motivação e aumento de sua produtividade, bem como maior envolvimento com objetivos e valores da empresa para a qual trabalham. O objetivo central deste texto é, pois, refletir sobre essa questão. Para tanto, trabalha-se com a hipótese de que esses ambientes constituem uma forma sutil de apropriação, por parte do empregador, do tempo de não trabalho devido aos seus empregados. Para investigação dessa hipótese, parte-se do conceito de “Sociedade disciplinar” de Foucault (2018)FOUCAULT, M. (2018). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes. , bem como da noção de “Sociedade de desempenho” desenvolvida por Han (2020a e 2020b).

Além desta breve introdução, o texto está organizado em duas partes. Na primeira delas, conceitua-se o lazer e apresenta-se um breve histórico sobre a inserção de espaços de lazer no trabalho. Na segunda parte, discute-se como a ideia de vigilância, oriunda da ideia de “Sociedade disciplinar”, desenvolvida por Michel Foucault, mostrou-se elemento modelador da produtividade, ao indicar a existência de uma divisão orquestrada das representações de poder, de forma que a vigilância e o controle sobre os indivíduos sejam exercidos e representados pela célula social. Em seguida, é apresentada a noção de “Sociedade de controle” de Deleuze (2008)DELEUZE, G. (2008). Conversações . Rio de Janeiro, Ed. 34. , com a ideia de virtualização da vigilância, para então chegar ao conceito de “Sociedade de desempenho” de Han (2020a e 2020b), em que a autoexploração está associada a um sentimento de liberdade. Esse caminho é essencial para compreender os novos contornos que a vigilância adquire na contemporaneidade e de que forma os trabalhadores participam ativamente de um fenômeno que se apropria de seu tempo de não trabalho mediante a oferta de espaço de lazer em ambientes profissionais.

Sobre o lazer

Corbin, em A história dos tempos livres (2001), afirma que até o século XIX o tempo de trabalho era descontínuo, de forma que o trabalhar se emaranhava com as outras atividades do próprio cotidiano, sendo frequentemente entremeado por pausas e tempos livres. As estações do ano a vida em comunidade ditavam os ciclos de produção das sociedades, ou seja, havia uma relação direta entre a natureza e as comunidades, não só influenciando o que e quando elas produziam, mas, também, como produziam. É, portanto, a partir do surgimento das sociedades industriais que se passa a ter uma outra noção de ordenação de tempo e que uma nova relação com ele começa a se instituir. Com efeito,

[...] a problematização e a ideologia modernas do tempo livre apareceram junto com o fenômeno da urbanização em massa, estreitamente ligado à mecanização industrial, entre fins do século XVIII e o princípio do século XIX; também a dramática transformação representada pela separação da moradia em relação ao local de trabalho – a família deixando de atuar como centro físico da economia – teve papel relevante por essa mesma época. [...] Nesse sentido, o tempo livre propriamente dito, por oposição ao tempo de trabalho, possui traços específicos, característicos da civilização nascida da revolução industrial, e a evolução da sua trajetória reflete o movimento das lutas sociais ocorridas desde então, centradas no estatuto do trabalho, dentro da sociedade capitalista ou no horizonte de sua superação. ( Gaspar, 2003GASPAR, R. C. (2003). As fronteiras do possível: trabalho, lazer e civilização . São Paulo, Germinal. , pp. 104-105)

Dessa forma, é possível dizer que é no contexto da Revolução Industrial que emerge o que viria a se conceituar como lazer. Dumazedier, sociólogo francês e um dos maiores contribuidores e pioneiros da sociologia do lazer, afirma que "o lazer não é a ociosidade, não suprime o trabalho; o pressupõe. Corresponde a uma liberação periódica do trabalho no fim do dia, da semana, do ano ou da vida de trabalho" (1979, p. 28).

Tal entendimento de Dumazedier sobre a natureza do lazer se deve à atenção ao fato de que, se antes o tempo de não trabalho e o de trabalho emaranhavam-se, como coloca Corbin e Gaspar, com a Revolução Industrial, o tempo de trabalho passa a senhorear outros tempos, de maneira que a jornada exaustiva de trabalho a que eram submetidos homens, mulheres, idosos e crianças acabou por motivar a luta operária pela conquista das oito horas de trabalho, oito horas de lazer e oito horas de repouso. Impunha-se, naquele momento, devido aos abusos cometidos pelos patrões, a criação de um tempo livre assegurado para os trabalhadores. O lazer, tal e qual se conhece hoje, é, portanto, uma categoria conquistada.

Dumazedier coloca, assim, o trabalho como elemento essencial para a existência do próprio lazer, considerando o lazer como produto de um dialogismo histórico entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho. O presente artigo dialoga com esse entendimento do citado autor, por assumir a definição do lazer como um tempo de não trabalho para o próprio trabalhador (mas partindo do princípio da existência do trabalho em si), além de o compreender como uma categoria histórica de tempo livre conquistado.

É necessário assinalar uma relevante crítica que alguns autores direcionam a Dumazedier, e com a qual este trabalho também está alinhado e toma como pressuposto, por compreender que esse autor possui uma visão funcionalista do lazer, como algo compensatório ao trabalho. Ainda assim, o que interessa aqui é justamente o entendimento do lazer como uma categoria lograda, fruto do processo das lutas operárias por melhores condições de trabalho e de vida, uma vez que, sem regulamentação, os empregadores aprovavam e permitiam que o trabalho ocupasse toda a jornada diária dos seus trabalhadores.

De modo a melhor exemplificar como o trabalho apoderava-se de toda jornada cotidiana, vale citar uma passagem de Karl Marx em O capital , publicado originalmente em 14 de setembro de 1867:

Depois de o capital ter levado séculos para prolongar a jornada de trabalho até seu limite normal e, então, ultrapassá-lo até o limite do dia natural de 12 horas, ocorreu, desde o nascimento da grande indústria no último terço do século XVIII, um violento e desmedido desmoronamento, qual uma avalanche. Derrubaram-se todas as barreiras erguidas pelos costumes e pela natureza, pela idade e pelo sexo, pelo dia e pela noite. Mesmo os conceitos de dia e noite, de uma simplicidade rústica nos antigos estatutos, tornaram-se tão complicados que ainda em 1860 um juiz inglês precisava de uma sagacidade talmúdica para explicar “judicialmente” o que era dia e o que era noite. O capital celebrou suas orgias. ( Marx, 2017MARX, K. (2017). O capital: crítica da economia política: Livro III: o processo global da produção capitalista. Edição Friedrich Engels. São Paulo, Boitempo. , pp. 439-440)

A exploração das classes trabalhadoras culminou em uma série de tensões e reivindicações por melhorias das condições de trabalho e de vida, gerando uma série de respostas da sociedade que acabaram por encaminhar as reivindicações operárias para serem analisadas de acordo com a racionalidade vigente e, assim, legitimar possíveis mudanças. Isso significa dizer que o lugar de destaque que a ciência havia ganho nos últimos anos, as mudanças na arquitetura e no urbanismo, a valoração da estatística e dos dados, entre outras razões, faziam parte de uma racionalidade que vinha se desenvolvendo e se afirmando com o tempo e ganhando espaço na sociedade, de maneira que foi através desse prisma que a ideia de um tempo livre de trabalho pôde ser analisada para, posteriormente, ser aceita.

A luta pelos três oitos – oito horas para o trabalho, oito horas para o repouso e oito horas para que os operários usufruíssem livremente – era uma dessas reivindicações que, especialmente, foi bastante analisada à luz dos estudos científicos da época e pelo escrutínio das cifras ganhas e perdidas com o modelo das extensas jornadas, já que parte da elite econômica expressava forte resistência em relação à diminuição de horas na jornada de trabalho.

As raízes desta intensa actividade científica são múltiplas. O desejo de justificar pela ciência a reivindicação, depois a prática dos “três-oitos” – o que os teóricos do socialismo não tinham sabido fazer – estimula a investigação. [...] Uma impressão difusa tende a integrar o surmenage9 9 Palavra francesa cuja tradução para o português, segundo o dicionário Michaelis, é sobernal: estado de debilidade causado pelo trabalho excessivo; esgotamento. na gama dos flagelos que ensombram a imagem do fim do século. Nestes tempos de “golpe de Estado médico” facilitado pelo triunfo das teorias pasteurianas, o fisiologista e o psicólogo encontram no estudo da fadiga um meio de firmar a autoridade da sua mensagem e de aumentar a sua influência. ( Corbin, 2001CORBIN, A. (2001). História dos tempos livres . Lisboa, Teorema. , p. 336)

Corbin relata que, no final do século XIX e no início do século XX, uma série de estudos sobre a fadiga passou a demonstrar que “esta constitui um processo químico que afecta o corpo na sua totalidade e não apenas o membro ou órgão a que parece directamente ligada” (ibid.). Para os pesquisadores da época, qualquer maior esforço muscular realizado de forma prolongada se comportaria como uma autointoxicação, de modo que surge, também, uma crítica ao abusivo desportivo (ibid.). Assim sendo, segundo o autor, passa a ser considerado um erro continuar a julgar o corpo como uma máquina, já que o corpo estaria submetido às leis da fadiga (ibid., p. 337).

Também nessa época surgem os estudos sobre a capacidade de resistência à fadiga, bem como sobre os fatores que a influenciam. Os maus hábitos são estudados, como, por exemplo, as poucas horas de sono, a má alimentação, a influência do sobrepeso, e compreende-se que, se por um lado o treino desportivo excessivo causa a fadiga, por outro “o treino – objecto de inúmeras experiências – aumenta a resistência dos músculos e do cérebro” (ibid., p. 338). Novas relações entre trabalho, fadiga e repouso passam a ser desenhadas, delimitando tempos limites para cada um, por considerar que eles possam vir a ser nocivos em determinados contextos. “O conjunto desta actividade de pesquisa fornece uma base científica à necessidade do restauro periódico das forças” (ibid.) e justifica, assim, o debruçar-se sobre os estudos específicos a respeito da fadiga industrial. Inicia-se, portanto, de acordo com Corbin (ibid.), “um momento de uma gestão racional das forças humanas” (p. 339), que tem como base as pesquisas relacionadas às fadigas.

Corbin também relata que a Primeira Guerra Mundial foi responsável por estimular os estudos sobre a fadiga industrial, principalmente por parte dos aliados, e afirma que o momento pós-Primeira Guerra pode ser considerado “a idade de ouro desse novo ramo do saber, nomeadamente, além-Atlântico” (ibid., p. 341). Torna-se importante relembrar que toda essa movimentação e esse interesse pela fadiga têm como objetivo uma melhor compreensão dos mecanismos do corpo humano no que se refere aos limites dele e, a partir disso, um vislumbre do aumento da produtividade dos trabalhadores. Dessa forma, as pesquisas a respeito da fadiga passam a ser desenvolvidas por várias áreas de atuação, estendendo-se em vários campos, produzindo, por exemplo, investigações sobre as fadigas ligadas aos sentidos, com estudos direcionados sobre a ação do campo acústico, estudos sobre a necessidade do sono (gerando uma valorização maior dele, já que o cansaço pode vir a atrapalhar o momento de dormir, o que implicaria uma diminuição da produtividade no dia seguinte), pesquisas sobre os efeitos psicológicos e fisiológicos do trabalho, entre outros.

As discussões e disputas dentro do campo da ciência explicitam os processos de legitimação de práticas, narrativas, consensos. Dessa forma, é possível afirmar que, entre 1870 e 1914, o tema da fadiga fazia parte da ordem do dia dos estudos científicos, compondo um cenário propício na sociedade para a conquista de um tempo livre de trabalho e originando as dinâmicas que culminaram no que hoje compreendemos como lazer (ibid., p. 345), como a criação do fim de semana, das férias pagas, entre outros benefícios.

Sobre o lazer no trabalho

A compreensão de que o corpo não funciona como uma máquina e de que a falta de repouso para o corpo pode acarretar prejuízos na produtividade e, consequentemente, no lucro incentivou o desenvolvimento de uma série de ações dentro dos ambientes de trabalho, baseadas nos estudos científicos principalmente das áreas de Psicologia, Ergonomia e Sociologia e que indicavam os benefícios do lazer na produtividade e na motivação dos funcionários.

Nesse contexto, a garantia de tempo para as refeições e de pausas de trabalho impulsionou a criação de espaços específicos de lazer nos espaços de trabalho operário (como cafeterias, refeitórios, cantinas ou salas de descanso), sendo estes anteriores a espaços de lazer nos ambientes de trabalho administrativos. Mas, segundo a pesquisa de Resende (2018)RESENDE, M. M. C. (2018). Os espaços sociais e de lazer nos edifícios de trabalho criativo . Dissertação de mestrado. Coimbra, Universidade de Coimbra. , são nos espaços de trabalho destes últimos que os espaços de lazer vão ser desenvolvidos muito mais rapidamente.

A autora documentou, assim, a inserção de espaços de lazer em ambientes de trabalho desde o fim do século XIX, dos escritórios em arranha-céus até aos campi empresariais. Arranha-céus como, por exemplo, o Pullman Building em Chicago, concebido em 1883 pelo arquiteto Solon S. Beman, para a empresa Pullman Palace Car Company, e como o Larkin Building, de 1904, de Frank Lloyd Wright, em Nova York; e campi como o campus empresarial do grupo AT&T (de 1941, com edifícios sendo acrescentados até 1974), em Murray Hills, subúrbio de Nova Jersey, e como o do Connecticut General Life Insurance Company (1954), em Bloomfield, subúrbio de Connecticut, projetado pelo atelier S.O.M. e com influência da arquitetura de Mies Van der Rohe.

Os espaços citados possuíam uma infraestrutura de lazer voltada para seus funcionários e suas famílias, oferecendo espaços como bibliotecas, restaurantes, pistas de boliche, e, em alguns casos, habitação para os trabalhadores.

Segundo Resende, o deslocamento de parte dos escritórios na cidade para os campi deu-se porque as cidades, de certa forma, não comportavam mais as novas necessidades espaciais das empresas, e, após a Segunda Guerra Mundial, o aumento do fluxo do tráfego e a superpopulação dos centros, com suas desvantagens, levaram à procura de áreas verdes e suburbanas, de forma a encontrar quietude e proporcionar maior interação entre os colegas de trabalho de uma mesma empresa.

Simultaneamente a essa mobilização para as periferias, ocorre um rápido desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, gerando novos paradigmas na sociedade e no trabalho, alguns já denotados no funcionamento dos edifícios apontados anteriormente – ocorre aquilo que Peter Drucker (2002) descreve, pela primeira vez, em 1959, como a entrada na Sociedade do Conhecimento e que vai trazer implicações organizacionais e espaciais nos espaços de trabalho, nomeadamente nos espaços de escritórios. (Ibid., p. 73)

A crença de Drucker de que "hoje o recurso realmente controlador, o fator de produção absolutamente decisivo, não é o capital, a terra ou a mão de obra. É o conhecimento" (Drucker, 1993, p.15) revela o novo paradigma do trabalho, ressoando na produção de espaços calcados nos novos processos de produção.

Assim, novas práticas da cultura do trabalho passam a ser estabelecidas também. Nos anos 1960, passa-se, então, a se dar maior enfoque numa “cultura organizacional” que sistematizava recompensas, desenhava o espírito, o ambiente e os valores a serem vividos numa organização ( Resende, 2018RESENDE, M. M. C. (2018). Os espaços sociais e de lazer nos edifícios de trabalho criativo . Dissertação de mestrado. Coimbra, Universidade de Coimbra. , p. 77). Essa “cultura organizacional” buscava fazer com que os funcionários criassem um sentimento de familiaridade, sentindo-se acolhidos pela empresa, e parte dela. Somam-se, às práticas espaciais de oferecimento de lazer para os trabalhadores, práticas sistematizadas que tangenciam a esfera emocional.

Ao acompanhar a trajetória histórica dos ambientes de trabalho e dos espaços de lazer neles inseridos, percebe-se que ainda que os espaços venham a ser pensados sob o pretexto de garantir bem-estar, integração entre os funcionários e pausas para o descanso, o que realmente orienta a inserção do lazer no trabalho é a busca por uma mão de obra saudável e ainda mais disposta para o trabalho.

Na década de 1980, porém, época em que campi novos e menores ao redor de universidades começam a surgir nos Estados Unidos, a realidade da maioria dos escritórios ainda era o trabalho em “cubículos”, por ser essa uma opção mais barata, acessível, flexível e de fácil reprodução. Sendo assim, a maioria dos ambientes de trabalho ainda eram muito dependentes de dinâmicas da cultura organizacional para oferecer lazer no trabalho para seus funcionários. Já a ideia e a adoção do campus aliadas à realidade de jovens pesquisadores e trabalhadores, muitos deles ainda universitários, ou recém-saídos da universidade, conferiam, aos espaços de trabalho dessas classes trabalhadoras, ambientes de lazer típicos da recreação universitária, com sofás, jogos, ginásios, etc. Outras empresas menores e laboratórios tinham conexão com esse ecossistema, e as trocas eram constantes. Trabalhadores da emergente sociedade do conhecimento, naquele momento, eram de uma origem privilegiada, e, na verdade, a propagada ideia de que tudo começou em uma simples garagem é apenas um mito ( Avendaño, 2014AVENDAÑO, T. C. (2014). A verdade oculta das “empresas de garagem” do Vale do Silício . Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/24/tecnologia/1416831260_738423.html. Acesso em: 9 jul 2019.
https://brasil.elpais.com/brasil/2014/11...
).

Quando surgem as empresas de internet, os espaços sem compartimentos tornam-se mais populares. Salas abertas, sem lugares marcados ou predefinidos e espaços que favoreçam trocas constantes. Segundo Resende (2018RESENDE, M. M. C. (2018). Os espaços sociais e de lazer nos edifícios de trabalho criativo . Dissertação de mestrado. Coimbra, Universidade de Coimbra. , p. 87):

Começa, novamente, a valorizar-se a possibilidade dos encontros espontâneos, do encontro entre pessoas diferentes que trocam ideias. Liga-se essa espontaneidade à diversão, como fator social e, assim, começa a eliminar-se a barreira entre o trabalho e o lazer no espaço laboral. Os espaços oferecidos nessas empresas eram muito melhores do que na maioria das outras organizações ou das próprias universidades, não sendo raro encontrar mesas de matraquilhos, campos de basquetebol, voleibol, futebol, racquetball, piscinas ou centros recreativos. As atividades sociais também passavam por pic-nics, barbecues e tardes no café – tal como acontecia na vida universitária.

Interessante notar que, pouco a pouco, os espaços dedicados ao lazer dentro dos espaços de trabalho passaram a ser absorvidos de modo mais entrópico, no sentido da perda de fronteiras entre duas categorias espaciais. Sendo assim, passa a ser cada vez mais comum nos espaços de trabalho, não apenas áreas reservadas ao lazer, mas também dentro da própria área de trabalho, em meio a computadores e baias, mesas de sinuca, mesas de pebolim, fliperamas, entre outros equipamentos de lazer.

O tom informal que passa a instalar-se nos espaços de trabalho, a flexibilização dos horários com a possibilidade de trabalhar remotamente, em home office , sendo "o lazer tanto uma causa como uma consequência do aumento de horas de permanência no escritório" (ibid.) revela um claro imbricamento da esfera do trabalho e da esfera do lazer. Não mais como nos tempos anteriores à Revolução Industrial, em que o tempo de trabalho e não trabalho estavam emaranhados por uma ordem dos tempos da natureza. Agora, o emaranhamento do trabalho com o lazer é regido pelo signo da urgência, os dois misturam-se para que, no final, o trabalho torne-se possível e que metas sejam cumpridas. O sucesso experienciado e convertido em cifras pelos empreendimentos do Vale do Silício, dos anos 1990 até os dias atuais, inspira empregadores e empregados, replicando, na medida do possível, suas fórmulas espaciais.

A história mostra que a produção de espaços de lazer dentro dos espaços de trabalho passou de uma mentalidade mais formal, hierárquica e corporativa para uma mentalidade mais informal, horizontal e focada nas necessidades dos indivíduos. A apropriação paulatina pela esfera do trabalho da esfera do lazer se dá juntamente às transformações tecnológicas e econômicas, caracterizando os novos espaços de trabalho que abrigam espaços de lazer como um índice de um novo estágio do capitalismo. Além do aumento da produtividade, funcionários mais motivados é um dos argumentos utilizados pelos empregadores para adoção de tais espaços, e, em pesquisa realizada por Resende (2018)RESENDE, M. M. C. (2018). Os espaços sociais e de lazer nos edifícios de trabalho criativo . Dissertação de mestrado. Coimbra, Universidade de Coimbra. , funcionários relataram considerar a existência de espaços de lazer em espaços de trabalho

benéfica para a consolidação de relações interpessoais [...], para o seu próprio bem-estar físico e mental, para o desenvolvimento das suas capacidades cognitivas e criativas e para o aumento dos seus níveis de produtividade, [...] assim como num contributo válido para o aumento da qualidade de vida dentro e fora do trabalho. (Ibid., p. 167)

Como a apropriação do tempo de não trabalho pelo trabalho se tornou motivo de satisfação para os trabalhadores?

Vigilância como modeladora da produtividade

Uma das chaves para melhor compreensão da submissão voluntária dos trabalhadores à apropriação de seu tempo de não trabalho pelo trabalho na contemporaneidade e do fenômeno dos espaços de lazer dentro dos espaços de trabalho é a obra do filósofo Michel Foucault. Especialmente em Vigiar e punir (2018), Foucault observou os métodos de subjugo, coerção e punição do corpo humano através da história, explicitando as relações de poder vigentes em cada época, a reverberação de seus discursos e seus desdobramentos em mecanismos para realização de seus objetivos. Para esse autor, a história ocidental do controle sobre os corpos revela momentos distintos de vigência de discursos de poder que são espelhados na constituição das instituições, políticas, polícias e também na arquitetura e no urbanismo.

Vigiar e punir apresenta a história do corpo supliciado nas sociedades de soberania (sociedades estas que remontam aos tempos mais longínquos da Humanidade e que se centram na figura de um soberano e seguem até a Revolução Industrial) e sua transição para o corpo a ser docilizado nas sociedades disciplinares. Assim, se na sociedade de soberania a punição e o controle dos corpos eram o suplício em praça pública de forma a dar visibilidade à vigência de uma estrutura de poder, na sociedade disciplinar há uma divisão orquestrada das representações do poder, de forma que o controle esteja diluído, sendo exercido e representado pela célula social.

É na imagem do panóptico proposto por Bentham que se encontra a síntese da ideia da vigilância numa sociedade disciplinar. Foi partindo dessa imagem que Foucault concluiu que "a visibilidade é uma armadilha". Sua composição arquitetural consiste

na periferia uma construção em anel; no centro uma torre, [permitindo] colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. [...] Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. (Ibid., p. 194)

Na transição de uma sociedade de soberania para uma sociedade disciplinar, coexistiram formas de organização de poder, desde a que ainda se "apoiava no velho direito monárquico" a outras que possuíam uma "concepção preventiva, utilitária, corretiva de um direito de punir que pertenceria à sociedade inteira". Uma dessas formas de organização de poder seria a instituição de uma "cidade punitiva". Nelas, o

[...] funcionamento do poder penal repartido em todo o espaço social; presente em toda parte como cena, espetáculo, sinal, discurso; legível como um livro aberto; que opera por uma recodificação permanente do espírito dos cidadãos; que realiza a repressão do crime por esses obstáculos colocados à ideia do crime; que age de maneira invisível e inútil sobre as “fibras moles do cérebro”, como dizia Servan. Um poder de punir que correria ao longo de toda a rede social, agiria em cada um de seus pontos, e terminaria não sendo mais percebido como poder de alguns sobre alguns, mas como reação imediata de todos em relação a cada um. (Ibid., p. 129)

A vigilância advinda da ideia do panóptico e o poder penal repartido por todo o tecido social modelaram instituições e o pensamento vigente. Foucault afirma que a vigilância para a construção de corpos dóceis10 10 “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” ( Foucault, 2018 , p. 134). passa a permear toda a trama e atividades sociais, materializando-se na sociedade através de dispositivos.11 11 Para Foucault (2015) , dispositivo é “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo” (p. 364). Dessa forma, a própria arquitetura e o urbanismo seriam dispositivos de vigilância da sociedade disciplinar,12 12 Ver Lima (2017) . moldando os espaços de acordo com os interesses da governamentalidade e garantindo a “docilização” dos corpos. Segundo ele, vivemos, assim, em um “ continuum carcerário” (ibid., p. 298), no qual somos levados de uma prisão para outra.

Essa "docilização" seria exercida desde a mais tenra idade na escola, nos espaços de convivência, na faculdade, nas instituições, na fábrica, no trabalho. Toda a produção de espaço na sociedade disciplinar visa ao controle dos corpos dos indivíduos, de maneira que os espaços passam a ser requalificados para responder aos preceitos disciplinares. É assim que os hospitais passam a ser separados em alas, as escolas passam a ter fileiras, fábricas passam a ter distribuição de "postos". É sob a égide da disciplina que os espaços da escola, do trabalho, do hospital, do quartel, etc. passam a assemelhar-se.

O controle e a disciplina impostos sobre os corpos constroem a noção de biopoder para Foucault. Em seu curso proferido no Collège de France em 1978, Segurança, território e população , Foucault define o biopoder como “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral do poder” (Foucault, 2008, p. 3). O biopoder gera a biopolítica que, segundo o autor, é "o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana” ( Foucault, 1988FOUCAULT, M. (1988). “Direito de morte e poder de vida”. In: FOUCAULT, M. História da sexualidade . Rio de Janeiro, Graal. , p.134). Sobre a biopolítica, Revel clarifica o conceito afirmando que: “Enquanto a disciplina se dá como anátomo-política dos corpos e se aplica essencialmente aos indivíduos, a biopolítica representa uma grande medicina social que se aplica à população a fim de governar a vida: a vida faz, portanto, parte do campo do poder” (2005, p. 27).

Os conceitos de biopoder e biopolítica colaboram na compreensão de como a sociedade disciplinar foi se modificando e se aprimorando em sua missão de produzir corpos dóceis, passando a focar no indivíduo e na vigilância, cada vez mais diluída na sociedade, mas também, cada vez mais reforçada e presente. Dessa forma, numa espécie de aprimoramento do conceito da sociedade disciplinar, a vigilância já estaria enraizada no próprio sujeito –, e, nesse ponto, já é possível perceber que a vigilância enraizada é um dos gérmens da apropriação do tempo de não trabalho pelo trabalho.

Sociedade de controle

A (r)evolução tecnológica após a Segunda Guerra e a onda de revoluções que ela acarretou influenciaram de forma decisiva a organização das sociedades ocidentais. Para além do entretenimento, a popularidade do vídeo e a disseminação de tecnologias e a facilitação de acesso a elas expandiram o conceito do panóptico. A sociedade disciplinar passou a contar com a tecnologia da informação e da comunicação e com a comunicação de massa para docilizar corpos, colaborando para uma mudança radical de ocupação dos espaços da cidade, favorecendo o esvaziamento de lugares e o adensamento de outros. Com o advento da internet surgiu, também, uma nova e radical diagramação dos vínculos invisíveis da cidade, o panóptico começa a instalar-se no ambiente virtual, e os indivíduos passam a produzir por conta própria os rastros para a própria vigilância.

Em 1990, Gilles Deleuze, partiu precisamente do conceito de sociedade disciplinar para conceber o conceito de sociedades de controle. Segundo ele, "as sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando para trás, o que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de controles, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea" (2008, p. 216). O autor afirma que "as sociedades disciplinares têm dois polos: a assinatura que indica o indivíduo , e o número de matrícula que indica sua posição numa massa " e que nas "sociedades de controle", ao contrário:

[...] o essencial não é mais uma assinatura, nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). [...] Os indivíduos tornaram-se "dividuais", divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou "bancos". É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro – que servia de medida padrão –, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. (Ibid., p. 222)

Os discursos imbricados nas sociedades de controle dissertam sobre novas relações e práticas com o tempo e o espaço, a virtualização iniciada nas sociedades disciplinares alcança um novo patamar. Não é mais necessário ir ao banco ou à lotérica para efetuar pagamentos, jogos de videogame começam a ser jogados por múltiplos jogadores ao mesmo tempo e conjuntamente em vários lugares do globo, manifestações políticas ganham corpo nas redes sociais, câmeras de vigilância observam e registram as vidas íntimas dos indivíduos e patrulham seus movimentos e comportamentos.

É com a sociedade de controle que passamos a ser monitorados por câmeras de vigilância no trabalho e os ambientes virtuais começam a ser utilizados em larga escala. De Masi refere-se com um certo otimismo a uma nova ordem urbana, dada pela passagem da cidade do status de metrópole para telépolis, e a virtualização de dinâmicas e processos são vistos, pelo autor, com o frescor da novidade: "Edificada sobre o princípio universal da existência à distância, Telépolis é tão ativa e pulsante quanto mais seus habitantes ficam em casa teletrabalhando e teleconsumindo, mesclando a atividade de trabalho, a vida doméstica, a vida social, a produção, a reprodução e o divertimento" (1999, p. 216).

Da passagem da sociedade disciplinar para sociedade de controle, as velhas estruturas disciplinares foram transformando-se rapidamente, dando lugar a

[...] Um sistema regido pelo excesso de produção e pelo consumo exacerbado, pelo marketing e pela publicidade, pelos fluxos financeiros em tempo real e pela interconexão e redes globais de comunicação. E, sobretudo, marcado pela decadência de certos estabelecimentos básicos da sociedade moderna – tais como a escola, a fábrica, a prisão e o hospital, inclusive a casa destinada a hospedar a família nuclear inspirada no modelo burguês. De um modo paralelo, oposto, mas também complementar a esse declive, a empresa foi se entronizando como uma espécie de inspiração exemplar que impregnaria todas as demais instituições. Inclusive, e talvez fundamentalmente, as versões mais atuais daqueles fósseis modernos. Ao contagiá-las com seu onipresente "espírito empresarial", as reformula fatalmente numa crescente compatibilização com os ritmos e demandas da contemporaneidade". ( Bruno et al., 2018BRUNO, F. et al. (2018). Tecnopolíticas da vigilância. Perspectivas da margem. São Paulo, Boitempo. , pp. 208-209)

Sociedade de desempenho

Fenômenos mais recentes nas áreas de comunicação, tecnologia, mercado e mercado financeiro apontam para o surgimento de uma outra conformação de discursos de poder. São percebidos de forma difusa nas relações sociais e culturais, redirecionando esforços e políticas para uma nova lógica de sociedade, em que o "espírito empresarial" predomina e em que a vigilância está finalmente enraizada no próprio indivíduo; foi o que Byung-Chul Han denominou sociedade do desempenho, afirmando que tal sociedade:

[...] está totalmente dominada pelo verbo modal poder, em contraposição à sociedade da disciplina, que profere proibições e conjuga o verbo dever. A partir de um determinado ponto da produtividade, o dever se choca rapidamente com seus limites. É substituído pelo verbo poder para a elevação da produtividade. O apelo à motivação, à iniciativa ao projeto é muito mais efetivo para a exploração do que o chicote ou a ordens. Como empreendedor de si mesmo, o sujeito de desempenho é livre, na medida em que não está submisso a outras pessoas que lhe dão ordens e o exploram; mas realmente livre ele não é, pois ele explora a si mesmo e quiçá por decisão pessoal. [...] A autoexploração é muito mais eficiente do que a exploração alheia, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. É possível, assim, haver exploração, mesmo sem dominação. (Han, 2020a, p. 21)

O mote do empreendedorismo como solução fácil ou associado à liberdade expressa bem a racionalidade da sociedade do desempenho. O home office , o coworking , os hackathons , os designs sprints , fenômenos do empreendedorismo moderno, revelam a faceta da autoexploração. Nos escritórios modernos, inserem-se mesas de sinuca, redes, aparelhos de videogame ; é instituído o regime 24 por 7 (24 horas por dia e 7 dias por semana), de forma a possibilitar que o indivíduo trabalhe a qualquer hora, em qualquer dia, como bem lhe aprouver.

Embora essas dinâmicas aparentemente remontem aos tempos em que tempo livre e tempo de trabalho se confundiam por estarem intrinsecamente ligados ao fazer cotidiano, em que o lazer tomava porções do tempo de trabalho, entende-se, no texto ora compartilhado com o leitor, que na sociedade do desempenho o trabalho se disfarça de lazer e liberdade, impactando na procura, uso e prática dos espaços e equipamentos destinados ao lazer e ao uso do tempo livre, fazendo com que os indivíduos passem mais tempo produzindo, impulsionados pelos momentos que acham que não estão trabalhando.

Desse estado de constante produção e utilitarismo, qual o lugar do lazer? Esgarçam-se e dissolvem-se fronteiras. Os limites são imprecisos. Na sociedade de desempenho, todo espaço é fronteiriço. Tudo começa a se fazer presente e é possível.

A partir do momento em que se compreende o lazer como uma categoria conquistada, vale perguntar se o tempo livre de trabalho, hoje, pode ser considerado como lazer. O lazer como uma conquista da classe trabalhadora, como um tempo previsto no relógio e no calendário para o repouso e para as atividades que são de interesse dos trabalhadores, parece, assim, não ter a mesma função atualmente. A noção de produtividade e de alta performance que está introjetada nos indivíduos, e da qual dependem seus salários, não dá tréguas a ponto de se ter o tempo livre de trabalho como algo assegurado.

O mote da flexibilidade dentro da lógica da sociedade de desempenho, em que o “poder” é mais forte que o “dever”, leva para um entrelaçamento das fronteiras entre o trabalho e não trabalho, de forma a que constantemente haja um embaraçamento entre essas duas esferas; e em que o lazer como um direito social conquistado já não mais existe. Ainda que o trabalhador possua carteira assinada, a lógica do desempenho persiste e impregna a cultura de trabalho da contemporaneidade, exigindo, algumas vezes sem parecer exigir, a dedicação total e o maior rendimento possível dos empregados.

Assim, os espaços também passam a refletir esse novo modus operandis , que vai além de um hibridismo conceitual, para se configurar, na verdade, como um afrouxamento de limites. Quando não é dito o que se “deve” fazer, mas, sim, o que se “pode” fazer, os espaços passam a nos reter por mais tempo, seja de forma negativa ou positiva.

A aparente liberdade das novas formas de trabalho contemporâneas, marcadas pela informalidade e pela sobreposição dos tempos e espaços de lazer e trabalho no próprio trabalho, age como marca distintiva das classes trabalhadoras que a esses espaços acessam, aliando a tais classes a ideia de uma identidade criativa e moderna, bem como a criação de uma relação de associação com a imagem da própria corporação para qual se trabalha ou do próprio trabalho.

A exploração do trabalho desenvolve uma nova faceta quando, além de gerar riqueza através da força de produção do trabalho, também relaciona "seus produtos" com a identidade do trabalhador, incluindo uma dinâmica de exploração biopolítica do trabalho. [...] A nova dinâmica de valoração transpõe a mensuração quantitativa econômica por sua característica de subjetividade, visto que o valor do imaterial está ligado a fatores de construção ideológica nos próprios atores inseridos nesse novo modelo de exploração. (Souza, Avelino e Silveira, 2018, pp. 108-109)

Dessa forma, a inserção de espaços de lazer nos espaços de trabalho denota que

para elevar a produtividade, o paradigma da disciplina é substituído pelo paradigma do desempenho ou pelo esquema positivo do poder, pois, a partir de um determinado nível de produtividade, a negatividade da proibição tem um efeito de bloqueio, impedindo um maior crescimento. A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever. (Han, 2020b)

O discurso da flexibilidade, liberdade, informalidade, mascara, portanto, a vigilância contínua exercida no lazer vivenciado dentro do espaço de trabalho, com a colaboração total e irrestrita do próprio vigiado.

Conclusão

Os espaços dedicados ao lazer e ao tempo livre remetem à necessidade de pausa, de desligamento do mundo do trabalho, do deslocamento da condição do indivíduo como produtor de força de trabalho para a condição de usufruidor, da vivência com experiências artísticas e suas manifestações, do contato com a natureza (o espaço não construído, relicário dos tempos de maior simbiose com o meio ambiente).

A apropriação do tempo de não trabalho pelo trabalho através da produção de espaços de lazer nos espaços destinados ao trabalho é uma dinâmica que envolve a própria participação e colaboração do indivíduo. O estágio do capitalismo na contemporaneidade foi estabelecido paulatinamente através de séculos de controle e vigilância sobre os corpos, diluídos gradativamente no tecido social, imbricando-se no cotidiano, pouco a pouco, em todas as esferas da vida dos indivíduos, inclusive as íntimas, regulando e modelando, através da comunicação de massa e do consumismo (retroalimentadores entre si), os desejos e as identidades. A identificação dos trabalhadores com seus trabalhos faz parte de uma sofisticada tecnologia de poder que introduziu no inconsciente do trabalhador o controle do patrão ou, através do empresariamento de si mesmo, a figura do próprio patrão.

Por fim, percebe-se que para além do questionamento da apropriação do tempo livre de não trabalho pelo trabalho e da captura do indivíduo pelas bolhas de convívio que vêm tornando-se os escritórios, também se revela o distanciamento dos trabalhadores envolvidos nessa dinâmica de apropriação do tempo livre em relação à sua própria cidade. Práticas de distanciamento do convívio com os diferentes e com a vivência do público são reforçadas, bem como a desmobilização para ocupação e reivindicação do direito à cidade e, assim, consequentemente, a desmobilização pelo requerimento de mais e melhores espaços públicos de lazer, em que o tempo de não trabalho possa ser de domínio do próprio indivíduo (ainda que vigiado).

Figura 5
– Cartaz da Confederation Generale du Travail (C.G.T) em favor da aplicação da Lei das 8 horas

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Notas

  • 1
    Os argumentos dos empregadores para justificar a adoção desses espaços, segundo matérias jornalísticas a respeito do fenômeno no Brasil ( Ferreira, 2014FERREIRA, A. (2014). Empresas criam espaço com sofá, TV e videogame e reduzem demissões em 50% . Disponível em: https://economia.uol.com.br/empreendedorismo/noticias/redacao/2014/10/24/empresas-criam-espacos-com-sofa-tv-e-videogame-e-reduzem-demissoes-em-50.htm+&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk≷=br. Acesso em: 9 jul 2019.
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    ; Formiga, 2015FORMIGA, I. (2015). ”Inspirada” no Google, empresa do DF dá jogo, piscina e happy hour a equipe . Disponível em: http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/10/inspirada-no-google-empresa-do-df-da-jogo-piscina-e-happy-hour-equipe.html. Acesso em: 9 jul 2019.
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    ; Grego, 2018GREGO, M. (2018). Por dentro do arrojado laboratório de inovação da Vivo. Disponível em: https://exame.abril.com.br/negocios/por-dentro-do-arrojado-laboratorio-de-inovacao-da-vivo/. Acesso em: 9 jul 2019.
    https://exame.abril.com.br/negocios/por-...
    ; Melo, 2014MELO, L. (2014). Por dentro da sede da Locaweb, em São Paulo . Disponível em: https://exame.abril.com.br/negocios/por-dentro-da-sede-da-locaweb-em-sao-paulo/. Acesso em: 9 jul 2019.
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    ; Pivetti, 2017PIVETTI, F. (2017). Como você imagina seu próximo ambiente de trabalho? Disponível em: https://exame.abril.com.br/carreira/ambiente-de-trabalho-mudancas/. Acesso em: 9 jul 2019.
    https://exame.abril.com.br/carreira/ambi...
    ), são: aposta no estímulo à criatividade e à comunicação, aumento do bem- -estar e da produtividade dos funcionários.
  • 2
    Expressão criada por Florida (2011)FLORIDA, R. (2011). A ascensão da classe criativa . Porto Alegre, L&PM. para designar os trabalhadores das áreas de softwares, games , audiovisual, música, mídia, editoração, moda, publicidade, entre outros. Florida escreveu, em 2002, sobre a ascensão do papel das classes criativas na contemporaneidade e acreditava que as cidades poderiam se beneficiar com o estímulo a uma política cultural, sem discutir uma consequente gentrificação desses contextos.
  • 3
    Em um trabalho acadêmico de caráter conceitual, Duerden, Courtright e Widmer (2017) buscam lançar luz sobre o fenômeno, compreendendo a inserção do lazer no trabalho como uma possibilidade de maior propensão ao florescimento individual e coletivo nas organizações.
  • 4
    Resende (2018)RESENDE, M. M. C. (2018). Os espaços sociais e de lazer nos edifícios de trabalho criativo . Dissertação de mestrado. Coimbra, Universidade de Coimbra. apresenta achados em pesquisa realizada com funcionários de empresas que possuem espaços de lazer em seus ambientes de trabalho, na qual esses funcionários relacionam a existência desses espaços com maior motivação e aumento de sua produtividade, bem como maior envolvimento com objetivos e valores da empresa para a qual trabalham.
  • 5
  • 6
  • 7
  • 8
  • 9
    Palavra francesa cuja tradução para o português, segundo o dicionário Michaelis, é sobernal: estado de debilidade causado pelo trabalho excessivo; esgotamento.
  • 10
    “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” ( Foucault, 2018FOUCAULT, M. (2018). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes. , p. 134).
  • 11
    Para Foucault (2015)FOUCAULT, M. (2015). “Sobre a história da sexualidade”. In: MACHADO, R. (org.). Microfísica do Poder . Rio de Janeiro, Paz e Terra. , dispositivo é “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo” (p. 364).
  • 12
    Ver Lima (2017)LIMA, J. M. F. de (2017). Urbanismo como dispositivo? In: XVII ENAMPUR. Anais . São Paulo. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    1 Mar 2023
  • Aceito
    24 Abr 2023
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