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Violências do Estado na produção de territórios, informalidade e redes de proteção * * Este texto é fruto de pesquisa de doutorado em andamento, financiada pela Fapesp (Processo n. 2020/02075-1), e de bolsa de intercâmbio Bepe (Processo n. 2022/06583-7). Este artigo é dedicado às pessoas que perdemos no caminho das remoções e demolições das “quadras” da “cracolândia”.

Resumo

Este artigo toma as remoções como prisma descritivo e analítico para perspectivar a produção do espaço urbano e do conflito, a partir, sobretudo, da violência produzida pelo Estado. O texto tem como base empírica pesquisa etnográfica realizada no centro de São Paulo, onde a força do Estado se revela na realização de remoções, deslocamentos, destruição de territórios e de tecidos sociais longamente constituídos, como também na produção de informalidade e mercados informais; relaciona-se também com a articulação de redes e arranjos de proteção (habitacionais, inclusive) como respostas a essas violências. É objetivo, também, observar nessas disputas a mobilização e a instrumentalização tática e situacional das tramas institucionais, vendo como nessa movimentação conflitiva outros e novos repertórios e práticas são criados.

violência; remoção; precariedade; informalidade; território

Abstract

Based on violence originated by the State, this article describes and analyzes evictions to put the production of urban space and conflict into perspective. The text’s empirical basis is an ethnographic study carried out in the central area of São Paulo, where the State’s strength is revealed through evictions, displacements, destruction of territories and long-established social fabrics, and production of informality and informal markets; it also approaches the articulation of networks and protection arrangements (including housing) as responses to this violence. Another objective is to observe, in these disputes, a tactical and situational mobilization and instrumentalization of institutional webs, analyzing the process of creation of repertoires and practices in this movement marked by conflict.

violence; eviction; precariousness; informality; territory

Introdução

A incerteza de viver na iminência de ser removido, na “ameaça de deslocamento” ( Yiftachel, 2020YIFTACHEL, O. (2020). From displacement to displaceability. City, v. 24, n. 1-2, pp. 151-165. ; tradução livre), funda uma experiência social e urbana, um modo de vivenciar a “cidadania urbana contemporânea” (ibid.), desprovida da promessa ou referência normativa de uma futura estabilidade e segurança nos modos de habitar e viver. A condição de ameaça, como uma experiência expandida e sistêmica, que se prolonga no tempo, ultrapassa em abrangência e impactos o evento e ato político de remoção em si (ibid.). A indeterminação, portanto, tem efeitos que transbordam os limites territoriais dos espaços afetados pela condição de transitoriedade permanente ( Rolnik, 2015ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia nas eras das finanças. São Paulo, Boitempo. ; Villela et al., 2019VILLELA, F.; ROLNIK, R.; SANTOS, R.; LINS, R. (2019). Permanent transitoriness and housing policies: inside Sao Paulo’s low-income private rental market. Radical Housing Journal, Issue 1.2, pp. 27-43. ; Santos, 2019SANTOS, R. A. (2019). Na cidade em disputa, produção de cotidiano, território e conflito por ocupações de moradia. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 21, n. 46, pp. 783-805. ), na medida em que condiciona, também, as vidas e as trajetórias urbanas de seus moradores. Essa condição de indeterminação e de ameaça passa a reger tanto as vidas desses sujeitos e de suas famílias, quanto os modos de acesso a – e a própria produção de – espaços de moradia, circuitos de trabalho e de sociabilidade, mobilidades e percursos urbanos.

Para apreender esses processos, faz-se necessário, nos termos de Schiller e Çaglar (2015)SCHILLER, N.; ÇAGLAR, A. (2015). Displacement, emplacement and migrant newcomers: rethinking urban sociabilities within multiscalar power. Identities , pp. 1-18. , reter a “escala urbana” como plano analítico que possibilita trabalhar os pontos de convergência e colocar em perspectiva, a partir das materialidades urbanas (redes e infraestruturas urbanas) e de uma experiência social mais ampla e partilhada de precariedade, os diferentes grupos sociais sujeitos a processos de deslocamentos socioespaciais e seus percursos – tomados como analisador dos modos operatórios e situados de expulsão e deslocamento. Na produção dos espaços urbanos contemporâneos pós ou neocoloniais das cidades do Sul, mas cada vez mais presentes e disseminadas nas do Norte Global, as políticas e dinâmicas de despossessão, deslocamento e ameaça permanentes são estruturantes, e não podem ser lidas e compreendidas de forma desracializada ( Yiftachel, 2020YIFTACHEL, O. (2020). From displacement to displaceability. City, v. 24, n. 1-2, pp. 151-165. ; De Genova e Roy, 2019DE GENOVA, N.; ROY, A. (2019). Practices of Ilegalisation. Antipode , v. 52, n. 2, pp. 353-364. ).

Dadas a escala e a centralidade das “expulsões”, compreendidas como categoria analítica e descritiva dos processos em curso no capitalismo contemporâneo ( Sassen, 2014SASSEN, S. (2014). Expulsions – Brutality and complexity in the global economy . Londres, The Belknap Press of Harvard University Press. ), é importante entender, de forma articulada, as dinâmicas e mecanismos que produzem deslocamentos ( displacement ), mas também a produção de formas de localização/fixação ( emplacement ) ( Schiller e Çaglar, 2015SCHILLER, N.; ÇAGLAR, A. (2015). Displacement, emplacement and migrant newcomers: rethinking urban sociabilities within multiscalar power. Identities , pp. 1-18. e 2018), mesmo que temporárias e precárias. As práticas de mobilidade e seus modos de ancoragem/reposicionamento ( emplacement ) supõem e constroem tanto espaços e territorialidades, quanto mediações, circuitos e sociabilidades. Esses arranjos podem ser tomados como analisadores dos procedimentos, relações sociais, agregações políticas e instrumentos disparados e envolvidos nos momentos de conflito e de remoções, como também nos processos que produzem territorializações e permanências – como tentativa e “ expectativa de estabilidade”, que é diferente de estabilidade em si ( Rizek et al., 2015RIZEK, C. et al. (2015). “Viver na cidade, fazer cidade, esperar cidade. Inserções urbanas e o PMCMV-Entidades: incursões etnográficas”. In: AMORE, C. et al. (orgs.). Minha casa... e a cidade? – Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em seis estados brasileiros. Rio de Janeiro, Letra Capital. , p. 302; grifo dos autores).

No cerne das formas e práticas de territorialização, está a disputa em torno do estatuto desses espaços, no seu direito de existir e permanecer e nas ameaças em torno disso. O que está em jogo por trás dessas disputas é a questão política do poder do Estado em definir o que pode ser aceito e tolerado diferenciando do que deve ser reprimido e criminalizado. A informalidade não deve ser entendida como objeto da (não) regulação estatal – uma dimensão fora do Estado –, mas como produzida pelo próprio Estado ( Roy, 2005ROY, A. (2005). Urban informality: toward an epistemology of planning. Journal of the American Planning Association. v. 71, n. 2, pp. 147-158. , p. 149; tradução livre). O aparato legal e de planejamento estatal “tem o poder para determinar o que é informal e o que não é, para determinar quais formas de informalidade vão prosperar e quais vão desaparecer” (ibid.). Assim, “o poder do Estado é reproduzido por meio da capacidade de construir e reconstruir categorias de legitimidade e ilegitimidade” (ibid.).

A informalidade faz parte das práticas do Estado, portanto, ele se faz presente mesmo onde parece não estar: “não existe nada casual ou espontâneo na informalidade calculada que reveste as práticas territoriais do Estado” (Roy, 2009b, p. 82; tradução livre). Desse modo, a formalidade não é fundamentalmente separada da informalidade, como dois setores distintos e opostos ( Roy, 2005ROY, A. (2005). Urban informality: toward an epistemology of planning. Journal of the American Planning Association. v. 71, n. 2, pp. 147-158. , p. 148). Os processos fragmentados e difusos de urbanização não se dão na “fissura entre formal e informal; mas dentro da produção informalizada do espaço” (Roy, 2009b, p. 82) – fazendo com que pensemos em diferenciações da informalidade: distintos arranjos, espaços e práticas informais.

Concebida nesse espectro de “diferenciação dentro da informalidade” ( Roy, 2005ROY, A. (2005). Urban informality: toward an epistemology of planning. Journal of the American Planning Association. v. 71, n. 2, pp. 147-158. , p. 149), a informalidade urbana não é sinônimo de pobreza necessariamente, pois as práticas e os arranjos informais são produzidos e estão também associados à riqueza e ao poder (Roy, 2009b, p. 82). Esse deslocamento levanta uma questão política e urbana crucial: “por que algumas formas de informalidade são criminalizadas e consequentemente transformadas em ilegal” – e destinadas a serem removidas e destruídas – “enquanto outras gozam da sanção” – e proteção – “ou são até práticas do Estado”? (ibid., p. 83). Nessa perspectiva, podemos compreender então que as

formas de informalidade de elite são frequentemente regularizadas e legalizadas pelo Estado, inclusive por meio de processos de planejamento urbano. [...] o Estado formaliza e criminaliza diferentes configurações espaciais, autorizando e legalizando invasões de terras dos poderosos e criminalizando o habitat dos desprivilegiados. ( De Genova e Roy, 2019DE GENOVA, N.; ROY, A. (2019). Practices of Ilegalisation. Antipode , v. 52, n. 2, pp. 353-364. , p. 359; tradução livre)

No Brasil e na cidade de São Paulo, ao redor dos diversos arranjos espaciais e das práticas informais populares que buscam contornar os expedientes acionados de criminalização de seus modos de vida e formas de morar, constelam-se moradores, movimentos de moradia, atores políticos e coletivos variados, com diferentes repertórios, práticas e interesses, que reforçam a heterogeneidade e a face política da produção e gestão desses espaços e de suas populações. A disputa não se dá apenas em relação às apropriações e aos usos do espaço, mas também aos modos de gestão das populações nesses espaços; e não só por parte do Estado e seus agentes, mas por esses diversos atores e repertórios que se encontram presentes e atuantes, em conflito, e também em composição e acomodações, na produção e gestão territorial desses lugares ( Santos e Guerreiro, 2020SANTOS, R. A.; GUERREIRO, I. A. (2020). “Ocupações de moradia no centro de São Paulo: trajetórias, formas de apropriação e produção populares do espaço – e sua criminalização”. In: MOREIRA, F.; ROLNIK, R.; SANTORO, P. (eds.). Cartografias da produção, transitoriedade e despossessão dos territórios populares . São Paulo, Observatório de Remoções. ).

Os espaços e modos de vida que se fazem nas zonas de indeterminação, nas várias gradações da informalidade, estando sujeitos a tantas instâncias, ordenamentos e normas – que não apenas estatais – produzem modos de subjetivação também. Nos termos de Roy (2009a), é a “governamentalidade cívica” marcada pela ambivalência que emerge do trânsito entre o legal e ilegal, entre as sujeições, acomodações e enfrentamentos que constituem também o conflito nos espaços e sujeitos produzidos para serem governáveis e o esforço de escapar desses dispositivos e suas regulações. Nos termos de Yiftachel (2009)YIFTACHEL, O. (2009). Critical theory and ‘gray space’ – Mobilization of the colonized. City, v. 13, n. 2-3. , é a “emergência de novas subjetividades por meio da produção do espaço” (p. 240; tradução livre) por via da invenção, apropriação e transformação de táticas e estratégias de sobrevivência e enfrentamento, fazendo desses espaços também “base para auto-organização, negociação e empoderamento” (ibid., p. 243).

Enquadrando, condicionando, dando suporte, limitando, assim como servindo de referência e instrumento mobilizado nos eventos críticos e na gestão cotidiana das vidas e territórios em conflito da cidade, toda uma trama institucional forjada e disputada historicamente se faz presente e é acionada. Essa trama é constituída por um conjunto de normativas, direitos, leis, precedentes, instâncias e dispositivos institucionais, incluindo arenas de negociação e de processamento do conflito, e foi sendo construída de forma conflitiva com o tempo. Construída e conquistada a partir de mobilizações e confrontos ao longo do processo histórico, essa trama faz e constitui o Estado (Tilly, 1990). Esse “arsenal institucional” serve também de instrumento, referência e campo de novos embates nos tempos presentes – no sentido de que não é um processo acabado e estanque. O fato de essa trama nunca ser plenamente efetiva/efetivada (portanto, sempre insuficiente) e estar em constante disputa faz com que ela esteja sempre em transformação, com seus limites sendo testados e suas possibilidades (re)inventadas. E, desse modo, não só a trama está em permanente processo de re/de/construção, como o próprio Estado.1 1 Estado aqui compreendido não como aparato homogêneo e monolítico, mas como feito – e efeito – de práticas, técnicas, relações, ordenações, repertórios, movimentações ( Mitchell, 2006 ; Trouillot, 2001 ). Por essa razão, para dar conta de reconstituir que Estado é esse e suas instâncias de ação, a estratégia etnográfica de descrever e analisar “os encontros com o Estado” ( Trouillot, 2001 ).

Esses dispositivos institucionais e jurídicos, que são recursos e meios de disputas atualmente, inclusive nas tentativas de destruição e desativação de todo esse acúmulo e ordenamento, foram sendo construídos, formalizados e institucionalizados nos últimos 30 anos ao longo do processo de redemocratização brasileiro. Nesse percurso, garantias e direitos urbanos e ligados à moradia (entre os direitos de muitas outras áreas e dimensões) foram sendo disputados, negociados, conquistados ( Rolnik, 2009ROLNIK, R. (2009). Democracia no fio da navalha: limites e possibilidades para a implementação de uma agenda de Reforma Urbana no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. v. 11, n. 2, pp. 31-50. ), mesmo que a mobilização em torno desses direitos e reivindicações seja muito anterior, mais ampla e ultrapasse esse marco temporal.

Da Constituição de 1988 e o preceito da função social da propriedade à legitimidade conquistada pelos movimentos sociais que lutam por moradia, do Estatuto da Cidade aos Planos Diretores municipais, de processos de regularização fundiária à criação e implementação de Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), passando por instâncias de negociação e mediação de conflitos fundiários, espaços e dispositivos jurídicos e legislativos de processamento do conflito, como audiências públicas, conselhos participativos, consultas públicas, verbas e recursos públicos, fora toda uma série de diretrizes, orientações e normativas regulando e assegurando direitos, garantias e proteções mínimas. Todos esses mecanismos são fundamentais para conformar a disputa hoje, ao mesmo tempo que sua existência é fruto de processos históricos e sociais, que demonstram como a fabricação do Estado se dá no campo do conflito ( Tilly, 1985TILLY, C. (1985). “War making and state making as organized crime”. In: EVANS, P. et al. Bringing the State Back In . Cambridge, Cambridge University Press. e 1990).

Não se trata aqui de defender e romantizar essa trama institucional ou de negar suas limitações e crise. O objetivo, neste artigo, não é fazer o balanço dessa institucionalidade (e de suas crises), mas descrever como ela é acionada e mobilizada a partir da realização de uma etnografia do conflito. O ponto não é glorificar ou se contentar com o que existe como suficiente e concluído; mas sim entender que a distinção entre essa trama como um “código abstrato” afastado e separado da “sociedade como dimensão prática de sua aplicação” não se sustenta: “código e prática tendem a ser aspectos inseparáveis um do outro” ( Mitchell, 2006MITCHELL, T. (2006). “Society, economy, and the state effect”. In: SHARMA, A.; GUPTA, A. (org.). The anthropology of the state: a reader . Malden, Blackweel Publishing. , p. 176; tradução livre). Assim, o processo da produção desse repertório formal/institucional – que será referido neste artigo também como institucionalidades, em sentido amplo – é contínuo: o caráter desse conjunto não é imanente e imutável, mas vai se forjando em ato, na mobilização situacional na disputa e com distintos efeitos sendo produzidos, conforme as situações e os confrontos. Essa trama institucional também não se constitui de forma hegemônica e totalizante como se fosse o único ordenamento existente.2 2 Em outros termos e análise, Feltran (2020) formula e trabalha com regimes normativos: demonstrando que não existe apenas um único e absoluto regime, o autor afirma que existem outros, e que esses distintos regimes que regulam a vida social podem conviver, de modo não harmônico e muitas vezes conflitivo, mas também em coesão e hibridização. Um regime normativo que regula espaços, modos de vida, códigos e condutas, com reconhecimento e legitimidades sociais, definir-se-ia, em última instância, pela sua capacidade (e condição) de (poder) recorrer à violência para ser reconhecido e se fazer valer. Para o autor, um outro regime normativo, além do legal/estatal, seria, por exemplo, o do “mundo do crime”.

Na próxima seção, o objetivo será, a partir do acompanhamento de remoções e demolições promovidas pelo Estado no centro de São Paulo, buscar descrever e reconstituir esses jogos e relações conflitivas que se realizam por meio de uma miríade de dispositivos, práticas e estratégias ordinárias, permanentes, insidiosas, que condicionam e atingem mulheres, homens e crianças, em sua maioria pobres e negras, no seu dia a dia, nos seus espaços e circuitos mais íntimos, estruturantes, assim como nos expedientes mobilizados e inventados para contornar, poder permanecer e viver. Nessas tramas minuciosas e cotidianas, estão inscritos os modos como o poder é exercido e como ele vai se fazendo e refazendo na superfície do conflito ( Foucault, 2015FOUCAULT, M. (2015). A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973) . São Paulo, Editora WMF, Martins Fontes. ). A partir desse caso de remoções no centro de São Paulo, será possível observar, também, como o Estado, de forma violenta, produz territórios, precariedade, mercados e a própria informalidade.

Remoções, violências e conflito na região da cracolândia, no centro de São Paulo

Este artigo tem como base empírica pesquisa etnográfica que, acompanha desde 2017, a região dos bairros da Luz e Campos Elíseos, centro da cidade de São Paulo, nas imediações da assim chamada cracolândia, que é alvo de um projeto de reestruturação urbana de grande porte atualmente em construção. De 2017 até o presente momento, efetivou-se a remoção completa da população que morava e trabalhava em três quarteirões da região por conta da implementação de dois projetos produzidos no arranjo de Parcerias Público-Privadas (PPPs), realizadas entre o poder público e empresas e corporações privadas: um projeto habitacional que tem construído novos conjuntos residenciais na área e uma outra PPP que construiu o hospital Pérola Byington. Outros quarteirões vizinhos a esses três e populações do entorno seguem ameaçados pela continuidade e desenvolvimento das obras, assim como pela chegada de novos moradores e comércios com outro perfil e realidade socioeconômicos, assim como pelo desenvolvimento de novas dinâmicas econômicas, urbanas e sociais decorrentes de todas essas transformações.

A assim chamada cracolândia constitui-se pela presença consolidada, de forma itinerante, mas constante ao longo dos últimos anos, de uma cena aberta de uso de crack e outras drogas por uma multidão de pessoas, conhecida como fluxo .3 3 Neste artigo, o foco não será a população que constitui o fluxo nem as muitas operações violentas que cotidianamente o tem como alvo. Em 2022, ocorreu a expulsão do fluxo dos quarteirões alvos da intervenção urbana em questão, fazendo com que sua concentração se dissipasse pelo centro de São Paulo. O ponto que interessa aqui destacar é como a implementação dos projetos de PPPs, a remoção da antiga população moradora da região e a dispersão do fluxo e seus desdobramentos fazem parte de um mesmo processo e têm relação direta. E não foi a primeira vez que demolições de imóveis e expulsão do fluxo aconteceram de forma combinada e escalada na região – esta se constituiu como uma estratégia política de intervenção e reestruturação urbana desse território. Ao redor do fluxo, estabelece-se toda uma dinâmica e “força gravitacional” ( Nasser, 2016NASSER, M. M. (2016). No labirinto: formas de gestão do espaço e das populações na Cracolândia . Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo. ; Mallart, 2019MALLART, F. (2019). Findas linhas: circulações e confinamentos pelos subterrâneos de São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. ) de assistência, de ativismos, de políticas de gestão, controle e repressão militar e policial, bem como também se constitui toda uma infraestrutura econômica e urbana ao seu redor – circuitos de comércio e economia urbana, assim como uma rede de acolhimento e arranjos habitacionais.

Em torno do Largo Coração de Jesus, localizado entre as estações Júlio Prestes e da Luz, um conjunto de casarões e sobrados, alguns tombados como patrimônio histórico testemunhando os tempos em que a aristocracia cafeeira construiu de forma planejada o bairro como seu local de moradia, acabou ficando abandonado, tornando-se, com o passar do tempo, cortiços, pensões e hotéis populares. Todo um mercado informal de moradia se desenvolveu para abrigar trabalhadores, na sua maioria também informais, e famílias migrantes, vindas de outros estados, principalmente do Nordeste brasileiro, ou países, sobretudo da América Latina, que se instalaram nesse território constituído na confluência e entroncamento de muitos fluxos – de pessoas, de mercadorias, de possibilidades de trabalho e viração, de circuitos de polos econômicos importantes da cidade (Santa Ifigênia, Bom Retiro, Brás) – na tentativa de fazer dessa localização um ativo, uma possibilidade e ferramenta para prosperar.

O estopim que marcou um novo capítulo na longa e antiga história de disputas ( Gatti, 2015GATTI, S. (2015). Entre a permanência e o deslocamento: Zeis 3 como instrumento para a manutenção da população de baixa renda em áreas centrais . Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. ; Santos, 2019SANTOS, R. A. (2019). Na cidade em disputa, produção de cotidiano, território e conflito por ocupações de moradia. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 21, n. 46, pp. 783-805. ) dessa área central da cidade aconteceu em maio de 2017, na véspera da Virada Cultural. Naquele ano, o palco principal do evento em frente à estação Júlio Prestes não foi montado e, no raiar do dia, ocorreu uma grande operação militarizada e midiatizada, como costumam ser as ações realizadas “contra a cracolândia”, feitas pelo governo do Estado em parceria com a prefeitura municipal. Utilizando-se de bombas, tiros e truculência, dispersaram, prenderam pessoas e emparedaram espaços de moradia e comércio, fazendo com que muitas dessas pessoas ficassem sem poder acessar suas casas, documentos, pertences e mercadorias, por conta da concretagem dos imóveis. Na sequência da megaoperação, o então prefeito de São Paulo, João Doria, anunciava que “a cracolândia acabou”. Dois dias depois da operação militar, a intervenção tinha continuidade com tratores da prefeitura demolindo edificações da área, gerando a imagem que sintetizaria o início da implementação do novo projeto: a derrubada de imóveis com gente dentro.4 4 Sobre a megaoperação: Basso (2017) . Sobre a demolição com trator de imóveis com gente dentro: “Vídeo... (2017). De forma autoritária e espetaculosa, tornava-se assim oficial a intenção do poder público de realizar a construção de um projeto habitacional em dois quarteirões de Campos Elíseos, justamente no perímetro em que o fluxo costumava estar localizado.

Rapidamente, após a operação militar e o início da intervenção e demolição públicas, organizou-se a mobilização de moradores, comerciantes, movimentos de moradia do centro, coletivos ativistas e culturais da área, advogados/as populares, ONGs e grupos acadêmicos. Por conta de os quarteirões atingidos serem demarcados pelo Plano Diretor municipal como Zeis-3 (Zona Especiais de Interesse Social),5 5 O Plano Diretor municipal estabelece e delimita Zeis, que são terrenos da cidade que devem ser preservados, priorizados ou destinados como moradia popular, tendo para isso que preservar ou melhorar as condições de quem já mora na área ou construir novas moradias e destinar para habitação de interesse social, em tese. As Zeis 3 são aquelas demarcadas nas áreas centrais, povoadas e dotadas de infraestrutura urbana. Em princípio, segundo também o Plano Diretor municipal, todas as intervenções, projetos e atendimentos da população que vive em uma Zeis devem ser discutidos e aprovados no âmbito de um Conselho Gestor, paritário entre poder público e sociedade civil, eleito pela população moradora da Zeis. o poder público foi obrigado – por pressão desse conjunto de atores articulados e por ação do Ministério Público e da Defensoria Pública – a constituir um Conselho Gestor como forma de garantir acompanhamento, participação social e os direitos das famílias ameaçadas de remoção durante as intervenções que, naquele momento, apenas se iniciavam nos dois quarteirões.

Um ano após o início público da intervenção nos dois quarteirões, ao longo do primeiro semestre de 2018, um terceiro quarteirão (vizinho aos outros dois) foi completamente removido e demolido por conta da implementação de uma outra PPP, esta capitaneada pela Secretaria de Saúde do Governo de Estado, para a construção do hospital Pérola Byington. Esse terceiro quarteirão fazia parte da mesma Zeis que os outros dois e, por essa razão, houve a judicialização por parte das entidades da sociedade civil para que o Conselho Gestor fosse um só para os três quarteirões, afinal era uma mesma Zeis e os efeitos e consequências atingiram o conjunto. O poder público alegava que, como eram projetos diferentes (na PPP do hospital não havia, por exemplo, parceria e participação da prefeitura municipal), dois Conselhos Gestores distintos eram necessários, até porque as formas e as condições de encaminhar e atender as populações moradoras (e os recursos financeiros para isso) mudariam de um projeto para o outro. Na disputa jurídica, prevaleceu o lado do poder público, e dois Conselhos diferentes foram criados.

A eleição e a constituição do Conselho Gestor para o terceiro quarteirão só foram acontecer no dia em que as pessoas moradoras do quarteirão alvo da construção do hospital começaram a ser removidas – ao votarem na eleição do Conselho, ganhavam caixas de papelão para fazer a mudança. Era um dia de chuva em São Paulo, e as pessoas foram coagidas a deixarem suas casas mesmo assim. Em tese, a aprovação do projeto para a área e o atendimento da população moradora da Zeis deveriam acontecer antes de qualquer remoção ou início de obra – assistiu-se, assim, ao próprio poder público descumprir a lei; e essa não foi a primeira nem a última vez que a cracolândia testemunhou isso acontecer.

Em relação aos dois quarteirões em que se iniciou a operação em maio de 2017, a remoção da população moradora e dos comerciantes deu-se efetiva e concretamente a partir de 2020, após a chegada da pandemia, em um momento em que não havia ainda perspectiva de vacina e que ficar em casa era o meio mais seguro de proteção ao novo vírus. No final de 2021, os dois quarteirões estavam praticamente vazios de seus antigos moradores e comerciantes, com o agravante de ter ocorrido na pandemia, com o poder público gerando aglomeração, remoções e deslocamento de população ( Santos, 2021SANTOS, R. A. (2021). Prefeitura removeu dois quarteirões inteiros do centro de São Paulo durante a pandemia. Labcidade. Disponível em: http://www.labcidade.fau.usp.br/prefeitura-removeu-dois-quarteiroes-inteiros-do-centro-de-sao-paulo-durante-a-pandemia/. Acesso em: 8 set 2023.
http://www.labcidade.fau.usp.br/prefeitu...
). As remoções dos dois quarteirões aconteceram também sem nenhuma transparência, comunicação e diálogo públicos com os moradores, assim como sem nenhuma reunião do Conselho Gestor ser convocada.

No acompanhamento desse processo, é preciso dar atenção a dimensão e importância do cadastro, que acaba por se constituir como política de governo de populações ( Nasser, 2016NASSER, M. M. (2016). No labirinto: formas de gestão do espaço e das populações na Cracolândia . Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo. ), ordenando, fragmentando, segmentando de modo diferencial as pessoas, fazendo com que se dividam, concorram entre si, que queiram aderir e fazer parte, explorando suas aflições diante de suas urgências de vida. O desejo por ser cadastrado desestabiliza e enfraquece o terreno de ação e possibilidades para organizar resistências, servindo também como contenção e forma de assujeitamento. O processo de codificação e fragmentação intenso e contínuo do cadastramento faz com que a construção de unidades ou de ações coletivas mais consistentes fiquem prejudicadas, frágeis, diante do risco sempre iminente de ficar de fora ou de ser cortado das promessas e garantias que ele possibilita. Toda a trama burocrática e institucional que se desenvolve a partir do cadastro e das necessidades de controle e gestão que ele aciona evidencia também a “força gravitacional do Estado” (Das, 2004, p. 229) que enreda os sujeitos e condiciona suas trajetórias e (i)mobilidades.

Por um lado, o cadastro carrega promessas de atendimento em um futuro incerto, por outro, ele pode ser porta de entrada para algo muito concreto e material: no caso dos moradores dos dois quarteirões, o atendimento provisório de Auxílio Aluguel de R$400,00 por mês – o que também sempre foi reconhecido pela sociedade civil nas discussões no Conselho Gestor como legítimo diante do descaso, violências e escassez de possibilidades e recursos oferecidos pelo poder público aos moradores da região. Uma das disputas por parte da sociedade civil atuante no Conselho Gestor era, no entanto, para que o auxílio provisório fosse realmente provisório, ou seja, que houvesse um atendimento definitivo de fato, porque “sem uma moradia real e permanente no fim, muitos acabam presos em um interminável estado de espera” (After Echo Park Lake, 2022a, p. 180; tradução livre). Existem, em São Paulo, inúmeras pessoas que foram cadastradas no passado com promessa de atendimento futuro e pararam de receber o atendimento provisório antes da moradia definitiva ou sofreram uma remoção novamente.

A condição de estar permanentemente em ameaça de deslocamento se funda e se sustenta na reprodução da “insegurança habitacional por meio de exclusão, expulsão e espera” (After Echo Park Lake, 2022b, p. 71; tradução livre). Essas estratégias de “oferta de moradia”, na maioria das vezes como uma promessa vaga e incerta, constituem-se como “um modo de governança da pobreza que enfraquece as proteções contra a ilegalização espacial” (ibid., p. 75). A condição de ameaça permanente de deslocamento realiza-se não “apenas” pela efetivação do deslocamento e da remoção em si; estes se constituem como momentos críticos – e traumáticos ( Brickell et al., 2017BRICKELL, K. et al. (2017). Geographies of forced eviction – Dispossession, violence, resistance . Londres, Palgrave Macmillan. ; Pain, 2019PAIN, R. (2019). Chronic urban trauma: the slow violence of housing dispossession. Urban Studies , v. 56, n. 2, pp. 385-400. ) –, mas que fazem parte de um processo e de uma experiência social e urbana mais ampla, que engloba e vai além desses eventos, e que é composta também por constantes e variados momentos de desamparo: espera por um atendimento definitivo; espera por uma promessa (muitas vezes feita pelo Estado); espera pelo fim da espera ( Yiftachel, 2020YIFTACHEL, O. (2020). From displacement to displaceability. City, v. 24, n. 1-2, pp. 151-165. ; After Echo Park Lake, 2022b).

Na região dos quarteirões da cracolândia, seja por conta da alta mobilidade e circulação de pessoas, seja por conta da precariedade de muitas habitações, é possível encontrar diversos arranjos habitacionais mais baratos, nas muitas e pequenas pensões e hotéis, sem as muitas exigências existentes no mercado formal de aluguel (apresentação de documentos, fiança/fiador, contratos). Por essas razões, a remoção empreendida nesses termos pela prefeitura nessa área resulta em uma mudança para longe do centro da cidade ou para condições de moradia, no centro, ainda mais precárias, que tenham condições de pagar. Acompanhar a destruição desse tecido social – e os seus efeitos e consequências – tornou evidente também as possibilidades, arranjos e modos de vidas que existiam e se forjaram na e por meio da informalidade constituinte desse território.

Em outubro de 2021, a subprefeitura da Sé e a polícia civil realizaram uma grande operação (recorrentes na região) nos poucos imóveis dos dois quarteirões que ainda permaneciam com pessoas vivendo. Nessa operação, com a justificativa de interditar imóveis em função de laudos da defesa civil, sem apresentar nenhuma ordem ou documento oficial, muito menos qualquer alternativa habitacional, lacraram comércios e pensões que ainda funcionavam, deixando moradores da área não só sem seus pertences, que foram emparedados dentro dos imóveis, como também sem moradia. É preciso haver um esforço de reconstituição dos agentes que promovem remoção quando falamos, por exemplo, que o “Estado remove” (há outros atores que removem para além dos agentes estatais): porque “por trás” desse “o Estado” existe uma trama heterogênea de agentes e expedientes utilizados, que se reveza, alterna, complementa, às vezes utilizando-se de decisões judiciais, às vezes sem nenhum mandado, às vezes em ações de âmbito municipal, em outras, estadual; às vezes, realizando grandes operações, mas outras e muitas vezes acontecendo de forma lenta ( Pain, 2019PAIN, R. (2019). Chronic urban trauma: the slow violence of housing dispossession. Urban Studies , v. 56, n. 2, pp. 385-400. ) e exaustiva. É importante, portanto, reconstituir como o poder de remover se exerce na prática, “na ponta” e no cotidiano.

Na semana seguinte, agentes públicos e da empresa de energia Enel vieram novamente ameaçar de remoção, fechar imóveis e desligar água e luz dos poucos lugares ainda ocupados. Nessa operação, ocorreu a prisão de quatro moradores por ligações informais de luz e água, conhecidos popularmente como “gatos”. Procurando se defender e resolver a situação, uma das famílias acionou um advogado particular, ao invés da Defensoria Pública; outra família optou por seguir o exemplo, contratando também o mesmo advogado, mas sem saber dos valores que seriam cobrados, e acabou se comprometendo com um gasto além de sua condição financeira. Quando pagaram os custos da defesa, ficaram sem dinheiro até para comprar velas, afinal estavam sem luz porque tinham cortado a energia elétrica do quarteirão na operação. Alguns dias depois, mesmo sem ter condições financeiras de arcar com uma mudança e novas despesas, mas também sem ter condições emocionais de permanecer vivendo na ameaça e assédio constantes, a família deixou o imóvel e se mudou para uma pequena ocupação em um quarteirão vizinho. Passou a dividir um único e pequeno cômodo que “chovia dentro”, o que comprova que a saída de sua antiga moradia foi para um lugar em condições ainda mais precárias.

Algumas semanas depois, ocorreu uma ação da polícia civil, Enel e Sabesp no quarteirão em que essa mesma ocupação se localiza, vizinho aos quarteirões alvos das PPPs – o que reforça a percepção de que, removidos e esvaziados completamente os três quarteirões, o raio e perímetro de intervenção (e de remoção) vão se expandir, atingindo pequenos comércios, pensões e ocupações populares do entorno. A pequena ocupação que fica nesse quarteirão não está ligada a nenhum dos movimentos organizados do centro e ela não tem nenhum responsável nem cobranças de contribuições, em uma espécie de autogestão (por acaso ou não, as condições dessa pequena ocupação são bem precárias). No dia da ação, a polícia estava assediando os moradores da ocupação, perguntando qual era a “bandeira” (movimento) e quem era o representante, fazendo uma ameaça de que, se ninguém aparecesse, eles escolheriam “no dedo” quem levariam para a delegacia. Os moradores respondiam que não tinha nenhuma liderança, não só porque era verdade, mas porque havia desconfiança em se colocar como responsável – receio justificado, afinal a cobrança por formalização/regularização significa responsabilização, inclusive, criminal, como se tem observado em várias ações atingindo ocupações no centro de São Paulo, grandes ou pequenas, consolidadas ou recentes.

Sobre a operação policial na ocupação, uma das moradoras relatou:

Eles vieram aqui hoje de manhã, cortaram a luz do prédio ali da esquina, vieram aqui na nossa ocupação, tiraram foto do relógio. .. [...] eles falaram [...] que é uma operação que não precisa de mandado nem nada porque é na cracolândia, então não precisa de mandado pra nada pra eles estarem fazendo isso.

É preciso se deter nos significados e efeitos – e no processo histórico, racial e político de sua construção e legitimação – por trás dos mecanismos que possibilitam essa violação sistemática de direitos. É como se, ao acionar cracolândia, se desativassem protocolos e garantias mínimas e legais estabelecidas. São esse processo e dispositivos (atuantes e existentes em outros espaços e territórios, como nas favelas e periferias urbanas) que devem ser pensados em diálogo com as etnografias e pesquisas cada vez mais consolidadas sobre a violência estatal sistemática contra territórios e corpos, e refletir se a chave dada por Agamben (2012)AGAMBEN, G. (2012). Homo sacer – o poder soberano e a vida nua . Belo Horizonte, Editora UFMG. do Estado que decreta o estado de exceção, que institui o “fora da lei” para ele próprio atuar, é a ferramenta que melhor nos ajuda a explicar o que se passa nessa suspensão da ordem e/ou que ordem é esta que assim se constitui.

É importante também entender como a construção da estigmatização, da criminalização das práticas espaciais e da informalidade populares e a violência que esses processos acionam e possibilitam, atingem os territórios; assim como essa violência se territorializa em suas dinâmicas cotidianas de funcionamento. Segundo Rolnik (2015)ROLNIK, R. (2015). Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia nas eras das finanças. São Paulo, Boitempo. , o estigma territorial e a transitoriedade permanente, que marcam muitos bairros e assentamentos populares, são elementos estruturantes da dinâmica política e urbana que possibilita e promove o acionamento das remoções em um contexto de disputa pela terra urbana. São territórios que se constituem em uma zona de indefinição constante e instável entre a possibilidade de permanecer e a perspectiva de expulsão e destruição ( Yiftachel, 2009YIFTACHEL, O. (2009). Critical theory and ‘gray space’ – Mobilization of the colonized. City, v. 13, n. 2-3. ). O processo de despossessão possibilita e desencadeia violências, que deixam os despossuídos cada vez mais despossuídos: há uma extração de riqueza ampla e incessante decorrente desse processo de acumulação por despossessão ( Harvey, 2014HARVEY, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins Fontes. ; Schiller e Çaglar, 2018SCHILLER, N.; ÇAGLAR, A. (2018). Migrants & City-Making – Dispossession, displacement & urban regeneration . Durham e Londres, Duke University Press. ). “Nos processos de regeneração urbana, depois dos habitantes dos bairros pobres [...] serem estigmatizados como violentos e perigosos, eles são primeiro desprovidos de serviços urbanos e depois removidos” (ibid., p. 20; tradução livre).

Essas circunstâncias e dinâmicas parecem constituir o processo histórico, social e urbano construído em torno de áreas da região da Luz e Campos Elíseos, envolvendo a assim chamada cracolândia, sustentado e legitimado também pela justificativa de “guerra às drogas” e dos efeitos raciais, urbanos e de militarização que ela aciona e implica. Nas últimas décadas e de forma mais acelerada nos últimos anos, a rede e infraestrutura urbanas e assistenciais em torno do fluxo e do seu entorno no bairro do Campos Elíseos estão sendo desarticuladas, interrompidas, deslocadas. Em menos de uma década, o tecido social de três quarteirões (com ameaça e possibilidade de se expandir ainda mais) foi completamente afetado, transformado, destruído. Fora as demolições e as tentativas anteriores, já concluídas ou abandonadas, que no seu acúmulo e sucessão também produzem efeitos e mudanças – por exemplo, o caso do projeto Nova Luz, que, mesmo jurídica e politicamente derrotado, produziu demolições de imóveis e alterou terrenos na região; ou o projeto do Complexo de Dança, previsto para um terreno demolido que ficou baldio por muitos anos na área, que custou muito dinheiro dos cofres públicos para ser elaborado por uma empresa internacional, mas nunca saiu do papel.

Os projetos de intervenção e tentativas de reestruturação urbana que se concentram nessa área, é preciso reconhecer, são consideráveis em termos de magnitude e escala e ocorrem já há muito tempo. Podemos enxergar nessa história de constantes intervenções o esforço de reversão e retomada de uma região que se constituiu historicamente como marcadamente popular e negra no coração da cidade de São Paulo. Por essa mesma razão, Campos Elíseos/Luz/Santa Ifigênia (todos bairros que compõem essa região) foram sendo alvos sucessivos de políticas e tentativas de remoção, destruição e apagamentos – de modos de vida, de patrimônios materiais e simbólicos, de memórias e culturas que, desde sempre, constituíram essa parte da cidade.

Em torno dessas políticas de apagamento e perseguição, das distintas intervenções urbanas e sociais, dos projetos de “revitalização” (que sob esse nome sintetizam e revelam justamente o não reconhecimento das vidas que existem nos territórios alvos) e das políticas de gestão e controle dos corpos e espaços, que se acumulam e se sucedem nessa mesma região ao longo de décadas, configura-se o entrelaçamento de regimes com uma lógica territorial característica, na qual a violência organizada estatal se manifesta contra os pobres, assentamentos informais, pessoas desabrigadas, juntamente com o policiamento racializado de territórios não brancos ( Roy et al., 2020ROY, A.; GRAZIANI, T.; STEPHENS, P. (2020). Unhousing the poor: interlocking regimes of racialized policing. The Square One Project, pp. 1-22. ) – policiamento compreendido em termos de controle, gestão e repressão, que envolve evidentemente a ação (na maioria das vezes, violenta) da polícia, mas também outras práticas e braços do Estado no cumprimento dessas funções. Articulam-se, assim, as dimensões territorial e racial na constituição e funcionamento da maquinaria punitiva ( Telles et al., 2020TELLES, V. ; GODOI, R. ; BRITO, J. ; MALLART, F. (2020). Combatendo o encarceramento em massa, lutando pela vida. Caderno CRH, v. 33, pp . 1-16 . ), que empreende cotidianamente uma despossessão lenta ( Pain, 2019PAIN, R. (2019). Chronic urban trauma: the slow violence of housing dispossession. Urban Studies , v. 56, n. 2, pp. 385-400. ), minúscula e cruel que atinge homens, mulheres e crianças em suas infraestruturas e vidas cotidianas ( Lacerda et al., 2020LACERDA, L.; HARKOT, M.; SANTORO, P.; ALHO, I.; BRITO, G. (2020). “Despossessão, violências e a potência transformadora: um olhar interseccional sobre as remoções”. In: MOREIRA, F.; ROLNIK, R.; SANTORO, P. (eds.) Cartografias da produção, transitoriedade e despossessão dos territórios populares. São Paulo, Observatório de Remoções. ).

Por mais que os projetos de intervenção variem muito (sua natureza, suas escalas, seus mecanismos, objetivos, efeitos), vemos se acumular sem cessar e se sobrepor uma série de diferentes dispositivos de controle, vigilância, perseguição, aprisionamento ( Mallart e Rui, 2017MALLART, F.; RUI, T. (2017). “Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas”. Ponto Urbe, n. 21. ), que produzem deslocamentos, demolições e destruição do tecido social, que vão se alternando, se complementando, se sobrepondo no espaço e no tempo, mas sempre tendo os mesmos alvos – corpos, populações e territórios pobres e negros dessa área central da cidade. As políticas e serviços assistenciais, de triagem, de cadastro, de remoção, de atendimento provisório, as demolições, as operações policiais cotidianas (que revistam pessoas e imóveis, proíbem acessos e determinam a circulação pelo espaço), as grandes operações “contra o tráfico”, no seu transcorrer e sobrepor constante ao longo das últimas décadas se materializam como um complexo e diverso arsenal, que, mesmo não planejado e elaborado em um mesmo momento, acaba por constituir um entrelaçamento e sobreposição de políticas (e de efeitos) de repressão, controle e gestão da vida, territorialmente articulados, que têm como práticas o exercício do policiamento racializado ( Roy et al., 2020ROY, A.; GRAZIANI, T.; STEPHENS, P. (2020). Unhousing the poor: interlocking regimes of racialized policing. The Square One Project, pp. 1-22. ).

A intensidade e dimensão de tantas políticas e intervenções só podem ser entendidas diante da força e dos esforços de persistência desses mesmos corpos e territórios em resistir, permanecer e sobreviver. Para pensar em torno das tentativas de resistências e permanências possíveis, mesmo que na precariedade, é preciso dar maior atenção às redes, infraestruturas e materialidades desenvolvidas pelas populações ameaçadas e entender também por que, para atingi-las e expulsá-las, é preciso destruir essas redes.

Em termos da precariedade, Butler (2015)BUTLER, J.(2015). Quadros de guerra – quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. distingue estados distintos: há uma precariedade geral compartilhada e universal que atinge a todos, e por isso há uma dependência de todos os seres (para sobreviver e manter a vida) às redes, laços e estruturas sociais mais amplas, que são formas de minimizar essa precariedade constituinte. Contudo, para muitas pessoas, essas redes e suportes protetivos (e o acesso a elas) se constituem de modos frágeis, ineficientes e problemáticos (ibid.). Existe, portanto, uma distribuição social desigual de proteção contra a precariedade, que seria politicamente induzida. É, nessa correlação de forças e na desigualdade das relações (inclusive de proteção), que as redes podem ser concebidas: como uma rede de relações e como uma rede sociotécnica, como se refere Latour (2012)LATOUR, B. (2012). Reagregando o social – uma introdução à teoria do Ator-Rede . Bahia, Edufba; Santa Catarina, Edusc. , feitas de seres, artefatos, mediações, de infraestruturas e materialidades. São dessas redes que dependem as possibilidades de vida, e são essas mesmas redes (materiais, de proteção, de afeto) que são atacadas e destruídas, por vezes abruptamente, nos momentos de confronto e intervenções violentas do poder estatal. É segundo essa perspectiva e intricadas nessas circunstâncias que as redes são também pensadas como alianças que se forjam a partir e na precariedade ( Butler, 2018BUTLER, J. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria perfomativa de assembleia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. ), como será descrito melhor na próxima seção.

Resistências, redes de proteção e defesa dos territórios populares

A experiência da pandemia radicalizou processos de despossessão e violências, historicamente presentes no Brasil, mas transformados e aprofundados com as crises de diferentes naturezas que eclodiram nesse período. A emergência pandêmica deixou ainda mais evidentes o papel e a importância das redes e ação de proteção, defesa e solidariedade das comunidades e territórios. As redes não surgem do nada, elas carregam acúmulos de organização e mobilização anteriores ( Santos, 2020SANTOS, R. A. (2020). Redes e territórios: Ações de enfrentamento a processos de despossessão em tempos de pandemia. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Reflexões na Pandemia. Rio de Janeiro, pp. 1-13. ) e, geralmente, elas se articulam ou são ampliadas enquanto reação a violências do Estado ( Endo e Santos, 2021ENDO, A.; SANTOS, E. (2021). A gramática do risco e o papel das polícias nas formas autalizadas de gestão dos territórios populares. Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. São Paulo, v. 3, n. 1, pp. 197-218. ).

Para descrever e aprofundar a análise, tomaremos como exemplo a atuação das redes contra remoções durante a pandemia, que evidentemente já existiam e se mobilizavam anteriormente, mas que precisaram se adaptar diante do ineditismo e gravidade da nova conjuntura. Em um primeiro momento, houve a expectativa – que se mostrou logo uma ilusão – de que, diante do agravamento da situação sanitária, econômica e social, as remoções forçadas seriam interrompidas e suspensas, ainda mais em um momento em que a vacina não estava sequer próxima de ser ainda desenvolvida e que “ficar em casa” era um dos meios de proteção mais seguros e eficazes. Logo, novos casos e denúncias de ameaças e remoção mostraram que não só elas permaneciam, como aumentaram.6 6 Marino et al. (2020) . Os mapeamentos de remoções do Observatório de Remoções (OR) referem-se, sobretudo, à Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). E, apesar do esforço de acompanhar e mapear os casos de ameaças e remoções feitos pelo OR, reconhecemos que os números que obtemos permanecem subdimensionados. Não existe uma leitura total da realidade, apenas recortes e retratos parciais e momentâneos, circunscritos temporal e geograficamente ou de acordo com a extensão das redes e parceiros estabelecidos. As remoções forçadas desde sempre têm um caráter de invisibilização, no sentido de não se ter informações precisas, de nunca se ter a dimensão exata do que está sendo feito, os procedimentos usados, para onde vão e o que acontece com os removidos, de haver sempre uma falta de rastros – nesse sentido, o trabalho de monitoramento de remoções feito pelo OR poderia se enquadrar em um esforço de produção e reconstituição de dados.

Com a compreensão do agravamento dos casos de remoções, uma série de movimentos e entidades atuantes no tema registrou e compilou casos e ameaças no estado de São Paulo. Foi elaborada e enviada uma denúncia internacional para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, que divulgou uma manifestação, ao governo brasileiro, contra os despejos, solicitando que parassem.7 7 Violações... (2020); ONU... (2020). Se, por um lado, os efeitos práticos e efetivos dessa declaração podem ser limitados; por outro, os esforços e mobilizações para realizar uma ação como esta fortalecem e ampliam as articulações, além de criarem fato político que serve de apoio e solidariedade a quem está resistindo e enfrentando no dia a dia e “na ponta” as angústias e sofrimentos das ameaças e remoções.

A organização foi se capilarizando e nacionalizando, ao envolver moradores atingidos e ameaçados por remoções, movimentos sociais, urbanos e rurais, entidades, coletivos e laboratórios de pesquisa, e deu origem à campanha “Despejo Zero – em defesa da vida no campo e na cidade”8 8 https://www.campanhadespejozero.org/ . A partir da atuação e incidência política e jurídica da Campanha e de parceiros em torno dela, algumas leis (municipais, estaduais, chegando até o nível federal) contra os despejos durante a pandemia foram aprovadas. Houve também a construção política e jurídica em torno da aprovação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de número 828, aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu remoções no País até março de 2022. Na prática, remoções continuaram ocorrendo, mas é inegável a importância da conquista e como ela foi amplamente mobilizada e acionada como recurso e precedente pelos movimentos e redes parceiras de defesa nas disputas referentes a casos de ameaça de remoção que insistiam/insistem em acontecer. ( Gonsales, 2023GONSALES, T. (2023). Querem me tirar da minha casa. O papel de grupos acadêmicos nos processos de resistências às remoções forçadas na cidade contemporânea. Tese de doutorado. Santo André, Universidade Federal do ABC. ). A articulação nacional que esses movimentos conseguiram realizar contra as remoções se assemelha a práticas que vêm se disseminando entre muitos coletivos e coalizações de defesa de direitos humanos e de denúncia contra o Estado, que vão do combate ao racismo e genocídio da juventude negra e periférica a pautas ambientais e indígenas. São estratégias de ação que combinam ativismo, mobilização, pressão e constrangimento, articulando-se e incidindo no âmbito local, nacional, mas também transnacionalmente.

Uma atuação que, rompendo a falsa dicotomia entre global e local e pensada como uma estratégia de engajamento que trabalha com múltiplas formas de soberania, poderia se enquadrar no que Roy (2005ROY, A. (2005). Urban informality: toward an epistemology of planning. Journal of the American Planning Association. v. 71, n. 2, pp. 147-158. , p. 154) descreve como scale jumping , que talvez pudéssemos traduzir não como pular escalas, mas como jogar com diferentes escalas, soberanias e, poderíamos acrescentar, institucionalidades. Afinal, o arcabouço e os instrumentos que regulam e têm validade em uma esfera (municipal, federal, internacional) variam, assim como serão diferentes os trâmites e efeitos de se apostar e atuar em cada uma delas (elaborar um processo judicial é diferente de realizar uma denúncia internacional, por exemplo). É preciso ir adaptando e mobilizando diferentes repertórios e recursos, de forma múltipla e simultânea, conforme o trabalho e ação política estratégica se dão em e com diversas frentes de atuação, escalas e jurisdições.

Mais do que a divulgação de denúncia, há por trás dessas ações a tentativa de produzir evidências contra o Estado, contra os crimes que o Estado comete. A falta e ocultação de dados e rastros do e pelo Estado não devem ser vistas como acidental ou como uma “falha”. Das (2004)DAS, V. (2004). “The signature of the State: the paradox of illegibility”. In: DAS, V.; POOLE, D. (orgs.). Anthropology in the margins of the State . Santa Fe, School of American Research Press. trabalha com a dimensão e efeitos “mágicos” produzidos e decorrentes da ilegibilidade do Estado, de suas práticas cotidianas, registros e “assinaturas”. Essa dimensão fantasmagórica do Estado convive e o integra junto de sua dimensão racional: ilegibilidade e racionalidade constituem o Estado simultaneamente e daí também sua força e poder, em alternar, (se) confundir e jogar com essa ambivalência e imprecisão. O trabalho e atuação das redes sociotécnicas de apoio e de proteção consistem, muitas vezes, em ter que lidar e enfrentar justamente os efeitos “mágicos” dessa ilegibilidade, tentando desvendá-la, reconstitui-la, evidenciá-la.

Produzir evidências contra o Estado e apresentá-las em instâncias e arenas que ele não controla,9 9 Há uma dimensão, na relação com o Estado nos eventos de conflito, nos territórios em disputa e nos episódios de violência a corpos e populações, que é importante registrar, pois ela conforma a realidade existente contra a qual as estratégias que estão sendo descritas têm que lidar: na grande maioria das situações, o Estado se faz presente, seja como fonte de ameaça, seja como regulador e mediador. As práticas de negociações e enfrentamento recorrem também aos espaços institucionais e ao diálogo com o Estado e seus agentes – o que reforça sua “força gravitacional” e revela que a autoridade estatal é evocada mesmo ela sendo a fonte perpetuadora de violência (Das, 2004, p. 229). na tentativa de implicá-lo e responsabilizá-lo, é uma estratégia possível (entre outras que podem ser paralela e simultaneamente acionadas) de recorrer a formalidade, formalização e institucionalização – no sentido, de acionar e instrumentalizar a trama institucional (leis, direitos, normativas, arenas e instâncias de mediação e processamento do conflito, inclusive, internacionais) – contra o próprio Estado. Ao mesmo tempo que se busca e recorre a essas institucionalidades enquanto meio (entre outras estratégias e repertórios políticos que também podem e são acionados), elas também são tensionadas enquanto novas possibilidades são experimentadas na busca por superar as limitações do formalismo institucional.

O empreendimento de produzir provas contra o Estado é trabalhado teórica e empiricamente por Weizman (2017)WEIZMAN, E. (2017). Forensic Architecture: violence at the threshold of detectability . Nova York, Zone Books. . A elaboração desse processo deixa claro que essas evidências só podem se produzir em rede: é a rede sociotécnica ( Latour, 2012LATOUR, B. (2012). Reagregando o social – uma introdução à teoria do Ator-Rede . Bahia, Edufba; Santa Catarina, Edusc. ) produzindo fatos, pois uma foto, vídeo ou áudio de celular sozinhos não fazem a denúncia. É preciso toda uma cadeia de mediações e conexões (técnicas, inclusive), que partem dessas materialidades imediatas (a remoção em si e seu registro) e as ligam a redes maiores, das de whatsapp chegando até às redes jurídicas que processam e elaboram formalmente denúncias e abrem processos de investigação. A denúncia feita em uma reportagem, ou post, ou que embasa, por exemplo, um processo jurídico, é construída em um processo coletivo e contínuo enquanto percorre as mediações e conexões que ligam diversos e distintos atores, repertórios e saberes, que na sua composição vão produzindo o fato. Assim, a denúncia, a evidência ou contra-evidência precisam ser fabricadas, não no sentido de forjadas, mas construídas, já que elas não existem por si, prontas; e essa produção se faz em rede. A esse processo de produção coletiva de fatos, tendo Weizman e a reconstituição dos rastros do Estado como referências, descrevemos como epistemologias colaborativas (Grupo de pesquisa..., 2020).

Essas redes muitas vezes se formam por conta da organização de territórios e comunidades, e a partir dessa base territorial se conectam e se ligam a outros espaços e atores, ampliando seu poder de escala e atuação – o território como plataforma de ação. Há uma movimentação que vai da capilaridade comunitária e local para fora, mas que também vem de fora para o território; escalas e vetores distintos que se cruzam, compõem-se e se reforçam em um movimento transescalar. É nessas distintas posições e no fluxo dessa movimentação (territorialização-desterritoralização) que o poder de ação dos territórios, comunidades e redes se intensifica e transforma ( Santos, 2020SANTOS, R. A. (2020). Redes e territórios: Ações de enfrentamento a processos de despossessão em tempos de pandemia. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Reflexões na Pandemia. Rio de Janeiro, pp. 1-13. ). Muitas vezes, as iniciativas e campanhas organizadas territorialmente se forjam enquanto ações de defesa e solidariedade contra a violência e violações de direitos cometidas, sobretudo, pelo Estado.

É à luz dessas questões de redes e arranjos de proteção contra a violência política e racializada do Estado, que um elemento referente às remoções nos quarteirões de Campos Elíseos pode ser retomado: o surgimento de novas ocupações de moradia durante a pandemia, compreendidas aqui também como a materialização de práticas de amparo, proteção e esforços de permanência. Devido às remoções dos dois quarteirões durante a pandemia, foi possível acompanhar como pelo menos cinco ocupações (três novas), nenhuma ligada aos movimentos de moradia tradicionais do centro, tornaram-se refúgio (mesmo que provisório) e estabeleceram um circuito entre essas ocupações, as pessoas removidas e o território da cracolândia, conexão estabelecida devido às circulações – e às tentativas de se fixar – decorrentes da expulsão e do deslocamento de populações.

Por mais que ocupações e a atuação das redes possam, geralmente, ter um caráter protetivo e representar materializações de esforços de amparo, existem diferenças históricas, políticas e sociais na conformação dos territórios, nos espaços habitacionais e nos grupos que os organizam e mantêm. Os agenciamentos que se produzem territorialmente são também reflexos das dinâmicas socioespaciais que constituem esses mesmos territórios; não podem, portanto, ser entendidos de modo desconectado da realidade que os produz. Por esse motivo também, as redes e ações dos territórios e comunidades não são por si e por essência virtuosas. A depender dos grupos que as organizam, elas podem, por um lado, servir de arranjos que garantem proteção à vida, mas podem, por outro lado, realizar e representar formas de exploração das populações vulnerabilizadas que vivem nesses mesmos espaços. Por gerar permanência (mesmo que frágil e temporária), possibilitam também extração. Grupos criminais controlam e produzem territórios e redes também.10 10 Como no caso, por exemplo, das milícias do Rio de Janeiro, que entre muitos negócios e serviços desempenhados e cobrados estão envolvidos em empreendimentos habitacionais ( Araújo, 2017 ): por um lado, as pessoas moradoras encontram abrigo e moradia; por outro, ficam submetidas a formas de extorsão em troca de “proteção” e “tranquilidade” ( Araújo, 2022 ).

Nesse sentido, o que existe na realidade concreta do mundo social é muita heterogeneidade e diversidade em relação aos territórios, espaços e arranjos de moradia e grupos que os organizam. A realidade heterogênea e complexa das ocupações de moradia no centro de São Paulo, por exemplo, contrapõe-se às tentativas de simplificação e homogeneização que sustentam o processo de criminalização dos movimentos organizados de moradia do centro de São Paulo, que tem operado por meio da criação de dispositivos de equivalência em torno das dinâmicas de apropriação, produção, organização e gestão populares do espaço; negando, justamente, toda a diversidade existente (Santos, Guerreiro, 2020GUERREIRO, I. A. (2020). O aluguel como gestão da insegurança habitacional: possibilidades de securitização da moradia. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 22, n. 49, pp. 729-756. ).

Cada vez mais, e após o incêndio e queda da ocupação no edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, em maio de 2018, isso se agravou (ibid.). Entre outros meios e expedientes que vêm sendo empregados, a categoria “risco”, recorrentemente utilizada nas áreas periféricas e ambientais ( Moura et al., 2020MOURA, R. et al. (2020). “Remoções em áreas de risco: repensando práticas de mapeamento com base na justiça territorial e nos saberes da comunidade”. In: MOREIRA, F. et al. (eds.). Cartografias da produção, transitoriedade e despossessão dos territórios populares . São Paulo, Observatório de Remoções. ), vem sendo mobilizada como justificativa para embasar pedidos de reintegração de posse nas áreas centrais e urbanizadas, especialmente, para ocupações de moradia ( Santos, 2022SANTOS, E. A. (2022). Ocupações sob ameaças: práticas e instituições judiciais na (in)definição do (in)formal na moradia migrante. Dissertação de mestrado. Santo André, Universidade Federal do ABC. ; Gonsales, 2023GONSALES, T. (2023). Querem me tirar da minha casa. O papel de grupos acadêmicos nos processos de resistências às remoções forçadas na cidade contemporânea. Tese de doutorado. Santo André, Universidade Federal do ABC. ). A categoria carrega em si, de forma constituinte, alto grau de arbitrariedade e vem justificando as remoções administrativas, que são baseadas no poder de polícia ( Magami, 2020MAGAMI, D. (2020). Remoção de casas com base no “poder de polícia” é ilegal. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/br-cidades/remocao-de-casas-com-base-no-poder-de-policia-e-ilegal/. Acesso em: 11 set 2023.
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), caracterizado pela discricionariedade e autoexecutoriedade, o que resulta na realização de remoções sem ordem judicial. Mais do que descumprindo, é o próprio Estado desativando o ordenamento legal. Vemos a mobilização da categoria “risco” constituir-se como mais um expediente de criminalização da informalidade popular.

Essas ofensivas e situações de ameaça atingem todas as ocupações, não só apenas as mais recentes e precárias. Mesmo ocupações consolidadas, mantidas e organizadas por movimentos de moradia política e publicamente organizados, recorrentemente, tornam-se alvo e têm seus recursos de manutenção e sobrevivência ameaçados e criminalizados. Para ficar em apenas um de muitos exemplos que poderiam ser dados: em 2021, coordenadores de movimentos de moradia de duas das mais antigas e consolidadas ocupações de moradia do centro de São Paulo foram presos após operação da polícia civil, em uma dessas ocupações, buscando “rota de fuga” para ladrões da região; não encontrando nenhum indício, acabaram prendendo-os por “furto qualificado de energia”, popularmente conhecido e disseminado como “gato”. Cinco dias antes, a outra ocupação dessas duas citadas havia sido invadida pela polícia militar, sem mandado judicial, com a justificativa de “buscar drogas”.

Historicamente, foi negado à maioria das ocupações acesso a redes e serviços de água e luz ( Gonsales, 2023GONSALES, T. (2023). Querem me tirar da minha casa. O papel de grupos acadêmicos nos processos de resistências às remoções forçadas na cidade contemporânea. Tese de doutorado. Santo André, Universidade Federal do ABC. ), o que se configura como mais um elemento que cria problemas e desafios cotidianos que precisam ser enfrentados e inventivamente contornados ( Santos, 2019SANTOS, R. A. (2019). Na cidade em disputa, produção de cotidiano, território e conflito por ocupações de moradia. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 21, n. 46, pp. 783-805. ), propiciando a produção de arranjos e “gambiarras”, como também circuitos e mercados informais ou paralelos para solucionar e contornar a situação criada pelo poder público. As condições exigidas dos edifícios de moradia ocupados também não se encontram presentes em muitos dos edifícios antigos de classe média e alta do centro da cidade. A questão, já aqui apresentada e colocada por Roy (2009b), é quais são as práticas e arranjos que serão criminalizados – e os distintos regimes policiais territoriais e racializados que se vão armar em torno desses espaços e práticas.

Sabendo que “leis, codificações e regras formais têm efeitos de poder e circunscrevem campos de força” ( Telles, 2009TELLES, V. (2009). Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder. Revista Dilemas, n. 5-6, pp. 97-126. , p. 101), as situações demonstram a “gestão diferencial dos ilegalismos” – reforçando que ilegalismo difere de ilegalidade ( Foucault, 1997FOUCAULT, M. (1997). Vigiar e punir: Nascimento da prisão . Petrópolis, Vozes. ) –, em que as práticas e atividades, de acordo com as conjunturas políticas e correlações de força dadas em um determinado campo, serão diferencialmente organizadas e distinguidas, entre toleradas, ignoradas, consentidas e as que serão alvo e objeto de interdições, sanções e repressões ( Foucault, 1997FOUCAULT, M. (1997). Vigiar e punir: Nascimento da prisão . Petrópolis, Vozes. e 2015; Telles, 2009TELLES, V. (2009). Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder. Revista Dilemas, n. 5-6, pp. 97-126. ).11 11 No cerne dos ilegalismos e de sua gestão diferencial, estão os jogos e usos estratégicos com a lei, entendidos não como lacunas ou falhas a serem superadas, mas em sua dimensão produtiva que estabelece e organiza as relações com a lei – seja buscando contornar, ignorar, seja buscando aplicar, reforçar ou fazendo cumprir.

Pensando nos termos de ilegalismos e de sua gestão diferencial, pode-se então compreender melhor que, por exemplo, os usos e práticas em torno da luz elétrica (caixa de energia, “gatos”, acertos – e aqui estamos diante das mercadorias políticas que, segundo Misse (2002)MISSE, M. (2002). O Rio como bazar. A conversão da ilegalidade em mercadoria política. Insight Inteligência. Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, pp. 12-16. demonstra, sempre se constituem na economia e nos arranjos que surgem em torno de mercados ilegais) passam a ser alvo e táticas de uma disputa mais ampla, de um campo de conflito maior que envolve as ocupações, mas que, para poder se realizar e avançar, toma como ponto de apoio práticas específicas, pontuais, em uma determinada conjuntura social e política, que vão reorganizando e determinando os caminhos e recursos por onde e por meio dos quais essas disputas vão se dar.

Ao se deslocar/ampliar estrategicamente o raio e o foco dos alvos e práticas da criminalização, muda-se e desestabiliza-se a correlação de forças nesse campo de disputa. No caso, os movimentos de moradia e ocupações são forçados a reagir, respondendo e se defendendo em termos que até então não estavam acostumados nem preparados (Santos e, Guerreiro, 2020GUERREIRO, I. A. (2020). O aluguel como gestão da insegurança habitacional: possibilidades de securitização da moradia. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 22, n. 49, pp. 729-756. ). Mas, se por um lado, os movimentos e ocupações são forçados a reagir e atuar em um campo desconhecido, em torno de questões e dinâmicas que não se atentavam ou dominavam; por outro lado, surge uma oportunidade não apenas reativa, mas produtiva também: abre-se a possibilidade de invenção para ultrapassar bloqueios e problemas. Isso reforça a leitura que a efervescência e a potência de arranjos e práticas que as ocupações produzem são resultado e instrumento em uma disputa pela sua sobrevivência e manutenção no tempo e espaço da cidade em conflito ( Santos, 2019SANTOS, R. A. (2019). Na cidade em disputa, produção de cotidiano, território e conflito por ocupações de moradia. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 21, n. 46, pp. 783-805. ).

Para citar um exemplo: com o incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, em 2018, houve, segundo os números oficiais (contestados por serem menores do que a realidade), sete pessoas mortas e duas desaparecidas. Essa ocupação não era mantida por nenhum dos movimentos de moradia tradicionais organizados do centro. Após esse acontecimento, algumas das ocupações dos movimentos pública e politicamente organizados iniciaram um curso de brigada de incêndio dado por uma bombeira que se voluntariou a firmar e desenvolver esse projeto/parceria (Lara Júnior et al., 2022). Alguns meses depois da tragédia, um novo incêndio atingiu uma dessas ocupações, e foi justamente um morador, que havia feito o curso da brigada e seguindo as orientações que foram ensinadas, que conseguiu impedir que o acontecido se transformasse em um desastre com mortos e feridos. A criação de uma assessoria técnica dentro das instâncias do próprio movimento (ibid.) ou o desenvolvimento de técnicas e tecnologias de proteção, reforma e melhorias dos espaços ( Carvalho et al., 2022CARVALHO, C. et al. (2022). Propósitos, premissas, conceitos e orientações para mitigação de riscos pela melhoria das condições de segurança predial em ocupações urbanas . São Paulo, Cajufa. ) podem ser pensados nos mesmos termos: todo o dinamismo envolvendo as ocupações e os movimentos de moradia organizados, a inventividade, a construção de alianças, as novas experimentações são estratégias de proteção e, no limite, de defesa da vida e pela vida.

Assim como no caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra os despejos aprovada pelo STF em meio à pandemia: a elaboração de dispositivos técnicos respeitando todo o trâmite legal nas instâncias formais em Brasília (em articulação e diálogo com partidos, mandatos/as e bancadas políticas eleitos/as, ministros do STF) não pode ser compreendida de modo descolado da dimensão e uso práticos que rapidamente passaram a ter: servir de arma nas batalhas “no terrão” para segurar, adiar e suspender remoções nas ocupações e periferias urbanas que não pararam de afligir comunidades durante a pandemia.

Também em relação ao caso das remoções nos quarteirões da cracolândia: recorrer às instâncias formais e exigir os atendimentos mínimos, mesmo que provisórios, não eram ações embasadas em uma aposta no cumprimento do rito processual ou na ilusão de que R$400,00 resolveriam a vida de alguém; mas porque o Estado precisa se responsabilizar/ser responsabilizado. Também o auxílio provisório se torna recurso e abre um leque de possibilidades, que serão investidos na garantia de dignidade, em defesa e manutenção da vida.

Recorrer às institucionalidades é uma possibilidade (entre outras que existem e também são acionadas) de proteção, ainda mais quando se está nas condições de informalidade popular criminalizada por diferentes formas. A instrumentalização dos parâmetros que constituem a trama institucional não se dá por um mero apego burocrático ou legalista, mas porque a mobilização dos recursos e tecnicalidades das tramas institucionais no enfrentamento de violações pode funcionar como uma barreira de contenção, impedindo ou ao menos retardando ainda mais violência (por exemplo: Carvalho et al., 2022CARVALHO, C. et al. (2022). Propósitos, premissas, conceitos e orientações para mitigação de riscos pela melhoria das condições de segurança predial em ocupações urbanas . São Paulo, Cajufa. ). A institucionalidade acaba operando, em muitos casos (mesmo que de modo circunstancial, temporário, frágil), como forma de proteção (da integridade física, inclusive) contra os distintos expedientes de criminalização mobilizados contra a informalidade popular. E também na atuação pelas bordas, brechas e na “correria”, muitas vezes é possível adaptar e recriar esses expedientes formais e institucionais e, assim, eventualmente, conseguir ultrapassar suas insuficiências, abrindo um arco novo de agenciamentos.

Contudo, do mesmo modo que as institucionalidades são utilizadas para se tentar resistir e garantir direitos e proteção, essa mesma trama também serve e legitima violações de direito, por agentes públicos e privados. Tradicionalmente, inclusive, é justamente essa trama e todas as suas instâncias e recursos que são acionados, por exemplo, para realizar remoções ( Santos, 2022SANTOS, E. A. (2022). Ocupações sob ameaças: práticas e instituições judiciais na (in)definição do (in)formal na moradia migrante. Dissertação de mestrado. Santo André, Universidade Federal do ABC. ). Portanto, o ponto não é exaltar a institucionalidade em si, como se ela fosse “naturalmente” virtuosa ou neutra; mas demonstrar como ela é instrumento de/na disputa e como vai ganhando dimensões, contornos e produzindo efeitos, situacionalmente, ao longo e devido ao conflito.

Considerações finais

Para além da constatação de que o conflito é constitutivo da história urbana, torna-se importante também fazer marcações mais situadas de tendências novas em jogo. Em relação aos casos empíricos que foram aqui descritos, há dois pontos importantes para se destacar como dinâmicas recentes que apontam para especificidades dentro dessa longa história conflitiva que inscreve a violência do Estado em sua relação com a informalidade popular, produção de territórios e de redes de defesa e proteção.

O primeiro ponto diz respeito à produção da precariedade a partir dos processos de despossessão e predação vigentes. Não que a violência e a precariedade não fizessem parte dos eventos de remoção e deslocamentos historicamente, mas existem dinâmicas e arranjos que se dão de modos distintos do que se deram no passado. São transformações da produção e gestão da precariedade e do papel do Estado – e da violência do Estado – na estruturação e territorialização de mercados e espaços urbanos.

Para ficar no caso de remoção e destruição de uma área popular e antiga do centro da cidade para a construção de PPPs entre iniciativa privada e Estado: por um lado, uma modelagem e arranjo público-privado, atrelado a uma engenharia financeira e circuitos de finanças; por outro, a produção e intensificação de remoções, de mercados informais de moradia e de precariedade. A construção de torres habitacionais e a remoção e demolição do tecido social anteriormente existente têm como efeitos (para além de uma ampliação do estoque imobiliário via PPP) a expansão da condição de precariedade e da informalidade que não é só induzida pelo Estado, mas também é produzida por ele, lastreada via política pública ( Guerreiro, 2020GUERREIRO, I. A. (2020). O aluguel como gestão da insegurança habitacional: possibilidades de securitização da moradia. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 22, n. 49, pp. 729-756. ). É o Estado não só impulsionando e dando suporte (inclusive, financeiro) à informalidade, como produzindo também (junto de outros agentes) o próprio mercado informal. E como historicamente acontece: a expansão e produção de novos mercados são um processo brutalmente violento.

Tem-se estabelecido o nexo entre a violência e (produção/expansão de) mercado – com o Estado agente promotor de ambos ( Tilly, 1985TILLY, C. (1985). “War making and state making as organized crime”. In: EVANS, P. et al. Bringing the State Back In . Cambridge, Cambridge University Press. ). É isso que é possível vislumbrar: a violência política produzindo mercados – novos e formais, como é o caso dos apartamentos das torres da PPP, ao mesmo tempo que há a expansão e produção de novos arranjos e circuitos informais de moradia, monetarizados, seja pelo entrelaçamento e atravessamento com outras atividades e mercados informais, seja porque irrigados e “turbinados”, por exemplo, pelo dinheiro oferecido pela prefeitura nos casos de remoção, o Auxílio Aluguel.

Nesse caso, a política pública do Auxílio Aluguel – que, no fundo, é uma política pública de remoção – funciona não só como indexador de valores nos mercados informais de moradia, ocupações e pensões, entre outros espaços; como também, na sua existência e funcionamento em si, ela articula e transaciona o formal e informal (e ilegal, em alguns casos), produzindo uma relação e conexão diretas (nesse caso, via Estado, mas com a participação de outros muitos grupos privados, mais ou menos organizados) entre violência, política pública e mercados. A produção da informalidade revela-se não como terreno e práticas que se forjam fora do Estado, de forma não regulada, de baixo para cima apenas, mas sim como própria das “estruturas de poder”, com o Estado constituindo-se ele próprio como uma “entidade informalizada”, que usa a informalidade como instrumento de acumulação e autoridade (Roy, 2009b, p. 81).

O segundo ponto que parece revelar dinâmicas novas diz respeito às redes de apoio e resistência às remoções, que são operadas em circuitos e cruzamentos que antes não aconteciam nos termos atuais ou, pelo menos, não na mesma velocidade e escala. Tais redes se apoiam nas tramas e espaços institucionais e jurídicos conquistados e instrumentalizam-nos na tentativa de reativar os sentidos democráticos e emancipadores inscritos nas disputas que os originaram. Fazem uso estratégico da lei – do mesmo modo que o Estado também o faz.

Na ativação das redes de apoiadores nos momentos de emergência e de processamento (institucional, político, jurídico) do conflito, temos dimensão da amplitude que elas adquirem, de sua heterogeneidade e de seu poder de ação transescalar, conectando as “ruas” aos espaços institucionais, legislativos (em suas três esferas), mas também a espaços e coletivos internacionais; ligando lideranças de movimentos populares, moradores de ocupações e assentamentos populares, ativistas de direitos humanos, advogados/as populares, urbanistas e assessorias técnicas, pesquisadores, artistas, agentes e coletivos de cultura e de saúde, jornalistas, midiativistas, parlamentares e bancadas coletivas/ativistas. São distintas as atuações e repertórios conectados, acessando a trama e espaço institucionais estabelecidos, mas também buscando construir outros.

Os direitos, instrumentos e arenas de negociação e regulação institucionais servem de horizonte para a real efetivação das promessas que esse mesmo conjunto anuncia, assim como seu uso e referência podem servir como ferramenta nas disputas contra as violências de agentes estatais ou não. Entre outros caminhos e estratégias de ação que também são simultaneamente acionados, o recurso às institucionalidades serve como tentativa de contornar os riscos e violências decorrentes do desamparo e da brutalidade do poder estatal. Na instrumentalização estratégica das institucionalidades, abre-se oportunidade para essa própria trama se tensionar e se refazer, na busca pela superação de suas limitações, na ampliação de seus sentidos. Nesse processo de disputa e (re)invenção, vão se reordenando também os contornos e (re)ações do Estado, assim como o próprio campo do conflito se reconfigura. E, nas confluências, concorrências e coerções de todas essas condicionantes e circunstâncias, realizam-se a busca e esforços constantes de pessoas comuns em construir espaços e cotidianos, garantir possibilidades de segurança, estabilidade e prosperidade.

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    » http://www.labcidade.fau.usp.br/prefeitura-removeu-dois-quarteiroes-inteiros-do-centro-de-sao-paulo-durante-a-pandemia/
  • SANTOS, R. A.; GUERREIRO, I. A. (2020). “Ocupações de moradia no centro de São Paulo: trajetórias, formas de apropriação e produção populares do espaço – e sua criminalização”. In: MOREIRA, F.; ROLNIK, R.; SANTORO, P. (eds.). Cartografias da produção, transitoriedade e despossessão dos territórios populares . São Paulo, Observatório de Remoções.
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  • SCHILLER, N.; ÇAGLAR, A. (2018). Migrants & City-Making – Dispossession, displacement & urban regeneration . Durham e Londres, Duke University Press.
  • TELLES, V. (2009). Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder. Revista Dilemas, n. 5-6, pp. 97-126.
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  • TROUILLOT, M. (2001). The anthropology of the state in the age of globalization. Current Anthropology , v. 42, n. 1, pp. 125-138.
  • VÍDEO mostra moradores atingidos por muro derrubado na Cracolândia (2017). G1-SP. Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/video-mostra-moradores-atingidos-por-muro-derrubado-na-cracolandia.ghtml Acesso em: 8 set 2023.
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  • VIOLAÇÕES ao direito à moradia em São Paulo no contexto de pandemia do novo coronavírus (2020). Labcidade. Disponível em: http://www.labcidade.fau.usp.br/violacoes-ao-direito-a-moradia-em-sao-paulo-no-contexto-de-pandemia-do-novo-coronavirus/ Acesso em: 8 set 2023.
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  • YIFTACHEL, O. (2020). From displacement to displaceability. City, v. 24, n. 1-2, pp. 151-165.

Notas

  • 1
    Estado aqui compreendido não como aparato homogêneo e monolítico, mas como feito – e efeito – de práticas, técnicas, relações, ordenações, repertórios, movimentações ( Mitchell, 2006MITCHELL, T. (2006). “Society, economy, and the state effect”. In: SHARMA, A.; GUPTA, A. (org.). The anthropology of the state: a reader . Malden, Blackweel Publishing. ; Trouillot, 2001TROUILLOT, M. (2001). The anthropology of the state in the age of globalization. Current Anthropology , v. 42, n. 1, pp. 125-138. ). Por essa razão, para dar conta de reconstituir que Estado é esse e suas instâncias de ação, a estratégia etnográfica de descrever e analisar “os encontros com o Estado” ( Trouillot, 2001TROUILLOT, M. (2001). The anthropology of the state in the age of globalization. Current Anthropology , v. 42, n. 1, pp. 125-138. ).
  • 2
    Em outros termos e análise, Feltran (2020)FELTRAN, G. de S. (2020). The entangled city: crime as urban fabric in São Paulo. Manchester University Press. formula e trabalha com regimes normativos: demonstrando que não existe apenas um único e absoluto regime, o autor afirma que existem outros, e que esses distintos regimes que regulam a vida social podem conviver, de modo não harmônico e muitas vezes conflitivo, mas também em coesão e hibridização. Um regime normativo que regula espaços, modos de vida, códigos e condutas, com reconhecimento e legitimidades sociais, definir-se-ia, em última instância, pela sua capacidade (e condição) de (poder) recorrer à violência para ser reconhecido e se fazer valer. Para o autor, um outro regime normativo, além do legal/estatal, seria, por exemplo, o do “mundo do crime”.
  • 3
    Neste artigo, o foco não será a população que constitui o fluxo nem as muitas operações violentas que cotidianamente o tem como alvo. Em 2022, ocorreu a expulsão do fluxo dos quarteirões alvos da intervenção urbana em questão, fazendo com que sua concentração se dissipasse pelo centro de São Paulo. O ponto que interessa aqui destacar é como a implementação dos projetos de PPPs, a remoção da antiga população moradora da região e a dispersão do fluxo e seus desdobramentos fazem parte de um mesmo processo e têm relação direta. E não foi a primeira vez que demolições de imóveis e expulsão do fluxo aconteceram de forma combinada e escalada na região – esta se constituiu como uma estratégia política de intervenção e reestruturação urbana desse território.
  • 4
    Sobre a megaoperação: Basso (2017)BASSO, G. (2017). Megaoperação na Cracolândia pretende marcar início de reurbanização no centro de São Paulo. Notícias R7. Disponível em: https://noticias.r7.com/sao-paulo/megaoperacao-na-cracolandia-pretende-marcar-inicio-de-reurbanizacao-no-centro-de-sao-paulo-29062022. Acesso em: 8 set 2023.
    https://noticias.r7.com/sao-paulo/megaop...
    . Sobre a demolição com trator de imóveis com gente dentro: “Vídeo... (2017).
  • 5
    O Plano Diretor municipal estabelece e delimita Zeis, que são terrenos da cidade que devem ser preservados, priorizados ou destinados como moradia popular, tendo para isso que preservar ou melhorar as condições de quem já mora na área ou construir novas moradias e destinar para habitação de interesse social, em tese. As Zeis 3 são aquelas demarcadas nas áreas centrais, povoadas e dotadas de infraestrutura urbana. Em princípio, segundo também o Plano Diretor municipal, todas as intervenções, projetos e atendimentos da população que vive em uma Zeis devem ser discutidos e aprovados no âmbito de um Conselho Gestor, paritário entre poder público e sociedade civil, eleito pela população moradora da Zeis.
  • 6
    Marino et al. (2020)MARINO, A. et al. (2020). Remoções aumentam durante a pandemia na Grande São Paulo. Labcidade. Disponível em: http://www.labcidade.fau.usp.br/remocoes-aumentam-durante-a-pandemia-despejozero/. Acesso em: 8 set 2023.
    http://www.labcidade.fau.usp.br/remocoes...
    . Os mapeamentos de remoções do Observatório de Remoções (OR) referem-se, sobretudo, à Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). E, apesar do esforço de acompanhar e mapear os casos de ameaças e remoções feitos pelo OR, reconhecemos que os números que obtemos permanecem subdimensionados. Não existe uma leitura total da realidade, apenas recortes e retratos parciais e momentâneos, circunscritos temporal e geograficamente ou de acordo com a extensão das redes e parceiros estabelecidos. As remoções forçadas desde sempre têm um caráter de invisibilização, no sentido de não se ter informações precisas, de nunca se ter a dimensão exata do que está sendo feito, os procedimentos usados, para onde vão e o que acontece com os removidos, de haver sempre uma falta de rastros – nesse sentido, o trabalho de monitoramento de remoções feito pelo OR poderia se enquadrar em um esforço de produção e reconstituição de dados.
  • 7
    Violações... (2020); ONU... (2020).
  • 8
    https://www.campanhadespejozero.org/ . A partir da atuação e incidência política e jurídica da Campanha e de parceiros em torno dela, algumas leis (municipais, estaduais, chegando até o nível federal) contra os despejos durante a pandemia foram aprovadas. Houve também a construção política e jurídica em torno da aprovação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de número 828, aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu remoções no País até março de 2022. Na prática, remoções continuaram ocorrendo, mas é inegável a importância da conquista e como ela foi amplamente mobilizada e acionada como recurso e precedente pelos movimentos e redes parceiras de defesa nas disputas referentes a casos de ameaça de remoção que insistiam/insistem em acontecer.
  • 9
    Há uma dimensão, na relação com o Estado nos eventos de conflito, nos territórios em disputa e nos episódios de violência a corpos e populações, que é importante registrar, pois ela conforma a realidade existente contra a qual as estratégias que estão sendo descritas têm que lidar: na grande maioria das situações, o Estado se faz presente, seja como fonte de ameaça, seja como regulador e mediador. As práticas de negociações e enfrentamento recorrem também aos espaços institucionais e ao diálogo com o Estado e seus agentes – o que reforça sua “força gravitacional” e revela que a autoridade estatal é evocada mesmo ela sendo a fonte perpetuadora de violência (Das, 2004, p. 229).
  • 10
    Como no caso, por exemplo, das milícias do Rio de Janeiro, que entre muitos negócios e serviços desempenhados e cobrados estão envolvidos em empreendimentos habitacionais ( Araújo, 2017ARAÚJO, M. (2017). House, tranquility and progress in an area de milícia in Rio de Janeiro. Vibrant, v. 14, n. 3, pp. 1-17. ): por um lado, as pessoas moradoras encontram abrigo e moradia; por outro, ficam submetidas a formas de extorsão em troca de “proteção” e “tranquilidade” ( Araújo, 2022ARAÚJO, M. (2022). Urbanismo miliciano, remoções públicas e fragmentação política. Labcidade. Disponível em: http://www.labcidade.fau.usp.br/urbanismo-miliciano-remocoes-publicas-e-fragmentacao-politica/. Acesso em: 8 set 2023.
    http://www.labcidade.fau.usp.br/urbanism...
    ).
  • 11
    No cerne dos ilegalismos e de sua gestão diferencial, estão os jogos e usos estratégicos com a lei, entendidos não como lacunas ou falhas a serem superadas, mas em sua dimensão produtiva que estabelece e organiza as relações com a lei – seja buscando contornar, ignorar, seja buscando aplicar, reforçar ou fazendo cumprir.
  • *
    Este texto é fruto de pesquisa de doutorado em andamento, financiada pela Fapesp (Processo n. 2020/02075-1), e de bolsa de intercâmbio Bepe (Processo n. 2022/06583-7). Este artigo é dedicado às pessoas que perdemos no caminho das remoções e demolições das “quadras” da “cracolândia”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2023
  • Aceito
    15 Maio 2023
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