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Dois tempos do neoliberalismo brasileiro como governo das cidades

Resumo

Este artigo discute duas diferentes fases de aclimatação do neoliberalismo como prática de governo das cidades no Brasil. A primeira, como progressismo neoliberal e a segunda, como gestão autoritária, austera e militarizada do colapso social. Na primeira parte, dialogo com os trabalhos de Dardot e Laval (2009 e 2016) e de Dardot et al. (2021), para inscrever o debate proposto na transição entre duas expressões do neoliberalismo, primeiro, como razão mundo ou racionalidade política e segundo, como estratégia de guerra. Na segunda parte, tais fases serão observadas a partir de recentes transformações nas práticas de governo das cidades, através da análise de alguns exemplos relacionados aos últimos programas de provisão habitacional e regularização fundiária vigentes no Brasil.

neoliberalismo; movimentos sociais; filosofia política

Abstract

This article discusses two different phases of neoliberalism as city government practice in Brazil: the first one as progressive neoliberalism and the second as authoritarian, austere, and militarized management of social collapse. In the first part of the text, I use the works of Christian Laval and Pierre Dardot (2009 [2013] and 2016) and Dardot et. al (2021) to inscribe the proposed debate in the transition between two expressions of neoliberalism, initially as world reason or political rationality and later as war strategy. In the second part, such phases will be observed through recent transformations in city government practices, using some examples related to the latest housing and land regularization programs.

neoliberalism; social movements; political philosophy

Primeira parte

Dois neoliberalismos

É possível sugerir pelo menos duas diferentes fases da aclimatação do neoliberalismo no Brasil do século XXI como modo de governo das cidades. A primeira fase, inscrita no período de relativa estabilidade econômica e republicana, aqui nomeada como progressismo neoliberal, iniciada com a estabilização cambial da moeda nacional, posteriormente inscrita no contexto do boom das commodities , e encerrada com o golpe do impeachment (1994-2014). Nesse período, os diferentes governos nacionais eleitos, de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, teriam exercido gestões baseadas igualmente numa potente e renovada rede de programas e políticas públicas capazes de realizar o controle das urgências sociais, concomitantes a uma tímida inclusão social mediada pela ampliação da capacidade de consumo da população de menor renda, mas sem, no entanto, proporcionar uma ampliação duradoura da garantia de direitos básicos e programas, mediados pelo Estado, capazes de alterar a herança colonial e escravocrata da formação brasileira, o que resulta, ainda hoje, na produção de cidades segregadas e desiguais. Em resumo, tratou-se de uma frágil e não duradoura inclusão pelo consumo ou uma espécie de miragem/emulação do bem-estar social. E a segunda fase, gestada após o golpe do impeachment e ainda mais acentuada após a eleição presidencial de 2018, caracterizada por uma recente guinada autoritária, austera e militarizada do planejamento, da gestão e das políticas públicas, em avançado cenário de crise sistêmica do desemprego e do colapso dos direitos sociais básicos, no qual tais gestões públicas parecem fazer uso de um renovado arcabouço de práticas de governo que expressam um neoliberalismo, agora, de violência mais explícita, austero e militarizado.

Esse panorama esquemático e ensaístico de duas fases, que procura esboçar duas distintas temporalidades da aclimatação brasileira do neoliberalismo, é, neste texto, utilizado como recurso para exercício de identificação e qualificação das diferentes formas do neoliberalismo e das suas práticas associadas para controle e gestão das populações, cidades e metrópoles. É o que proponho como exercício. Isso posto, é preciso ressaltar, no entanto, que ambas as formas, apesar de mais bem-localizadas em cada um dos cortes temporais mencionados anteriormente, de forma alguma se encerram nestes, mas sim sobrepõem-se, oscilam e renovam-se entre tais períodos, assumindo, no presente, características mais direitas de uma forma de governo do colapso social, característico da crise da modernidade, ainda que com inegáveis continuidades do período precedente. Mais que isso, a história do Brasil e, portanto, da produção do espaço e da formação de nossas cidades e metrópoles continua como resultado de um contínuo da interação produtiva entre o arcaico e o moderno ( Oliveira, 2003OLIVEIRA, C. (2003). Crítica à razão dualista e o Ornitorrinco . São Paulo, Boitempo. ).

A produtiva sobreposição dos tempos e fases do desenvolvimento, observadas através da crítica da perspectiva desenvolvimentista no Brasil, precede a ocorrência recente de uma generalizada crise dos regimes de legitimidade relacionados à sociabilidade solidária e à justiça social, em todo o mundo ocidental, como expressão decorrente de profundas mudanças nas sociedades e cidades determinadas sob as últimas metamorfoses do neoliberalismo. Tal situação poderia ser observada e apreendida a partir de uma grande diversidade de aspectos do cotidiano das cidades brasileiras – inclusive em meio aos conflitos sociais relacionados à luta pela permanência nos locais habitados e nos territórios de origem – e, em grande parte do mundo, apontando para um estágio de avançada falência dos modelos de governos baseados no bem-estar social, tal como foram estruturados, não somente quando vistos a partir do tempo de longa duração no curso histórico da modernidade, mas também no sentido amplo da vida pública e política nas sociedades ocidentais – ao menos enquanto horizonte de expectativa e projeto futuro.

Essencial destacar que uma tal referência moderna de legitimidade da justiça social e da solidariedade teria exercido ampla mediação e regulação nos conflitos situados entre as liberdades do mercado capitalista e a garantia dos direitos básicos, sobretudo na segunda metade do século XX, no período pós-Guerra, enquanto se consolidavam diversos dos tratados internacionais que, em grande medida, subordinaram – pelo menos enquanto tratados, manifestos e documentos públicos – a ordem econômica à justiça social ( Supiot, 2010SUPIOT, A. (2010). L'esprit de Philadelphie: la justice sociale face au marché total. Paris, Éditions du Seuil (coll. Débats). ). A derrocada desses referenciais de justiça social, bem como a redução generalizada do acesso aos direitos básicos por intermédio do Estado e sua administração, a desregulamentação generalizada do trabalho, com sua gradual substituição por intermédio das relações privadas, no entanto, não são eventos novos. Muito pelo contrário, tal inflexão data, no centro de poder econômico, pelo menos da década de 1970, a partir de quando diversos governos ocidentais ampliaram as agendas de austeridade e redução dos direitos sociais básicos, à medida que avançavam as mediações não estatais e sobretudo do mercado e das soluções privadas sobre todas as instâncias da vida social.

Esse amplo movimento mundial, que poderia ser classificado grosso modo como parte importante do processo de gestação da nova governamentalidade (Foucault, 2004a), acumula hoje, portanto, ao menos meio século desde sua última grande inflexão nos modos de gestão da vida social, estabelecendo seu triunfo com base em uma nova e generalizada racionalidade política não restrita apenas às mediações econômicas, mas capaz de produzir subjetividades e mediar todos os aspectos da vida sob as condicionantes do empresariamento e da competitividade ( Dardot e Laval, 2009DARDOT, P.; LAVAL, C. (2009). La nouvelle raison du monde: essai sur la société néolibérale . Paris, La Découvert/Poche. ).1 1 Opto pelo uso da versão original, em francês, dado que a tradução brasileira, publicada em 2013, suprimiu parte do texto. Esse enquadramento de situação nos daria paramentos, inclusive, para melhor compreendermos grande parte dos limites e dos fracassos do recente ensaio brasileiro pela ampliação dos direitos sociais, ocorrido durante parte do período da Nova República. No Brasil, teríamos vivido um ciclo tardio de reformas pela redução das desigualdades e ampliação do acesso aos direitos sociais elementares, diante de uma enorme e persistente desigualdade social – ainda fortemente vinculada à herança da escravidão e dos passivos coloniais característicos do hemisfério sul ( Oliveira, 2003OLIVEIRA, C. (2003). Crítica à razão dualista e o Ornitorrinco . São Paulo, Boitempo. ), enquanto já pulsava com plenitude a força social das mediações neoliberais em toda a sociedade, inclusive determinando as próprias políticas públicas conduzidas por governos pretensa ou manifestadamente progressistas e de esquerda. Tal sobreposição de períodos explicaria a impossibilidade, e inclusive parte do inevitável fracasso, do projeto nacional tardio por uma sociedade republicana e democrática de direitos, brasileira. Em poucas palavras, os governos brasileiros ocorridos entre os anos de 1994 e 2014, portanto, teriam, sobretudo, realizado um grande agenciamento neoliberal das emergências e das urgências sociais, criando diversos programas e políticas públicas que terminam por atuar como uma potente rede e dispositivo de governo das emergências ( Oliveira e Rizek, 2007OLIVEIRA, C.; RIZEK, C. (2007). A era da indeterminação . São Paulo, Boitempo. ) sem, no entanto, produzirem mudanças reais e duradouras nas sociedades e nas suas cidades para ampliação do bem-estar social coletivo.

Feitas tais considerações anteriores, para fins de corte esquemático do tempo que antecede o momento em que se situa este artigo, página virada, estaríamos no presente vivenciando o momento seguinte ao ciclo mundial daquilo que se convencionou nomear genericamente como neoliberalismo no interior das democracias liberais ou mesmo, de forma mais precisa, como neoliberalismo progressista ( Fraser, 2017FRASER, N. (2017). From progressive neoliberalism to Trump – and beyond. American Affairs Review. American Affair Fundation, v. 1, n. 4, pp. 46-64. ), ou ainda, neoliberalismo de esquerda ( Dardot e Laval, 2009DARDOT, P.; LAVAL, C. (2009). La nouvelle raison du monde: essai sur la société néolibérale . Paris, La Découvert/Poche. , p. 316; Dardot e Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. (2016). Ce cauchemar qui n’en finit pas: comment le néoliberalisme défait la démocratie. Paris, La Découvert. , p. 216). Finada a possibilidade do horizonte de plenos direitos pela mediação da administração do Estado, e com o aumento gradativo do número de humanos supérfluos ao sistema de acumulação em todo o mundo – um crescente número de desempregados, migrantes, sem tetos, sem terras, população carcerária, entre outros –, em um planeta que ruma velozmente para a catástrofe ambiental e urbana sem perspectivas reais de alternativa, até o momento, estaríamos agora vivenciando um novo tempo do mundo caracterizado pela guerra civil contínua, o estado de exceção permanente e a militarização do cotidiano como formas de gestão do colapso social e ambiental em escala global ( Arantes, 2014ARANTES, P. (2014). O Novo tempo do mundo . São Paulo, Boitempo. ).

Com o esgotamento da possibilidade de retorno aos horizontes modernos da justiça social, um amplo espectro político da esquerda à direita é capturado em um mesmo quadro muito delimitado de aceleração de esgotamento da democracia ( Dardot e Laval 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. (2016). Ce cauchemar qui n’en finit pas: comment le néoliberalisme défait la démocratie. Paris, La Découvert. , p. 7) ficando reduzido, apenas, à realização de programas de adiamento do colapso social e de controle das urgências, gestando – como parte necessária desse movimento – uma nova governamentalidade espacial para a gestão das cidades, territórios e populações, delimitando – em hipótese – um renovado urbanismo austero, militar e autoritário , capaz de conduzir as cidades, as metrópoles e suas sociedades inseridas no colapso do horizonte normativo dos direitos sociais.

Tal consideração-enunciado de guinada autoritária poderia ainda ser reforçada, ou mesmo confirmada, pela simples observação dos resultados das eleições da última década, em diversas das democracias representativas em todo o mundo,2 2 Refiro-me à transformação das formas de exercício do poder de governo em escala global, em que o traço essencial e comum se dá pela emergência de experiências autoritárias com a chegada ao poder de representantes eleitos (democraticamente), portadores de discursos ultraconservadores, por vezes declaradamente racistas e xenófobos, com agendas igualmente voltadas à maior militarização do cotidiano e das relações sociais, por vezes também associadas aos programas de austeridade e redução das garantias dos direitos sociais. É o caso de Trump, nos Estados Unidos (2017-2021); Bolsonaro, no Brasil (2019-2022); Netanyahu, em Israel (1996-1999; 2009-2021; 2022-); Orban, na Hungria (2010-); e da recente e ampla ascensão de outros líderes de extrema direita, como Salvini e Giorgia Meloni na Itália, Marine Le Pen na França, do partido sueco SD, originado de um grupo neonazista, e do atual favorito nas eleições argentinas, Javier Milei, que se reivindica um anarcocapitalista, promete o fechamento de mais da metade do ministérios federais e a dolarização da economia. ponto que delimita o início de um novo ciclo de governos conjuntamente neoliberais, autoritários, populistas e com maior uso da violência estatal, trazendo à cena mais uma componente da aceleração da desconstrução e do deslocamento do horizonte ético e normativo dos direitos sociais. Para que seja possível a efetivação desse movimento de desconstrução e deslocamento, tais governos vêm se apoiando no uso de velhas, renovadas e novas formas de gestão e controle da população – no espaço –, baseadas na maior vigilância e militarização do cotidiano, incluída a necessidade do bloqueio ou mesmo de eliminação da população considerada supérflua à coesão mínima do sistema de acumulação altamente financeirizado, como discutem, em outros contextos territoriais, Graham (2016)GRAHAM, S. (2016). Cidades sitiadas. O novo urbanismo militar. São Paulo, Boitempo. e Weizman (2017)WEIZMAN, E. (2017). Hollow land: Israel’s architecture of occupation. Londres, Verso. .

Grosso modo , uma das formas possíveis de interpretar o sucesso de tais candidaturas autoritárias, recentemente eleitas de forma democrática, com propostas e programas de governo à extrema direita, apoia-se na capacidade de captura de uma generalizada sensação de insegurança na vida cotidiana, decorrente da dificuldade de manutenção das condições elementares de vida e do empobrecimento ante a crise estrutural do trabalho, fatores aliados, ainda, à descrença sobre as diversas instituições do Estado, inclusive em relação à capacidade institucional estatal de garantia dos direitos sociais básicos.

Em diversas partes do mundo, tal sensação difusa teria condicionado a maior aceitação do discurso de combate às atuais instituições do Estado, e também a maior aceitação das propostas de ampliação da securitização e do controle através da maior repressão das insurgências sociais e dos perigos inimigos indesejados – sejam eles existentes ou criados no imaginário social –, fornecendo, assim, uma resposta oportuna à expectativa popular ansiosa ante o aparente cenário de falência do horizonte de direitos sociais e ante a implosão da dimensão coletiva do trabalho. Porém, ao contrário de qualquer movimento em direção à possibilidade de retorno a um hipotético estágio passado de coesão da sociedade com estabilidade mínima, mediada pelo bem-estar social, esses novos governos autoritários à direita têm atuado, até o momento, por acelerar e aprofundar o quadro de colapso, resultando, portanto, na desconstrução das bases normativas e formais direcionadas à equidade na vida pública e coletiva das cidades e metrópoles. Nesse cenário de nova implosão da dimensão societária, o Brasil recente talvez seja um dos laboratórios mais significativos desse novo período, tendo seu governo federal (2019-2022) atuado velozmente para a mudança das legislações e normas que regulamentam garantias e o equilíbrio social, urbano, ambiental e territorial.

Em termos gerais, como parte dos fatores recentes que compõem esse ciclo de novos governos, conjuntamente neoliberais, violentos e austeros , e suas novas práticas, já podemos observar, em solo brasileiro – assim como em diversos outros países recém-governados pela mesma onda –, alguns fatores reincidentes: a implosão do trabalho como mediação da vida social; a ampliação e a renovação das formas de controle, isolamento e eliminação das populações não empregáveis e excedentes, através do aumento do encarceramento e da letalidade policial; o aperfeiçoamento das tecnologias e métodos, com aumento de eficiência e letalidade policial; a ampliação do controle de fronteiras (internacionais ou internas) para contenção dos movimentos de migração; a maior e mais violenta repressão aos protestos de rua; a ampliação dos grupos classificados como inimigos ou perigosos ao público; a ampliação dos lugares, ruas e bairros classificados como perigosos para gestão diferenciada do espaço; o exponencial uso de tecnologias de vigilância por linguagem de programação autônoma; a difusão dos discursos pelas chamadas cidades inteligentes; a banalização e aceitação popular – ainda maior – da violência em todos aspectos da vida, incluindo o incentivo ao armamento da população civil, muitas vezes defendido abertamente pelos chefes de Estado; os métodos de controle espacial através dos zoneamentos de securitização; os planos de governo e gestão baseados em indicadores e inteligência artificial com componente espacial; das gestões automatizadas do espaço urbano por programação autônoma; e também, finalmente, através da permanente expulsão das populações tradicionais, e/ou mais pobres, e/ou sem renda, de seus territórios originários e de residência, seja no meio rural, seja nos centros urbanos dotados de melhores infraestruturas, serviços e possibilidade de emprego.

Tomando tal quadro geral de eventos e práticas recentes como sinais do tempo presente e pilares das novas formas de governo baseadas na última aclimatação da metamorfose neoliberal, poderíamos sustentar inicialmente que, já um passo além das muito difundidas e consolidadas agendas de políticas públicas para gestão neoliberal da vida, que dominaram o expediente ocidental após a década de 1970, incluso o Brasil da Nova República, como forma de garantia da gestão das urgências sociais, estaríamos, agora, vivenciando a conformação do predomínio de governos apoiados naquilo que poderíamos chamar de um novo urbanismo austero e autoritário. Tal inflexão guarda ainda características fundamentais de uma governamentalidade neoliberal, tal como apresentadas por Foucault (2004a), ou como razão mundo , por Dardot e Laval (2009)DARDOT, P.; LAVAL, C. (2009). La nouvelle raison du monde: essai sur la société néolibérale . Paris, La Découvert/Poche. , para governo e autorregulação das populações, mas agora notadamente alterada pelo aumento das mediações violentas em vista da necessidade de operar cidades e territórios cada vez mais destituídos da dimensão da solidariedade e dos direitos sociais e, por isso, libertos do projeto normativo moderno da equidade social mínima.

Trata-se, portanto, de compreender o neoliberalismo em um novo cenário de gestão do colapso social, posterior (mas ainda sobreposto) ao momento anterior de generalização da gestão neoliberal do espaço e das cidades, buscando, assim, identificar e melhor compreender novas práticas de controle e vigilância da vida cotidiana.

O neoliberalismo como uma nova guerra civil em escala mundial?

Em A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo , Christian Laval e Pierre Dardot (2021)DARDOT, P. et al. (2021). Le choix de la guerre civile: une autre histoire du néolibéralisme. Québec, Lux. , com os professores e membros do Grupo de Estudos sobre o Neoliberalismo e Alternativas (Gena), Pierre Sauvêtre e Haud Guéguen, apresentam-nos o neoliberalismo como uma força historicamente capaz de produzir uma mediação de guerra civil contra todos os modos de vida e organizações sociais que se oponham ao projeto de imperativo regime de competição e acumulação, forma esta constituída, ao longo da história, como momentos de oposição direta ao socialismo, ao comunismo, ao sindicalismo, ao reformismo social e, mais recentemente, contra todo e qualquer movimento que defenda a solidariedade e maior igualdade social.

Para os autores, este seria, inclusive, o grande motivo e também a decisão inaugural do próprio neoliberalismo como uma oposição de princípio violento ( Dardot et al., 2021DARDOT, P. et al. (2021). Le choix de la guerre civile: une autre histoire du néolibéralisme. Québec, Lux. ) já na sua primeira gênese, no início do século XX. Tal gênese, contemporânea à revolução bolchevique, nasceu como proposta de oposição total à possibilidade da construção de sociedades igualitárias, oposição que se propõe de forma violenta ou em guerra aberta quando necessária. Nesse processo histórico apresentado, seria, então, o neoliberalismo, também, um nome a ser dado ao constante combate contra os projetos de sociedade mais igualitária em favor do imperativo da liberdade econômica para concorrência. Nessa chave de compreensão, portanto, o neoliberalismo é para os autores (ibid.) uma estratégia de guerra contra o inimigo defensor da igualdade ou, ainda, uma governamentalidade de guerra contra a igualdade e pela plena concorrência dos atores econômicos. A guerra civil é, assim, uma métrica inevitável à leitura do problema contemporâneo das cidades e dos territórios.

Ainda para esses autores, nomear tal forma de governo como guerra civil não seria uma extrapolação, tampouco exagero discursivo que tenta chamar a atenção para o momento presente; trata-se mesmo de uma guerra civil , é o que comprova o uso da força estatal quando se trata de reprimir ou controlar qualquer tipo de organização da sociedade que vise à resistência, à ampliação da distribuição de direitos ou à redução das desigualdades. Em solo brasileiro, nas cidades, nas metrópoles e no campo, o cotidiano de exponencial aumento da letalidade policial, ao longo das últimas duas décadas, ilustra e dá condição para sustentação de tal argumento. Esse crescimento da gestão violenta, no entanto, ocorre hoje não só no Brasil, mas em praticamente todo o mundo, inclusive nos centros econômicos, ainda que guardadas as proporções. Somados a isso, cada vez mais, os dispositivos jurídicos, policiais e tecnológicos – que são próprios e originários dos momentos de guerra – tomam uso corrente no cotidiano das cidades com caráter de gestão ordinária da ordem pública e da vida cotidiana. Talvez aqui as metrópoles sejam cenários e dimensão mais efetivos para elaboração e observação dessas mudanças presentes. Nesses centros urbanos, a população que reivindica uma outra ordem passa a ser também alvejada como alvo inimigo da sociedade e do Estado. No entanto, o real motivo desse combate não é a defesa e a proteção do bem-estar da sociedade, mas sim o alvejamento de parte dela ( Weber 2005WEBER, S. (2005). Targets of opportunities. On the militarization of thinking . Nova York, Fordham University Press. ), em função do fundamentalismo da ordem concorrencial.

No Brasil de hoje, temos, como amplo exemplo de tal gestão violenta, o último governo do Estado Federal (2019-2022) que exerceu abertamente um conjunto de práticas que caracterizariam uma espécie de guerra total contra os direitos sociais e as instituições da sociedade não alinhadas ao modelo neoliberal autoritário de pilhagem. Diversos campos da política pública foram incorporados por esse modo de gestão violenta: o meio ambiente, o mercado do trabalho regulado, o sistema de aposentadoria, os gastos públicos voltados aos direitos sociais (teto dos gastos), a universidade pública, entre outros.

Finalmente, ainda segundo Dardot et al. (2021)DARDOT, P. et al. (2021). Le choix de la guerre civile: une autre histoire du néolibéralisme. Québec, Lux. , é preciso ressaltar dois fatores desse momento presente: o primeiro, a oposição deliberada entre o Estado e alguns setores-chaves da população que se opõem à lógica neoliberal, no mesmo senso empregado por Foucault (2004a), nomeado como exercício do poder, porém agora realizado e operado através do apoio de uma parte da população civil; quer dizer, trata-se de uma guerra motivada por uma divisão interna produzida na sociedade, criando um campo de apoio popular para tais modos de governo; e o segundo fator, que é vinculado ao primeiro, a estratégica de criação de oposição entre duas frações da população. Para tanto é corrente mobilizar a defesa dos valores do passado, ou da família, e se opor aos “estrangeiros”, aos “esquerdistas”, aos “vagabundos”, aos “comunistas”, aos “invasores de terra”, enfim, através de um repertório mais ou menos comum, ativar, sugerir e conduzir uma ampla oposição às minorias, todos esses grupos tomados conjuntamente como inimigos internos que freiam o progresso. Tal conjunto de fatores orbita em torno de um imaginário securitário, como afronta à segurança da “outra” fração da população honesta, trabalhadora e de bem e, portanto, passível de combate legítimo pela força do Estado.

Considerando essas duas diferentes fases de aclimatação do neoliberalismo, conforme o exposto até aqui, a segunda parte deste artigo procura apresentar uma tentativa de identificação das diferentes expressões do neoliberalismo brasileiro através da lente das políticas públicas de habitação em sua relação com os movimentos de luta por moradia e suas resistências. Para tanto, este exercício recorrerá a uma brevíssima leitura do Programa Minha Casa Minha Vida, tomado como dispositivo de gestão característico do período neoliberal progressista de centro esquerda, revelando algumas das implicações dessa prática de governo sobre a produção do espaço urbano e metropolitano e, na sequência, discutindo alguns pontos essenciais na mais recente política habitacional de regularização fundiária, como expressão da austeridade e da retirada gradual do Estado como ente garantidor de infraestruturas e serviços urbanos.

Segunda parte

Dispositivo neoliberal progressista

A transversalidade da racionalidade neoliberal pode ser compreendida como fator determinante na concepção das políticas públicas do período anteriormente denominado neoliberalismo progressista ou neoliberalismo de esquerda , o que fica evidente quando destacamos algumas das características do funcionamento do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), nas suas duas primeiras edições. Para tanto, seria possível ler tal programa público como um dispositivo neoliberal do século XXI brasileiro, potente e muito bem-acabado, por ser capaz de – ao mesmo tempo – mobilizar a reprodução do capital da construção civil, agora ampliado aos ciclos financeiros das bolsas de valores; capturar os expedientes de luta e resistência; e, além disso, apresentar-se através da legitimidade discursiva da ampliação do bem-estar social e da redução das desigualdades, produzindo, como resultado, a pacificação gerenciável e momentânea da vida cotidiana que insurge contra a expulsão dos mais pobres dos centros metropolitanos ou de seus territórios de origem.

Dessa maneira, o MCMV foi capaz de alterar, não somente a forma e a estratégia de luta dos movimentos sociais de moradia, mas também a lógica de existência desses movimentos (Dal'Bó da Costa, 2019). Em termos gerais, e observando diferentes movimentos de luta por moradia, em diferentes Ocupações, ao longo da década de 2010, é possível afirmar que, num primeiro momento, as lutas por moradia migraram da ação de contestação direta à ampla negociação com as administrações públicas e, num segundo momento, o próprio movimento social foi transformado em gestor do programa, gerenciador de cadastros de demanda, resultando até mesmo na competição entre os próprios movimentos e suas demandas e, sobretudo, entre os movimentos e a população não organizada.

Em resumo, e por etapas, o que vimos foi a seguinte transição: primeiro, os movimentos realizam uma série de ocupações para conseguir atenção do Estado e a abertura de negociação com os governos vigentes, nesses atos, como a ocupação é meramente contestatória, na maior parte dos casos, deixa de ser central a localização do terreno ocupado, uma vez que as ocupações perdem sua perspectiva de consolidação ( Rizek e Dal’Bó, 2015RIZEK, C. S.; DAL’BÓ, A. (2015). The Growth of Brazil s Homeless Workers Movement. Global Dialogue. Berkeley. ). Segundo, uma vez ingressados nos expedientes de negociação de gestão dos municípios, os movimentos garantem lugar nos cadastros de demanda do Minha Casa Minha Vida para os seus organizados. Num terceiro momento, diferentes movimentos de moradia disputam entre si os repasses públicos para a garantia de suas demandas; no quarto e último momento, o movimento passa a ser – ele mesmo – o gestor do programa, assumindo a organização dos próprios cadastros, a busca por terrenos, a negociação com construtoras e uma outra grande variedade de funções, antes estatais. Finalmente, quando a segunda edição do programa é encerrada, em 2019, os movimentos são amplamente desmobilizados (Dal'Bó da Costa, 2019) ou, ao menos, encontram-se muito capturados pelas rotinas parlamentares e executivas do poder público.

Em resumo, o que se pode observar é a implosão dos vínculos de solidariedade de classe e de luta pelos direitos sociais no horizonte do bem-estar social , o que antes motivava a existência dessas lutas. Tal feito se realizou através de uma tecnologia de governo neoliberal, em dois diferentes momentos de aclimatação.

É preciso ressaltar que o MCMV, vigente entre os anos de 2009 e 2019, delimitou o período de maior produção habitacional mediante intervenção/mediação estatal da história do Brasil. O volume de unidades produzidas no programa até o ano de 2017 era de 4,7 milhões de unidades, o equivalente a 6% do total de domicílios existentes no Brasil em 2010.3 3 Para comparação, considerou-se o número total de domicílios particulares permanentes segundo o Censo ( IBGE, 2010 ). Já o volume contratado equivaleria a pouco mais de 8%, notadamente um volume enorme de construções, determinando grandes alterações nas cidades brasileiras em um curto espaço de tempo.

Quanto à mudança relacionada ao impacto regional e ao espraiamento dos perímetros urbanos, o MCMV revelou-se extremamente nocivo às cidades brasileiras, por ter produzido principalmente conjuntos habitacionais mal localizados e de baixíssima qualidade arquitetônica, contribuindo para a perpetuação e o agravamento da segregação espacial e social determinada pela diferença de renda da população. O programa também inflacionou o preço do mercado imobiliário, sobretudo os valores dos aluguéis. Irônica – ou tragicamente –, após os 6 primeiros anos de existência do MCMV, o déficit habitacional brasileiro teria aumentado significativamente nas regiões metropolitanas e nas grandes cidades.4 4 Dados sobre o déficit habitacional segundo a Fundação João Pinheiro para os anos de 2010 e 2015. Isso teria ocorrido principalmente por conta da grande alta dos preços do aluguel, que atingiu 51,77%5 5 A variação do Índice Fipe-ZAP para valor de aluguel no período de março de 2009 até março de 2015 é de 98,37%, enquanto a variação do IPCA, no mesmo período, é de 46,60%. Portanto, no mesmo período os aluguéis subiram 52,70% acima da inflação. na média brasileira, sendo ainda maior nas capitais e grandes cidades. Essa alta levou uma nova massa de famílias a se enquadrarem na categoria de ônus excessivo de aluguel.6 6 Segundo a Fundação João Pinheiro, o ônus excessivo de aluguel é caracterizado pelo comprometimento de mais de 30% da renda familiar com o pagamento do aluguel.

Trata-se, portanto, de colocar o programa MCMV sob a perspectiva da capacidade de incorporação característica do neoliberalismo, a qual seria capaz de unir e pacificar uma enorme complexidade de forças divergentes e contraditórias da sociedade, unindo mercado, acumulação e o discurso dos direitos sociais em um mesmo momento, em um só discurso legítimo, agora forjado pelo governo, através de uma racionalidade política plena e universalizante.

A novidade que se revela é a capacidade de fazer isso tudo, ao mesmo tempo, por meio da aparência da política pública de habitação e com apelo populista: pacificação social; enquadramento dos divergentes; promoção da competição; e garantia de grandes negócios com legitimidade pública. Diante de tal situação, fica evidente que, para além da relação estrita entre mercado e Estado; o neoliberalismo pode ser definido pela generalização de uma racionalidade política que estende sua lógica ao conjunto da sociedade ( Dardot e Laval, 2009DARDOT, P.; LAVAL, C. (2009). La nouvelle raison du monde: essai sur la société néolibérale . Paris, La Découvert/Poche. ). Nesse sentido, o Minha Casa, Minha Vida revela-se como um exemplo muito bem- acabado de um dispositivo 7 7 Uso o termo dispositivo no sentido amplo empregado por Foucault (2004a): uma rede que se pode estabelecer entre um conjunto diverso e heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, entre outros elementos. neoliberal capaz de formar uma rede entre esses diversos elementos.

Finalmente, a existência do PMCM não se explicaria sem a ação dos códigos que nasceram da forma empresa e imperam sobre uma tal racionalidade neoliberal, legitimada na sociedade por meio de técnicas, discursos e práticas institucionais as quais teriam produzido, portanto, uma subjetividade empresarial marcada pela competitividade, alterando profundamente a vida nas cidades, possibilitando que uma renovada estratégia de acumulação imobiliária aparecesse sob a máscara da política pública promotora de direitos, incluindo, inclusive, os movimentos sociais de luta por moradia, como agentes de sua força.

A lógica da racionalidade neoliberal, que transborda à dimensão puramente econômica dos processos nomeados como financeirizados ou financializados , faz-se assim presente em meio à produção do espaço, através das normas da exacerbação da individualidade, da competitividade, do autoempresariamento, do permanente cálculo de risco nas relações entre pessoas e na implosão da mediação e da legitimidade da solidariedade na vida cotidiana. É o que, em larga medida, sustenta o imperativo liberal econômico e o atual processo em curso para desconstrução das sociedades de direitos sociais básicos em todo o mundo ocidental.

Para ilustrar territorialmente o resultado espacial do programa, na sequência, apresento o mapeamento de espraiamento causado pelo MCMV nas regiões metropolitanas de Campinas e São José dos Campos, onde se inserem os casos das ocupações estudadas ao longo do meu processo de pesquisa de mestrado e doutorado: as ocupações Vila Soma (2012-atual), Zumbi dos Palmares (2008-2013) e Pinheirinho (2004-2012). Apresento, também, o mapeamento de algumas outras capitais e regiões metropolitanas do Brasil, onde as mudanças são igualmente muito significativas, demonstrando um padrão único induzido pela política pública de habitação.

Os mapas apresentados na sequência falam por si e confirmam a reiteração da segregação espacial, o espraiamento das cidades e das metrópoles. Destaca-se como novidade que, se durante a formação das grandes cidades e metrópoles brasileiras, ao longo da segunda metade do século XX, a segregação espacial consolidou-se, sobretudo, através da autoconstrução em terrenos irregulares e periféricos, com ausência do Estado (ainda que uma ausência planejada), no presente momento o MCMV é indutor do novo ciclo de espraiamento e segregação, dessa vez com presença mais determinante do Estado.

Um novo cenário de governo das cidades 8 8 Parte dos trechos B e C, da segunda parte deste texto, decorrem da apresentação realizada no Instituto de Estudos Avançados da USP, durante o debate "Qual a agenda de pesquisa para crítica das metamorfoses do neoliberalismo?" durante o 2º Seminário Metamorfoses do Neoliberalismo, em novembro de 2020.

Como compreender as formas de governo das cidades, das metrópoles e – de forma mais ampla – do território brasileiro no presente tempo de guinada autoritária, austera e militarizada, características do momento aqui denominado neoliberalismo austero, militarizado e de violência explícita ? Como pensar a produção das cidades e as resistências diante do aumento de violência como meio de organização do território? Os últimos eventos de desmatamento e garimpo na Amazônia, o combate deliberado aos territórios indígenas e tradicionais e a ainda ampliação do encarceramento e do extermínio da população pobre, negra e periférica, levados a cabo como projeto aberto de gestão pela alta cúpula do último governo federal (2019-2022), demonstram que a violência intensiva e a proposta de destruição dos direitos sociais estiveram no centro das novas práticas deste governo.

É notável que a tentativa de enquadramento através das noções da racionalidade neoliberal, seja na chave foucaultiana da biopolítica, seja na sua atualização da razão mundo , de Dardot e Laval (2009)DARDOT, P.; LAVAL, C. (2009). La nouvelle raison du monde: essai sur la société néolibérale . Paris, La Découvert/Poche. , antes debatidas, limitaria a leitura do presente autoritário, pois delas escapam o elemento mais violento empregado de forma aberta e ampliada, ainda que como gestão das populações. Apesar disso, não se trata de considerar encerrado o tempo histórico do neoliberalismo , tampouco a obsolescência de um enquadramento teórico, mas sim de buscar suas novas temporalidades e metamorfoses, bem como as possíveis sobreposições entre seus tempos.

Assim, é possível ainda reconhecer o neoliberalismo como continuidade da força de coesão social que historicamente foi capaz de produzir o combate direto contra todas as propostas de vida e organização social mais solidárias e que agora produz novos inimigos internos para tanto, sendo o Estado continuamente o encarregado de vigiar, reprimir, controlar, bloquear e, no limite, guerrear contra qualquer tipo de organização da sociedade que vise à ampliação da distribuição de direitos ou à redução das desigualdades em função da garantia do imperativo concorrencial.

Em decorrência disso, assistimos, no presente, a uma transformação do uso dos dispositivos de controle (jurídicos e tecnológicos) em escala global – originários do pensamento militar e da guerra –, agora utilizados no cotidiano das cidades com caráter de gestão ordinária da ordem pública, conforme apontaram Graham (2016)GRAHAM, S. (2016). Cidades sitiadas. O novo urbanismo militar. São Paulo, Boitempo. e Weizman (2017)WEIZMAN, E. (2017). Hollow land: Israel’s architecture of occupation. Londres, Verso. ou, ainda, a reformulação do próprio pensamento de governo por princípios militares, como apontou Weber (2005)WEBER, S. (2005). Targets of opportunities. On the militarization of thinking . Nova York, Fordham University Press. , entre outros. Através de tais dispositivos de controle, a população que resiste e reivindica uma outra ordem passa a ser alvejada permanentemente como alvo inimigo da sociedade e do Estado. Tudo entra no expediente da gestão violenta: o meio ambiente, o mercado de trabalho regulado, o sistema de aposentadoria, os gastos públicos voltados aos direitos sociais e até nós mesmos, críticos nas universidades e suas pesquisas.

Notas conclusivas

Podemos observar e constatar, nas atuais práticas de governo das cidades brasileiras – no contexto apresentado anteriormente –, através da recente legislação de Regularização Fundiária (lei federal n. 13.465/2017), e nas mudanças normativas sobre as políticas de regularização fundiária regulamentadas no conjunto de leis correlatas,9 9 Lei federal n. 13.465/2017, lei federal n. 14.188/2020 e decretos e portarias incidentes. uma evidente guinada do modo de governo, com características austeras, que retiram do Estado a obrigação pela inclusão e manutenção dos serviços e infraestruturas básicas do espaço urbano, relegando-as a novos arranjos possíveis entre empresas do setor da regularização fundiária e moradores das áreas em processo de regularização. Na prática, essa inflexão alterou a ordem da regularização fundiária. Se antes era preciso realizar a urbanização do ordenamento territorial, com regularização das infraestruturas e dos serviços básicos, para posterior regularização burocrática, com a definitiva emissão das escrituras e garantia do título de propriedade, agora, um simples protocolo de projeto e intenções de regularização, acompanhado de alguns contratos privados, pode garantir a formalização e a pacificação jurídica, possibilitando a comercialização, a obtenção de empréstimos, financiamentos, e a criação de mercadorias imobiliárias, mesmo sem início – e sobretudo sem qualquer garantia – da urbanização e do ordenamento territorial definitivos.

Como expressão das implicações desse novo conjunto de leis sobre as práticas de governo e os modos de gestão das cidades brasileiras, poderíamos trazer o exemplo do caso da ocupação Vila Soma, iniciada em 2012, no município de Sumaré/SP, e hoje habitada por mais de 10.000 pessoas; notadamente um dos casos de luta organizada por moradia mais emblemático da história recente das cidades brasileiras ( Dal’Bó da Costa, 2019DAL’BÓ DA COSTA, A. (2019). Luta social e a produção neoliberal do espaço: as trajetórias das ocupações Vila Soma, Zumbi dos Palmares e Pinheirinho. Tese de doutorado. São Carlos, Universidade de São Paulo. ). A ocupação – que começou com a auto-organização autônoma de famílias marginalizadas e, ao longo de mais de 10 anos de resistência, foi capaz de conquistar a permanência no terreno ocupado –, hoje passa por processo de regularização fundiária permeado por inúmeras contradições.

Se hoje podemos constatar de forma crítica a ambiguidade ou mesmo a falência dos inúmeros instrumentos da lei urbana brasileira (da CF 1988 ao advento do celebrado Estatuto das Cidades), incapazes, por si sós, de garantirem o interesse e a função social, a segurança de posse e, tampouco, a efetivação do direito à moradia, um passo para trás, porém– e para além dessa trágica constatação –, faz-se fundamental destacarmos a nova inflexão austera que acaba de ampliar o campo das relações privadas e privatizantes na produção do espaço urbano, através da nova legislação nacional da regularização fundiária, citada anteriormente.

No contexto presente, como tentativa de garantir e consolidar a permanência no local ocupado, a Vila Soma, considerando seu longo histórico de resistência das famílias no local, optou por negociar a compra direta da área ocupada com o proprietário vencedor do leilão judicial da massa falida e, na sequência, discutir os custos e as formas privadas da regularização. Assim, verifica-se, na prática, como a conjuntura impôs uma nova forma de solução de conflito fora dos horizontes de garantia do direito à moradia e da luta pela função social da propriedade, contrastando com a mercantilização da terra e a regularização fundiária agora sob um novo arranjo, que é também, destaca-se, um novo nicho de mercado para empresas que atuam substituindo o poder público justamente no dever de aplicação dos instrumentos da política urbana e na produção, manutenção e garantia dos serviços e infraestruturas básicas da cidade.

Em síntese, quanto ao conflito, é necessário contextualizar minimamente que a luta da ocupação Vila Soma,10 10 Para o histórico detalhado do conflito, ver o segundo capítulo da tese de doutorado de Dal'Bó da Costa (2019). iniciada no ano de 2012, ocorre em uma área total de um milhão de metros quadrados, na região central do município de Sumaré, na Região Metropolitana de Campinas. A ocupação, que passa a se organizar como um forte movimento social de moradia e que, diante da judicialização dos conflitos possessórios e da alta complexidade do caso, envolvendo quase 3 mil famílias, ou 10mil pessoas, torna-se um dos casos mais paradigmáticos da história dos conflitos urbanos por moradia desde o conflito do Pinheirinho, em São José dos Campos/SP (2004-2012). Após inúmeras manifestações, articulações e decisões judiciais, disputas com os poderes locais e, notadamente, os interesses da especulação imobiliária, foi conquistada, no início de 2016, uma inédita suspensão da reintegração de posse no Supremo Tribunal Federal (STF),11 11 Decisão sobre medida cautelar a ação cautelar n. 4.085, ministro Ricardo Lewandowski, em 13 de janeiro de 2016. delimitando uma nova perspectiva de solução pela permanência das famílias na área ocupada e realização da regularização fundiária de interesse social.

Na perspectiva de contramão e resistência ao imperativo neoliberal, a ocupação Vila Soma passou, então, a reivindicar a desapropriação da área por interesse social, com a compensação tributária de um imóvel oriundo de uma massa falida. Tal exigência se justificava sob a lógica do direito à moradia e da função social da propriedade, reivindicando tal solução do caso com a permanência na área ocupada e, inclusive, em resistência às propostas e tentativas para realocação em outra área, periférica e mal-localizada, através de empreendimentos habitacionais do Minha Casa Minha Vida. Destaca-se a mesma solução única, que acima apresentei como dispositivo do neoliberalismo progressista . Nesse horizonte, a ocupação Vila Soma passou a discutir e reivindicar a necessidade da adoção de políticas que visassem à regularização fundiária de interesse social, garantindo a segurança da posse e o reconhecimento da autoconstrução das residências, assim como também as infraestruturas dos serviços públicos em combate direto à irracionalidade latente das novas construções de conjuntos habitacionais nas bordas das cidades, tais como aquelas localizadas nas Figuras 1 a 5 anteriormente apresentadas.

Apesar da constante luta, não houve desapropriação do terreno nem qualquer outra solução definitiva mediada pelo Estado. Pior, em 2019, a ministra Carmem Lúcia ameaçou a suspensão da liminar de 2016, momento em que uma nova rodada de negociações foi aberta. O resumo do resultado desse momento se deu – a contragosto de grande parte do movimento social – através de um acordo privado entre moradores e a empresa que comprou o terreno no leilão judicial, com anuência da prefeitura municipal de Sumaré, para a regularização fundiária do terreno. Destaca-se que todo o custo, seja para compra dos lotes, seja para inserção da infraestrutura, ficou sob responsabilidade dos morredores, então comprometidos com o pagamento mensal do financiamento. Na ocasião em que escrevo este artigo, é notório que muitos dos que habitavam a ocupação, em 2019, precisaram deixar suas moradias por inadimplência ou por incapacidade de pagamento.

No presente, observamos, diante da mudança na agenda política que assume as características autoritária, austera e militarizada para gestão do colapso social, o deslizamento do movimento de gestão pacificadora via uma rede de programas e políticas públicas possível nos governos precedentes, para soluções agora predominantemente privadas. Como no caso concreto da Vila Soma, o mercado imobiliário assimilou a regularização fundiária como novo modelo de negócio, especialmente nos moldes trazidos pela lei federal n. 13.465/2017, que permite a antecipação da titulação e, portanto, a formalização da mercadoria. Daí surge toda uma sorte de novos produtos imobiliários e financeiros, antecipados, e até mesmo desvinculados, da necessidade de implantação de infraestrutura e serviços públicos urbanos.

Consolida-se uma nova mercadoria habitacional de altíssima precariedade, porém agora legalizada e amparada pelo Estado; e, assim, ampliam-se imediatamente as propriedades e as posses passíveis de compra e venda formal, mesmo que destituídas de condição mínima de infraestrutura, mesmo que sem cidade. Finalmente, através desse lastro material da precariedade urbana, convertido agora em mercadoria formal, criam-se, também, novas rotinas financeiras, por meio de mercados de créditos e securitização dessas dívidas. Mais que isso, instaura-se uma nova camada de controle da vida das populações mais pobres das metrópoles através de longos crediários: casas, infraestruturas e serviços urbanos a crédito, em prestações a perder de vista ou um novo governo da pobreza pela dívida infinita.

Dessa forma, o caso da Vila Soma aponta para a combinação de uma nova fase de mercantilização do processo de regularização fundiária de "interesse social" com a substituição do papel de política urbana dos governos que agora figuram como meros mediadores e legitimadores de uma nova cadeia de arranjos privados. Esse novo momento austero é somente possível nos marcos da lei federal n. 13.465/2017, que passa a incluir um grande volume de terras antes irregularmente ocupadas ou mesmo endividadas, com problemas cartorários, num grande nicho de mercado para empresas intermediárias, impondo a relação de venda da propriedade para as famílias moradoras dessas áreas como a nova solução única a seus moradores. Portanto, o que temos em vista é um processo de privatização da obrigação do poder público em garantir direitos sociais, agora na dimensão da produção das cidades, perversamente através de ações públicas voltadas ao hipotético direito à moradia, que agora reconhece legalmente a autoconstrução sem infraestrutura básica como item passivo de regularização fundiária e mediação para longo endividamento da população marginalizada, moradora dos centros urbanos brasileiros.

Nesse contexto, verifica-se que a solução do caso específico da ocupação Vila Soma aponta para um novo formato de desfecho de conflitos urbanos, ainda mais ambíguo, com característica notadamente austera: impõe-se um consenso entre o desejo das famílias de permanência na área ocupada, com residência já construída, e o interesse econômico do proprietário das terras em receber por uma terra antes impossibilitada de transação no mercado formal. Nesse arranjo, o acordo é reduzido a um termo privado de compra e venda, no qual as famílias moradoras assumem o ônus da responsabilidade pela infraestrutura e têm à sua frente uma nova dívida parcelada e um risco renovado de despejo por inadimplência de pagamento. Agora, porém, o risco de despejo está individualizado por lotes escriturados em cartório, minando, dessa forma, as possibilidades futuras de resistência coletiva pela permanência no local ocupado. Por fim, a violência do Estado policial será novamente ativada no momento em que for necessário o eventual despejo da família inadimplente – ressalto, agora individualizado por lote, implodindo o coletivo de luta –, para garantir a liberação da mercadoria. Privatização dos serviços e infraestruturas urbanas, austeridade e violência seletiva com alvos bem-definidos são agora conjuntamente novos modos de governo e produção das cidades.

Figura 1
– Implantação do MCMV na Região Metropolitana de Campinas/SP

Figura 2
– Implantação do MCMV na Região de São José dos Campos/SP

Figura 3
– Implantação do MCMV na Região Metropolitana de São Paulo

Figura 4
– Implantação do MCMV em Salvador/BA e municípios vizinhos

Figura 5
– Implantação do MCMV em Belém/PA e municípios vizinhos

Nota de agradecimento

Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão da bolsa de Pós-Doutorado Júnior; ao professor Paulo Arantes, pela supervisão da pesquisa e ao Grupo de Estudos sobre o Neoliberalismo e Alternativas (GENA).

Referências

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  • WEIZMAN, E. (2017). Hollow land: Israel’s architecture of occupation. Londres, Verso.

Notas

  • 1
    Opto pelo uso da versão original, em francês, dado que a tradução brasileira, publicada em 2013, suprimiu parte do texto.
  • 2
    Refiro-me à transformação das formas de exercício do poder de governo em escala global, em que o traço essencial e comum se dá pela emergência de experiências autoritárias com a chegada ao poder de representantes eleitos (democraticamente), portadores de discursos ultraconservadores, por vezes declaradamente racistas e xenófobos, com agendas igualmente voltadas à maior militarização do cotidiano e das relações sociais, por vezes também associadas aos programas de austeridade e redução das garantias dos direitos sociais. É o caso de Trump, nos Estados Unidos (2017-2021); Bolsonaro, no Brasil (2019-2022); Netanyahu, em Israel (1996-1999; 2009-2021; 2022-); Orban, na Hungria (2010-); e da recente e ampla ascensão de outros líderes de extrema direita, como Salvini e Giorgia Meloni na Itália, Marine Le Pen na França, do partido sueco SD, originado de um grupo neonazista, e do atual favorito nas eleições argentinas, Javier Milei, que se reivindica um anarcocapitalista, promete o fechamento de mais da metade do ministérios federais e a dolarização da economia.
  • 3
    Para comparação, considerou-se o número total de domicílios particulares permanentes segundo o Censo ( IBGE, 2010IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010). Censo Brasileiro de 2010 . Rio de Janeiro, IBGE. ).
  • 4
    Dados sobre o déficit habitacional segundo a Fundação João Pinheiro para os anos de 2010 e 2015.
  • 5
    A variação do Índice Fipe-ZAP para valor de aluguel no período de março de 2009 até março de 2015 é de 98,37%, enquanto a variação do IPCA, no mesmo período, é de 46,60%. Portanto, no mesmo período os aluguéis subiram 52,70% acima da inflação.
  • 6
    Segundo a Fundação João Pinheiro, o ônus excessivo de aluguel é caracterizado pelo comprometimento de mais de 30% da renda familiar com o pagamento do aluguel.
  • 7
    Uso o termo dispositivo no sentido amplo empregado por Foucault (2004a): uma rede que se pode estabelecer entre um conjunto diverso e heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, entre outros elementos.
  • 8
    Parte dos trechos B e C, da segunda parte deste texto, decorrem da apresentação realizada no Instituto de Estudos Avançados da USP, durante o debate "Qual a agenda de pesquisa para crítica das metamorfoses do neoliberalismo?" durante o 2º Seminário Metamorfoses do Neoliberalismo, em novembro de 2020.
  • 9
    Lei federal n. 13.465/2017, lei federal n. 14.188/2020 e decretos e portarias incidentes.
  • 10
    Para o histórico detalhado do conflito, ver o segundo capítulo da tese de doutorado de Dal'Bó da Costa (2019).
  • 11
    Decisão sobre medida cautelar a ação cautelar n. 4.085, ministro Ricardo Lewandowski, em 13 de janeiro de 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2021
  • Aceito
    29 Nov 2021
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