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Caos e nova temporalidade do sistema-mundo contemporâneo

Resumo

Apresentamos cinco grandes teses para entender a nova conjuntura mundial em que ingressam o capitalismo e a humanidade a partir de 2015-2020. Esse período se caracteriza pela crise do modo de produção e da civilização capitalista; pela crise terminal e desmonte da hegemonia dos Estados Unidos; pela bifurcação geopolítica da economia mundial em um bloco imperialista liderado pelos Estados Unidos e outro emergente centrado na China, na Rússia e sua ampliação para o Sul Global; pela crise ideológica do liberalismo global e a ascensão do fascismo e do socialismo como alternativas; pela crise do padrão de acumulação neoliberal e o esgotamento da fase expansiva do Kondratieff iniciada em 1994. Indicamos brevemente os efeitos dessas tendências sobre a América Latina.

caos sistêmico; longo século XXI; bifurcação; geopolítica; ideologias

Abstract

This paper presents five major theses for understanding the new world conjuncture in which capitalism and humanity entered in 2015-2020. This period is characterized by the crisis of the capitalist civilization and mode of production; the terminal crisis and dismantling of the United States’ hegemony; the geopolitical bifurcation of the world’s economy into an imperialist bloc led by the United States and an emerging bloc centered on China and Russia that has been expanding towards the Global South; the ideological crisis of global liberalism and the rise of fascism and socialism as alternatives; and the crisis of the neoliberal accumulation pattern and the end of Kondratieff’s expansion phase that started in 1994. We briefly indicate the effects of these trends on Latin America.

systemic chaos; long 21st century; bifurcation; geopolitics; ideologies

A nova temporalidade do sistema-mundo

Neste artigo, apresentamos de forma sintética algumas teses para entender a nova temporalidade em que entra o mundo contemporâneo, os seus principais conflitos, as disputas e os projetos em confronto. Entender as grandes questões que permeiam nossa conjuntura é absolutamente fundamental para o desenho das metas e dos objetivos de uma estratégia emancipatória e das forças que dela devem fazer parte com distintos níveis de vinculação e de compromisso.

A formulação de caráter panorâmico, geral e sintético, que desenvolvemos no correr deste texto, é a de que desde 2015-2020 ingressamos em uma nova temporalidade do sistema mundial marcada pela crise terminal da globalização neoliberal e pelo estabelecimento de uma situação de caos. O caos sistêmico contemporâneo está fortemente associado à convergência de três movimentos de longa duração: a crise estrutural da civilização capitalista, o desmonte da hegemonia dos Estados Unidos e o esgotamento da fase expansiva de um novo ciclo de Kondratieff iniciado em 1994. O caos implica o estabelecimento de uma bifurcação geopolítica que fratura a globalização neoliberal e aprofunda a decomposição de seu padrão de acumulação e de sua institucionalidade. Ele atinge a hegemonia do liberalismo global abrindo uma disputa ideológica sobre a reorganização do sistema-mundo entre o liberalismo decadente, o fascismo e o socialismo. Tal disputa ideológica tende a se articular com eixos geopolíticos distintos: de um lado, o imperialismo ocidental, representado pelos Estados Unidos, a Otan e o noroeste europeu; de outro lado, o projeto do Sul Global, que parte de bases eurasianas na China e na Rússia e se estende para Ásia, África e América Latina, podendo alcançar amplos segmentos da classe trabalhadora dos países centrais. O principal fator de unidade do Sul Global é o anti-imperialismo e a capacidade de encadear dinâmicas de desenvolvimento. Nesse processo, a China possui papel-chave e a vemos muito mais próxima de um Estado socialista do que de um Estado que relance o capitalismo mundial sobre novas bases. Diferentemente de outros períodos de caos sistêmico que se constituíram durante a expansão do sistema-mundo capitalista, este se estabelece no declínio e debilitamento de suas tendências seculares, abrindo espaços para a construção de alternativas que refundem o sistema-mundo vigente. A existência de alternativas fora do sistema-mundo capitalista coloca a possibilidade tanto de uma transição relativamente pacífica, se vencida pelas forças democráticas, socialistas e anti-imperialistas, quanto da radicalização da guerra e da violência, se liderada pelo fascismo. Vejamos mais em detalhe as teses articuladas por essa formulação mais abrangente.

A crise estrutural da civilização capitalista

A primeira tese é de que estamos vivenciando um período de crise estrutural da civilização capitalista, associada a profundas contradições em seu modo de produção entre as relações de produção capitalistas e uma nova estrutura de forças produtivas emergente, que abre um período revolucionário. Esse tema foi abordado por Karl Marx, no “Prefácio à contribuição à crítica da economia política”, nos Grundrisse e em O capital , e desenvolvido posteriormente por autores como Richta (2018RICHTA, R. (2018[1968]). Civilizations at the crossroads: social and human implications of the scientific technological revolution. Londres e Nova York, Routledge Revivals. [1968]), Dos Santos (1984DOS SANTOS, T. (1984). Revolução científico-técnica e capitalismo contemporâneo. Petrópolis, Vozes. , 1987DOS SANTOS, T. (1987). Revolução científico-técnica e acumulação de capital . Petrópolis, Vozes. e 2016) e em nossos trabalhos ( Martins, 2020MARTINS, C. E. (2020[2011]). Dependency, neoliberalism and globalization in Latin America. Leiden e Boston, Brill. [2011]).1 1 Darcy Ribeiro desenvolveu uma importante crítica da civilização capitalista associando o socialismo à revolução termonuclear em O processo civilizatório (1968). A nova estrutura de forças produtivas é a revolução científico-técnica, que se projetou na economia mundial, desde o surgimento do paradigma microeletrônico, e substituiu o princípio mecânico pelo automático, estabelecendo a ciência, o conhecimento e a subjetividade como a principal força produtiva. Tal mudança implica o aumento do valor da força de trabalho, uma vez que o seu tempo de formação passa a não ter mais limites, invertendo o paradigma que fundou a mais-valia relativa durante o período da revolução industrial, quando a força de trabalho se desvalorizava diante da tecnologia. A crise ecológica provocada pelo padrão de acumulação neoliberal e evidenciada pela pandemia coloca a necessidade de um novo salto tecnológico para o estabelecimento de um paradigma biotecnológico, baseado em tecnologias limpas, orientado para a preservação e regeneração de ecossistemas, saúde, educação, ciência, cultura, lazer e formas de consumo imateriais. Tal paradigma tem forte vinculação com o setor de serviços, grande vocação pública e capacidade de produção de bens coletivos. O avanço da revolução científico-técnica transforma os trabalhadores dos serviços públicos, em particular os da ciência e educação, na vanguarda ideológica da classe trabalhadora e em seu setor mais dinâmico.2 2 Sobre isto, veja-se o excelente o artigo de Beverly Silver, Ensaio sobre a classe trabalhadora (2022), no qual a autora aponta a necessidade de articular quatro grandes setores da classe trabalhadora para estabelecer um movimento anticapitalista com capacidade de formular uma alternativa sistêmica: a vanguarda vinculada à nova base tecnológica, na qual destaca os trabalhadores da educação; os segmentos vinculados à base industrial e aos postos de trabalho em processo de destruição; os precarizados ligados à expansão do setor de serviços varejista; e os desempregados. Diferentemente dos trabalhadores da Revolução Industrial que produziam bens que se separavam fisicamente do seu produtor e eram apropriados de forma privada pelo consumo individual, como o automóvel e os eletrodomésticos, os trabalhadores da revolução científico-técnica produzem bens que se caracterizam principalmente por suas dimensões abstratas, não se separam de seus produtores, não podem ser apropriados fisicamente por seus consumidores, possuindo vocação e natureza universalista.

O capital apropria-se da revolução científico-técnica de forma contraditória, buscando compensar as pressões redistributivas inerentes ao aumento do valor da força de trabalho com a superexploração dos trabalhadores, pagando a eles um preço abaixo do valor da força de trabalho. Para isso estabelece o padrão de acumulação neoliberal, o que lhe permite impulsionar a financeirização, deslocando parte da circulação de capitais da produção para o rentismo e a deslocalização produtiva para os países da periferia e semiperiferia. Assim, eleva o desemprego, cria uma âncora salarial na força de trabalho da periferia, precificada abaixo de seu valor, mas reduz a taxa de investimento nos centros, o que implica declínio produtivo, parasitismo financeiro e crise na divisão internacional do trabalho ( Marini 1996MARINI, R. M. (1996). “Procesos y tendencias de la globalización capitalista”. In: MARINI, R. M.; MILLÁN, M. (orgs.). La teoria social latinoamericana: cuestiones contemporáneas . México, Unam, tomo 4. ; e Martins, 2018a, 2018b, 2020[2011] e 2022a).

A inclusão da teoria da revolução científico-técnica nas análises do sistema-mundo vem preencher um vazio analítico para a postulação da crise terminal do sistema capitalista, presente de forma mais contundente na obra de Wallerstein (1983)WALLERSTEIN, I. (1983). Historical capitalism with capitalism civilization . Londres e Nova York, Verso. . A centralidade do conceito de capitalismo histórico não permite dar relevo aos seus limites históricos estruturais como sistema diante de determinados tipos de forças produtivas, pois pretende afirmar justamente a sua flexibilidade diante de valores de uso específicos ( Martins 2021MARTINS, C. E. (2021). As teorias do sistema mundo na transição para o longo século XXI. Reoriente: estudos sobre marxismo, dependência e sistemas-mundo, v. 1, n. 1, pp. 44-66. e 2023). Tal enfoque não apresenta grandes problemas quando põe em relevo formas produtivas mais atrasadas, subordinadas à valorização do valor de troca, como o escravismo colonial, nas quais a forma coercitiva da relação de trabalho, como valor de uso, é um instrumento do processo de valorização, sendo um objeto de seu dinamismo que tende a dissolvê-la no longo prazo.3 3 Braudel (1984) e Wallerstein (1983) aproximam-se fortemente dos trabalhos clássicos de Bagu (1949) , que defende a tese de que o escravismo colonial era capitalista, quando o mais correto seria capturar a contradição específica que enseja e defender a perspectiva de que era uma forma produtiva não capitalista subordinada e funcionalizada à acumulação mundial capitalista. Todavia, quando a contradição se estabelece com formas produtivas mais avançadas, tende a se aprofundar, e as relações de produção capitalistas acentuam a sua própria obsolescência, dimensão que permanece ocultada pela teoria quando destaca a flexibilidade do capital para estabelecer processos de valorização em diversas realidades históricas, ignorando a unidade dialética entre modo de acumulação e formas produtivas e os limites à autonomia relativa de ambas.4 4 A fusão da teoria da revolução científico-técnica com as análises do sistema-mundo tem sido proposta e desenvolvida por Dos Santos (1984 ,1987 e 2016) e por nós ( Martins 2011 , 2020 [2011], 2021, 2022a e 2023)

A crise terminal da civilização capitalista associa-se ao declínio do sistema interestatal que é um aspecto central da superestrutura que configura seu modo de produção. O sistema interestatal garantiu a prevalência dos fluxos de capitais sobre o Estado moderno ao constituí-lo no âmbito do mercado mundial. No entanto, o aumento das escalas estatais, expressas em gastos públicos crescentes que se aproximam de 50% do PIB nos países da OCDE,5 5 Ver os informes da OCDE (2018 e 2022). e o surgimento de um novo tipo de Estado colocam em crise a institucionalidade do moderno sistema mundial. Arrighi (1994)ARRIGHI, G. (1994). The long twentieth century . Londres e Nova York, Verso. mencionou que o moderno sistema mundial gerou quatro padrões de Estado hegemônicos: as cidades-Estados (Gênova), os proto-Estados nacionais (Províncias Unidas), os Estados nacionais (Reino Unido) e os Estados continentais (Estados Unidos). A China, pela combinação de sua massa populacional, empoderamento econômico, tamanho e importância de mercados para a taxa de lucro do capitalismo ocidental e modelo político centralizado, coloca em cena um Estado-mundo capaz de integrar-se ao sistema mundial capitalista que, sem perder sua soberania e sua autonomia, aproveita-se das vulnerabilidades estruturais sistêmicas para projetar-se nas hierarquias de poder, tornando-se cada vez mais o eixo dinâmico do sistema mundial.6 6 “Por exemplo, a China é muito maior, mas também muito mais pobre do que os Estados Unidos, apesar de décadas de rápido crescimento econômico. Portanto, o futuro da evolução descrito na figura 1.1 é um movimento em direção a algum tipo de ‘estado mundial’” ( Arrighi e Silver, 2010 , p. 62; tradução nossa).

Os crescentes níveis de gastos públicos no capitalismo contemporâneo reforçam a tendência ao deslocamento do protagonismo para o Estado na relação com os mercados. O controle social sobre os mercados, o avanço dos gastos orientados para as grandes demandas públicas de saúde, educação, transporte, lazer e meio ambiente vinculam-se à afirmação de democracias substantivas e participativas. A expansão da financeirização, a ampliação do gasto militar e a priorização da economia política da guerra constituem as vias por excelência por onde se busca apropriar em uma direção regressiva os avanços das forças produtivas na gestão e no planejamento.

A crise ecológica evidenciada pela pandemia da covid-19 é uma manifestação de uma crise maior associada ao aquecimento global e à destruição dos ecossistemas do planeta e coloca em questão a acumulação ilimitada e a transformação da natureza e da vida em mercadoria. O capitalismo separa o homem da natureza e de suas relações comunitárias: concentra-o nas cidades e estabelece a competição entre os indivíduos como motor da acumulação. Cria o mal-estar crônico, ou o “mal viver”, uma falta existencial marcada pela solidão do ser humano diante da natureza e de seus semelhantes, que é necessária para a imposição do fetichismo da mercadoria como traço cultural dominante. Este traz a ilusão de superar essa falta com o consumo de bens materiais e efêmeros. A falta persistente e permanência do mal-estar são condição para elevar o fetichismo da mercadoria a novas etapas, permitindo que a acumulação ilimitada traga como complemento indissociável a necessidade ilimitada de consumo de bens finitos e efêmeros.

A crítica à civilização capitalista surge de civilizações que se pensavam extintas; de povos com longa duração de civilizações agrárias, associadas à presença milenar do modo de produção asiático, em particular a China e o leste asiático; dos trabalhadores e pobres excluídos pela desigualdade do capital; e do pensamento marxista, que busca redefinir e ultrapassar os limites do Estado nacional e construir um novo sistema mundial multipolar e democrático. Os povos originários latino-americanos lançam a necessidade de estabelecer uma relação harmoniosa entre homem e natureza, pois a vida humana pertence a um ecossistema do qual faz parte e cuja destruição a empobrece e ameaça. Criam para isso o conceito de “bom viver”, no qual as relações comunitárias do homem com a natureza e dos homens entre si são reestruturadas. Desde 2007, o Partido Comunista Chinês, em seu 17º Congresso, colocou como meta a construção de uma civilização ecológica, baseada no desenvolvimento industrial sustentado em energias limpas, em sua integração a cooperativas agrícolas, na redução das desigualdades entre o campo e a cidade, na erradicação da pobreza e na priorização do mercado interno. Formas tradicionais de medição do PIB são questionadas, uma vez que não mensuram a destruição dos ecossistemas e do patrimônio ecológico para a produção de bens e serviços. Gigantescos investimentos de modernização de infraestrutura das zonas rurais e domínio de tecnologias renováveis são realizados, convertendo o país asiático em líder mundial no desenvolvimento e produção de energias limpas ( Tiejun, 2021TIEJUN, W. (2021). Ten crisis: political economy of China`s development. Singapore, Palgrave Macmillan. , pp. 442-450; e International Energy Agency, 2022INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (2022). World Energy Outlook. Disponível em: https://www.iea.org/reports/world-energy-outlook-2022. Acesso em: 12 dez 2022.
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, p. 450). A convivência das comunidades populares com a escassez material não deve ser vista apenas pela ótica da falta e da insuficiência, mas também da acumulação de um saber indispensável para a vida democrática. A existência humana é inseparável dos limites materiais, por mais que se os modifique, e a pretensão de negá-los, concentrando-os nas amplas maiorias, conduz ao despotismo e à destruição de bens públicos e duráveis, como valores, afetos e ecossistemas, em benefício de bens privados e efêmeros ou desprovidos de valor de uso como o dinheiro.7 7 Santos (2001) positivou a crítica dos trabalhadores submetidos à desigualdade do mundo capitalista, afirmando que priorizam bens infinitos, como laços comunitários e afetos, a bens finitos e efêmeros. Há uma enorme literatura sobre a decolonialidade do poder que surgiu na América Latina nesse século, buscando lançar a crítica ao mundo capitalista desde civilizações que foram vencidas, mas não totalmente destruídas por sua expansão, e que recobram força com a crise estrutural que o atravessa.

Crise terminal e o desmonte da hegemonia dos Estados Unidos

A segunda tese é a de que ingressamos numa era de crise terminal e desmonte da hegemonia dos Estados Unidos, que teria se encerrado entre 2015-2020. A ascensão dos Estados Unidos iniciou-se nos anos 1870 e consolidou-se após 1945, estabelecendo uma fase expansiva até 1968-1971, quando o declínio da taxa de lucro impulsionado pela pressão dos movimentos sociais, a crise do keynesianismo militar, a derrota no Vietnã e a ruptura do sistema de Bretton Woods abriram o caminho para o padrão de acumulação neoliberal que se consolidou a partir dos anos 1980 e 1990 ( Arrighi, 1994ARRIGHI, G. (1994). The long twentieth century . Londres e Nova York, Verso. e 2007; Arrighi e Silver, 1999ARRIGHI, G; SILVER, B. (1999). Chaos and governance in the modern world system. Minneapolis, University of Minnesota Press. ). Durante a transição e crise de sinalização da hegemonia norte-americana, nos anos 1970, o governo Nixon estabeleceu as bases do padrão dólar flutuante, submeteu o idealismo político dominante à Realpolitik , apostou na divisão da Eurásia, elegeu a URSS como adversário principal buscando cooptar a China com sua inclusão no sistema mundial através da política de portas abertas e a inserção na ONU. A afirmação do padrão neoliberal e o forte acirramento na disputa pelo capital circulante imposta pelos Estados Unidos reintroduziram o primado da alta finança e do imperialismo informal sobre o poder militar, pelos quais reestruturou a sua estratégia de poder mundial e alcançou a inesperada dissolução da URSS e do bloco socialista no Leste Europeu.8 8 Sobre o conceito de imperialismo informal, ver The geometry of imperialism: limits of Hobson`s paradigma ( Arrighi, 1983 [1978]). O efeito retumbante da débâcle do socialismo europeu reavivou a pretensão de governança global na elite dirigente dos Estados Unidos, reintroduziu o protagonismo do idealismo em sua política externa, o que se manifestou na criação da OMC, na expansão da Otan para o Leste, na ofensiva neoliberal através do Plano Brady e do Consenso de Washington, na multiplicação dos tratados de livre-comércio e na intenção de estabelecer acordos comerciais hemisféricos. Tal idealismo se articulou a um internacionalismo liberal que defendeu a tese da mudança de regime contra Estados que se qualificavam totalitários, para alcançar uma governança global democrática sob liderança estadunidense. A mudança de regime atuaria de forma complementar à ação dissolvente do mercado mundial e da alta finança, ela se faria através de guerras híbridas ou de intervenção militar e seria orientada principalmente para as periferias. Os representantes tanto do internacionalismo liberal quanto do conservador lhe deram suporte, com diferenças de ênfase ou matizes quanto ao emprego da força, de mecanismos de persuasão e desestabilização, preferência pelo unilateralismo ou por coalizões e organismos internacionais.9 9 Sobre as diferenças entre internacionalismo liberal e conservador, ver o livro America at the crossroads, democracy, power and the neoconservative legacy ( Fukuyama, 2006 ). Para uma crítica realista de ambos os enfoques, veja-se Liberal dreams and international realities (Measheimer, 2018). Uma visão de longa duração desde o marxismo da política externa dos Estados Unidos pode ser encontrada no livro, American foreign policy and its thinkers ( Anderson, 2015 ). Bill Clinton promulgou, em 1998, o Iraq Liberation Act pelo qual os Estados Unidos se comprometeram com a remoção de Saddam Hussein, mediante amplo suporte bipartidário manifesto na aprovação por unanimidade no Senado e ampla maioria na Câmara de Deputados.10 10 Na Câmara de Deputados, o projeto apresentado pelos republicanos Benjamin Gilman e Christopher Cox recebeu 360 votos a favor, sendo 202 de republicanos, 157 de democratas e 1 de independente; apenas 38 foram contrários, destes, 29 de democratas. As intervenções militares no Kosovo, Afeganistão, Iraque, Haiti, Líbia e Síria, bem como os golpes de Estado em Honduras, Paraguai, Ucrânia, Brasil e Bolívia seguiram esse formato, não rompendo por si mesmos, com a concepção globalista de poder formulada durante fase de financeirização liberal da hegemonia dos Estados Unidos.11 11 A autorização para o uso de força militar contra o Iraque, apresentada pelo governo de George W. Bush, em 2002, contou com o apoio da maioria dos democratas no Senado. Entre os que lhe deram suporte, estavam Hillary Clinton, Joe Biden e John Kerry, enquanto Bernie Sanders se juntou à maioria dos democratas, 60%, que se opôs na Câmara de Deputados. A porosidade entre neoconservadores e liberais internacionalistas evidencia-se, ainda, na trajetória de Robert Kagan ou de Francis Fukuyama, pioneiros da proposição do enfoque da mudança de regime, membros do extinto think tank, Project for a new American Century , que se afastaram do Partido Republicano e se aproximaram do Democrata. O primeiro viu em Donald Trump o abandono dos compromissos com os valores liberais, buscando-os no Partido Democrata, apesar de suas reservas com o multilateralismo e de priorizar a ação militar ( Kagan, 2018KAGAN, R. (2018). The Jungle grows back: America and our imperiled world. Nova York, Alfred A. Knopf. ). O segundo, ao priorizar o soft power , deu mais destaque à capacidade de os Estados Unidos liderarem o multilateralismo e as instituições internacionais, recalibrando o viés militarista, sem abandoná-lo ( Fukuyama, 2006FUKUYAMA, F. (2006). America at the crossroads: democracy, power, and the neoconservative legacy . New Haven e Londres, Yale University Press. ).

Entretanto, profundas contradições estabeleceram-se durante a globalização liberal dirigida pelos Estados Unidos. O declínio tecnológico acentuou-se através da financeirização e da deslocalização produtiva, a escolha da China como aliada para dividir a Eurásia revelou-se um erro estratégico colossal e a tentativa de expandir a Otan para o Leste encontrou um obstáculo intransponível na Rússia, uma vez que sua absorção nessa organização eliminaria a vantagem militar estratégica dos Estados Unidos sobre a Europa, que contribui decisivamente para mantê-la subordinada sob controle e presença de bases militares norte-americanas. A crise econômica de 2008 com epicentro nos Estados Unidos reorientou a estratégia de inserção internacional chinesa que vinculou desde 1994, com a desvalorização e a fixação da paridade do renminbi ao dólar, a dinâmica de sua economia às exportações para o mercado interno estadunidense. Os efeitos da crise na redução das taxas de expansão econômica da China e as crescentes necessidades financeiras dos Estados Unidos não permitiram que o país asiático continuasse a realizar o duplo movimento de sustentar o parasitismo dos Estados Unidos e manter as altas taxas de investimento interno. A queda do crescimento econômico ameaçou tornar a desigualdade um problema explosivo, e, diante desse cenário, a China reorientou as suas políticas públicas, priorizando o fortalecimento das empresas estatais e nacionais, os gastos sociais e a cobertura de direitos da população, o combate à desigualdade, a soberania tecnológica, a construção geoeconômica e geopolítica da Eurásia e o projeto do Sul Global. A intervenção estatal para alavancar a economia e ampliar o acesso a serviços públicos, a publicação do Made in China 2025, o lançamento da Nova Rota da Seda, a institucionalização do Brics, o fortalecimento da Organização para a Cooperação de Xangai, as políticas de ajuda bilaterais e as ações concertadas com o Sul e a reiteração do compromisso com uma ordem multilateral e pacífica são expressões dessa nova realidade.

Diante desse novo cenário, os Estados Unidos reagiram com a tentativa de isolar a China na Ásia por meio da Parceria Transpacífica no governo Obama, abandonada no governo Trump em favor de uma ação unilateral coercitiva, que rompeu com a política de portas abertas e os princípios do livre-comércio, introduzindo uma guerra comercial contra a China, direcionando-a principalmente para o setor microeletrônico de alta tecnologia, o que se manifestou, não apenas por tarifas, mas por sanções e ameaças dirigidas não somente contra empresas chinesas de comunicação e alta tecnologia, mas também contra as firmas de terceiros países que fornecessem chips e mantivessem relações comerciais e financeiras com aquelas ( Tiejun, 2021TIEJUN, W. (2021). Ten crisis: political economy of China`s development. Singapore, Palgrave Macmillan. ). O governo Biden não apenas manteve essas restrições, mas lhes deu base institucional mais ampla, multilateral, através da nova doutrina estratégica da Otan, Strategic Concept ( Nato, 2022NATO (2022). Strategic concept . Disponível em: https://www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/2022/6/pdf/290622-strategic-concept.pdf. Acesso em: 10 mar 2023.
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), que considerou a pretensão de a China dominar a fronteira tecnológica e a sua aproximação com a Rússia uma ameaça à aliança transatlântica, seus valores e à ordem internacional que a sustenta. China, Rússia, Irã, Síria e Coreia do Norte foram identificados, ainda que com diferentes níveis de intensidade, como países que compartilham princípios autoritários e interesses maliciosos. Biden busca cercar a potência asiática ao sul, com a Aukus e a penetração militar no Mar do Sul da China, a leste, com bases militares no Japão e na Coreia do Sul, e ao norte, com a expansão da Otan para o Oriente.

A expansão da Otan ao norte esbarra no problema de acomodação da Rússia em seu âmbito. A Rússia, além de colocar em risco a soberania militar dos Estados Unidos sobre a Europa, é um espaço de articulação com o Oriente para onde a dinâmica econômica vem se transferindo. Sua incorporação econômica à União Europeia e militar à Otan seria uma decisão de alto risco que poderia fortalecer a soberania europeia e reduzir os Estados Unidos à condição de um país-ilha no Ocidente. Diante desses impasses, o internacionalismo liberal prefere converter a Rússia em inimiga e provocá-la para a guerra, o que lhe permite condições excepcionais para cortar as conexões geoeconômicas entre a União Europeia e a Rússia que estavam se desenvolvendo e que não poderiam ser impedidas em tempos de paz. O conflito militar entre Rússia e Estados Unidos por meio da Otan marca uma virada na escala das guerras e uma ruptura com o projeto de imperialismo informal que presidiu a globalização neoliberal.

Diante desse contexto, o realismo e o keynesianismo clássico têm pouco a oferecer como alternativa. O realismo de autores como Mearsheimer (2018)MEARSHEIMER, J. (2018). The great delusion: liberal dreams and international realities. New Heaven e Londres, Yale University Press. e Walt (2018)WALT, S. (2018). The hell of good intention: America´s foreign policy elite and the decline of US primacy. Nova York, Columbia University Press. reconhece o declínio e pede o desengajamento dos conflitos no Leste Europeu e no Oriente Médio, para concentrar os esforços na contenção da China, com o objetivo de impedir que se torne um hegemon regional, evitando, assim, uma inflação dos custos de proteção da ordem internacional que os situe acima da capacidade de controle e gestão do poder estadunidense. Todavia, essa proposição se torna pouco plausível pela dificuldade de estabilizar uma balança de poder que impeça a construção geoeconômica e geopolítica da Eurásia em tempos de paz e sem restrições político-militares. Embora os autores reivindiquem a ruptura com o credo liberal na política externa trazida por Donald Trump, afastam-se do unilateralismo que ele introduziu, uma vez que consideram indispensável a existência de coalizões para conter ou retardar a ameaça chinesa. O retorno ao keynesianismo clássico que propõe a repatriação, o controle de capitais e a desglobalização para reverter o declínio produtivo, encontra limites nas pressões latentes da classe trabalhadora, que crescem com o aumento de sua qualificação, mas foram contornadas com o padrão neoliberal. A desglobalização exigiria, ainda, contraditoriamente a repressão salarial para restabelecer nos centros a taxa de lucro que se origina de massas de lucros geradas pela superexploração da força de trabalho nas periferias e semiperiferias.

Da globalização neoliberal à bifurcação do sistema mundial: a disputa geopolítica

Nossa terceira tese é que a bifurcação latente entre o poder militar estadunidense e o poder econômico emergente na China, durante os anos de ascensão pacífica, torna-se dominante, rompe a globalização neoliberal e tende a se desdobrar numa bifurcação geopolítica que envolve confrontações econômicas, políticas, ideológicas e militares. A decisão dos Estados Unidos de não permitirem a acomodação da Rússia na Otan e na Europa aproxima os Estados de maior território e de maior população do mundo. As restrições financeiras que o parasitismo neoliberal impõe sobre a economia dos Estados Unidos implicam um forte declínio militar diante do eixo geopolítico emergente. Se, no início do século XXI, em 2001, Rússia e China somadas possuíam um orçamento militar de aproximadamente 15% do estadunidense, em 2021 alcançavam 41% ( Sipri, 2022SIPRI (2022). SIPRI Military expenditure database . Disponível em: https://www.sipri.org/databases/milex. Acesso em: 12 mar 2023.
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). A guerra entre a Otan e a Rússia implicou a substituição do termo globalização pelo de Ocidente, para marcar as identidades da coalizão liberal dirigida pelo imperialismo estadunidense. Este entra em uma nova etapa através da crescente ruptura com o imperialismo informal, da pretensão de submeter a ordem neoliberal a um império político – iniciativa tomada a partir de Donald Trump, quando situamos o início do fim da hegemonia dos Estados Unidos – e do projeto de dominação global para enfrentar o declínio acelerado de poder. Não se trata agora mais de limitar às periferias o uso do imperialismo tout-court , mas de reivindicá-lo para solucionar as grandes disputas de poder no sistema-mundo ( Arrighi, 1983ARRIGHI, G. (1983[1978]). The geometry of imperialism: limits of Hobson`s paradigma . Londres e Nova York, Verso. [1978]).12 12 Arrighi (1983 [1978]) desenvolve o conceito de imperialismo tout-court em oposição ao de imperialismo informal para designar o exercício do poder imperialista assentado na violência política e militar explícita.

O conflito político-militar com a Otan acelerou a aproximação entre China e Rússia, que ganhou novo patamar com a declaração de Xi Jinping e Vladimir Putin, de fevereiro de 2022, e aprofundou o acercamento de países asiáticos e africanos com a Rússia e a China. Na declaração sobre a nova era e o desenvolvimento global sustentável, Xi Jinping e Vladimir Putin afirmam seu compromisso com a multipolaridade e com a redistribuição do poder internacional, com a democracia, a paz, desenvolvimento, equidade, justiça, liberdade e a cooperação, que são entendidos como valores universais. Apontam, ainda, seu compromisso com soberania, a diversidade cultural e o direito de os povos determinarem suas trajetórias de desenvolvimento. Definem democracia em sentido amplo, como a participação dos indivíduos no governo de seu país para melhorar o bem-estar da população e implementar o princípio do governo popular, garantindo os direitos e atendendo aos interesses da população. Assinalam que a democracia deve ser praticada no plano global e que os Estados devem ser comprometer com condições justas, equitativas, abertas, não discriminatórias para o desenvolvimento científico-tecnológico. Repelem que uma minoria de Estados queira impor sua própria visão de democracia e de direitos humanos como pretexto para interferir nos assuntos internos de outros. Consideram que nenhum Estado pode aumentar sua segurança em detrimento de terceiros, devendo a segurança ser considerada um bem coletivo. Atacam o papel dos Estados Unidos na retomada da corrida armamentista, sua ideologia de jogo de soma zero; denunciam a ampliação e ideologização da Otan e a criação da Aukus, por aprofundar as tensões e a militarização do Pacífico. Comprometem-se com as metas da agenda sustentável para o desenvolvimento 2030, com o financiamento dos países mais pobres para que possam cumpri-las, com a cooperação científica para o combate às pandemias e com a construção geoeconômica da grande Eurásia. Comprometem-se, ainda, com o fortalecimento do Brics, da Organização para a Cooperação de Xangai, da Organização Mundial de Comércio e do G-20, condenando o unilateralismo ( Federação Russa e República Popular da China, 2022FEDERAÇÃO RUSSA E REPÚBLICA POPULAR DA CHINA (2022). Joint Statement of the Russian Federation and the People’s Republic of China on the International Relations Entering a New Era and the Global Sustainable Development. Disponível em: http://www.en.kremlin.ru/supplement/5770. Acesso em: 20 set 2022.
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).

Grande parte dos países asiáticos e africanos absteve-se de votar a proposição da ONU, condenando a ocupação militar do território ucraniano pela Rússia, aprovada em 2 de março de 2022. Representam junto com os países que a rechaçaram mais de 65% da população do planeta e quase 30% do PIB mundial ( Economist Intelligence, 2022ECONOMIST Intelligence (2022). Disponível em: https://www.eiu.com/n/russia-can-count-on-support-from-many-developing-countries/. Acesso em: 17 fev 2023.
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). Proporção que se manteve quase inalterada na recusa ao endosso à suspensão da Rússia Conselho de Direitos Humanos da ONU, posição a que se somaram Brasil e México. A proposição da ONU condenando a anexação pela Rússia de 4 regiões da Ucrânia não foi endossada por 40 países, 35 países por abstenção, tendo o rechaço explícito de 5 países (Rússia, Coreia do Norte, Síria, Belarus e Nicarágua). Entre os países que se abstiveram estão China, Índia, Paquistão, Vietnã, Tailândia, Mongólia, Cazaquistão, África do Sul, Argélia, Etiópia, Sudão, Sudão do Sul, Uganda, Moçambique, Zimbabwe e Bolívia.

As sanções financeiras e comerciais abriram o espaço para novas relações econômicas para a Rússia. Se as exportações de petróleo cru da Rússia para Alemanha, Holanda, França, Grã-Bretanha, Finlândia, Romênia e Estados Unidos caíram de 1.457.000 de barris diários para 178.000 entre fevereiro e novembro de 2022, elevaram-se de 848.000 para 2.372.000 no mesmo período para China, Índia e Turquia, que se transformaram nos maiores importadores do petróleo russo, reforçando os projetos euroasiático, do Brics e Sul Global, respaldados com o giro para a centro-esquerda dos governos na América Latina ( Anadolu Agency, 2022ANADOLU AGENCY (2022). Russia's crude exports to India up 14-fold, while exports to China double. Disponível em: https://www.aa.com.tr/en/info/%C4%B0nfografik/31247. Acesso em: 12 dez 2022.
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). Tal situação permitiu não só recuperar, mas elevar o valor do rublo em relação a fevereiro de 2022, antes de sua queda brutal em março do mesmo ano. Diante das sanções e da destruição do Gasoduto Nord Stream 2, impedindo politicamente e fisicamente o abastecimento do gás russo à Europa, China e Rússia aceleraram os planos de construção do Gasoduto Power of Siberia 2, que garantirá novos patamares de importação chinesa até 2030. Segunda maior consumidora de petróleo do mundo, apenas atrás dos Estados Unidos, a China não pode permitir a destruição pela Otan do segundo maior complexo produtor de petróleo e gás do mundo. A dependência da oferta norte-americana, líder no mundo, colocaria a China em situação de alta vulnerabilidade. A disputa geopolítica no Leste Europeu tem, no controle dos mercados e da produção de petróleo e gás, um dos seus aspectos mais fundamentais para impedir ou viabilizar a construção geoeconômica da Eurásia. Tal conflito pode precipitar uma nova guerra mundial, acontecimento típico dos períodos de caos no moderno sistema mundial ( Arrighi e Silver, 1999ARRIGHI, G; SILVER, B. (1999). Chaos and governance in the modern world system. Minneapolis, University of Minnesota Press. ).

Desde 2016, a Arábia Saudita vem se aproximando da Rússia com o estabelecimento da Opec plus, que acrescenta à Opec a presença de países como Rússia, Cazaquistão, Azerbaijão, México e Sudão, entre outros. Entre os objetivos da Opec plus está o de conter a crescente influência dos Estados Unidos no mercado global de petróleo a partir de sua conversão em grande produtor com a extração do gás de xisto. Enquanto os Estados Unidos têm interesse em manter os preços do petróleo baixos e ampliar a produção, uma vez que a sua competitividade está centrada em outros ramos produtivos, países onde o petróleo representa uma parte importante do PIB e das exportações têm interesse distinto. A aproximação da Arábia Saudita deu-se também em função do apoio de Obama à Primavera Árabe, à insurgência Houthi no Yemen, ao acordo nuclear com o Irã, orientações do internacionalismo liberal com as quais Trump rompeu para se posicionar ao lado da monarquia saudita, mas que foram retomadas em menor intensidade por Biden, que estabeleceu veto à venda de armas ofensivas à Arábia Saudita. A presença da China na articulação de um bloco eurasiano fortalece-se com sua mediação no acordo que reestabeleceu relações diplomáticas entre Irã e Arábia Saudita, criando um novo desenho e potencial geopolítico no Golfo Pérsico e o fortalecimento da Organização para Cooperação de Xangai.

O eixo geopolítico ascendente tem sua forte unidade no anti-imperialismo e abriga uma imensa diversidade de sistemas políticos e dimensões culturais, que incluem também autocracias nacionais ou regionais. Há uma tensão na declaração de Xi Jinping e Putin sobre a nova era nas relações internacionais e o desenvolvimento sustentável entre o compromisso universal com a democracia, assumida em sentido amplo, e a sua relativização cultural em formas nacionais e locais. Indicar a presença dessa contradição não significa reconhecer qualquer superioridade na versão liberal de democracia, que se coloca dessa forma por seus vínculos com o imperialismo, nem renunciar as críticas à sua superficialidade, à imensa desigualdade que estabelece, à violação da autodeterminação dos povos e às guerras que impõe. Entretanto, as confrontações internacionais que o eixo geopolítico emergente deverá enfrentar podem atuar dialeticamente para acelerar a centralidade do papel do Estado e a dinâmica de mudanças internas em favor da soberania popular, atualizando o padrão histórico dos efeitos da guerra no campo progressista da bifurcação durante os períodos de caos sistêmico. Foi assim, quando aceleraram as transformações progressistas do poder britânico, impulsionando o liberalismo político no Atlântico a partir das guerras de independência dos Estados Unidos da América, o que reorientou o imperialismo para o Oriente; ou, no caso do poder estadunidense, fortalecendo os compromissos sociais do liberalismo com o New Deal , que se desdobraram posteriormente no Estado de bem-estar e na Grande Sociedade. Torna-se assim plausível, com a aceleração do tempo histórico no século XXI, que temáticas relacionadas à democracia participativa e aos direitos humanos e sociais avancem e se aprofundem nos centros anti-imperialistas durante o período de radicalização das lutas geopolíticas, levando a um novo pacto entre elites e população.

O declínio do liberalismo global e a disputa ideológica

Nossa quarta tese é que o declínio do poder estadunidense e a entrada em um período de caos sistêmico implicam a perda de centralidade do liberalismo no sistema-mundial como teorizou Wallerstein (1995)WALLERSTEIN, I. (1995). After liberalism . Nova York, The New Press. . O liberalismo afastou-se das reformas progressistas, vinculou-se à financeirização, à ampliação das desigualdades, à extensão aos centros ocidentais da superexploração do trabalho e perdeu apoio social, deteriorando a legitimidade da democracia representativa. A crise político-ideológica abre um período de disputa pela reorganização do sistema-mundo entre o liberalismo decadente, o fascismo e o socialismo ( Martins, 2020MARTINS, C. E. (2020[2011]). Dependency, neoliberalism and globalization in Latin America. Leiden e Boston, Brill. [2011], 2021 e 2022b). O fascismo sofreu uma forte derrota na Segunda Grande Guerra e sobreviveu subordinado ao liberalismo global, em partidos políticos inexpressivos na Europa até os anos 1980, em ditaduras contrarrevolucionárias, como as de Franco, na Espanha, de Salazar, em Portugal, no âmbito das ditaduras militares latino-americanas entre os anos 1960-1980, e nas opressões de classe, de gênero e étnico-raciais na sociedade civil burguesa. Todavia, não conseguiu criar uma forte ofensiva ideológica junto às massas, limitado pela expansão do liberalismo global, pelos movimentos de liberação nacional nos anos 1940, 1950, 1960 e 1970 e pela redemocratização em escala planetária a partir dos anos 1980. O declínio do liberalismo global permite, ao fascismo, desafiar o cerco a que foi submetido, criar uma pauta ideológica própria, acumular força dentro das estruturas liberais para estabelecer novos regimes políticos que suprimam o sistema representativo ou o transforme em um rito vazio e assimétrico, subordinado ao emprego da violência. Analisar a ascensão da extrema-direita limitando-a em categorias como pós-fascismo é um erro que não toma em consideração a dinâmica dos processos de longa duração. A essência do fascismo está no emprego da violência para destruir o socialismo, as esquerdas, a emancipação das opressões de classe, raça e gênero e os processos de distribuição de renda e de poder aos mais pobres. Para isso, busca estabelecer uma ditadura estatal que impeça a limitação republicana da violência e uma base de massas que a legitime. O epicentro do fascismo mundial desloca-se para a burguesia dos Estados Unidos em razão de sua necessidade de criar um império político global para reverter o declínio, o que debilita suas forças liberais e impulsiona a extrema-direita. O inimigo é a construção de um novo eixo geopolítico, o Sul Global, impulsionado pela China socialista, pela Rússia nacionalista, o papel-chave que ocupam no desenho da Eurásia, pelas esquerdas latino-americanas e sua capacidade de articular a integração regional soberana, pelo nacionalismo popular africano e pelos processos de migração das populações periféricas para os Estados Unidos e a Europa.

O socialismo, contido durante a Guerra Fria pela subordinação da URSS à hegemonia dos Estados Unidos, ganhou outra projeção com o desaparecimento de sua liderança ideológica internacional centralista e defensiva, com o deslocamento de seu epicentro não apenas para uma China socialista com projeto expansivo, cooperativo e multilateral, mas também para os movimentos anti-imperialistas das periferias e semiperiferias e para as lutas dos trabalhadores e movimentos sociais dos países centrais do Ocidente contra a extensão a si próprios da superexploração da força de trabalho (Martins, 2018, 2020[2011]) e 2022a). O socialismo chinês é hoje o resultado contraditório da combinação híbrida de três grandes tendências que se articulam historicamente: a herança camponesa dos sistemas sinocêntricos pré-capitalistas que limitou a conversão da propriedade da terra em mercadoria, estabeleceu um padrão de evolução tecnológica intensivo em força de trabalho, uma das dimensões centrais do que Arrighi chamou de revolução industriosa, e restringiu a expansão externa, garantindo um sistema-mundo relativamente pacífico, orientando os objetivos do Estado chinês para a garantia da soberania sobre o território; o socialismo que priorizou o controle do Estado sobre os meios de produção e as finanças, a equidade, o acesso da população a serviços públicos, fortaleceu a propriedade coletiva e comunal e limitou a propriedade privada e impôs o monopólio do Partido Comunista; e a integração ao sistema-mundo capitalista, através do qual se busca impulsionar o crescimento econômico, estabelecer transferências de tecnologia, combater a pobreza, mesclando o investimento direto estrangeiro (da diáspora chinesa e o ocidental) e a orientação ao mercado externo com a forte mediação do controle estatal (Arrighi, 2007).

A relação entre o controle socialista da economia nacional e a integração no sistema mundial capitalista tem sido marcada por importantes tensões e contradições. O vínculo com o sistema mundial capitalista, em que este foi o polo dinâmico da dualidade, teve seu auge entre 1992-2008 e elevou fortemente a desigualdade, o peso das exportações para o mercado interno estadunidense, a participação de empresas estrangeiras na economia nacional, a conversão de regiões rurais em urbanas, levando a imensos fluxos migratórios para a costa leste, o que ampliou as desigualdades regionais. Todavia, o Estado chinês manteve rígido controle cambial e financeiro, compensou a redução da presença das empresas estatais na economia com seu fortalecimento em segmentos estratégicos, impulsionou formas comunais e coletivas de propriedade, usou sua força política para estabelecer transferência de tecnologias estrangeiras e fortalecer o sistema nacional de inovação, estimulando o intercâmbio científico internacional como forma de aquisição de conhecimento. A grande motivação para a reorientação da economia chinesa foi a leitura dominante de que a estagnação econômica seria fatal para o destino do socialismo, sendo o colapso do socialismo, na URSS e no Leste Europeu, sua grande expressão. A crise de 2008, com epicentro nos Estados Unidos, estabeleceu um novo ponto de inflexão na medida em que tornou evidentes o custo crescente do parasitismo da economia estadunidense, sua limitação como eixo dinâmico de crescimento econômico, a vulnerabilidade social da população chinesa com a redução do emprego estatal e os baixos níveis de proteção social. Redirecionou-se a economia chinesa de seu movimento orientado para a complementaridade comercial, produtiva e financeira à economia estadunidense, para outro, dirigido ao fortalecimento de sua soberania geoeconômica, geopolítica, tecnológica, comercial e financeira, bem como da participação dos trabalhadores no produto e na vida nacional, cujos salários passaram a crescer acima da produtividade. A China congelou seu estoque de ativos na dívida pública estadunidense e orientou seus investimentos para o mercado interno, o fortalecimento do ingresso dos trabalhadores e da proteção social, para a fronteira tecnológica e a economia verde, para a nova rota da seda, para o desenvolvimento das bases geoeconômicas da Eurásia e dos Brics e para ações bilaterais e multilaterais que fortaleçam o projeto do Sul Global.

A alternativa capitalista na China encontra-se limitada pelo fato deste Estado não dispor de um sistema internacional que o fortaleça. Como apontam as análises do sistema-mundo, o capitalismo histórico não surgiu dos Estados nacionais, mas antes, o contrário, estes foram resultado da construção de uma economia-mundo capitalista ultramarina, que teve, na invasão, conquista e colonização das Américas, um marco fundamental. A China não dispõe da moeda internacional de referência, não dispõe da liderança militar, seus investimentos internacionais têm presença bastante inferior à projeção do país no comércio mundial, e a participação de suas empresas estatais é a que se destaca entre as chinesas no ranking das 500 mais da Forbes ( Ling et al., 2020LING, K. J.; LU, X.; ZHANG, J.; ZHENG, Y. (2020). State-owned enterprises in China: a review of 40 years of research and practice. China Journal of accounting research, v. 19, n. 1, pp. 31-55. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.cjar.2019.12.001.
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). O Estado asiático precisa ainda se afirmar contra um imperialismo estadunidense que o cerca, necessitando, para isso, de um amplo leque de alianças internacionais que demanda soft power e forte horizontalidade em sua diplomacia e política externa. A orientação de sua política externa para o win-win, desde meados dos anos 2010, e a defesa por Xi Jinping de uma concepção de desenvolvimento cooperativo e compartilhado de toda a humanidade, assim como a reivindicação de um novo Tianxia como base das relações entre os povos, reforçam essa direção ( Zhao, 2020ZHAO, T. (2020). Redefining philosophy for a world governance . Singapore, Palgrave Macmillan. ; Gang, 2020).

O fim do ciclo expansivo de Kondratieff, a crise do padrão de acumulação e as perspectivas da América Latina

A quinta tese que apresentamos é a de que o ciclo de Kondratieff expansivo que se estabeleceu entre 1994-2015/2020 terminou. Esse ciclo se associa à combinação entre inovações tecnológicas radicais e organizacionais em âmbito empresarial, social, das políticas públicas e das instituições e políticas internacionais. Ele pode ser medido por um conjunto de indicadores, sendo os mais importantes, as oscilações das taxas de lucro, das taxas de crescimento do PIB per capita e das taxas de juros. Para o sistema-mundo em seu conjunto, deve-se medir essas taxas não apenas em níveis nacionais, mas em níveis mundiais, o que evidencia a dificuldade de obtê-las. Entretanto, diante dessa limitação, podemos buscar aproximações, priorizando taxas nacionais de países estratégicos, como os Estados Unidos, ou os indicadores mundiais disponíveis. A resistência do pensamento dominante nas ciências sociais ao tema dos ciclos de Kondratieff pode ser imputada a três grandes razões. A primeira é o caráter incompleto da obra de Nicolai Kondratieff que, embora tenha percebido os ciclos ligados à renovação de meios de produção básicos de um sistema tecnológico, não apresentou um conjunto de indicadores suficiente para medi-los. O autor russo não incluiu entre os indicadores para sua mensuração, nem a taxa de lucro, nem o PIB, apenas proposto como conceito e medida por Kuznets (1937)KUZNETS, S. (1937). National income and capital formation 1919-1935 . Washington D.C., NBER. , em seu National income and capital formation 1919-1935 . A segunda é a hegemonia do liberalismo nas ciências sociais que rejeita uma concepção de tempo que inclua repetições, optando por uma noção de temporalidade assentada na mudança e no progresso permanentes, que está na base da concepção mítica de um capitalismo com total capacidade de se metamorfosear, sendo por isso mesmo indestrutível. O conservadorismo radical possui uma visão regressiva do tempo, rejeitando a ideia de progresso, que vê como decadência, aceitando-a apenas no plano material e até certo ponto, quando não colide com crenças religiosas e hierarquias de poder econômico e social. Opondo-se à separação radical entre uma visão regressiva de tempo e outra progressiva, afirma-se a que o concebe dialeticamente no sistema-mundo capitalista: como uma unidade de contrários, que articula o progresso, a evolução e o desenvolvimento das estruturas, que também é o seu desgaste e esgotamento, com os retornos cíclicos e a dimensão anárquica do evento e do instantâneo. A combinação entre esses tempos que se deslocam implica que o retorno cíclico jamais poderá ser uma repetição absoluta, uma vez que é condicionado pela flecha do tempo que se move, é irreversível, e o insere em contextos ambientais inéditos. A ampliação das escalas sociais eleva a quantidade e a qualidade da interação dinâmica entre suas partes, aumentando a imprevisibilidade do tempo instantâneo e anárquico. A terceira razão é o nacionalismo metodológico que o liberalismo impõe como visão dominante de interpretação do mundo contemporâneo, concebendo-o como resultado da interação de Estados nacionais soberanos e independentes, reduzidos pelos realistas a um pequeno número atores efetivamente soberanos ou ampliados pelo idealismo a uma comunidade mais ampla. Em ambos os casos, priorizam-se indicadores nacionais ao invés de marcadores mundiais de aferição.

O atual ciclo de Kondratieff gerou uma taxa de crescimento per capita da economia mundial bastante superior à de 1974-1993, aproximando-se dos níveis atingidos nos anos dourados de 1950-1973.13 13 Para comparar as taxas de crescimento econômico per capita , tomamos as séries tabuladas por Angus Maddison e seus discípulos, que medem o PIB per capita por paridade do poder de compra. Entretanto, essas séries apresentam descontinuidade na metodologia, a partir de 2011, não sendo completamente comparáveis. Assim, entre 1994-2010, a taxa de crescimento per capita foi de 2,6% a.a., sendo muito superior aos 1,3% a.a. de 1973-1993 e quase se aproximando da marca alcançada entre 1950-1973 de 2,9% a.a. A série, até 2018, apresentada pelos seguidores de Maddison não especifica todos os anos da década de 1990, permitindo-nos apenas tomar como referência 1990-2016, período em que o crescimento do PIB per capita atingiu 2,3% a.a., sendo reduzido por incluir a recessão de 1990-1992. Gerou também elevação das taxas de lucro das corporações não financeiras dos Estados Unidos cujas massas de lucro passaram a estar cada vez mais ancoradas em valores obtidos por filiais fora dos Estados Unidos.14 14 A massa de lucro das corporações estadunidenses no exterior representava 10,4% do total nos anos 1970, 14,5% nos anos 1980, 16,5% nos anos 1990, 19,1% anos 2000 e 20,9% nos anos 2010. Em 2020, alcançou 20,5%. Se compararmos a massa de lucro no exterior com a massa de lucro especificamente sob controle doméstico das corporações estadunidenses não financeiras, podemos perceber também a sua forte ascensão: nos anos 1970 representavam 14,2% da última; nos anos 1980, 20,8%; nos anos 1990, 21,1%; nos anos 2000, 33%, nos anos 2010, 35,7%. Na massa de lucros sob controle doméstico, estão incluídas somas geradas externamente e transferidas sob diversas como as remessas de lucros. Cálculos nossos a partir do The Economic report of the President ( Council of Economic Advisers, 2021 ). É muito provável que estejamos entrando em um período recessivo de longo prazo, que deverá fortalecer o papel do Estado na economia, como tem sido a característica central de cada mudança de padrão de acumulação na história do capitalismo desde o século XX. Os gastos públicos saltaram dos aproximadamente 10% do PIB, na primeira década do século XX, nos países centrais, para cerca 30% no pós-guerra, subindo ainda mais durante a Segunda Guerra para níveis superiores a 40% nos Estados Unidos e Alemanha, quando a guerra exigiu um padrão altamente competitivo, centrado no capitalismo de Estado. No período neoliberal, alcançaram 40 a 50% nos países da OCDE ( Maddison, 1995MADDISON, A. (1995). Monitoring the world economy . Paris, OCDE. ; OCDE, 2022OCDE (2022). Economic Outlook . November. Paris, OCDE. ; Nahan, 1944NAHAN, O. (1944). Germany’s expenditure for war . Disponível em: http://www.nber.org/chapters/c9480.pdf. Acesso em: 18 mar 2023.
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; Vandenbroucke, 2020VANDENBROUCKE, G. (2020). Which war saw the highest defense spending? Depends how it’s measured. Disponível em: https://www.stlouisfed.org/on-th e-economy/2020/february/war-highest-defense-spending-measured. Acesso em: 15 dez 2022.
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). É bastante provável que um novo padrão de acumulação, a se configurar nas próximas décadas, exija gastos públicos de 50 a 60% do PIB.

Os sinais de esgotamento do atual padrão de acumulação vinculado à globalização neoliberal são muito significativos. O padrão de acumulação neoliberal estabeleceu-se em duas fases. A primeira, quando instituiu o fundamento estratégico da financeirização no início dos anos 1970, mediante o dólar flexível, ao romper a paridade entre o dólar e o ouro e lançar a política de aproximação com a China, isolando a URSS. Essa etapa tem sequência com a drástica elevação das taxas de juros nos Estados Unidos e o acirramento da disputa pelo capital circulante, que resultou na forte expansão da dívida pública e na Segunda Guerra Fria. Ela terminou com a Guerra do Golfo, a dissolução da URSS e do socialismo no Leste Europeu, e o esgotamento do Kondratieff recessivo que surgiu desde o ponto de inflexão de 1967-1974. A partir de 1994, a China substituiu o Japão e a Alemanha como grande competidor dos Estados Unidos e iniciou seu processo de ascensão pacífica. Enquanto Japão e Alemanha valorizaram suas moedas nacionais para atender às demandas de preservação da indústria dos Estados Unidos, a China desvalorizou a sua e estabeleceu paridade fixa com o dólar, tornando-se um dos eixos mundiais da deslocalização produtiva. A fase expansiva do novo Kondratieff acirrou a competitividade material, deslocou o eixo de dinamismo econômico para a China, limitou a agressividade da financeirização, impôs limitações às taxas de juros nos Estados Unidos e no noroeste da Europa, configurando a segunda etapa do padrão de acumulação neoliberal. Enquanto a primeira etapa esteve ligada fundamentalmente à financeirização, a segunda deu destaque à deslocalização produtiva. Entretanto, desde os anos 2010, a globalização produtiva perde força, o que se evidencia pela redução nas taxas de crescimento econômico da economia mundial, principalmente, nos centros ocidentais, e pelo debilitamento do comércio mundial e dos fluxos internacionais de capitais como alavancas da expansão do PIB mundial.15 15 O crescimento do PIB per capita alcançado entre 1994-2010 caiu de 2,4% a.a. para 1,8% a.a., entre 2011-2018, indicando os efeitos limitados das políticas de estímulo monetário para promover o crescimento econômico (Maddison Project, 2013 e 2020). O comércio internacional representava 36,7% do PIB mundial em 1982, alcançou o auge de 60,9%, em 2008, declinando 54,1%, em 2014, para 56,3%, em 2019, e de maneira mais acentuada para 51,6%, em 2020 ( Banco Mundial, 2022 ). Os fluxos internacionais de capitais saltam de um montante de US$255.9 bilhões, em 1993, para US$1.356 trilhão, em 2000. Caem acentuadamente na crise de 2001-2002 até 2003 e se elevam paulatinamente para atingir um novo pico, em 2007, de US$1.905 trilhão. Regridem novamente, mas atingem um novo pico, em 2015, de US$ 2.063 trilhões. Desde então, entram em declínio, com ponto extremo em 2020, e, em 2021, alcançam US$ 1.582 trilhão, nível inferior ao valor de 2007 e mais próximo ao de 2000 ( Unctad, 2022 ). Acrescentam-se, a isso, os crescentes estoques da dívida pública nos Estados Unidos e na Europa, o que restringe as taxas de juros reais em função dos seus efeitos explosivos sobre os gastos públicos, tornando cada vez maior o custo social e político da financeirização. Embora não haja ainda evidência de queda significativa da taxa de lucro nos Estados Unidos, a ampliação do endividamento público necessária para sustentá-la deverá se combinar com taxas de juros positivas para conter a explosão inflacionária, revertendo as políticas de estímulo monetário praticadas desde a crise de 2008 e os desequilíbrios entre demanda e oferta que a estagnação ou retração da globalização produtiva, comercial e financeira impulsionam. Tal cenário deverá impactar negativamente as taxas de lucro, consolidando a transição para uma fase recessiva do Kondratieff.16 16 O Banco Mundial prevê a redução das taxas de crescimento do PIB per capita mundial para 1,2 % em 2023, quando se inclui a taxa de crescimento demográfico sobre a estimativa de expansão do PIB mundial ( Banco Mundial, 2023 ). O Kondratieff recessivo não se caracteriza por uma taxa de crescimento negativa, mas por uma média muito inferior que a dos períodos de crescimento longo.

Como mencionamos, liberalismo, fascismo e socialismo deverão confrontar-se com projetos distintos para disputar o novo padrão de acumulação. O liberalismo tende a aumentar a dívida pública e a fortalecer o papel do rentismo, aprofundando a crise da democracia e os conflitos geopolíticos internacionais, incluindo neles marginalmente gastos sociais e ambientais. A tentativa de os Estados Unidos manterem uma política internacional idealista em período de declínio pode multiplicar os conflitos internacionais e aumentar os gastos com a guerra, abrindo espaços ao fascismo. O aprofundamento dos conflitos geopolíticos e da bifurcação tende a colocar em xeque a autonomia do mercado mundial e a debilitar o dólar. A recessão deprime os investimentos produtivos das economias capitalistas em favor dos financeiros, enquanto o socialismo ou o capitalismo de Estado tendem a se desempenhar muito melhor como motores da produção. O fascismo inclina-se a restituir a centralidade dos gastos militares, impulsionando a economia da guerra e da repressão em escala mundial, ao passo que o socialismo se orienta para impor a prioridade dos gastos em educação, saúde, previdência, novas energias, ecologia, infraestrutura, erradicação da pobreza e redução da desigualdade a patamares promotores da cooperação e competição. O liberalismo pede centralidade e se vê pressionado por centros de gravidade opostos a se dividir em duas vertentes antagônicas: aliado do socialismo na construção de um mercado regulado que o transforme em uma fonte de cooperação social; ou cúmplice do fascismo e das grandes estruturas imperialistas, dependentes, coloniais e opressoras.

Na América Latina se observa o declínio acelerado do centrismo político, a instalação de uma situação de caos, sem nenhum padrão hegemônico estável e uma divisão do liberalismo entre o apoio ao fascismo emergente e o estabelecimento de laços com a esquerda nacional-popular. A nova onda de centro-esquerda na América do Sul se estabelece em sociedades profundamente divididas, pequena margem de vantagem eleitoral, parlamentos conservadores e trincheiras da sociedade civil e do Estado ocupadas por segmentos refratários a avanços sociais mais substantivos. A burguesia tradicional mais poderosa, ligada ao setor industrial, de comunicações e financeiro, discrepa sobre se vincular ao fascismo de forma mais orgânica, uma vez que este implica circulação das elites de poder, mas seu potencial de alianças com as esquerdas é limitado, em razão de seus vínculos históricos com a superexploração dos trabalhadores. O monopólio político sobre o Estado pretendido pelo fascismo, o patrimonialismo decorrente e sua articulação com as cadeias de valor permitem a ascensão de novas camadas médias e novos grupos empresariais. A articulação do fascismo latino-americano com o imperialismo estadunidense o vincula ao desmonte dos segmentos de maior complexidade tecnológica, ao agronegócio, à internacionalização do setor bancário e à ofensiva de grupos neopentecostais, deslocando a hegemonia da Igreja Católica.

Mantida dentro do escopo da globalização neoliberal, a esquerda brasileira sofre aceleradamente os efeitos de seu declínio, sem conseguir estabelecer um novo padrão hegemônico. A salvaguarda fornecida pela burguesia brasileira mais internacionalizada é limitada. Esta perde centralidade com a desindustrialização acelerada e não pode aceitar um programa de reformas sociais mais consistente. Detentor da grande massa territorial central da América do Sul, de sua maior população, da maior parte da Floresta Amazônica e das maiores reservas cambiais da América Latina, o Brasil tem enorme potencial para impulsionar e fortalecer a integração regional e o mundo multipolar. Por isso sofre de perto a vigilância do imperialismo estadunidense envolvido no golpe de Estado de 2016. Não é por outra razão que o Brasil é o único país da América do Sul que não estabeleceu uma justiça de transição, não puniu a ala fascista que se comprometeu com o terrorismo de Estado da ditadura imposta em 1964 e tem uma elite militar profundamente subjugada à liderança dos Estados Unidos.

Vencer esses obstáculos não será fácil para a esquerda brasileira. Isso exige sua profunda reorganização teórica, uma ofensiva ideológica de massas que rompa com o institucionalismo liberal, apoie-se nos segmentos mais avançados da classe trabalhadora, tendo em conta as tendências da revolução científico-técnica e um forte apoio à integração soberana e solidária da região e aos seus vínculos com o mundo multipolar, respaldado em alianças estratégicas com a China, a Rússia e as potências emergentes do Sul Global.

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  • WORLD Energy Outlook (2022). International Energy Agency.
  • ZHAO, T. (2020). Redefining philosophy for a world governance . Singapore, Palgrave Macmillan.

Notas

  • 1
    Darcy Ribeiro desenvolveu uma importante crítica da civilização capitalista associando o socialismo à revolução termonuclear em O processo civilizatório (1968).
  • 2
    Sobre isto, veja-se o excelente o artigo de Beverly Silver, Ensaio sobre a classe trabalhadora (2022), no qual a autora aponta a necessidade de articular quatro grandes setores da classe trabalhadora para estabelecer um movimento anticapitalista com capacidade de formular uma alternativa sistêmica: a vanguarda vinculada à nova base tecnológica, na qual destaca os trabalhadores da educação; os segmentos vinculados à base industrial e aos postos de trabalho em processo de destruição; os precarizados ligados à expansão do setor de serviços varejista; e os desempregados.
  • 3
    Braudel (1984)BRAUDEL, F. (1984). Civilización material, economía y capitalismo, siglos XV-XVIII: El tiempo del mundo , v. III. Madrid, Alianza Editorial. e Wallerstein (1983)WALLERSTEIN, I. (1983). Historical capitalism with capitalism civilization . Londres e Nova York, Verso. aproximam-se fortemente dos trabalhos clássicos de Bagu (1949)BAGU, S. (1949). Economia de la sociedade colonial . Buenos Aires, El Ateno editorial. , que defende a tese de que o escravismo colonial era capitalista, quando o mais correto seria capturar a contradição específica que enseja e defender a perspectiva de que era uma forma produtiva não capitalista subordinada e funcionalizada à acumulação mundial capitalista.
  • 4
    A fusão da teoria da revolução científico-técnica com as análises do sistema-mundo tem sido proposta e desenvolvida por Dos Santos (1984DOS SANTOS, T. (1984). Revolução científico-técnica e capitalismo contemporâneo. Petrópolis, Vozes. ,1987 e 2016) e por nós ( Martins 2011MARTINS, C. E. (2011). Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina . São Paulo, Boitempo. , 2020MARTINS, C. E. (2020[2011]). Dependency, neoliberalism and globalization in Latin America. Leiden e Boston, Brill. [2011], 2021, 2022a e 2023)
  • 5
    Ver os informes da OCDE (2018OCDE (2018). Economic Outlook . May. Paris, OCDE. e 2022).
  • 6
    “Por exemplo, a China é muito maior, mas também muito mais pobre do que os Estados Unidos, apesar de décadas de rápido crescimento econômico. Portanto, o futuro da evolução descrito na figura 1.1 é um movimento em direção a algum tipo de ‘estado mundial’” ( Arrighi e Silver, 2010ARRIGHI, G; SILVER, B. (2010). “The End of the long twentieth century”. In: CALHOUN, C.; DERLUGUIAN, G. (orgs.) (2011). Business as usual: the roots of the global financial meltdown. Nova York, New York University Press. , p. 62; tradução nossa).
  • 7
    Santos (2001)SANTOS, M. (2001). Por uma outra globalização . São Paulo, Record. positivou a crítica dos trabalhadores submetidos à desigualdade do mundo capitalista, afirmando que priorizam bens infinitos, como laços comunitários e afetos, a bens finitos e efêmeros. Há uma enorme literatura sobre a decolonialidade do poder que surgiu na América Latina nesse século, buscando lançar a crítica ao mundo capitalista desde civilizações que foram vencidas, mas não totalmente destruídas por sua expansão, e que recobram força com a crise estrutural que o atravessa.
  • 8
    Sobre o conceito de imperialismo informal, ver The geometry of imperialism: limits of Hobson`s paradigma ( Arrighi, 1983ARRIGHI, G. (1983[1978]). The geometry of imperialism: limits of Hobson`s paradigma . Londres e Nova York, Verso. [1978]).
  • 9
    Sobre as diferenças entre internacionalismo liberal e conservador, ver o livro America at the crossroads, democracy, power and the neoconservative legacy ( Fukuyama, 2006FUKUYAMA, F. (2006). America at the crossroads: democracy, power, and the neoconservative legacy . New Haven e Londres, Yale University Press. ). Para uma crítica realista de ambos os enfoques, veja-se Liberal dreams and international realities (Measheimer, 2018). Uma visão de longa duração desde o marxismo da política externa dos Estados Unidos pode ser encontrada no livro, American foreign policy and its thinkers ( Anderson, 2015ANDERSON, P. (2015). American foreign policy and its thinkers . Londres e Nova York, Verso. ).
  • 10
    Na Câmara de Deputados, o projeto apresentado pelos republicanos Benjamin Gilman e Christopher Cox recebeu 360 votos a favor, sendo 202 de republicanos, 157 de democratas e 1 de independente; apenas 38 foram contrários, destes, 29 de democratas.
  • 11
    A autorização para o uso de força militar contra o Iraque, apresentada pelo governo de George W. Bush, em 2002, contou com o apoio da maioria dos democratas no Senado. Entre os que lhe deram suporte, estavam Hillary Clinton, Joe Biden e John Kerry, enquanto Bernie Sanders se juntou à maioria dos democratas, 60%, que se opôs na Câmara de Deputados.
  • 12
    Arrighi (1983ARRIGHI, G. (1983[1978]). The geometry of imperialism: limits of Hobson`s paradigma . Londres e Nova York, Verso. [1978]) desenvolve o conceito de imperialismo tout-court em oposição ao de imperialismo informal para designar o exercício do poder imperialista assentado na violência política e militar explícita.
  • 13
    Para comparar as taxas de crescimento econômico per capita , tomamos as séries tabuladas por Angus Maddison e seus discípulos, que medem o PIB per capita por paridade do poder de compra. Entretanto, essas séries apresentam descontinuidade na metodologia, a partir de 2011, não sendo completamente comparáveis. Assim, entre 1994-2010, a taxa de crescimento per capita foi de 2,6% a.a., sendo muito superior aos 1,3% a.a. de 1973-1993 e quase se aproximando da marca alcançada entre 1950-1973 de 2,9% a.a. A série, até 2018, apresentada pelos seguidores de Maddison não especifica todos os anos da década de 1990, permitindo-nos apenas tomar como referência 1990-2016, período em que o crescimento do PIB per capita atingiu 2,3% a.a., sendo reduzido por incluir a recessão de 1990-1992.
  • 14
    A massa de lucro das corporações estadunidenses no exterior representava 10,4% do total nos anos 1970, 14,5% nos anos 1980, 16,5% nos anos 1990, 19,1% anos 2000 e 20,9% nos anos 2010. Em 2020, alcançou 20,5%. Se compararmos a massa de lucro no exterior com a massa de lucro especificamente sob controle doméstico das corporações estadunidenses não financeiras, podemos perceber também a sua forte ascensão: nos anos 1970 representavam 14,2% da última; nos anos 1980, 20,8%; nos anos 1990, 21,1%; nos anos 2000, 33%, nos anos 2010, 35,7%. Na massa de lucros sob controle doméstico, estão incluídas somas geradas externamente e transferidas sob diversas como as remessas de lucros. Cálculos nossos a partir do The Economic report of the President ( Council of Economic Advisers, 2021COUNCIL OF ECONOMIC ADVISERS (2021). The Economic Report of the President. Washington D.C., The White House. ).
  • 15
    O crescimento do PIB per capita alcançado entre 1994-2010 caiu de 2,4% a.a. para 1,8% a.a., entre 2011-2018, indicando os efeitos limitados das políticas de estímulo monetário para promover o crescimento econômico (Maddison Project, 2013 e 2020). O comércio internacional representava 36,7% do PIB mundial em 1982, alcançou o auge de 60,9%, em 2008, declinando 54,1%, em 2014, para 56,3%, em 2019, e de maneira mais acentuada para 51,6%, em 2020 ( Banco Mundial, 2022BANCO MUNDIAL (2022). Trade/GDP ratio. Disponível em: https://data.worldbank.org/indicator/NE.TRD.GNFS.ZS?end=2021&start=1960&view=chart. Acesso em: 15 jan 2023.
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    ). Os fluxos internacionais de capitais saltam de um montante de US$255.9 bilhões, em 1993, para US$1.356 trilhão, em 2000. Caem acentuadamente na crise de 2001-2002 até 2003 e se elevam paulatinamente para atingir um novo pico, em 2007, de US$1.905 trilhão. Regridem novamente, mas atingem um novo pico, em 2015, de US$ 2.063 trilhões. Desde então, entram em declínio, com ponto extremo em 2020, e, em 2021, alcançam US$ 1.582 trilhão, nível inferior ao valor de 2007 e mais próximo ao de 2000 ( Unctad, 2022UNCTAD (2022). UNCTADSTAT. Disponível em: https://unctadstat.unctad.org/EN/. Acesso em: 15 mar 2023
    https://unctadstat.unctad.org/EN/...
    ).
  • 16
    O Banco Mundial prevê a redução das taxas de crescimento do PIB per capita mundial para 1,2 % em 2023, quando se inclui a taxa de crescimento demográfico sobre a estimativa de expansão do PIB mundial ( Banco Mundial, 2023BANCO MUNDIAL (2023). Global economic prospects. Washington D.C., Banco Mundial Group. ). O Kondratieff recessivo não se caracteriza por uma taxa de crescimento negativa, mas por uma média muito inferior que a dos períodos de crescimento longo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2023
  • Aceito
    2 Ago 2023
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