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“O caminho chinês”: desenvolvimento desigual, projetamento e socialismo

Resumo

São inúmeros os indicadores demonstrando a robustez e a resiliência do processo de desenvolvimento chinês ao longo das últimas décadas. Porém, não é incomum perceber nas análises correntes o processo chinês somente como mais um caso de catching-up bem-sucedido; um latecomer de matriz asiática como o Japão e a Coreia do Sul. Na verdade, o desenvolvimento chinês não é nada trivial, tendo em vista sua história e seu ponto de partida: em 1949 a China era o país de menor renda per capita do mundo e hoje disputa a fronteira tecnológica com os Estados Unidos. Propomos, neste artigo, as categorias de “desenvolvimento desigual”, “projetamento” e “socialismo” como suportes fundamentais em uma análise de fundo sobre as reais razões explicativas do sucesso chinês.

China; desenvolvimento; desenvolvimento desigual; projetamento, socialismo

Abstract

Numerous indicators have demonstrated the robustness and resilience of the Chinese development process over the past decades. However, it is not uncommon to perceive, in current analyses, the Chinese process as just another case of successful catching-up, a latecomer of Asian matrix like Japan and South Korea. In fact, Chinese development is not trivial given its history and starting point: in 1949 China was the country with the lowest per capita income in the world and today it is competing with the United States for the technological frontier. In this article, we propose the categories "uneven development", "projectment", and "socialism" as fundamental supports in a background analysis of the real explanatory reasons for the Chinese success.

China; development; uneven development; projectment; socialism

Introdução

Uma das grandes questões levantadas desde a consolidação da China como uma potência comercial, industrial e mesmo financeira residiu em como classificar seu “modelo”. Observamos a consolidação de duas correntes de opinião: de um lado, os que acreditavam que o país estava se transformando em uma economia de “livre mercado” ( Lardy, 2014LARDY, N. (2014). Markets over Mao: the rise of private business in China . Washington, Peterson Institute for International Economics. ), e, de outro, os que a percebiam como uma espécie de “capitalismo de Estado” ( Naughton, 1995NAUGHTON, B. (1995). Growing out of the plan . Cambridge, Cambridge University Press. ). A noção de “capitalismo de Estado” tem servido como um verdadeiro guarda-chuva que respalda pontos de vista elaborados tanto por heterodoxos quanto por marxistas ligados à academia, a think tanks e à mídia mainstream . Resumindo, um dos únicos consensos existentes entre ortodoxos e heterodoxos reside na ideia de que o caminho de sucesso da China passou por sua reversão em um país capitalista que foi galgando espaço e influência na economia e política internacionais.1 1 A crise financeira de 2008/2009 começou a produzir algum tipo de fissura nessa disputa. Naughton (2021b) elaborou uma verdadeira e honesta autocrítica sobre quase a totalidade do que influentes economistas especializados no processo de desenvolvimento chinês acreditavam ter fundo de verdade, mas que os rumos tomados desde o pós-2008, e principalmente nos últimos três anos, acabaram que por fazer desmoronar. Segundo o citado autor, a China inaugura um novo tipo de sistema econômico caracterizado por um crescente domínio do Estado sobre o mercado, assentado por uma série de evidências empíricas. Na mesma direção, mas sem escapar do “consenso”, Blanchette (2020) aponta para uma outra espécie de capitalismo de Estado nomeado, por ele, de “Chinese Comunist Party Inc.” (CCP Inc).

Esse consenso é fruto da absorção de noções que vão desde a aceitação de um chamado “fim da história”2 2 Um exemplo dessa admissão pode ser constatado em Milanovic (2019) ao dividir o mundo entre “capitalismo político” e “capitalismo meritocrático liberal”. até abordagens que admitem generalizações, categorias transcendentais e teorias que desconsideram seu prazo de validade diante da história. Por exemplo, a nosso ver, a noção de um “Estado empreendedor” ( Mazzucato, 2014MAZZUCATO, M. (2014). O estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público x setor privado . São Paulo, Portfolio-Penguim. ) serve tanto para validar o princípio da demanda efetiva enquanto um suposto conceito universal quanto na admissão de uma visão etapista do próprio capitalismo – “com Estado” (capitalismo monopolista de Estado, final do século XIX), precedido por um “capitalismo de livre concorrência”). Daí a China ser enquadrada entre esses dois tipos de capitalismo.

Existe nesse debate uma outra abordagem, amplamente ignorada no Ocidente, baseada em intelectuais ocidentais não convencionais e entre os próprios chineses. A este grupo, heterogêneo, a China não somente deve ser vista como uma experiência de estratégia socializante, mas também, e especialmente a partir de 2017, como um “socialismo com características chinesas” que estaria entrando em uma “Nova Era” na qual as questões/contradições sistêmicas de fundo estariam relacionadas com a inovação, o desenvolvimento verde, a prosperidade comum e a construção de uma nova ordem internacional, tendo a China como parte do “Sul Global”, baseada em dois princípios basilares: 1) os cinco princípios de coexistência pacífica, consolidados na Conferência Afro-Asiática de Bandung em 1955; e 2) a ideia de uma “comunidade de futuro compartilhado para a humanidade” (CFCH).3 3 Sobre isso ler Dunford (2023) ; Cheng (2023) ; Cai e Zhang (2021) ; Enfu (2021) e Staiano (2023) .

De certo modo relacionado à forma de abordagem do caso chinês, sobretudo às elaborações heterodoxas e ortodoxas, existe um grande fato histórico que é pouco mencionado. A generalização que leva a tratar o caso chinês como mais um de sucesso de tipo asiático desconsidera um fato marcante da sua trajetória. Vejamos.

According to reports from The Conference Board, in 1952, at the start of the post--war era, China was the poorest of 110 countries (though there were no data for Yugoslavia and former Soviet Republics), with a GDP per capita in 2021 international dollars, converted using purchasing power parities (PPP), of US$233.8. Next came Myanmar (US$427.9) and Mozambique (US$553.1). India was ninth poorest (US$884.9). ( Dunford, 2023DUNFORD, M. (2023). China’s development path, 1949–2022. Global Discourse. Bristol, v. 20, n. 20, pp. 1-31. , p. 2)

A particularidade histórica chinesa (um país que se coloca como parte do “Sul Global”)4 4 De acordo com o atual chefe da chancelaria chinesa, Yi (2023): Our circle of friends is always in the third world. Remember: those developed countries in the West will not take us to play, and in their eyes always have a “sense of superiority”. The West will always look down on our values and always consider China to be “backward”. In the eyes of Westerners, there will always be “East- -West differences”. Don’t think that you can integrate into the Western world, and naively think that you can. está em um processo de transformação, em que o país mais pobre do mundo se torna a segunda potência econômica do planeta. Para esse objetivo, uma força política particular (o Partido Comunista da China – PCCh) venceu tanto a guerra de ocupação japonesa quanto a guerra civil contra o Kuomintang. Desde sua revolução em 1949, diferentemente de seus congêneres do Leste Asiático, o país pode seguir um caminho de desenvolvimento fora dos esquemas geopolíticos estadunidenses. Entre 1952-1978, portanto antes do início das reformas econômicas, sua média de crescimento do PIB foi de 6,2%. As bases para o verdadeiro salto adiante pós-1978 estavam lançadas, incluindo a fundamental – ainda sob o comando de Mao Zedong: reaproximação com os EUA e Japão e sua integração ao mundo capitalista.

A experiência chinesa é um típico caso de “começo do zero”, ou seja, de níveis muito baixos de desenvolvimento das forças produtivas. Como temos exposto, as reformas econômicas pós-1978 e sua integração ao mundo capitalista fizeram emergir uma nova classe de formações econômico-sociais ( Jabbour e Gabriele, 2021JABBOUR, E.; GABRIELE, A. (2021). China: o socialismo do século XXI. São Paulo, Boitempo. ; Jabbour, Dantas e Espíndola, 2021; Gabriele e Schettino, 2012GABRIELE, A.; SCHETTINO, F. (2012) F. Socialist market economy as a distinct SEF internal to the modern MP. New proposals: journal of marxism and interdisciplinary inquiry. Porto of Spain, v. 5, n. 2, pp. 20-50. ). A dinâmica dessa nova formação econômico-social está associada com o surgimento tanto de um poderoso setor público na economia quanto de um setor privado ancilar, porém muito dinâmico. Caracteriza-se também por sucessivos ciclos de inovações institucionais que abriram condições à inauguração de novas e superiores formas de planificação econômica ( Jabbour e Dantas, 2021JABBOUR, E.; DANTAS, A. T. (2021). Ignacio Rangel na China e a Nova Economia do Projetamento. Economia e Sociedade. Campinas, v. 30, n. 2, pp. 287-310. ).

Para além da história do processo de desenvolvimento chinês, incluindo seu peculiar processo político que desembocou na revolução de 1949 e dada a elevação da técnica – resultado de cada vez maior capacidade de intervenção consciente sobre a realidade –, advogamos que o caso chinês é de difícil apreensão por parte das abordagens tradicionais heterodoxas e ortodoxas. Uma ciência social nova precisa ser construída no sentido de decifrar o conceito que se manifesta naquele movimento real.

Tendo em vista esta última colocação, o objetivo deste artigo será o de apresentar três categorias que podem ser fundamentais à compreensão do caminho chinês. A primeira categoria é a de desenvolvimento desigual . Essa escolha guarda sentido pelo fato de a China ser um grande objeto de economia política; objeto este em que se encerram grandes avanços em matéria de planificação econômica. Pois bem, se a economia orbita em torno da política, observamos o instrumental do planejamento como funcional ao poder político, pois trata-se de uma forma de controle, justamente, sobre a lei do desenvolvimento desigual enquanto “lei fundamental do período de transição do capitalismo para o socialismo” ( Lefebvre, 2020LEFEBVRE, H. (2020[1955]). O pensamento de Lênin. São Paulo, Lavrapalavra. [1955], p. 206). Como argumentaremos, o conceito/lei do desenvolvimento desigual é fundamental à compreensão das razões, e estratégias que sustentam o processo de desenvolvimento chinês.

Outra categoria já tem sido objeto de elaboração (Jabbour et al., 2023; Jabbour, Dantas e Espíndola, 2021; Jabbour e Dantas, 2021JABBOUR, E.; DANTAS, A. T. (2021). Ignacio Rangel na China e a Nova Economia do Projetamento. Economia e Sociedade. Campinas, v. 30, n. 2, pp. 287-310. ) no sentido de elucidar as implicações teóricas, conceituais e funcionais da dinâmica de desenvolvimento do país em face do surgimento de novos patamares de planificação econômica. A categoria de projetamento , forjada pelo economista brasileiro Ignacio Rangel, pode ser uma chave fundamental no exercício de compreender os impactos da absorção de inovações tecnológicas disruptivas, como o big data , 5G e a inteligência artificial, quanto ao exercício da governança e da planificação, em nível superior, do processo de desenvolvimento chinês.

Por fim, o socialismo enquanto uma categoria de análise. A nossa questão é ir além de uma tipificação ou uma tentativa de enquadramento da China em alguma estrutura rígida e preestabelecida. Aqui trataremos o socialismo como uma categoria que encerra uma determinada formação econômico-social que se constrói historicamente . O socialismo seria uma categoria explicativa do caso chinês na medida em que a tomamos na sua dimensão político/superestrutural – poder político exercido por um bloco histórico hegemonizado por um partido comunista – e econômica – a propriedade pública dos meios de produção como o núcleo da economia do país, planificação em larga escala, crescente influência do PCCh sob as decisões de investimento dos setores não públicos da economia, etc.

Além da introdução e conclusões iniciais, este artigo terá outras três seções. A primeira seção será reservada para a exposição da lei/categoria de desenvolvimento desigual como uma peça teórica capaz de nos entregar muitos insights que escapam das análises convencionais. As outras duas seções serão dedicadas às categorias de projetamento e socialismo. Ao final, algumas conclusões iniciais serão expostas.

O desenvolvimento desigual

O desenvolvimento desigual per se é perceptível nas diferentes velocidades nas transformações nos campos da superestrutura, da base econômica e, também, na grande diferença que podemos observar nos ritmos das transformações no âmbito da subjetividade. Assim a sociedade humana se produz e reproduz em meio a constantes e diferentes formas de “unidade de contrários”. O mesmo ocorre no âmbito das formações econômico-sociais: elas se desenvolvem de forma desigual entre si. Ou seja, sociedades, países e nações desenvolvem-se segundo ritmos diferentes. Em certos casos, os que começam com uma vantagem sobre os outros podem aumentar essa vantagem, mas também por força dessas mesmas diferenças de ritmo de desenvolvimento, os que haviam ficado para trás podem alcançar e ultrapassar os que dispunham de vantagem inicial.

No âmbito de cada formação econômico-social, também, essa lei se aplica dada a possibilidade de convivência de diferentes formas históricas de produção e troca em uma mesma sociedade. Em grande medida, o estudo de processos específicos e comparados de desenvolvimento é a análise das diferenças, desigualdades e especificidades de cada formação social. Uma formação econômico-social é síntese da combinação entre diferentes modos de produção; daí nós advogarmos por uma visão de totalidade quando se trata do estudo de processos históricos complexos. Eis uma divergência de princípio com as abordagens convencionais e, mesmo, com o marxismo ocidental. Do ponto de vista teórico/filosófico, concordamos com Lefebvre, para quem:

A lei do desenvolvimento desigual tem [...] uma importância considerável, em si e pelas consequências que acarreta. É a principal descoberta de Lênin no campo econômico: a grande lei da formação econômico-social. ( Lefebvre, 2020LEFEBVRE, H. (2020[1955]). O pensamento de Lênin. São Paulo, Lavrapalavra. [1955], p. 193)

Em um primeiro plano não seria nenhum exagero afirmar que a China é mais uma comprovação explícita da validade da categoria de desenvolvimento desigual. A questão a ser elaborada é saber como esse país, que em um primeiro momento foi literalmente arrastado à orbita do capitalismo internacional, pode pôr em relevo o fato de a fundação do PCCh ser vista como um produto do desenvolvimento desigual do capitalismo.5 5 Aqui observamos que o socialismo se tornou um atalho ao desenvolvimento impedido pela colonização e a brutal ação do imperialismo na periferia em geral e na China em particular. Não haveria desenvolvimento chinês sem o PCCh. Esse é um ponto. Uma outra discussão é: como a China utilizou-se dessa lei como uma forma de, ao planificar sua adesão ao mundo exterior, construir uma economia socialista de mercado e avançar rapidamente ao posto de segunda economia do mundo pari passu ao momento em que a financeirização erode a capacidade dos países capitalistas centrais em manter a dianteira simultaneamente ao surgimento de novos polos de poder na periferia do próprio sistema capitalista?

Como lei fundamental da formação econômico-social e do período de transição do capitalismo para o socialismo, pressupomos que o desenvolvimento desigual opera dentro da China, com particularidades muito pouco exploradas pelas correntes dominantes. Se a desigualdade no nível de desenvolvimento entre diferentes países é uma característica intrínseca do capitalismo, devemos perceber o mesmo em relação à dinâmica em que se desenvolvem os países, tendo em vista os diferentes níveis internos de desenvolvimento entre suas regiões e os diferentes modos de produção que compõem uma formação econômico-social específica.6 6 Soma-se ao fato de a história não poder ser feita em circunstâncias escolhidas pelos seres humanos, ou seja, o desenvolvimento de formações econômico-sociais orientadas ao socialismo é fortemente restringido pela dominância exercida pelo capitalismo em escala global ( Jabbour e Gabriele, 2021 ). Devemos ter em mente que, também, o desenvolvimento desigual condiciona de forma profunda experiências não capitalistas de desenvolvimento. Não se trata somente, conforme Lefebvre (2020 [1955], p. 195) de uma “lei das dificuldades do capitalismo, suas crises”. É também a lei das restrições, externas e internas, ao desenvolvimento do socialismo. Ao caso chinês, devemos observar tanto essas questões quanto o papel do planejamento como instrumento de domínio político sobre o território enquanto atributo do socialismo.

A história do desenvolvimento chinês compreende toda uma gama de experiências condicionadas de diversas formas. Desde o enfrentamento de uma hiperinflação logo nos primeiros momentos pós-tomada do poder, a Guerra da Coreia e fortes sanções impostas pelo ocidente – levando o país a uma aliança ampla com a União Soviética (URSS) para em seguida tensionar com a própria URSS –, até caminhos erráticos, como o “Grande Salto Adiante” e a Revolução Cultural, que ampliaram seu isolamento externo.

Um caminho peculiar sob a alcunha do “socialismo com características chinesas” é inaugurado com a aproximação com os EUA e admissão plena ao mercado internacional capitalista desde o final dos anos de 1970. Como já exposto, atualmente esse mesmo “socialismo com características chinesas” adentra uma chamada “Nova Era”, marcada pelo surgimento e enfrentamento de outra onda de contradições internas (polarização social, óbices ambientais, desemprego entre os jovens, etc.) e externas (cerco imperialista), ao mesmo tempo que a China já desponta como país capaz de organizar uma globalização alternativa à neoliberal, e em declínio, liderada pelos EUA (Jabbour, Dantas e Vadell, 2021).

Nos primeiros anos da República Popular da China, como conquista de uma revolução levada a cabo por uma ampla frente patriótica, esperava-se uma inserção maior do país no mercado mundial e a constituição de um “capitalismo de Estado” nos moldes da Nova Política Econômica (NEP) implementada por Lênin na URSS. Mas as imposições históricas pós-Revolução de 1949 levaram o país a adotar uma dinâmica de acumulação típica dos estados de exceção caracterizados pelo modelo soviético:

Just as the planned coalition with the national bourgeoisie was set aside, so were the plan to attract developed- -country loans and investment (at least until the US blockade was lifted in the early 1970s). Instead, China sought, first with Soviet assistance, to develop an economic order comprising: large-scale, domestically oriented and capital-intensive state-owned industrial enterprises (SOEs); danwei-provided welfare services; a People’s Bank that received deposits and lent to enterprises; a Soviet-style planning system; worker mobilisation; and fair distribution in a context of an acute capital shortage. In the countryside, the rural population was organised into collective farms, creating markets for equipment and permitting the appropriation of rural food surpluses, ending the centuries old immobility of the countryside and providing resources for industrialisation – what Preobrazhensky (1965 [1920]) would have called ‘primitive socialist accumulation’, where expansion of the socialist industrial sector requires a surplus product in a society where surplus value no longer exists . ( Dunford, 2023DUNFORD, M. (2023). China’s development path, 1949–2022. Global Discourse. Bristol, v. 20, n. 20, pp. 1-31. , p. 6)

Podemos considerar o “modelo soviético” tanto como uma dinâmica de acumulação típica de um “estado de exceção” (país sob bloqueio, sem acesso a divisas estrangeiras, menor policy space para substituição de importações e créditos externos, etc.) que redundou em uma forma particular de catching-up como de utilização das vantagens do atraso. Seria de se surpreender que, mesmo de forma convulsiva, em ziguezagues e sob ampla turbulência, a China da era Mao Zedong – apesar de ainda ser um país pobre – construiu um sistema industrial básico e que serviu de trampolim às reformas que viriam. O crescimento econômico chinês, entre 1952 e 1978, foi de 6,6% ( NBS, 2023NBS – National Bureau of Statistics of China (2023). China Statistical Yearbook . Beijing, Foreign Language Press. ). A China viu a expectativa de vida aumentar de 35 anos, em 1949, para 57, em 1957, e 68, em 1981, enquanto sua população aumentou de 554,4 milhões para 1.014 milhões ( World Bank, 1982WORLD BANK (1982). World development report . Oxford, Oxford University Press. ).

Mas, em termos comparativos, o arranque inicial chinês ainda não fora suficiente para um emparelhamento com seus vizinhos, notadamente o Japão, a Coreia do Sul e a província de Taiwan. O Leste Asiático foi o berço tanto de um dinâmico capitalismo quanto do surgimento de novos paradigmas tecnológicos (Terceira Revolução Industrial). A posição de desvantagem da China mantinha o país distante de determinadas metas, incluindo a reincorporação de Hong-Kong, Macau e a própria Taiwan. É nesse contexto mais geral que se operam a reaproximação com os EUA (1971) e a inauguração da política de Reforma e Abertura em 1978. Trata-se de dois movimentos que apontaram o dedo na própria conjuntura que vivemos hoje.

A liderança chinesa, de forma sagaz, foi capaz de compreender as mudanças estruturais que estavam a ocorrer no sistema capitalista. O abandono das políticas cambiais de Bretton-Woods em 1971, pelos EUA, a crise de 1973 e a queda da taxa de lucro verificada nos países do G-7 acompanhada pelo surgimento do fenômeno da financeirização como o padrão de acumulação hegemônico foram acontecimentos aproveitados pela China. Se, já em 1973, o país utilizou de um aporte de US$4,3 bilhões em empréstimos para adquirir maquinário moderno no Ocidente; em 1978 já era oficial sua admissão ao sistema capitalista internacional. Do ponto de vista da lei do desenvolvimento desigual, é evidente que a China deveria aproveitar da revoada de cadeias produtivas provindas do G-7 em busca de menores custos de produção no sentido de promover uma ampla política de modernização e catching-up . Dois pontos merecem lembrança para caracterizar esse período inaugurado com as reformas:

  1. uma marca fundamental desse processo de integração ao mundo capitalista foi a transformação do comércio exterior em bem público, planificado e de Estado ( Jabbour e Dantas, 2017JABBOUR, E.; DANTAS, A. T.(2017). The political economy of reforms and the present chinese transition. Brazilian Journal of Political Economy. São Paulo, v. 37, n. 4, pp. 789-807. , p. 794). A planificação, nesse caso, também abarca as condições pelas quais o país irá regular os investimentos estrangeiros em seu território; e

  2. a combinação do socialismo chinês com o surgimento de formas internas de propriedade privada (nos documentos oficiais chineses se denominam: “não públicas”) e o investimento estrangeiro em larga escala nos faz concluir, diante da debacle das primeiras experiências socialistas, que na China o socialismo se reinventou através de instituições de mercado , remontando a uma política da década de 1940, implementada nas áreas liberadas e controladas pelo PCCh, de construção de um “mercado socialista organizado” capaz de ordenar a economia nacional ( Weber, 2023WEBER, I. (2023). Como a China escapou da terapia de choque. São Paulo, Boitempo. , p. 129).

Sob nosso ponto de vista, a China encerra um grande desafio teórico. Por exemplo, a construção de um “socialismo de mercado”, cujo desenvolvimento ocorre sob os marcos e restrições impostas pelo capitalismo em escala global e seu “metamodo de produção”,7 7 Segundo Jabbour e Gabriele (2021 , pp. 115-116):” uma situação histórica de longo prazo pode ocorrer onde: 1) Um modo de produção é dominante em nível global; 2) Dois ou mais modos de produção coexistem em alguns países. Eles são desigualmente desenvolvidos, mais ou menos estáveis, e em evolução. Quais deles acabarão por prevalecer nacionalmente (e, possivelmente, em uma perspectiva de longo prazo, internacionalmente) está longe de ser uma questão definida; 3) Os graus de liberdade desfrutados por cada modo de produção (incluindo o dominante) são finitos. Não são limitados apenas pela prevalência global do modo de produção dominante, mas também por restrições estruturais imanentes e universais que se aplicam a todos os modos de produção sustentáveis que podem surgir e se consolidar durante toda uma época, cuja duração não pode ser predeterminada. Como tal, esse conjunto de restrições se aplicaria a todas as tentativas nacionais de buscar uma estratégia de desenvolvimento consistente com os princípios básicos de qualquer modo de produção específico, mesmo que este se tornasse progressivamente hegemônico em escala global (sinalizando uma lenta transição para um novo modo de produção dominante em nível global). Nessas circunstâncias, o conjunto de restrições acima mencionado atua como uma espécie de metaestrutura, que limita e restringe os graus de liberdade de cada MP sustentável para se diferenciar internamente dos demais. Essa estrutura é uma característica do mundo real e exerce uma forte influência nas escolhas dos formuladores de políticas e em seus resultados. Assim, referimo-nos a ele como o Metamodo de Produção (MMP)”. demanda o levantamento de questões e respostas que escapam a noções apriorísticas sobre a natureza do socialismo, e isso inclui uma visão tão rigorosa quanto flexível da lei/categoria do desenvolvimento desigual.

A introdução de formas não públicas de propriedade e, consequentemente, da admissão da operacionalidade da lei do valor em uma formação econômico-social de orientação socialista leva a uma forma característica de desenvolvimento desigual com impactos profundos sobre o território, a economia e a sociedade.8 8 Sobre isso ler Cheng (2023) , que trabalha com muita competência a hipótese da competição entre a acumulação primitiva socialista e a lei do valor na China. Eis o caminho chinês. Chega-se a um limite teórico para o qual a solução passa pela plena adesão à noção de que o conceito se manifesta no movimento real.

O projetamento

O desenvolvimento desigual abre amplas possibilidades de interpretação de diferentes caminhos nacionais ao socialismo, mas sem, antes disso, colocar em questão determinados axiomas sobre a natureza do próprio socialismo. Se essa lei/categoria nos coloca diante da análise de uma transição em curso a uma formação econômico-social de nível superior, somos impelidos a analisar e, principalmente, ter como fundamentos as relações humanas com o território ( Lefebvre, 2020LEFEBVRE, H. (2020[1955]). O pensamento de Lênin. São Paulo, Lavrapalavra. [1955], p. 209). É justamente nesse ponto que restauramos e reelaboramos o conceito de projetamento à luz da realidade chinesa e o nível de desenvolvimento da técnica atingido por este país.

A categoria de projetamento foi concebida originalmente pelo economista brasileiro Ignacio Range em “Elementos de economia do projetamento” ([1959] 2005). Sua definição é decorrente de um processo histórico específico. Segundo Castro (2014CASTRO, M. H. (2014). “Elementos de economia do projetamento”. In: HOLANDA, F. M.; ALMADA, J.; PAULA, Z. A. Ignácio Rangel, decifrador do Brasil . São Luís, Edufma. , p. 202):

A leitura de seu conteúdo revela o objetivo do autor. Construir, a partir do acervo da ciência econômica, com todas suas escolas e distintas abordagens, uma teoria econômica da economia do projetamento, entendida esta como a economia que o processo histórico estava desenhando no século XX, a partir do capital financeiro, do keynesianismo e da planificação soviética.

A emergência de formas históricas9 9 No capitalismo, o princípio da demanda efetiva; enquanto, no socialismo, a socialização dos meios estratégicos de produção. que proveram o ser humano de domínio, no que concerne aos ciclos econômicos, sobre o seu próprio destino abriu possibilidades para a planificação econômica se espraiar enquanto instrumento de governo e para o ato de elaboração e execução de grandes projetos se afirmar como expressão desse mecanismo. O desafio de Rangel foi alçar o ato de projetar que algo passivo se transforme em ciência. Ciência esta, o projetamento, que tem o custo e o benefício como suas categorias fundamentais:

Custo e benefício, no sentido aqui usado, são as categorias fundamentais do projetamento: abstrações úteis para o encaminhamento da solução de problemas implícitos [...]. Toda a teoria do projetamento não passa, em última instância, de um esforço para precisar estes dois termos para com eles construirmos uma razão. ( Rangel, 2005RANGEL, I. (2005[1959]). “Elementos de Economia do Projetamento”. In: RANGEL, I. Obras reunidas . Rio de Janeiro, Contraponto. [1959], pp. 366-367; grifos nossos)

O acento sobre a palavra razão guarda sentido estratégico e elo entre o projetamento e o desenvolvimento desigual enquanto lei fundamental da transição ao socialismo. Não somente isso, a própria definição de socialismo como conceito que emerge na China hoje passa pela apreensão do que chamamos de “sentido estratégico da razão” ( Jabbour et al., 2020JABBOUR, E.; DANTAS, A. T.; ESPÍNDOLA, C. J.; VELLOZO, J. (2020). A (nova) economia do projetamento: o conceito e suas novas determinações na China de hoje. Geosul. Florianópolis, v. 35, n. 77, pp. 17-48. ).

Podemos definir o caminho chinês como um processo em que o projetamento, após o ocaso da URSS e a ascensão da financeirização, reemerge enquanto experiência como nova economia do projetamento. Absorvemos a contribuição original de Rangel, mas nomeamos a forma histórica atual de projetamento como um estágio superior de desenvolvimento da economia socialista de mercado chinesa, fruto de novas e superiores formas de planificação econômica que emergiram no país na última década.

Sustentamos a hipótese do surgimento dessa “nova economia” baseada em dois processos históricos que se entrelaçam. O primeiro é fruto das reformas no setor público da economia chinesa iniciadas na segunda metade da década de 1990 e que desembocou na formação, à época, de 199 Grandes Conglomerados Empresariais Estatais (GCGEs).10 10 Atualmente, são 99 GCGEs. Sobre esse assunto, ler Jabbour e Gabriele (2021) . Podemos agregar um outro processo fundamental: o da formação de um sistema público de intermediação financeira, voltada ao financiamento de longo prazo. A articulação entre a grande produção e a grande finança, ambas públicas, molda a face de um sistema econômico único no mundo justamente por estar baseado na propriedade pública. Esse processo foi acompanhado por mudanças de conteúdo no processo de planificação: de uma planificação central a uma planificação orientada ao mercado ( market-based planning ). Ou seja, uma resposta chinesa à sua admissão ao sistema capitalista mundial, via formação de complexos industriais estatais orientados ao mercado. Em seguida, no ano de 2003, é formada a State-Owned Assets Supervision and Administration Commission of the State Council (Sasac) como uma instituição-chave do “socialismo de mercado”, voltada à administração dos ativos estatais nas principais GCEEs.11 11 Sobre a Sasac, ler Gabriele (2010) , Jabbour e Gabriele (2021) e Chen (2017) . Tratou-se de um processo de completa reorientação estratégica dos ativos públicos e do aparecimento de uma nova forma histórica de propriedade pública sob o socialismo enquanto experiência histórica iniciada em 1917.

Um segundo processo está encerrado na decisão estratégica, tomada no 11º Plano Quinquenal (2006-2010), de recriar um sistema nacional de tecnologia e inovação tecnológica (SNTI) cujo ecossistema, formado pelos GCEEs, conglomerados privados, sistema financeiro público e universidades, foi responsável pelo surgimento de inovações tecnológicas disruptivas, como o 5G, o big data e a inteligência artificial. A nós existe uma relação direta entre tais inovações e o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica e, por conseguinte, da nova economia do projetamento. O que está a se realizar na China é uma etapa superior de domínio humano sobre a natureza (planejamento) e sobre a anarquia inerente às economias de orientação capitalista.

Assim sendo, cabe destacar que observamos o SNTI não somente como um meio para atingir metas em matéria de elevação da produtividade e catching-up , e sim como instrumento que nutre o Estado, e a base produtiva nacional nucleada pela propriedade pública, de forças produtivas auxiliares à inauguração de formas superiores de planificação econômica. Isso significa tanto capacidade de concentração em grandes projetos, como verificado no “modelo soviético”, quanto criação de um ecossistema no qual a propriedade pública seja o núcleo do SNTI pari passu com seu papel de cadeia de transmissão à economia real de novas capacidades não somente produtivas, mas de superação da própria anarquia do capital e instrumentalização do Estado no que tange a tomadas de decisões estratégicas de forma ágil.12 12 Em certa medida Naughton (2021b, p. 13) vai ao encontro de nossa hipótese da ambição de utilização de inovações tecnológicas disruptivas como forma de ampliar as possibilidades do papel do Estado na economia: “[...] from about 2015-2016, it became clear that artificial intelligence and big data had huge potential economic effects on economies worldwide. As technological change has accelerated, the ambition of China’s planners and policy-makers has also expanded, and intervention has continued and increased. Indeed, China’s development strategy today may warrant a new name: China aspires to be the first ‘government-steered market economy ’”. É a planificação como instrumento de domínio político elevado a outro patamar.

Abrindo parêntese: não são poucas as menções que relacionam a emergência do big data com o “renascimento” da planificação econômica. Wang e Li (2017)WANG, B.; LI, W. (2017). Big Data, platform economy and market competition: a preliminary construction of plan-oriented market economy system in the information era. World Review of Political Economy. Xangai, v. 8, n. 2 pp. 138-161. resgatam as contribuições de Oskar Lange sobre o cálculo econômico sob o socialismo no sentido de propor um “socialismo de mercado” de outro nível, sob o apanágio das tecnologias da informação (TIs) no geral e do big data , no particular:

This kind of economy system should coordinate centralized planning and democratic planning, take big data as technical condition, platform economy as institutional and organizational conditions, to forming the big data–based and state-owned enterprises leading operated Internet platform economy. (Ibid., p. 138)

Impelidos a observar as relações humanas com e sobre o território, a nossa percepção de que algo de diferente estava a ocorrer na China é resultado de duas inflexões históricas. A primeira foi a imensa capacidade demonstrada pelo Estado chinês, via ação deliberada de seus 99 GCEEs e bancos de desenvolvimento, na execução do pacote fiscal, lançado em novembro de 2008, de US$586 bilhões. A questão aí não reside no pacote fiscal em si, mas na capacidade de planificação e coordenação de milhares de projetos simultaneamente , algo inédito na história humana. O segundo ponto de inflexão foi a extraordinária capacidade chinesa de lidar com o imenso desafio imposto pelo covid-19 auxiliada de forma ampla pela utilização em larga escala de plataformas como o big data e a inteligência artificial. Está ainda por ser mensurado o papel que as grandes plataformas cumpriram na eliminação da pobreza extrema atingida pelo país.13 13 Estudo encomendado pelo Instituto Tricontinental (Serve, 2022, p. 32) aponta que: “ Big data is used to monitor the situation of each of the nearly 100 million individuals, facilitate information flow between governmental departments, and identify important poverty trends and causes. Mobilising the people and gaining public support are at the heart of the effort to carry out this work ”.

A categoria de “Economia do Projetamento” deve ser incorporada como parte do “caminho chinês”.

Nosso ponto de inflexão em relação aos postulados dominantes, ortodoxos e heterodoxos, está na percepção de que a China tem adentrado uma dinâmica de acumulação onde a superação de restrições dos mais variados tipos e da incorporação à economia real de novos aportes tecnológicos abriu condições tanto para elevar o grau de racionalidade sobre o processo produtivo e consequentemente transformar a economia chinesa em uma verdadeira máquina de construção de grandes bens públicos e, mesmo, de valores de uso. ( Jabbour et al., 2020JABBOUR, E.; DANTAS, A. T.; ESPÍNDOLA, C. J.; VELLOZO, J. (2020). A (nova) economia do projetamento: o conceito e suas novas determinações na China de hoje. Geosul. Florianópolis, v. 35, n. 77, pp. 17-48. , p. 20)

Do ponto de vista empírico, não há espaço para nos concentrarmos na análise do impacto, a rapidez e a magnitude das transformações subsequentes à economia e ao território chinês pós-pacote fiscal lançado ao enfrentamento da crise de 2008 nem tampouco na verdadeira economia de prontidão, amplamente baseada em inovações tecnológicas disruptivas já citadas, percebida com a reação do Estado chinês à covid-19. Sem nenhuma sombra de dúvidas, tais fatos já deveriam ser pautados em matéria de observar os limites à compreensão daquela realidade por parte das teorias econômicas em curso. Também, suficiente seria mostrar que entre 1990 e 2017:

China added over 120,000 kilometers of railways, 130,000 kilometers of expressways, 3.7 million kilometers of road, and 740,000 kilometers of coastal quay lines to its national transport system. India, a country of similar size, and a private property system in keeping with neoclassical requirements, added 4,320 kilometers of railways from 1990 to 2016 . ( Jefferies, 2021JEFFERIES, W. (2021). China’s accession to the WTO and the collapse that never was. Review of Radical Political Economics. Amherst, v. 53, n. 2, pp. 300-319. , p. 311)14 14 Entre 2001 e 2020, o país construiu 40.000 km de trens de alta velocidade, uma malha maior em três vezes se somada a existente fora de suas fronteiras. Essa malha chegará a 50.000 até o final do presente plano quinquenal (2021-2024), conectando todas as cidades do país com mais de 500.000 habitantes (China's..., 2022).

A nova economia do projetamento é parte de um esforço no sentido de combinar a percepção do desenvolvimento desigual como uma lei objetiva da transição ao socialismo com o planejamento enquanto elemento de domínio político. Trata-se, o planejamento, de uma das formas históricas da razão humana que irá permitir o salto qualitativo nas sociedades. Expressa a “capacidade exclusivamente humana de entender e orientar sua própria evolução” ( Jabbour e Gabriele, 2021JABBOUR, E.; GABRIELE, A. (2021). China: o socialismo do século XXI. São Paulo, Boitempo. , p. 42).

O socialismo

Não faria sentido, após explanarmos sobre o quão fundamental é, a nós, as categorias de desenvolvimento desigual e projetamento, construirmos uma visão alternativa sobre o caminho chinês sem tocarmos em outra categoria, comumente esquecida, porém central em nossa análise: socialismo. Socialismo deve ser tratado como uma categoria histórica e como tal deve ter sua definição construída através tanto de sua própria história quanto do que se manifesta e surge no movimento real – no caso em tela, na experiência da República Popular da China.

É fundamental isolar essa categoria de elementos “utopizantes”, de idealizações imediatistas em que não existiria mais lugar ao conflito e à contradição. Aqui retomamos a essência da categoria de formação econômico-social no sentido de, ao mesmo tempo que temos o socialismo como um objeto de análise, também o encaramos como parte da “tomada do objeto pelo todo” – a existência, as influências e a força material de modos de produção mais atrasados (capitalismo) e as necessárias mediações e transições que ocorrem em uma sociedade complexa sob o apanágio do capitalismo enquanto modo de produção ainda amplamente dominante em âmbito mundial e seu metamodo de produção.

Superadas as idealizações acerca de uma sociedade utópica, abre-se relevo ao que realmente deveria interessar aos ocupados com a emancipação humana: a gestão do poder político e suas diferentes formas condicionadas pela história e pela geopolítica. A nosso ver, como Losurdo (2022) destacou, é improdutivo não pensar o marxismo como ciência da transformação da realidade. Logo, e por excelência, uma ciência do exercício do poder político . Daí a centralidade de categorias como desenvolvimento desigual e projetamento em nossa abordagem.

Ambas as categorias estão relacionadas ao constante movimento da base material e, por conseguinte, das relações de produção. Assim, um ponto de partida está contido no Manifesto Comunista, onde podemos ler:

O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças produtivas. ( Marx e Engels, 1998MARX, K.; ENGELS, E. (1998[1848]). Manifesto comunista . São Paulo, Boitempo. [1848], p. 56)

Essa passagem dos fundadores do materialismo histórico seria como um ABC da construção do socialismo, ou de seus primeiros passos? Depende das consequências que são tiradas dessa passagem. Nela poderão estar contidas desde a necessidade de convivência entre diferentes modos de produção em uma mesma formação econômico-social – mais uma lei da transição capitalismo-socialismo – ou até uma suposta centralidade do desenvolvimento das forças produtivas durante essa transição. Esses dois prismas devem ser historicizados à luz da lei/categoria do desenvolvimento desigual.

Centralizar os meios estratégicos de produção nas mãos do Estado como forma de assegurar a base material do novo poder político emergente e deter poder de planificação e domínio sobre os ciclos econômicos é o fundamental do exercício do poder sob o socialismo. Da mesma forma que novas relações de produção não surgirão antes que velhas forças produtivas esgotem suas possibilidades, o novo não surge com o desaparecimento imediato do velho.

Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. ( Marx, 2008MARX, K. (2008[1859]). Contribuição à crítica da economia política . São Paulo, Expressão Popular. [1859], p. 48)

O desenvolvimento é desigual entre a elevação de forças produtivas socialistas, em que o progresso técnico pode ocorrer próximo à fronteira tecnológica, e manutenção e mesmo o surgimento de formas não públicas de produção e troca. A síntese dessa unidade de contrários seria uma forma histórica desigual, contraditória, envolta em pontos de estrangulamento econômicos, em permanente tensão política e em que o subjetivismo pode levar à própria derrota da experiência. A sobrevivência da lei do valor impõe desafios novos a uma nova ordem política na qual o planejamento é parte fundamental de sua essência. O socialismo é um caminho, não um modelo. Um caminho forçoso ao desenvolvimento econômico.15 15 Concordamos com diversas passagens da obra de Domenico Losurdo para quem o socialismo é um gigantesco processo de aprendizagem, do qual não existe um modelo a seguir. Um processo claro de tentativa e erro constantes.

É evidente que em mirada histórica, o socialismo enquanto escolha política deve ser o principal elemento explicativo quando se compreende o caminho chinês desde 1949 até a atualidade. E aqui elencamos alguns pontos: 1) o capitalismo que possibilitou catching-up a “vias prussianas”, como Japão, Alemanha e mesmo o Brasil, foi negado externamente à China desde as Guerras do Ópio (1839-1842); 2) a burguesia russa fora incapaz de retirar a Rússia da Primeira Guerra Mundial e tocar adiante o processo de modernização; ao Partido Bolchevique recaiu essa tarefa como um verdadeiro “Príncipe Moderno”, em conhecida expressão de Gramsci. Mesmo raciocínio cabe ao papel histórico do PCCh; 3) bloco histórico no poder nucleado por forças que reivindicam o socialismo. Grandes capitalistas não detêm poder político no país, o que não significa que a luta de classes na China não aconteça, ao contrário, é parte fundamental do horizonte político. A superestrutura de poder chinês não tem similaridade com nenhuma experiência do Leste Asiático, muito menos da Europa e EUA; 4) núcleo produtivo e financeiro hegemonizado por GCEEs, bancos públicos de desenvolvimento e outros tipos de empresas não capitalistas orientadas ao mercado. É esse núcleo público que gera os efeitos de encadeamento à economia como um todo, assim como – completamente diferente das formações econômico-sociais de tipo capitalista – é nele que são gerados os ciclos internos de acumulação; e 5) o planejamento em larga escala e sob múltiplas formas é o principal instrumento de governança. O planejamento não é algo exclusivo do socialismo, assim como o mercado, como categoria histórica, pode ser ou não capitalista. Porém, nenhum país capitalista do mundo desenvolveu formas tão avançadas de intervenção estatal sobre a realidade quanto a China.

Esses pontos são suficientes para apontar uma visão peremptória sobre o caminho chinês ou devem ser pontos de partida a uma visão de processo histórico que coloque o desenvolvimento desigual como o conceito que define a própria contradição como uma lógica de funcionamento do sistema? Conceituar o “caminho chinês” passa, necessariamente, por dialogar com a chamada “contradição principal” que afeta o país na atualidade:

China`s overall productive forces have been significantly improved from the supply perspective. As a result, China`s production capacity has led the world in many areas, and its backwardness of social production has been fundamentally reversed. However, the more significant problems are that its development is inadequate overall and unbalenced between parts of the country and society. It`s development is also behind some global economic powerhouses to some extent, and the structural problems is evident. These have turned into significant constraints while meeting people`s growing needs for a better life . ( Cai e Zhang, 2021CAI, F.; ZHANG, X. (2021). Constructing political economy with chinese characteristics . Singapore, Springer. , p. 38)

Se em um momento da história o atraso no nível de desenvolvimento das forças produtivas era o núcleo da “contradição principal”, atualmente questões relacionadas à distribuição e à diferença de renda entre o topo e a base da pirâmide e entre as diferentes regiões tornaram-se latentes. Algo que pode colocar em questão a legitimidade do regime. As reformas econômicas de 1978, além de marcar a inauguração de uma nova classe de formações econômico-sociais, também marcam o início de um outro patamar no que concerne ao chamado desenvolvimento desigual com o surgimento de um poderoso setor privado no país.

Essa nova formação econômico-social avançou no processo tanto de mercantilização quanto no de inaugurar e fazer avançar, em todos os níveis, o capital privado por meio do incentivo ao surgimento de pequenas empresas e de um amplo programa de privatizações na década de 1990, ocorrido pari passu com o processo de formação dos citados GCEEs.16 16 Fruto da política de “ Grasp the large, lei it go of the small ”. Por exemplo, setores como o de big-techs e de construção civil – com alto grau de monopólio – emergiram sob amplo controle privado, da mesma forma que seus ancilares. Uma dinâmica de acumulação da qual uma de suas pontas residiu na baixa remuneração da mão de obra e o avanço do setor privado sobre serviços públicos essenciais como saúde e educação foram suficientes à abertura de um verdadeiro fosso entre ricos e pobres na China. Podemos dizer, usando as palavras de Lênin, que até o início dos anos 2000 houve um crescimento em profundidade do modo de produção capitalista interno àquela formação econômico-social. É fato que uma das caraterísticas das reformas econômicas está na grande expansão do setor privado em detrimento do setor público ( Naughton, 2007NAUGHTON, B. (2007). The chinese economy –Transitions and growth . Cambridge, The MIT Press. ).

Com o fim da regulação estatal sobre o preço dos grãos, as diferenças entre campo e cidade, que foram mantidas em um nível tolerável até meados da década de 1990, tornaram-se explosivas. A China produziu o maior número de bilionários e, também, o maior mercado consumidor de produtos de luxo do mundo. A construção de um imenso setor produtivo na economia nacional chinesa, ao mesmo tempo que foi movida, também gerou contradições de múltiplas ordens sob os “auspícios de uma expansão desordenada do capital”.17 17 “ Xi stresses further regulations on capital expansions, calls for 'fair competition' for all ” ( CGTN, 2022) .

Mas existe um processo histórico a ser esmiuçado. Esse crescimento em profundidade do setor privado não estava sendo acompanhado por uma recolocação estratégica do Estado, gerando condições para um posterior movimento semelhante, mas por parte do setor público? Levando às últimas consequências a lei/categoria do desenvolvimento desigual, não estaríamos diante de novas combinações entre diferentes modos de produção mediados por ondas de inovações institucionais ( Paula e Jabbour, 2020PAULA, L. F.; JABBOUR, E. (2020). The Chinese Catching-Up: A Developmentalist Approach. Journal of Economic Issues. Washington D. C., v. 54, n. 3, pp. 855-875. ) como a Company Law, a crescente capilarização do sistema financeiro público e a própria criação da Sasac? O setor privado não cresceu em profundidade enquanto seu congênere público crescia em extensão?

É importante incluir uma série de medidas tomadas desde o final da década de 1990 que podem comprovar o crescimento em extensão do setor público, entre elas: 1) o Programa de Desenvolvimento do Grande Oeste, em 1999, como uma marca do salto de qualidade em matéria de domínio da lei/categoria do desenvolvimento desigual ( Jabbour, 2005JABBOUR, E. (2005). China: infra-estruturas e crescimento econômico . São Paulo, Anita Garibaldi. ); 2) uma sucessão de reformas rurais destinadas a garantir, aos agricultores, direitos à terra contratada e transferência de direitos de uso; melhorar a infraestrutura rural e serviços públicos; estabelecer um novo campo socialista até 2010; e, a partir de 2003, introduzir o Novo Sistema Médico Cooperativo Rural e garantias mínimas de vida nas áreas rurais ( Dunford, 2023DUNFORD, M. (2023). China’s development path, 1949–2022. Global Discourse. Bristol, v. 20, n. 20, pp. 1-31. , p. 20); e 3) as prioridades do pacote fiscal de US$ 596 bilhões, lançado em 2009, entre elas: habitação popular, infraestrutura rural, transporte (ferroviário, aeroportos e estradas), saúde e educação (incluindo construção de escolas e hospitais), energia e meio ambiente e inovação tecnológica.

Em síntese, sem negar nenhuma das imensas consequências negativas da expansão do setor não público da economia sobre a sociedade, nesse ponto advogamos ponto semelhante ao posto abaixo:

A widely accepted explanation of plan--market dynamics in post-Mao China was given by Barry Naughton in his book Growing Out of the Plan (Naughton, 1995). He argued that the rapid growth of the non-planned economy in the 1980s and early 1990s, along with simultaneous stagnation or decline of the state- -dominated planned sector, reduced the importance and range of state planning and facilitated the emergence of an increasingly market-dominated economy. The “growing out of the plan” framework is, however, focused on explaining the atrophy or reduction of certain core features of old-style socialist planning, such as innumerable mandatory targets, material supply balances, direct state allocation of resources, and state control over investment, credit, prices, and foreign trade. This narrative is not incorrect, but it is incomplete . ( Heilmann e Melton 2013HEILMANN, S.; MELTON, O. (2013). The Reinvention of Development Planning in China, 1993–2012. Modern China , v. 39, n. 6. pp. 580-628. , p. 582)

Indo mais a fundo, muitas das contradições inerentes ao processo de desenvolvimento chinês foram sendo encaminhadas tanto pela via de uma recolocação estratégica do Estado que passou pelo pleno uso de poderosos instrumentos fiscais quanto pelos choques comandados por uma nova classe trabalhadora urbana,18 18 Segundo Pinheiro-Machado (2018, p , p. 122), “ocorrem anualmente, por ano, cerca de 3 mil greves e de 100 mil a 200 mil protestos na China”. outrora camponeses cujo “DNA rebelde” foi responsável por inúmeras revoltas camponesas na história, sendo a última delas a que conduziu o PCCh de Mao Zedong ao poder em 1949. Longe de ser um estrato amorfo da sociedade, a classe trabalhadora chinesa é uma peça-chave no futuro do “socialismo com características chinesas”. Retornando uma citação desta seção sobre a mudança da “contradição principal” encerrada em questões relacionadas à distribuição, é evidente que as novas ondas de inovações institucionais também devem ir além de uma recolocação estratégica do Estado e, sim, tocar em pontos sensíveis. A principal delas é a questão da propriedade.

Dois pontos a serem discutidos. O primeiro relacionado ao avanço do Estado sobre o próprio setor privado, gerando novas formas históricas de propriedade e as políticas de contenção da chamada, e citada, “expansão desordenada do capital”. De forma mais acelerada, após a crise financeira de 2008, ficou evidente um movimento cuja caracterização levanta possibilidades de pesquisa sobre a transformação do crescimento em extensão do setor público a um crescimento em profundidade. “The state advances, the private sector retreats” é uma caracterização de uma nova fase do desenvolvimento do setor público no país. Um exemplo concreto está na elevação da participação acionária de empresas estatais em empresas privadas:

The number of private owners with direct investments from the state almost tripled between 2000 and 2019, and the number of private owners indirectly connected to the state via investments from private owners with state connections increased 50-fold. The increase in the registration capital share of the two groups of state connected private owners accounts for almost all the 20 percentage point increase in the share of private owners between 2000 and 2019 . ( En Bai et al., 2021EN BAI, C.; TAI, H. C.; SONG, Z. M.; WANG, X. (2021). The rise of state-connected private owners in China. NBER Working Paper, n. 28.170. , p. 2)

Se o conceito se manifesta no movimento real, nós podemos perceber que, se não existe um processo aberto de abolição da propriedade privada, estamos diante de um processo – com idas e vindas – de lenta absorção do setor privado pelo público, gerando formas históricas de propriedade que não poderiam ser listadas em nenhum manual nem a anteriori, nem a posteriori. É impossível quantificar as diferentes formas de propriedade na China, mas pode-se identificar não somente uma elevação da influência estatal direta, mas também do PCCh como elemento de influência sobre todo o tecido econômico do país, incluindo decisões de investimento privado:

The socialist foundation of China’s economic system is the unconditional supremacy of the Chinese Communist Party. Consistent with Marxist-Leninist tradition, the Party directs the law. Regulations, laws, and administrative rulings are applied in accordance with current Party policy. Just as a Party position corresponds directly to each key position in government, a Party hierarchy parallels corporate governance in banks, SOEs, listed non-SOEs, hybrid enterprises, joint ventures, and suffi ciently large private businesses. Party cells throughout business enterprises constitute parallel internal accountability systems to those established by enterprises themselves, keeping an enterprise’s Party Secretary and Party Committee up-to-date and able to provide timely advice to its CEO and board. Imported corporate governance regulations, mandating independent directors and the like essentially ignore Party involvement in enterprise governance. (Fan, Morck e Yeung, 2011, p. 11)

O segundo movimento é o lançamento de medidas à contenção da “expansão desordenada do capital”. Por exemplo, em 2021, de forma sumária, as empresas do setor de tutoria estudantil foram postas na clandestinidade. Tratava-se de um setor que movimentava até US$ 100 bilhões/ano, com base em uma acirrada concorrência entre os jovens chineses ao acesso às melhores universidades, sendo imenso fator de desigualdade social e regional (Why China…, 2021). Tratava-se também de uma batalha ideológica pelo chamado “setor da consciência”. Esse movimento atingiu em cheio as chamadas big techs e seu crescente poder de monopólio, manutenção de dados e de interferência estrangeira, dado o fato de empresas, como a Alibaba, terem ações abertas em bolsas como a de Nova York.

Alguns dias após Jack Ma lançar ataques diretos às formas de regulação do sistema financeiro chinês, o governo decidiu – de forma unilateral – suspender o que seria o maior lançamento inicial de ações (IPOs) da história, que seria feito pelo grupo Ant em uma operação de US$37 bilhões (Chinese President…, 2020). O destino de Jack Ma foi uma espécie de “exílio” no Japão. Outras empresas passaram pelo mesmo escrutínio, e seus donos deixaram o país. A queda de patrimônio de bilionários e milionários tem sido impressionante. Em 2021, a riqueza total de 1.305 pessoas com patrimônio líquido mínimo de 5 bilhões de yuans (US$710 milhões) caiu 18%, em relação ao ano anterior, indo para US$3,5 trilhões (Chinese…, 2020).

Tendo em vista o exposto até aqui, desde a categoria em si até o duro exercício do poder político, como podemos definir o socialismo em nossa época – admitindo ser a China sua mais avançada experiência? A história do socialismo no século XX e das experiências de “socialismo de mercado” lega-nos alguns princípios de Economia Política fundamentais, alguns inclusive podendo ser tomados como “leis econômicas do socialismo”.19 19 As experiências históricas do século XX e a chinesa hoje legam-nos uma série de leis/lógicas de funcionamento de uma formação econômico-social orientada ao socialismo. Entre elas, planejamento em larga escala, obediência aos limites impostos pelo metamodo de produção e a lei do valor, hegemonia da grande propriedade pública orientada ao mercado, construção de um setor produtivo capaz de gerar excedentes ao setor improdutivo, regulação e controle político sobre as formas não públicas de forma a evitar o surgimento de monopólios e restabelecer a concorrência na economia. A questão do poder é a mais fundamental de todos. Não existe capitalismo sem capitalistas no poder.

Blocos históricos de conteúdo de classe completamente diversos às democracias liberais,20 20 No caso chinês, isso não significa a existência de um Estado monolítico, sem disputas e impermeável aos interesses de classe social que pairam sobre a sociedade e no próprio PCCh. incluindo os latecomers asiáticos, ocupam o comando do processo histórico em tais experiências, em alguns casos sob condições extremas de cerco, aniquilamento e sanções de diversas ordens – além dos próprios limites impostos pelo metamodo de produção. A história do socialismo é a história do constante Estado de exceção ( Losurdo, 2004LOSURDO, D. (2004). Fuga da história? São Paulo, Revan. ), afetando diretamente o desenvolvimento desse tipo de formação econômico-social. No caso chinês, essa experiência inclui controle, por parte do PCCh, cada vez mais extenso sobre formas de propriedade não públicas, controle direto sobre imensos GCEEs e dos maiores bancos de desenvolvimento do mundo.

O socialismo com características chinesas é caudatário da experiência soviética, mas também de suas próprias tradições em matéria de Estado Nacional, planejamento, burocracia estatal e filosofias civilizatórias, tolerantes e não deístas. É continuidade e ruptura com o modo de produção asiático, incluindo formas históricas mercantis e não mercantis de controle de preços ( Weber, 2023WEBER, I. (2023). Como a China escapou da terapia de choque. São Paulo, Boitempo. ). A planificação como “domínio político” na China tem ganho novos contornos. Desde a planificação central de tipo soviético, passando por uma market-based planning , e hoje transitando a uma project-oriented planning , já em casamento com inovações tecnológicas disruptivas, abrindo caminho a uma forma histórica nova de socialismo que chamamos de “Nova Economia do Projetamento”.

O fato é que o socialismo foi o caminho que a China encontrou para alcançar o desenvolvimento rápido das forças produtivas fora dos esquemas geopolíticos estadunidenses, fazendo-se valer das profundas transformações na ordem internacional, racionalizando, assim, a lei/categoria do desenvolvimento desigual em proveito de seu projeto nacional . De país mais pobre do mundo à segunda potência econômica mundial, esse caminho passou pela hegemonia do PCCh, o domínio do setor público sobre a grande produção e a grande finança. A força de sua econômica planificada foi capaz de manobrar as lógicas intrínsecas do “desenvolvimento desigual”, de modo a tanto gerir de forma racional o território nacional quanto gestar uma globalização alternativa com iniciativas como a do Cinturão e Rota e participação ativa em vários eventos e instituições capazes de transformar qualitativamente o futuro do Sul Global.

Em uma “Nova Era”, inaugurada em 2017 e com a mudança de eixo da “contradição principal”, é imperativo controlar o crescimento desordenado do capital, combater as grandes desigualdades sociais anexas às chamadas “Três Montanhas” (os preços de residências e os custos com saúde e educação), enfrentar a crise climática e a distância em relação aos Estados Unidos, em matéria de infraestruturas de semicondutores, e ao cerco militar com o quase abandono, por parte dos EUA, da política de uma só China em relação à Taiwan.

O socialismo em desenvolvimento na China é uma forma histórica que escapa a visões lúdicas sobre sociedades pós-capitalistas. É um socialismo embrionário ( Jabbour e Gabriele, 2021JABBOUR, E.; GABRIELE, A. (2021). China: o socialismo do século XXI. São Paulo, Boitempo. ), cuja análise não pode ceder ao que se imagina transcendental. De forma nada irônica, a financeirização criou sua própria negação, ao permitir, em seu seio, emergir uma sociedade cuja característica fundamental está na transformação da razão em instrumento de governo em favor da maioria absoluta da população. Uma espécie de science-led government em que questões caras ao histórico movimento comunista internacional são encaminhadas com caracteres próprios. Seja pelo nascimento de uma democracia não liberal à base da aldeia e de bairros urbanos, até o lento processo de submissão da propriedade privada aos interesses estratégicos do Estado socialista.

Com base na transformação da razão em instrumento de governo, podemos chegar a uma forma social capaz de dar conta da totalidade do processo histórico chinês. A nova economia do projetamento, ensejando níveis superiores de planificação econômica, é a síntese desse socialismo que surge na Ásia e de uma sociedade na qual o rápido e sem precedentes desenvolvimento das forças produtivas e a eliminação da pobreza extrema indicam o “projetamento” como o ponto de chegada do que Marx chamou um dia de “força do saber objetivada” (Marx, 2011 [1857-1858] p. 944).

Conclusões iniciais

Trata-se de um debate que não poderá ser interditado. Descobrir qual o conceito está a se formar no movimento real do processo de desenvolvimento na China talvez seja a maior tarefa das ciências humanas e sociais de nossa época. Não apenas por se tratar de um país daquelas dimensões. Existe um experimento humano em andamento que foge, quase que completamente, do escopo conceitual e categorial, tanto da ortodoxia, quanto da heterodoxia econômicas; assim como do marxismo ocidental. Não se trata de mais um latecomer. Nossa proposta, neste artigo, foi demonstrar uma certa “excepcionalidade” do caso chinês, invalidando as noções de “capitalismo de Estado”, “livre-mercado” ou mesmo “Estado desenvolvimentista”, “empresário”, “empreendedor”. Naquela região do mundo, uma nova formação econômico-social de orientação socialista emerge com uma Economia Política a ser construída.

Procuramos trabalhar três categorias marxistas no sentido de validar teoricamente nossa proposta. As leis/categorias de desenvolvimento desigual, de projetamento e de socialismo abrem possibilidade de um novo relevo para experimentos teóricos baseados na experiência chinesa. A confluência dessas categorias e a historicidade do processo chinês nos entregam uma chance de perceber o socialismo como produto do movimento real, gerando uma sociedade assentada em um poder político de novo tipo, com a propriedade pública da produção e financeira como pilares materiais fundamentais. A “Nova Era” desse “socialismo com características chinesas” é marcada por uma mudança de eixo na “contradição principal”. Não são poucos os obstáculos e as contradições de diversa monta que desafiam o experimento. No mesmo sentido talvez a espécie humana ainda não tenha tido acesso a uma forma histórica na qual a “força do saber objetivado” esteve suficientemente desenvolvida a ponto de ser a força construtora de uma nação e, por conseguinte, referência ao Sul Global como um todo.

Referências

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  • WORLD BANK (1982). World development report . Oxford, Oxford University Press.

Notas

  • 1
    A crise financeira de 2008/2009 começou a produzir algum tipo de fissura nessa disputa. Naughton (2021b) elaborou uma verdadeira e honesta autocrítica sobre quase a totalidade do que influentes economistas especializados no processo de desenvolvimento chinês acreditavam ter fundo de verdade, mas que os rumos tomados desde o pós-2008, e principalmente nos últimos três anos, acabaram que por fazer desmoronar. Segundo o citado autor, a China inaugura um novo tipo de sistema econômico caracterizado por um crescente domínio do Estado sobre o mercado, assentado por uma série de evidências empíricas. Na mesma direção, mas sem escapar do “consenso”, Blanchette (2020)BLANCHETTE, J. (2020). From “China Inc.” to “CCP Inc.”: a new paradigm for chinese state capitalism. China Leadership Monitor. aponta para uma outra espécie de capitalismo de Estado nomeado, por ele, de “Chinese Comunist Party Inc.” (CCP Inc).
  • 2
    Um exemplo dessa admissão pode ser constatado em Milanovic (2019)MILANOVIC, B. (2019). Capitalism, alone: the future of the system that rules the world. Cambridge, Harvard University Press. ao dividir o mundo entre “capitalismo político” e “capitalismo meritocrático liberal”.
  • 3
    Sobre isso ler Dunford (2023)DUNFORD, M. (2023). China’s development path, 1949–2022. Global Discourse. Bristol, v. 20, n. 20, pp. 1-31. ; Cheng (2023)CHENG, S-K (2023). Catching-up and pulling ahead: the role of China’s Revolutions in its quest to escape dependency and achieve national independence. Journal of Contemporary Asia. Londres, DOI: 10.1080/00472336.2023.2222410
    https://doi.org/10.1080/00472336.2023.22...
    ; Cai e Zhang (2021)CAI, F.; ZHANG, X. (2021). Constructing political economy with chinese characteristics . Singapore, Springer. ; Enfu (2021)ENFU, C. (2021). China’s economic dialectic: the original aspiration of reform. Nova York, International Publishers. e Staiano (2023)STAIANO, M. F. (2023). Chinese law and its international projection building a community with a shared future for mankind. Singapore, Springer. .
  • 4
    De acordo com o atual chefe da chancelaria chinesa, Yi (2023)YI, W. (2023). Ten cruel realities . Disponível em: https://johnsonwkchoi.com/2023/03/19/ten-cruel-realities/ Data de acesso: 14 abr 2023.
    https://johnsonwkchoi.com/2023/03/19/ten...
    : Our circle of friends is always in the third world. Remember: those developed countries in the West will not take us to play, and in their eyes always have a “sense of superiority”. The West will always look down on our values and always consider China to be “backward”. In the eyes of Westerners, there will always be “East- -West differences”. Don’t think that you can integrate into the Western world, and naively think that you can.
  • 5
    Aqui observamos que o socialismo se tornou um atalho ao desenvolvimento impedido pela colonização e a brutal ação do imperialismo na periferia em geral e na China em particular. Não haveria desenvolvimento chinês sem o PCCh.
  • 6
    Soma-se ao fato de a história não poder ser feita em circunstâncias escolhidas pelos seres humanos, ou seja, o desenvolvimento de formações econômico-sociais orientadas ao socialismo é fortemente restringido pela dominância exercida pelo capitalismo em escala global ( Jabbour e Gabriele, 2021JABBOUR, E.; GABRIELE, A. (2021). China: o socialismo do século XXI. São Paulo, Boitempo. ). Devemos ter em mente que, também, o desenvolvimento desigual condiciona de forma profunda experiências não capitalistas de desenvolvimento. Não se trata somente, conforme Lefebvre (2020LEFEBVRE, H. (2020[1955]). O pensamento de Lênin. São Paulo, Lavrapalavra. [1955], p. 195) de uma “lei das dificuldades do capitalismo, suas crises”. É também a lei das restrições, externas e internas, ao desenvolvimento do socialismo.
  • 7
    Segundo Jabbour e Gabriele (2021JABBOUR, E.; GABRIELE, A. (2021). China: o socialismo do século XXI. São Paulo, Boitempo. , pp. 115-116):” uma situação histórica de longo prazo pode ocorrer onde: 1) Um modo de produção é dominante em nível global; 2) Dois ou mais modos de produção coexistem em alguns países. Eles são desigualmente desenvolvidos, mais ou menos estáveis, e em evolução. Quais deles acabarão por prevalecer nacionalmente (e, possivelmente, em uma perspectiva de longo prazo, internacionalmente) está longe de ser uma questão definida; 3) Os graus de liberdade desfrutados por cada modo de produção (incluindo o dominante) são finitos. Não são limitados apenas pela prevalência global do modo de produção dominante, mas também por restrições estruturais imanentes e universais que se aplicam a todos os modos de produção sustentáveis que podem surgir e se consolidar durante toda uma época, cuja duração não pode ser predeterminada. Como tal, esse conjunto de restrições se aplicaria a todas as tentativas nacionais de buscar uma estratégia de desenvolvimento consistente com os princípios básicos de qualquer modo de produção específico, mesmo que este se tornasse progressivamente hegemônico em escala global (sinalizando uma lenta transição para um novo modo de produção dominante em nível global). Nessas circunstâncias, o conjunto de restrições acima mencionado atua como uma espécie de metaestrutura, que limita e restringe os graus de liberdade de cada MP sustentável para se diferenciar internamente dos demais. Essa estrutura é uma característica do mundo real e exerce uma forte influência nas escolhas dos formuladores de políticas e em seus resultados. Assim, referimo-nos a ele como o Metamodo de Produção (MMP)”.
  • 8
    Sobre isso ler Cheng (2023)CHENG, S-K (2023). Catching-up and pulling ahead: the role of China’s Revolutions in its quest to escape dependency and achieve national independence. Journal of Contemporary Asia. Londres, DOI: 10.1080/00472336.2023.2222410
    https://doi.org/10.1080/00472336.2023.22...
    , que trabalha com muita competência a hipótese da competição entre a acumulação primitiva socialista e a lei do valor na China.
  • 9
    No capitalismo, o princípio da demanda efetiva; enquanto, no socialismo, a socialização dos meios estratégicos de produção.
  • 10
    Atualmente, são 99 GCGEs. Sobre esse assunto, ler Jabbour e Gabriele (2021)JABBOUR, E.; GABRIELE, A. (2021). China: o socialismo do século XXI. São Paulo, Boitempo. . Podemos agregar um outro processo fundamental: o da formação de um sistema público de intermediação financeira, voltada ao financiamento de longo prazo. A articulação entre a grande produção e a grande finança, ambas públicas, molda a face de um sistema econômico único no mundo justamente por estar baseado na propriedade pública.
  • 11
    Sobre a Sasac, ler Gabriele (2010)GABRIELE, A. (2010). The role of state in China’s industrial development: a reassessment. Comparative Economic Studies. Londres, v. 52, pp. 325-350. , Jabbour e Gabriele (2021)JABBOUR, E.; GABRIELE, A. (2021). China: o socialismo do século XXI. São Paulo, Boitempo. e Chen (2017)CHEN, Z. (2017). Governing through the market: SASAC and the resurgence of central state-owned enterprises in China. Tese de doutorado. Birmingham, University of Birmingham. .
  • 12
    Em certa medida Naughton (2021b, p. 13) vai ao encontro de nossa hipótese da ambição de utilização de inovações tecnológicas disruptivas como forma de ampliar as possibilidades do papel do Estado na economia: “[...] from about 2015-2016, it became clear that artificial intelligence and big data had huge potential economic effects on economies worldwide. As technological change has accelerated, the ambition of China’s planners and policy-makers has also expanded, and intervention has continued and increased. Indeed, China’s development strategy today may warrant a new name: China aspires to be the first ‘government-steered market economy ’”.
  • 13
    Estudo encomendado pelo Instituto Tricontinental (Serve, 2022, p. 32) aponta que: “ Big data is used to monitor the situation of each of the nearly 100 million individuals, facilitate information flow between governmental departments, and identify important poverty trends and causes. Mobilising the people and gaining public support are at the heart of the effort to carry out this work ”.
  • 14
    Entre 2001 e 2020, o país construiu 40.000 km de trens de alta velocidade, uma malha maior em três vezes se somada a existente fora de suas fronteiras. Essa malha chegará a 50.000 até o final do presente plano quinquenal (2021-2024), conectando todas as cidades do país com mais de 500.000 habitantes (China's..., 2022).
  • 15
    Concordamos com diversas passagens da obra de Domenico Losurdo para quem o socialismo é um gigantesco processo de aprendizagem, do qual não existe um modelo a seguir. Um processo claro de tentativa e erro constantes.
  • 16
    Fruto da política de “ Grasp the large, lei it go of the small ”.
  • 17
    Xi stresses further regulations on capital expansions, calls for 'fair competition' for all ” ( CGTN, 2022)CGTN (2022). CGTN News, 22/4. Disponível em: https://news.cgtn.com/news/2022-04-30/Xi-stresses-healthy-development-of-capital-in-China-19EAzHrKkJG/index.html. Acesso em: 7 nov 2022
    https://news.cgtn.com/news/2022-04-30/Xi...
    .
  • 18
    Segundo Pinheiro-Machado (2018, pPINHEIRO-MACHADO, R. (2018). “Posfácio: rumo e depressão”. In: ANDERSON, P. Duas revoluções. São Paulo, Boitempo. , p. 122), “ocorrem anualmente, por ano, cerca de 3 mil greves e de 100 mil a 200 mil protestos na China”.
  • 19
    As experiências históricas do século XX e a chinesa hoje legam-nos uma série de leis/lógicas de funcionamento de uma formação econômico-social orientada ao socialismo. Entre elas, planejamento em larga escala, obediência aos limites impostos pelo metamodo de produção e a lei do valor, hegemonia da grande propriedade pública orientada ao mercado, construção de um setor produtivo capaz de gerar excedentes ao setor improdutivo, regulação e controle político sobre as formas não públicas de forma a evitar o surgimento de monopólios e restabelecer a concorrência na economia.
  • 20
    No caso chinês, isso não significa a existência de um Estado monolítico, sem disputas e impermeável aos interesses de classe social que pairam sobre a sociedade e no próprio PCCh.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    3 Ago 2023
  • Aceito
    9 Ago 2023
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