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Da tutela ao contrato: "homens de cor" brasileiros e o movimento operário carioca no pós-abolição

Resumos

Este artigo tem como objetivo demonstrar por que, para se compreender a participação dos libertos e seus descendentes na formação do movimento operário da Primeira República, é preciso ir além dos estudos que privilegiam o agir humano (agency) e as experiências individuais, sem buscar inseri-las em análises estruturais do mercado de trabalho, das relações de produção e dos processos de trabalho. Para tanto, constrói-se o argumento a partir de uma análise substantiva, cujos fios condutores são a elucidação de "termos de época" e a discussão dos significados do conceito de liberdade implícitos nas falas dos patrões e operários em momentos de conflito aberto.

escravos ganhadores; ganhadores livres; trabalhadores do porto; movimento operário; liberdade.


This article intends to demonstrate why, in order to understand the freed-slaves and their descendants participation in the formation of First Republic labor movements, we must go beyond studies that characterize human agency mostly in terms of individual experiences without further trying to fit them into structural analyses of labor market, relations of production and labor processes. The argument is built by means of a concrete analysis carried through an explanation of certain nineteenth century ordinary language terms as well as by a discussion of the concept of freedom and its implicit meanings in speeches made both by employers and workers in times of open conflict.

slaves "ganhadores"; free "ganhadores"; port workers; labor movement; liberty.


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  • 1
    Entre outros, ver: FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social, 1890-1920. São Paulo: DIFEL, 1979; MARAM, Sheldon, Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasileiro, 1890-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; DE DECCA, M. Auxiliadora. A vida fora das fábricas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; GITAHY, M. Lúcia. Ventos do mar: trabalhadores do porto, movimento operário e cultura urbana em Santos, 1889-1914. São Paulo: Ed. Unesp, Prefeitura de Santos, 1992; LOPREATO, Christina. O espírito da Revolta: a greve geral anarquista de 1917. São Paulo: Annablume, 2000; TOLEDO, Edilene. Travessias revolucionárias. Campinas: Ed. Unicamp, 2004.
  • 2
    MARAM, Anarquistas, imigrantes, p. 22, 32; FAUSTO, Trabalho urbano, p. 125.
  • 3
    MARAM, idem, p. 27; Fausto, idem, p. 36, 124-126; HAHNER, June. Poverty and politics: The urban poor in Brasil, 18701920. Albuquerque: Univ. of New Mexico Press, 1986, p. 213, 251-52; CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar & botequim. 2a ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2001, p. 153-162.
  • 4
    BATALHA, Cláudio. Le syndicalisme "amarelo" a Rio de Janeiro, 1906-1930. Tese de Doutorado. Paris: Université de Pa-ris I, 1986; ZAIDAN, Michel. Pão e pau: política de governo e sindicalismo reformista no Rio de Janeiro, 1923-1925. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1981.
  • 5
    FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978.
  • 6
    LARA, Silvia. Blowing in the wind: E. P. Thompson e a experência negra no Brasil. Projeto História, n. 12 (1995); Escravidão, Cidadania e História do Trabalho no Brasil. Projeto História, n. 16 (1998).
  • 7
    Para análises que enfatizam a participação de "homens de cor" no movimento operário organizado, Cf. CRUZ, Maria Ce-cília Velasco e. Tradições Negras na Formação de um Sindicato: Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, Rio de Janeiro, 1905-1930. Afro-Ásia, n. 24 (2000), p. 243-290; em versão modificada, Puzzling Out Slave Origins in Rio de Janeiro Port Unionism: the 1906 strike and the SRTTC. In Hispanic American Historical Review, n. 82 (2006), p. 205-245; Solidariedade x Rivalidade: a formação do sindicalismo estivador brasileiro. História Unisinos, vol. 6, n. 6 (2002), p. 29-62; Cor, etnicidade e formação de classe no porto do Rio de Janeiro: a Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café e o conflito de 1908, Revista USP, n. 68 (2005-2006), p. 188-209; ANDREWS, George. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). São Paulo: EDUSC, 1998; LONER, Beatriz. Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande, 1888-1930. Pelotas: Ed. UFPel/Rede Unitrabalho, 2001; CASTELLUCCI, Aldrin. Trabalhadores, máquina política e eleições na Primeira República. Tese de Doutorado em História. Salvador, UFBA, 2008.
  • 8
    CARVALHO, Marcus. Liberdade. Rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Editora da UFPE, 2001, p. 213-214.
  • 9
    Idem, p. 213.
  • 10
    Ibidem, p. 215. Ver também CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • 11
    A Razão, 9-08-1918. Ênfases minhas.
  • 12
    Jornal do Brasil, 22-12-1906; Correio da Manhã, idem. Ênfases minhas.
  • 13
    Centro de Comércio e Indústria do Rio de Janeiro, Relatório apresentado em Assembleia Geral de 17 de julho de 1918. Rio de Janeiro: Oficinas gráficas de A Noite, 1918, p. 214-215. Ênfases minhas.
  • 14
    BERLIN, Isaiah. Dois Conceitos de Liberdade, In: Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília: Editora UNB, 1981.
  • 15
    A Razão, 23-08-1918. Ênfases minhas.
  • 16
    CRUZ. Tradições negras. Op. cit.
  • 17
    A utilização de mão de obra avulsa tal como definida por Beveridge - engajamentos curtos e seleção aleatória - é comum em todos os portos e está relacionada à variação cotidiana da demanda por trabalho. Na língua inglesa diz-se "casual work/ worker", que numa tradução literal seria "trabalho/trabalhador ocasional" ou "eventual". Preferimos usar "trabalho/trabalhador avulso", por serem estes os termos usados pelos trabalhadores nacionais e na legislação trabalhista brasileira. BEVERIDGE, William. Unemployment. A problem of industry. Londres: Longsmans, Green & Co, 1909.
  • 18
    CRUZ. Tradições Negras. Op. cit.
  • 19
    Código de Posturas de 1838, In: Codigo de Posturas da Illustrissima Camara Municipal do Rio de Janeiro e Editais da mesma Camara. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1870, p. 19.
  • 20
    FARIA, Adhemar de. "Os transportes urbanos de café no Rio de Janeiro". In: O Café. Rio de Janeiro: Departamento Nacional de Café, 1934, p. 845.
  • 21
    Edital de 11-07-1853, In: Codigo de Posturas da Illustrissima Camara. p. 66-69.
  • 22
    CHAGAS, João. De Bond, Lisboa, 1897, In: O Rio de Janeiro na literatura portuguesa. LISBOA, Jacinto (org.) Lisboa: Oficinas Gráficas Manuel A. Pacheco, LDA. 1965, p. 174. Ênfases minhas.
  • 23
    LEITÃO, Joaquim. "Do civismo e da arte no Brasil, Lisboa", 1900, In: idem, p. 199. Ênfases minhas.
  • 24
    Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado por Honório H. Carneiro Leão à Assembleia Geral Legisla-tiva na Sessão Ordinária de 1833. Exemplar sem folha de rosto, publicado em 1833.
  • 25
    Idem.
  • 26
    Codigo de Posturas da Illustrissima Camara, p. 18-40, 51-56, 66-69.
  • 27
    TERRA, Paulo Cruz. Tudo que transporta e carrega é negro? Carregadores, cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (18241870). Dissertação de Mestrado. Niterói, UFF, 2007 apudRIBEIRO, Gladys e TERRA, Paulo. "A Atuação dos imigrantes portugueses nos movimentos sociais como fonte de garantia e alargamento de direitos", no prelo.
  • 28
    BARBOSA, Luiz. Assistencia publica e privada no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Typographia do Anuario do Brasil, 1922; CRUZ, Maria Cecília Velasco e. Amarelo e negro: matizes do comportamento operário no Rio de Janeiro da Primeira República. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, IUPERJ, 1981.
  • 29
    Boletim da Illustrissima Camara Municipal da Corte. Rio de Janeiro, Typographia. Imperial e Constitucional de J. Villeneuve & C., 1887, p. 12-13.
  • 30
    Relevante para a compreensão do mercado de trabalho livre, na Corte, seria o estudo da saga miserável dos engajados por-tugueses e o do uso das leis de locação de serviços. Temas pouco conhecidos, estão ainda à espera do seu historiador.
  • 31
    NABUCO, Joaquim. Conferência no Teatro de Santa Isabel, In: Obras completas, vol. VII. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949, p. 256-257.
  • 32
    NABUCO, Joaquim. "O eclipse do abolicionismo". Idem, vol. XII, p. 252.
  • 33
    Ver, entre outros, AZEVEDO, Celia Marinho de. Onda negra, medo branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986; LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre. Campinas: Papirus, 1988; MACHADO, Maria Helena. O plano e o pânico. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ São Paulo: EDUSP, 1994; CASTRO, Hebe Mattos de. Das cores do silêncio. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; XAVIER, Regina. A conquista da liberdade. Campinas, Centro de Memória da UNICAMP, 1996. Pela importância conferida à tutela no surgimento do trabalho assalariado na Europa e desnudamento da ideologia do mercado, cf. CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão Social. Petrópolis: Vozes, 1998; e o clássico POLANYI, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Campus, 1980 (1944).
  • 34
    APEB, Registro de correspondências expedidas/ Fundo polícia, maço 5840. Agradeço a Wlamira Albuquerque a cessão deste documento, e a Cândido da Costa e Silva as informações sobre do autor da carta.
  • 35
    Esse Regulamento (transcrito na íntegra) e o livro de matrículas foram analisados por REIS, João José. De olho no Canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da Abolição. Afro-Ásia, no 24 (2000), p. 199-242. Sobre os cantos soteropolitanos, ver também do mesmo autor, A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP, n. 18 (1993), p. 8-29, e COSTA, Ana Ribeiro da. Espaços Negros: "cantos" e "lojas" em Salvador no século XIX. Caderno CRH, Suplemento (1991), p. 18-34.
  • 36
    REIS, De olho no canto, op. cit., p. 210.
  • 37
    Idem, p. 212, 216-218.
  • 38
    Relatorio do Ministro e Secretario dos Negocios da Justiça Manuel de Souza Dantas, apresentado à Assemblea Geral Legislativa na primeira sessão da decima oitava Legislatura. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1882, p. 195-196.
  • 39
    Idem, p. 196.
  • 40
    Ver GRAHAM, Sandra. Proteção e Obediência. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • 41
    Consolidação das Leis e Posturas Municipaes do Distrito Federal, Primeira Parte, Rio de Janeiro: Officinas Typographicas de Paula Souza & Comp., 1905, p. 147.
  • 42
    AGCRJ, Ganhadores Livres, códices 44-1-27, 44-1-28 e 44-1-30; Africanos Livres ao Ganho, códice 39-1-30.
  • 43
    IBGE (coleção digitalizada), Recenseamento do Brasil de 1872, Município Neutro, p. 61.
  • 44
    Relatório de Cardoso de Castro, Chefe de Policia do Distrito Federal, anexo ao Relatorio apresentado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905. Parte da estatística não coincide com as cifras indicadas nos relatórios dos Ministros da Justiça. Entretanto, como os dois conjuntos de dados referem-se a gestões com extensões diversas, e como ambos indicam irregularidades de magnitude semelhante, as disparidades foram consideradas irrelevantes para o argumento.
  • 45
    SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do Século XIX. Revista Brasileira de História, vol. 8, no 16 (1988), p. 139.
  • 46
    AGCRJ. Código de Posturas de 1889, exemplar truncado; Consolidação das Leis e Posturas Municipais, 1905, p. 396-97.
  • 47
    Gazeta Operaria. Ano I, no12, 14-12-1902.
  • 48
    Gazeta Operaria. Ano II, no16, 11-01-1903; Jornal do Brasil, 24-11-1906.
  • 49
    Assistencia Publica e Privada, p. 626.
  • 50
    CABRAL, A. do Valle. Guia do Viajante no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, B. L. Garnier, e H. Laemmert & C., 1884, p. 26-27.
  • 51
    Representação contra a abolição imediata do elemento servil, janeiro de 1885, In: Relatorio da Junta Diretora da Associação Commercial da Praça da Bahia, 1886.
  • 52
    Documento transcrito, In: OLIVEIRA, Maria Inês Cortes de. O Liberto. O seu mundo e os outros. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, UFBA, 1979.
  • 53
    Agradeço a Aldrin Castellucci o acesso ao documento. Para uma análise do recôncavo nesse período, ver FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade. Campinas: Ed. da Unicamp, 2006.
  • 54
    AGCRJ. Código de Posturas de 1889, p. 98-99.
  • 55
    Sindicato dos Arrumadores e do Comércio Armazenador do Rio de Janeiro. Documento manuscrito com informações históricas sobre a fundação da Sociedade, redigido para ser apresentado à Comissão de Finanças em 1908.
  • 56
    MARTINS, José de Souza. Subúrbio. São Paulo: Hucitec/São Caetano: Prefeitura de São Caetano do Sul, 1992, p. 179.
  • 57
    Idem, p. 178. Ênfase de Martins.
  • 58
    FRAGA FILHO. Encruzilhadas da liberdade, p. 16.
  • 59
    Jornal do Brasil, "Queixas do Povo", 27-09-1903.
  • 60
    Na Barricada. Ano II, no 1, 1-01-1916. Arias de Castro era, na época, membro do Conselho da Resistência.
  • 61
    Jornal do Brasil, 22-12-1906; Correio da Manhã, idem.
  • 62
    O art. 11, seção IV, do Código de Posturas de 1889 proíbe "dentro das casas ou chácaras, o brinquedo denominado batu-que, com toques de tambor, cantorias e danças", e o 12 estabelece que "não são toleradas as casas chamadas zungús"; o art. 722 da Consolidação de 1905 proíbe "nas casas de bebidas, tavernas ou outros lugares públicos, ajuntamentos de pessoas com tocatas, danças ou vozeria", prevendo multas e prisão. Código de Posturas, p. 49-50; Consolidação, p. 169.
  • 63
    KOZERITZ, Carl Von. Imagens do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1980, p. 31.
  • 64
    Relatório de Cardoso de Castro, Chefe de Polícia do DF, anexo ao Relatorio apresentado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1904.
  • 65
    FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 25-26.
  • 66
    Demonstrar este fato não é tarefa simples. A apropriação e inversão das regras só se deixam ver em atos dispersos ao longo do tempo, e uma análise dessa magnitude ultrapassa os limites deste artigo. A título de exemplo, é possível dizer, entretanto, que as atas da Resistência e alguns depoimentos de operários idosos demonstram com segurança que a Resistência reproduz inicialmente a estrutura criada em Salvador pelo regulamento policial: turmas diversas e fixas de trabalhadores avulsos matriculados, cada qual monopolizadora dos serviços afetos a um determinado local geográfico de trabalho. Por outro lado, tal como na Bahia, no Rio o "capitão" se mantém como um trabalhador vitalício e diferenciado, só que enquadrado pela Sociedade de Resistência e não pelo Chefe de Polícia.
  • 67
    Não sem contradições. Ao assumir o disciplinamento dos operários, o sindicato traz para sua dinâmica institucional os conflitos internos às turmas de trabalho.
  • 68
    A Razão, 23-08-1918.
  • 69
    FOUCAULT, op. cit., p. 28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2010
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