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Razão, cegueira e mito

Resumos

Este artigo trata da incapacidade de a razão - genericamente concebida como a inteligência e o saber associados à ciência, à história, ao conhecimento sistemático - reconhecer-se como responsável por atos abomináveis, como se fosse sobrehumana. Aborda um provável motivodessa apreciação - a ilusão de rompimento necessário e inevitável com o mundo sensível para a elaboração de um saber verdadeiro - e avalia a importância das noções de mito e mitologia para a sustentação dessa cegueira peculiar do saber racional, a partir da crítica de certas avaliações históricas da eugenia e do Holocausto.

racionalidade; retirada do mundo; aparências; cegueira; mito; eugenia; Holocausto.


This article deals with the incapacity of reason - generally thought as intelligence and a knowledge linked to science, history, to a systematic learning - to assumes itself as the perpetrator of abominable acts as it were a suprahuman thing. It approaches a probable motivation of this thought - the illusion of a necessary rupture with the sensible world to elaborate a true knowledge - and estimate through the criticism of some historical analyses of the Eugenics and Holocaust the importance of the notions of myth and mythology as supporters of the peculiar blindness of the reason.

rationality; withdrawal from the world; appearances; blindness; myth; Eugenics; Holocaust.


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  • 1
    BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 32. Os destaques da citação são de Z. Bauman. No restante deste texto, salvo observação em contrário, os destaques são de minha autoria.
  • 2
    Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Seminário de Pesquisas "Antigo e Modernos: diálogos sobre a (escrita da) história", promovido pelo Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), coordenado pelos colegas Francisco Murari Pires e Marlene Suano e realizado em setembro de 2007. Posteriormente, um pouco modificado, foi apresentado no "Seminário Permanente de Estudos Clássicos", promovido pelos Laboratórios OUSIA (do Programa de Pósgraduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Programa de Altos Estudos em Representações da Antiguidade (PROAERA) da mesma universidade. Os dois laboratórios são coordenados, respectivamente, pelos colegas Fernando Santoro e Henrique Cairus, aos quais agradeço a oportunidade de expor meu trabalho naquela instituição, no final do mesmo mês de setembro de 2007.
  • 3
    "A perspectiva da 'razão nobre', que não é outra senão a do senso comum, parte do princípio de que estamos nas melho-res condições para decidir e somos o orgulho de Platão, Descartes e Kant quando deixamos a lógica formal conduzir-nos à melhor solução para o problema." DAMÁSIO, A. R. O erro de Descartes. Emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 203.
  • 4
    DETIENNE, Marcel. A invenção da mitologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992; CALAME, Claude. Mythe et histoire dans l'Antiquité Grecque. La création symbolique d'une colonie. Lausanne: Payot, 1996. A pesquisa contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa (FAPERGS), que concedeu Auxílio Recém-doutor; do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e Pró-reitoria de Pesquisa da UFRGS (PROPESQ), que concederam bolsas de iniciação científica. A PROPESQ/UFRGS ainda possibilitou a aquisição de algumas obras para o projeto. Registro também que este texto resulta do trabalho das bolsistas, então alunas de graduação, Marisângela Martins, Michele Bonato e Deise Zandoná.
  • 5
    GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 42-84. C. Ginzburg também cita as obras de Gregory Nagy (1979) e de Paul Veyne (1984). No caso deste último, a argumentação, creio, é de caráter diverso. Veyne é crítico, como outros historiadores, da ideia de que haja objetos de estudo "naturais", eternos e invariáveis através dos tempos. Não há denúncia do aspecto etnocêntrico de mito e mitologia e a proposição do abandono dessas categorias, mas a desconsideração da possibilidade de que "mito" possa ter - assim como qualquer outro conceito - existência universal, perene e, por consequência, significado invariável. Em "Foucault revoluciona a história" (1978), Paul Veyne explicita essa posição, anteriormente apresentada em Como se escreve a história, a partir da avaliação do significado histórico da obra do seu particular colega. Cf. VEYNE, P. Foucault révolutione l'histoire. In: _____. Comment on écrit l'histoire. Paris: Seuil, 1971, p. 383-429. A versão brasileira deste texto, assim como a de "Como se escreve...",. é péssima, pelo menos a da primeira edição; da versão portuguesa (Edições 70) não consta o ensaio sobre Foucault.
  • 6
    GINZBURG, C. Op. cit., p. 84.
  • 7
    Idem, 42-43.
  • 8
    VERNANT, Jean-Pierre. Fronteiras do mito. In: FUNARI, Pedro Paulo (org.). Repensando o Mundo Antigo. Campinas: UNICAMP, 2005, p. 13. Depois dessa constatação, Vernant empreende sucinto retorno aos gregos: indicando sua dívida para com a análise de M. Detienne (1992), destaca a compatibilidade de mito e logos na primeira filosofia; a heterogeneidade das narrativas consideradas como mito por Platão; a desclassificação tucidideana dos relatos de poetas e logógrafos, ditos mitológicos pela distância temporal de seu conteúdo; e a constituição da mitologia, no século II a.C, quando foi criado um novo campo de estudo, constituído por diversas iniciativas avaliadoras de antigos relatos, distintos da história, poesia, filosofia e demais gêneros então reconhecidos (Idem, p. 14-24). Resta, ao final do exame de Vernant, a compreensão desta história, mas não a reafirmação da universalidade dos antigos significados ou a afirmação de novos entendimentos generalizáveis de mito, mitologia e pensamento mítico.
  • 9
    O título da primeira obra, de 1907, era, e ainda é, particularmente provocador: "Thucydides Mythistoricus", pois o histo-riador ateniense foi e, é, muitas vezes considerado o predecessor privilegiado da concepção racional, moderna, de história. Duas citações exemplares: "Se, todavia, podemos discernir em Heródoto o nascimento de um sentido histórico, não podemos fechar os olhos para a considerável quantidade de passagens em que ele reconhece influências sobrenaturais como parte das forças comuns da vida. Comparado com Tucídides, que o sucedeu no desenvolvimento da história, ele parece mais com um escritor medieval do que com um moderno racionalista. Porque, apesar de contemporâneos, entre os dois autores há um infinito abismo de pensamento." (WILDE, Oscar. The rise of historical criticism, p. 20. Disponível em <http://www.ucc.ie/ celt/online/E800003-001/>. Acesso em 24 abr. 2009. O texto foi escrito em 1879.); "Heródoto pode ou não ter 'inventado' a história. (...) Este estudo começa com, e sempre tem em mente, Heródoto, mas seu foco principal é sobre Tucídides, o historiador ateniense [que], para o melhor e pior, fez muito para definir o que foi entendido por 'história' nos dois mil anos seguintes." (CRANE, Gregory. The blinded eye. Thucydides and the new written word. Boston: Rowmann & Littlefield, 1996, p. 1). As referências dos trabalhos de F. Cornford estão na bibliografia.
  • 10
    LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. Trad. Tânia Pellegrini. Campinas: São Paulo, 1989(1962), p. 31.
  • 11
    GOODY, Jack. Domesticação do pensamento selvagem. Lisboa: Editorial Presença, 1988.
  • 12
    C. Calame reconhece seguir o caminho das investigações de M. Detienne (1981) e Paul Veyne (1988). Cf. CALAME, C. The rhetoric of mythos and lógos: forms of figurative discourse. In: BUXTON, Richard (ed.). From myth to reason? Studies in the development of greek thought. Oxford: Oxford UP, 1999, p. 123, nota 5.
  • 13
    Assim, foi registrado como "mito" o discurso de Zeus na assembleia dos deuses que abre o canto VIII da Ilíada, quando os imortais são advertidos para não mais interferirem da luta entre dânaos e troianos: "Falou. Todos calaram, pasmos, ante o duro discurso [mythos]." (HOMERO. Ilíada, VIII, 29).
  • 14
    VERNANT, Jean-Pierre. Mito y sociedad en la Grecia antigua. 2 ed. Madrid: Siglo Veintiuno, 1987, p. 170. Depois de analisar a história do surgimento da noção negativa de mito entre os gregos, Vernant concluíra pela necessidade de distanciamento da tradição então nascida e, sobretudo, pelo abandono da noção que supunha os mitos helenos como modelos, partindo-se então para o estudo comparativo com narrativas de "grandes civilizações não clássicas e com os povos ágrafos" (p. 189).
  • 15
    É Detienne que se refere aos europeus como "indígenas": "O terreno onde poderemos descobrir melhor os estranhos pen-samentos que a mitologia desperta em nós é uma 'etnia' ainda mal estudada do ponto de vista etnográfico uma vez que ela é maravilhosamente rica em modelos antropológicos. Trata-se da sociedade dos cristãos do ocidente, muito presos a um conjunto de textos chamado Testamento [itálico do autor]. Com efeito, entre as décadas de quarenta e cinquenta deste século, sábios indígenas, conhecidos pelo nome de teólogos, mantiveram longa disputa sobre a natureza do mito e do bom uso da mitologia." DETIENNE, M. A escrita de Orfeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p. 116.
  • 16
    Relembrando sua carreira em entrevista, Vernant ressalvou que discordava do entendimento de Lévi-Strauss sobre a existên-cia de uma "atividade mental" universal, assim como de sua compreensão "a-histórica" do mito. Concordava com Dumézil e Lévi-Strauss quando esses afirmavam ser preciso mostrar a organização, as ressonâncias internas decorrentes da sistematicidade de um "texto dito mítico ou lendário, uma narrativa ou texto de Hesíodo". Seu problema em particular, porém, era o de tentar "verificar como esses sistemas se transformam, como esses sistemas - não importa que sistema, em realidade - comportam níveis diferenciados: as camadas de tempo não são as mesmas; há portanto, dissonâncias e contradições. Isso faz o sistema desmoronar." VERNANT, J-P. Como um barco à deriva. Três colegas do Collège de France. Teoria & pesquisa: Revista de Ciências Sociais, São Carlos, v. XVI, n. 2, jul./dez. 2007. Entrevista concedida a José Otávio Nogueira Guimarães. p. 180-182. Disponível em: <http://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/article/viewFile/113/90>. Acesso em 30 abr. 2009.
  • 17
    O que os gregos designavam como "mitos" seriam narrativas com características figurativas determinadas pelos enre-dos específicos de cada uma delas, nunca implicando em um modo de pensamento. Cf. CALAME, C. The rhetoric of mythos..., p. 140-141.
  • 18
    Igual proposição foi feita por Geoffrey Lloyd ao final de seu texto sobre "mitologia chinesa". LLOYD, G. Mythology: reflections from a chinese perspective. In: BUXTON, R. Op. cit., p. 164-165.
  • 19
    O que não surpreenderia Paul Veyne, para quem a história, como qualquer saber intelectual, tem escasso ou nulo impacto fora dos estreitos limites de seu universo (VEYNE, P. Como se escreve a história. Lisboa: Edições 70, 1981, p. 87-104). É mais difícil explicar a relativa indiferença do mundo acadêmico.
  • 20
    SERRA, Ordep. A antropologia, a mitologia e sua escrita. Clássica. São Paulo, v. 11/12, 1998/1999. p. 27.
  • 21
    Ao apresentar seu trabalho em A inconstância da alma selvagem, o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro escreve ser preciso lutar "com os automatismos intelectuais de nossa tradição" e "com os paradigmas descritivos e tipológicos produzidos pela antropologia a partir de outros contextos socioculturais" para criar uma linguagem analítica "à medida (à altura) dos mundos indígenas" que estuda. CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 15.
  • 22
    PLATÃO, Teeteto, 164d.
  • 23
    PLATÃO, Teeteto, 173d-e.
  • 24
    O núcleo urbano da pólis, com os espaços centrais de todas as atividades públicas e privadas, delimitado pelas muralhas que o separavam da zona rural da cidade antiga.
  • 25
    Diálogo silencioso da "alma consigo mesma" ou, resguardando a ideia de multipolaridade presente no termo diálogos: interlocução interior e silenciosa de um indivíduo com um alter ego ou com um receptor imaginário. Cf. GUERREIRO, Mario A. Repensando o conceito platônico de dianoia. Revista Princípios-Depto de Filosofia/UFRN, Natal, v. II, n. 1, junho 1995. p. 132. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2565595>. Acesso em 28 fev. 2009.
  • 26
    PLATÃO, Teeteto, 173e - 174a.
  • 27
    Dedicação que teria sido preliminarmente prescrita por Parmênides em seu famoso poema, já considerado como "fonte de toda a ontologia platônico-aristotélica sob a qual vivemos" (CASSIN, Barbara. O efeito sofístico. São Paulo: 34, 2005, p. 17). Logo no início do mesmo, tal como transmitido através dos tempos (e na tradução de Fernando Santoro), a Deusa teria estabelecido as tarefas do jovem filósofo, que a ela chegara trilhando o "caminho apartado dos homens": Mas é preciso que de tudo te instruas: tanto do intrépido coração da Verdade persuasiva quanto das opiniões de mortais em que não há fé verdadeira. Contudo, também isto aprenderás: como as opiniões precisam patentemente ser, atravessando tudo através de tudo. (Da natureza, Frag. B1, 28-32) Discute-se a importância reservada ao mundo dos comuns mortais nesta e em outras passagens do poema (como o Frag. B7). As opiniões do vulgo poderiam ser de alguma importância para merecer a atenção do filósofo, já que ao jovem aprendiz é dito que sua aprendizagem as incluiria. Cf. McKIRAHAN JR., Richard D. Philosophy before Socrates: an introduction with texts and commentary. Cambridge: Hacket, 1994; PARMÊNIDES. Da natureza. São Paulo: Loyola, 2002.
  • 28
    Especialmente aqueles atos de "caráter servil" (doulikos): amarrar os cobertores para uma viagem, temperar alimentos, "fazer discursos bajulatórios" (PLATÃO, Teeteto, 175e).
  • 29
    PLATÃO, Teeteto, 174a- d.
  • 30
    Não se trata de delírio ou patologia, mas são falaciosas. A posição de H. Arendt é clara: "A falácia lógica elementar de todas essas teorias que se apoiam em uma dicotomia entre o Ser e a Aparência é óbvia e foi logo descoberta e resumida pelo sofista Górgias, em um fragmento que se conservou de seu desaparecido tratado Sobre o não-ser ou sobre a natureza - provavelmente uma refutação da filosofia eleática: 'O ser não é manifesto, já que não aparece [para nós: dokein]; o aparecer (para nós) é fraco, já que não consegue ser." (Cf. ARENDT, H. A vida do espírito. O pensar. O querer. O julgar. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992, p. 22-23). A citação interna é de ARISTÓTELES, De anima, 433a30. Essa discussão pode parecer estranha aos domínios da história, mas pode auxiliar seus estudiosos a situar, na história da epistemologia, a polêmica sobre a relevância da narrativa e da retórica para a sua disciplina. C. Ginzburg por exemplo, simpático à posição eleático-platônica, retorna à Grécia Antiga para expressar sua posição condenatória às transformações causadas pela repercussão de ideias como as de Hayden White no domínio do historiador. O elo intermediário dessa cadeia de erros epistemológicos - com graves repercussões morais, segundo ele - é Friederich Nietzsche. (Cf. GINZBURG, C. Relações de força. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 13-45). Em certas passagens, o historiador italiano parece confundir sofistas e céticos, duas categorias diversas de filósofos. Os segundos não negavam a existência de uma dimensão última e verdadeira, apenas duvidavam da capacidade humana de apreendê-la. Esta distinção pode ser avaliada na obra de Barbara Cassin, citada na nota 25.
  • 31
    Idem, p. 89.
  • 32
    Crítico radical da cosmologia dos "dois mundos", F. Nietzsche escreveu: "Em todos os tempos, os homens mais sábios fize-ram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada...Sempre, em toda parte, ouviu-se de sua boca o mesmo tom - um tom cheio de dúvida, de melancolia, de cansaço da vida, de resistência à vida. Até mesmo Sócrates falou, ao morrer: 'Viver - significa há muito estar doente: devo um galo a Asclépio, o salvador'. (...) O que prova isso? O que indica isso? Antigamente se teria dito (...) 'De todo modo, deve haver alguma verdade nisso! O consensus sapientium [consenso dos sábios] prova a verdade'. Ainda falaremos assim hoje? Podemos falar assim? 'De todo modo, deve haver alguma doença nisso' - é o que nós respondemos: esses sábios de todos os tempos, é preciso observá-los de perto!(...) Talvez a sabedoria apareça na Terra como um corvo, que se entusiasma com um ligeiro odor de cadáver?...". Considerando que juízos de valor sobre a vida nunca podem ser verdadeiros, Nietzsche vaticinou que eles deveriam ser interpretados como "sintomas". Concluiu que, no caso socrático, aqueles julgamentos deveriam ser vistos como sintoma da decadência do mundo grego - decadência, naquele tempo era o conceitolugar-comum para interpretar a história. NIETZSCHE, F. O problema de Sócrates. In: _____. Crepúsculo dos Ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 17 e ss. Todos os destaques da citação são originais.
  • 33
    ARENDT, H. Op. cit., p. 66 e ss.
  • 34
    Platão, Carta 7ª, 328c-d. A autenticidade desta carta, como das demais, é discutida por muitos. Luc Brisson a considera legítima. Cf. BRISSON, L. Leituras de Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 23-34.
  • 35
    ARISTÓTELES, Retórica, I 5, 1360b.
  • 36
    ARISTÓTELES, Retórica, I 7, 1364b.
  • 37
    CíCERO, Dos Deveres, IX, 28.
  • 38
    Outro aspecto interessante seria explorar as possíveis relações entre essa concepção dualista e a noção de estrutura, cara aos historiadores. Penso particularmente na investigação do demérito das aparências implicado pelas ideias estruturalistas. Muitas vezes, a hierarquização de fatores nos leva a pensar que as explicações "profundas" realmente estão numa dimensão metafísica. Um bom exemplo: "A maior recompensa que o autor deste livro poderia ter é convencer o leitor de que uma primeira tarefa da atividade histórica é a de distinguir, no fluxo dos acontecimentos de cada instante da civilização, aquilo que pertence às estruturas, na longa duração, até mesmo a uma natureza eterna, e aquilo que, ao contrário, caracteriza a particularidade de um tempo e de um momento." Agradeço a Bibiana Soldera Dias pela indicação desta passagem de: BERCÉ, Yves-Marie. O Rei oculto: salvadores e impostores. Mitos políticos populares na Europa moderna. Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003, p.10.
  • 39
    ARENDT, H. Op. cit., p. 61.
  • 40
    GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 137 e ss.
  • 41
    "Nossa vida cotidiana compõe-se de um grande número de programas de verdade e a impressão de mediocridade coti-diana surge justamente desta pluralidade que, em certos estados de escrúpulo neurótico, é sentida como uma hipocrisia; passamos sem cessar de um programa para outro, como se muda de comprimento de onda no rádio, mas nós o fazemos sem sabê-lo." (VEYNE, P. Acreditavam os gregos em seus mitos. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 101-102.). O historiador francês criou a imagem da "balcanização de cérebros" para resumir a multiplicidade de dimensões da vida dos indivíduos; C. Geertz escreveu sobre as "formas radicalmente contrastantes de ver o mundo, formas que não são contínuas umas com as outras, mas separadas por fossos culturais que devem ser transpostos em saltos kiekergaardianos em ambas as direções (...)". GEERTZ, Clifford. Op. cit, p. 137.
  • 42
    GINZBURG, C. Olhos de madeira, p. 83.
  • 43
    Nas telas dos cinemas, a guerra voltou a ter sentido em filmes como "Fomos heróis" (2002), título em português para "We Were Soldiers/We Were Soldiers Once... and Young" ("Fomos soldados/Um dia fomos soldados...e jovens"), dirigido por Randall Wallace e estrelado por Mel Gibson. O contraste com outros filmes sobre o Vietnã, como "Platton", é radical.
  • 44
    HOBSBAWM, E. Dentro e fora da história. In: _____. Sobre História. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 19-20.
  • 45
    Quando A. Damásio se refere à perspectiva comum da razão nobre e do senso comum, seu objetivo é destacar: "Um aspecto importante da concepção racionalista é o de que, para alcançar os melhores resultados, as emoções têm de ficar de fora. O processo racional não deve ser prejudicado pela paixão" (DAMÁSIO, A. Op. cit., p. 203). Como se sabe, na antiguidade, gregos, romanos e cristãos contribuíram, cada qual a seu modo, para a demonização das "paixões". Quanto aos helenos: "A verdade é que a alma está dividida entre esses dois logoi já em Platão, e que aí se trama o jogo das paixões, dos desejos sensíveis, embora estes não façam, verdadeiramente, parte do logos. Daí a alegoria, o mito e as imagens a que Platão recorre no Fedro para falar do que escapa à razão, do que se lhe opõe e que deveria também poder, apesar de tudo, voltar a ela. A alma é comparada a animais atrelados, conduzidos por um cocheiro que tenta harmonizar os puxões dos cavalos que se lançam em direções opostas. Eles simbolizam de fato o apetite sensível e a força de resistência a esse apetite, enquanto o cocheiro representa o julgamento da razão sã." MEIER, Michel. "Prefácio. Aristóteles ou a retórica das paixões". In: FONSECA, Isis Borges B da (Introdução, notas e tradução do grego). Aristóteles. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. XX-XXI. A passagem do Fedro platônico referida por Meier é 246 a-c.
  • 46
    Parece que nosso estatuto nos impõe uma obrigação de dificílima realização, a ponto de considerar um esforço malfadado como suficiente.
  • 47
    HOBSBAWM, E. Nações e nacionalismo. Programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 22.
  • 48
    A literatura sobre o Holocausto apresenta indícios da importância dos elos coletivos nacionais, talvez porque o desenraiza-mento tenha sido uma das estratégias das ações do extermínio. Acolhida em um lar inglês aos 12 anos graças a um movimento que procurou salvar crianças judias da perseguição alemã nazista, Inge Pollack registrou em seu diário sentimentos contraditórios para com seus salvadores: sabia dever a eles gratidão, mas a saudade dos pais e da terra natal a irritava, a fazia rebelde e melancolicamente infeliz: "Sinto que fui arrancada do meu próprio ninho acolhedor e isso dói terrivelmente (...) Estou num país estrangeiro, e não mais em casa. Se alguém me corrige, imediatamente penso no pior; querem me irritar, odeiam-me. Então digo a mim mesma: 'Essas pessoas são desconhecidas. O que elas têm a ver com você? Esse não é seu país. Não nasceu aqui, e consequentemente aqui não é o seu lugar'." Inge perdeu avó e mãe, mortas nos campos, sobreviveu apesar disso, cresceu e reconheceu a Inglaterra como seu novo lar, onde casou e viveu. (FILIPOVIC, Zlata; CHALLENGER, Melanie (eds.). Vozes roubadas. Diários de guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 112-113) A importância do "enraizamento" em uma coletividade, conceituado por Simone Weil, é ressaltada por Fernando Frochtengarten, psicólogo social que dissertou sobre a viagem de retorno de seu avô materno, judeu, à cidade natal polonesa, da qual foi afastado pela Segunda Guerra. O homem precisaria do enraizamento em grupos para ter a memória do passado que permite a existência no presente. Cf. Memórias de vida, memórias de guerra. Um estudo psicossocial sobre o desenraizamento. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 3-21.
  • 49
    Afirmada já em texto de 1957, "A formação do pensamento positivo na Grécia Arcaica", no qual rendeu homenagem a F.M. Cornford e defendeu que a distinção do pensamento racional consiste na separação entre as dimensões humana, natural e divina, e na recusa da ambiguidade mítica em favor do princípio da identidade (In: VERNANT, J-P. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 358). Na direção oposta, essa separação foi vista pelo sociólogo Gabriel Tarde como um dos elementos que nos torna cegos para a multiplicidade do mundo. Nas palavras de Eduardo V. Vargas, nosso espírito vagaria cego desde sua libertação das sombras da caverna (de Platão) e seria necessário romper com a concepção radicada na identidade do ser para vermos a pluralidade: "não somos capazes de dizer nada além da nossa experiência quando dizemos 'somos'." VARGAS, Eduardo Vianna. Gabriel Tarde e a diferença infinitesimal. In: _____ (org.). Gabriel Tarde. A monadologia e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 24, 34.
  • 1
    "De uma teologia, ou ao menos uma metafísica da Razão, passamos para algo completamente diferente: uma história das formas de pensamento racional em sua diversidade, suas variações, suas transformações mais ou menos profundas. O que o historiador chama de razão são modos definidos de pensamento, disciplinas intelectuais, técnicas mentais próprias a campos particulares da experiência e do saber. Formas diversas de argumentação, de demonstração, de refutação, modos particulares de inquérito sobre os fatos, de administração da prova e das provas, diferentes tipos de verificação experimental". (VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política. São Paulo: EDUSP, 2001, p.192). A razão helênica - teórica, imanente à linguagem - seria muito diversa da razão matemática contemporânea, da razão experimental da ciência; estaria, porém, presente na maior parte da vida social, na filosofia, na política: "Em vez de pesquisar a partir do real para entender em que medida nossas teorias dão conta dele, ela se dá como tarefa elaborar, no nível do discurso, uma argumentação no fim da qual todos os problemas parecem resolvidos, todas as contradições desaparecidas ou ultrapassadas". Seria um "razão verbal". (Idem, p. 195). Haveria também outras racionalidades: as dos babilônios, chineses, cada qual permitindo ação em determinados planos e vedando, assim, outros (Idem, p. 209-210).
  • 51
    Idem, p. 216-217. "Astrologia" e "comunicação de pensamento" são os domínios do irracional mencionados por Vernant. Já o mito foi considerado como dotado de "certa racionalidade", distinta daquela encontrada no discurso dos sofistas e na crença dos filósofos (Idem, p. 206).
  • 52
    As elucubrações baseadas nessa perspectiva dualista apresentam elementos que caracterizam uma verdadeira "retórica do combate". Porque a razão, a despeito de sua admirável luminosidade, é vulnerável a um inimigo que, mesmo derrotado, permanece ameaçador, precariamente restrito aos "subterrâneos" da ordem. Esses podem ser um "subterrâneo mítico", ou o interior da psique, ou da natureza humana. Dessas regiões, o irracional pode novamente "invadir" a dimensão iluminada pelo lógos. A "retórica do combate", em algumas de suas diversas versões, foi objeto de análise durante o projeto "Lógos versus mito" e resultou em apresentações cujo texto permanece inédito. Oudemans e Lardinois trataram da difícil relação do racionalismo com a ideia da desordem em Tragic Ambiguity (Leiden: Brill, 1987).
  • 53
    Uma alternativa intelectual e existencial pode ser o ceticismo tal como concebido por Oswaldo Porchat de Oliveira. Um indício: "Proponho uma ruptura bem mais radical que a do ceticismo. Um mergulho profundo, definitivo e de alma inteira na vida cotidiana dos homens. Não me limito a suspender meus juízos mas, em face dos jogos filosóficos, ouso dizer: 'Não jogo mais'. Regresso à humanidade comum e assumo integralmente a sua não-filosofia." Vida comum e ceticismo. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 50.
  • 54
    CASTORIADIS, Cornelius. A pólis grega e a criação da democracia. In: _____. As encruzilhadas do labirinto/2. Os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 269.
  • 55
    A irritação de Castoriadis se revela na continuação da citação: "que se põem [os etnólogos], neste particular grupo de tri-bos que é o nosso, a exorcizar as tribos estrangeiras ou a submetê-las a algum outro tratamento - a única diferença é que, em vez de aniquilá-las por fumigação, eles a aniquilam por estruturalização (sic)". Idem, p. 270.
  • 56
    Idem, p. 268.
  • 57
    Idem, p. 275. Os destaques da citação são originais.
  • 58
    Da sua arte o engenho subtilpara além do que se espera, ora o leva ao bem, ora ao mal; se da terra preza as leis e dos deuses na justiça faz fé, grande é a cidade; mas logo a perde quem por audácia incorre no erro. (SÓFOCLES, Antígona, v. 365-373) Houvesse condições de perceber, com segurança, o que é o "bem" e o "mal"... ou se houvesse este "bem" e este "mal" absolutos, a condição humana seria incapaz de gerar dramas como os trágicos. A tradução acima é de Maria Helena Rocha Pereira.
  • 1
    MÜLLER-HILL, B. Ciência assassina. Rio de Janeiro: Xenon, 1993, p. 7.
  • 60
    Idem, p. 8-9.
  • 61
    Idem, p. 10.
  • 62
    Idem, p. 9.
  • 63
    WEIGMANN, Katrin. In the name of science. European Molecular Biology Organization (EMBO) Reports. Heildelberg: EMBO, 2001, p. 874. Disponível em <http://www.pubmedcentral.nih.gov/articlerender.fcgi?tool=pubmed&pubmedid= 11600445>. Acesso em 08 jan. 2009.
  • 64
    Carnegie Institution for Science. Disponível em <http://www.ciw.edu/>. Acesso em 16 agosto 2009.
  • 65
    BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos: a eugenia e a campanha dos Estados Unidos para criar uma raça dominante. São Paulo: A Girafa, 2003, p. 83 e ss., 489 e ss. A Sociedade Imperador Guilherme - fundada em 1911 -, atual Sociedade Max Planck, foi responsável pela criação da "Oxford alemã" sonhada pelo subsecretário prussiano de Assuntos Culturais Friedrich Althoff. Financiou a construção de prédios para diversos institutos de pesquisa científica, entre eles o do Instituto Imperador Guilherme de Antropologia, Ciência da Hereditariedade Humana e Eugenia. Em 1948, a Universidade Livre de Berlim incorporou os prédios e o passado de comprometimento daquelas instituições com o nazismo. No edifício da instituição de pesquisa eugênica foi colocada uma placa relembrando o seu vergonhoso passado. Cf.<http://www.fu-berlin.de/en/tour/geschichtsausstellung/geschichte/kwi_anthro/index.htm>l. Acesso em 8 jan. 2009.
  • 66
    Documentos digitalizados da principal instituição norte-americana de pesquisa eugênica podem ser consultados no sítio Image Archive on the American Eugenies Movement, disponível em <http://www.eugenicsarchive.org/eugenics/list_topics. pl?theme=25&search=&matches>. Acesso em 10 jan. 2009.
  • 67
    BLACK, E. Op. cit., p. 41-306; 385-400; DIWAN, Pietra Stefânia. Raça pura. Uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007, p. 21-85.
  • 68
    DIWAN, P. S. Op. cit., p. 21-46.
  • 69
    Trata-se do discurso de Hubert Markl, presidente da Sociedade Max Planck, quando do lançamento do programa de pes-quisa História da Sociedade Kaiser Wilhelm na Era Nacional Socialista, em 1999, para investigar o envolvimento da SKW nos crimes nazistas. WEIGMANN, Katrin, op. cit, p. 871.
  • 70
    Idem, p. 874.
  • 1
    MÜLLER-HILL, B. Op. cit., p. 19.
  • 72
    Idem, p. 92.
  • 73
    Idem, p. 80.
  • 74
    Cf. LANZMANN, Claude. Shoah. Vozes e faces do holocausto. São Paulo: Brasiliense, 1987; SZPILMAN, Wladislaw. O pianista. Rio de Janeiro: Record, 2003.
  • 75
    BLACK, E. Op. cit., p. 401, 131, 93, 20.
  • 76
    MÜLLER-HILL, B. Op. cit., p. 97-98.
  • 77
    2 Reis, 17, 15-18.
  • 78
    ARISTÓTELES, Poética, XXII, 144, 1459a 5-10.
  • 79
    MÜLLER-HILL, B. Op. cit., p. 103.
  • 80
    BAUMAN, Z. Op. cit., p. 15-16.
  • 81
    Idem, p. 31.
  • 82
    Idem, p. 120.
  • 83
    Idem, p. 134.
  • 84
    Idem, p. 32.
  • 85
    Trata-se da oitava tese de "Sobre o conceito de história": "A tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceção' em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios em que vivemos no século XX 'ainda sejam possíveis', não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável." BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 226.
  • 86
    CASTORIADIS, C. Op. cit., p. 307.
  • 87
    BAUMAN, Z. Op. cit., p. 107.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2011
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