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De corpo e alma na margem: catolicismo, santidade e medicina no Norte de Portugal (c. 1900 - c. 1950)* * Agradeço a leitura e as valiosas sugestões de Maria de Lurdes Rosa, assim como os comentários dos pareceristas da revista Topoi. Agradeço também as discussões de versões preparatórias deste artigo com meus colegas do Centro de Estudos de História Religiosa (Universidade Católica Portuguesa) e do Cermes3/Universidade Paris Descartes. Este artigo foi elaborado no âmbito de um projeto de pós-doutoramento financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (Portugal).

Resumos

Num primeiro olhar, a personalidade religiosa da beata Alexandrina Maria da Costa surge como estranha e desconcertante. Este artigo propõe um exercício de compreensão histórica e antropológica que reduz essa estranheza. Sustenta-se que este caso reflete a história de uma comunidade com uma identidade religiosa forte, onde um catolicismo devocional convivia com investidas clericais visando promover uma subjetividade espiritual. Ao mesmo tempo, a medicina e a psiquiatria forneceram novas grelhas de interpretação da experiência religiosa. Este conjunto heterogêneo de elementos formou uma mística vernacular que atribuiu novos significados às entidades liminais próprias do universo religioso do Norte de Portugal. A linguagem da mística vernacular construiu a interioridade de uma experiência que, em sua singularidade, foi sempre fortemente socializada.

santidade popular; mística; medicina e psiquiatria; liminalidade; Alexandrina de Balasar.


On a first approach, the religious personality of Blessed Alexandrina Maria da Costa strikes us as strange and disconcerting. An exercise in historical and anthropological comprehension, this article reduces such strangeness. It is argued that this case reflects the history of a local community with a strong religious identity, in which devotional forms of Catholicism combined with initiatives on the part of the clergy aiming to promote spiritual subjectivities. At the same time, Medicine and Psychiatry provided new interpretation frameworks regarding religious experiences. From this ensemble of heterogeneous elements eventually emerged a vernacular form of mysticism, within which the traditional liminal entities acquired new meanings. The language of vernacular mysticism constructed the interiority of an experience that, albeit singular, was always strongly socialized.

popular sainthood; mysticism; Medicine and Psychiatry; liminality; Alexandrina de Balasar.


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  • 1
    COSTA, Alexandrina Maria da. Sentimentos da alma. 24 out. 1944. In: <alexandrinabalasar.free.fr/folhas_vejo_tantas_coisas.htm>. Acesso em: 10 maio 2011.
  • 2
    Ibidem, 13 jun. 1947 (dia da festa do Sagrado Coração de Jesus). In: <alexandrinabalasar.free.fr/alex_transverberacao.Htm>. Acesso em: 10 maio 2011.
  • 3
    Segundo os hagiógrafos, a 11 de fevereiro de 1955, Jesus disse a Alexandrina: "Repete o teu Creio; são êxtases de fé, de dor, de amor. São êxtases mortos, para darem vida". PASQUALE, Humberto (S.D.B.). Beata Alexandrina. 9. ed. Maia: Edições Salesianas, 1998. p. 228.
  • 4
    ALBERT, Jean-Pierre. Le sang et le ciel. Les saintes mystiques dans le monde chrétien. s.l.: Aubier, 1997. p. 24.
  • 5
    Ibidem, p. 410-413.
  • 6
    Ibidem, p. 403-404.
  • 7
    Ibidem, p. 416-419.
  • 8
    Ibidem, p. 181-215.
  • 9
    Agradeço a Maria Lurdes Rosa a precisão, neste ponto, relativamente a uma versão anterior.
  • 10
    BYNUM, Caroline Walker. Holy feast and holy fast. The religious significance of food to Medieval women. Berkeley; Los Angeles; Londres: University of California Press, 1987. p. 218.
  • 11
    Ibidem, p. 7 e 298.
  • 12
    Maria de Lurdes Rosa cita este e outros casos, em Portugal, onde a tópica da santidade medieval ecoou em manifestações religiosas durante os séculos XIX e XX. ROSA, Maria de Lurdes. Hagiografia e santidade. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (Org.). Dicionário de história religiosa de Portugal. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2000. p. 326-361, 331 e 335; ROSA, Maria de Lurdes. Santos e demônios no Portugal medieval. Porto: Fio da Palavra, 2010. p. 76-80.
  • 13
    ALBERT, Jean-Pierre. Le sang et le ciel, op. cit. p. 16-19.
  • 14
    BREMOND, Henri. Histoire littéraire du sentiment religieux en France. vol. 5 - La conquête mystique. Paris: Librairie Bloud et Gay, 1933. p. 345.
  • 15
    Ibidem, p. 352-353.
  • 16
    GIMARET, Antoinette. Louise du Néant, une sainteté problématique. L'Atelier du Centre de Recherches Historiques, v. 4, p. 2, 2009. Disponível em: <http://acrh.revues.org/index1354.html> Acesso em: 11 maio 2012.
  • 17
    Ibidem, p. 8 e 23-24.
  • 18
    BYNUM, Caroline Walker. Holy feast and holy fast, op. cit. p 74; MARQUES, Tiago Pires. Mystique, politique et maladie mentale. Historicités croisées (France, c. 1830 - c. 1900). Revue d'Histoire des Sciences Humaines, n. 23, p. 37-74, déc. 2010. p. 48.
  • 19
    Artigos biográficos da Serva de Deus Alexandrina Maria da Costa. Porto: Empresa de Publicidade do Norte, 1966; e A paixão de Jesus em Alexandrina Maria da Costa. Porto: Edições Salesianas, 1979.
  • 20
    Sobre o processo de beatificação, Kenneth Woodward fornece dados de grande interesse: WOODWARD, Kenneth L. Comment l'église fait les saints. Paris: Grasset, 1992. p. 181-189.
  • 1
    A partir de 1998, ainda antes da beatificação, o título foi modificado para Beata Alexandrina. A primeira edição é de 1960.
  • 22
    Esta lista, não exaustiva, pode ser completada com as referências indicadas por: ROSA, Maria de Lurdes. Hagiografia e santidade, op. cit., p. 349.
  • 23
    Disponível em: <http://alexandrinabalasar.free.fr/>.
  • 24
    A biografia do padre Mariano Pinho está também disponível em linha: Acesso em: 15 jan. 2010.
  • 25
    APOLITO, Paolo. The internet and the Madonna. Religious visionary experience on the web. Chicago: University of Chicago Press, 2005. p. 101.
  • 26
    CHRISTIAN JR., William. Person and God in a Spanish valley. Nova York: Seminar Press, 1972. p. 48, 181-182. Cit. por APOLITO, Paolo. The internet and the Madonna, op. cit. p. 152-153.
  • 27
    "(...) obliged to decontextualize and recontextualize everything that comes within reach, extracting everything from the context in which it was produced or into which it was inserted, connecting it to other things, other relatively provisional contexts, and to virtually all other things. Even when the surfer preserves the contextualizations offered by the site, she does nothing other than use her own power of recontextualizing according to the possibilities at her disposal, which only coincidently correspond to the configuration of the site itself." Ibidem, p. 224. (minha tradução).
  • 28
    Disponível em: <http://alexandrinabalasar.free.fr/autobiografia_2.htm>. Acesso em: 15 jan. 2010. Caderno de notas, 4-3-2010 e 13-10-2011.
  • 29
    PASQUALE, Humberto, Beata Alexandrina, op. cit. p. 24.
  • 30
    AZEVEDO, Manuel Dias de. O caso de Balazar. Palavras amigas e de verdade. Diário do Norte, 30 jun. 1953. Disponível em: <alexandrinabalasar.free.fr/a_beata_alexandrina_na_imprensa.htm>. Acesso em: 23 fev. 2011.
  • 31
    CABRAL, João de Pina. Sons of Adam, daughters of Eve. Oxford: Clarendon Press, 1986. p. 215.
  • 32
    Ibidem, p. 235.
  • 33
    Ibidem, p. 218-224.
  • 34
    Na antropologia religiosa, foi um conceito desenvolvido por A. Van Gennep e Victor Turner.
  • 35
    CABRAL, João de Pina, Sons of Adam, daughters of Eve, op. cit. p. 226-232.
  • 36
    Ibidem, p. 233.
  • 37
    BYNUM, Caroline Walker. Holy feast and holy fast, op. cit. p. 241.
  • 38
    CHARUTY, Giordana. Folie, mariage et mort. Pratiques chrétiennes de la folie en Europe occidentale. Paris: Seuil, 1998. p. 13.
  • 39
    MONTENEGRO, Miguel de. Les bruxos: des thérapeutes traditionnelles et leur clientèle au Portugal. Paris: L'Harmattan, 2005. p81-85.
  • 40
    BALASAR, Alexandrina de. Autobiografia. Ditada em 1943 ou 1944. Disponível em: <http://alexandrinabalasar.free.fr/ autobiografia_2.htm>. Acesso em: 21 abr. 2011.
  • 41
    MONTENEGRO, Miguel de. Les bruxos, op. cit. p. 50-58. MONTENEGRO, Miguel de. Un culte thérapeutique au Portugal. Entre Moise et Pharaon. Paris: L'Harmattan, 2006. p. 8-9. José Pedro Paiva identifica a designação de "corpo aberto", com elementos muito similares aos dos "bruxos" estudados por Montenegro, em práticas terapêuticas populares reprimidas pela Inquisição no século XVII. Os "corpos abertos" dos séculos XVII e XVIII existem exlusivamente na zona entre o Minho e o Douro litoral, são sempre mulheres, comunicam com os mortos e podem ser possuídos pelos seus espíritos. PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas. Lisboa: Editorial Notíciais, 1997. passim.
  • 42
    Caderno de notas. 4-3-2011.
  • 43
    PORTERFIELD, Amanda. Healing in the history of christianity. Oxford: Oxford University Press, 2005. p. 16-19.
  • 44
    COSTA, Alexandrina Maria da. Sentimentos da alma. Entrada de 1o de outubro de 1947, cit. por PASQUALE, Humberto. Beata Alexandrina, op. cit. p. 302.
  • 45
    MARQUES, Tiago Pires. O Apostolado da Oração e a socialização religiosa das camadas populares. In: António Matos Ferreira (Org.). Religião e cidadania: motivações, dinâmicas sociais e protagonismos (séculos XIX e XX). Uma perspectiva ibérica. Portugal e Espanha. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa, 2011. p. 455-467.
  • 46
    O movimento devocional a Alexandrina na internet refere os casos de Beatriz Marques Pinheiro e de Blandina Seara, ambas naturais da Póvoa de Varzim e acompanhadas pelo padre Pinho. A primeira, falecida em 1930, aos quinze anos, foi enterrada com o uniforme da Cruzada Eucarística. Disponível em: <http://causapadrepinho.home.sapo.pt/beatriz_ marques_pinheiro_pt.htm>. Acesso em: 10 maio 2011. Blandina Seara morreu de doença crônica também em 1930, com 22 anos, sendo o seu caso apontado como uma prefiguração do de Alexandrina. Disponível em: <http://causapadrepinho. home.sapo.pt/blandina_seara.htm>. Acesso em: 10 maio 2011. Veja-se ainda o caso semelhante de Carminda, morta nos anos 1930. VIDEIRA, Benjamim. Carminda. Porto: s.n., 1939. Ou ainda o caso, mais conhecido, de Maria da Conceição Pinto da Rocha. ROSA, Maria de Lurdes, Hagiografia e santidade, op. cit. p. 331.
  • 47
    O sentido que Alexandrina dá ao seu sofrimento manifesta-se nas suas palavras transcritas, nas biografias e nos testemunhos de pessoas próximas, que recolhi em Balasar.
  • 48
    Disponível: <alexandrinabalasar.free.fr/sangue_do_cordeiro_01.htmem>. Acesso em: 10 maio 2011.
  • 49
    Disponível em: <http://alexandrina.balasar.free.fr/no_calvario_14.htm>. Acesso em: 19 maio 2011.
  • 50
    Sentimentos da alma. 24 out. 1947. Disponível em: <http://alex-balasar.blogspot.com/2011/11/eu-sou-sempre-mesma.html>. Acesso em: 15 fev. 2012.
  • 51
    Artigo do padre José Alves Terças, na revista Vida de Cristo, a Paixão dolorosa, v. V, n. 10, 1942, ao que terá respondido o padre Pinho, com uma publicação no periódico que dirigia, O Mensageiro de Maria, em número de março de 1842. Disponível em: <causapadrepinho.home.sapo.pt/alex_veloso_1.htm> Acesso em: 10 maio 2011.
  • 52
    GARNEL, Rita. O caso Rosa Calmon: gênero, discurso médico e opinião pública. In: STONE, E.; ABREU, I. S.; SOUSA, A. F. (Org.). Falar de mulheres, história e historiografia. Lisboa: Livros Horizonte, 2008. p. 71-87.
  • 53
    Para uma análise desta questão, ver SILVA, Sebastião Nuno. A doença da santidade: concepções psicopatológicas do sentimento religioso na comunidade médica primo-republicana. Tese (mestrado em filosofia) - Universidade do Minho, Braga, 2003; e MARQUES, Tiago Pires. Mystique, politique et maladie mentale, op. cit.
  • 54
    Foi o caso de um dos médicos que observou Alexandrina, Henrique Gomes de Araújo. ARAÚJO, Gomes de. Histeria, pithiatismo. Dados teóricos e observações clínicas. Estado actual da questão. Porto: Livraria Moreira, 1919.
  • 55
    Disponível em: http://causapadrepinho.home.sapo.pt/no_calvario_23.htm. Acesso em: 10 maio 2011.
  • 56
    O padre Pasquale refere-se-lhe como "um médico enviado por Deus". PASQUALE, Humberto. Beata Alexandrina, op. cit. p. 163 e 166. A importância da acção quotidiana deste médico foi-nos confirmada em entrevista. Caderno de notas, 4-3-2011.
  • 57
    Dias de Azevedo citado em: <alexandrinabalasar.free.fr/no_calvario_23.htm> Acesso em: 10 maio 2011.
  • 58
    Termo médico significando a ausência de eliminação de urina.
  • 59
    Relatório médico do internamento de Alexandrina no Refúgio da Foz do Douro, citado em: <jejumalexandrina.blogspot.com>. Acesso em: 10 maio 2011. E parcialmente reproduzido em: ARAÚJO, Gomes de. Um notável caso de abstinência e de anúria. In: PASQUALE, Humberto. Beata Alexandrina, op. cit. p. 164 e 196.
  • 60
    Carlos Alberto de Lima e Manuel Augusto Dias de Azevedo. Relatório datado de 26-7-1943. In: PASQUALE, Humberto. Beata Alexandrina, op. cit. p. 196-197. Esta fonte cita ainda um terceiro relatório, assinado por um coletivo de médicos brasileiros, aos quais foram enviados, pelo padre Mariano Pinho, entretanto estabelecido no Brasil, os relatórios dos médicos portugueses. Ibidem, p. 199-200.
  • 61
    Autobiografia. Disponível em: <http://alexandrinabalasar.free.fr/autobiografia_2.htm>. Acesso em: 10 maio 2011.
  • 62
    VELOSO, Agostinho. Mística e jornalismo. In: Brotéria, v. XLIV, p. 5-20, p. 5, jan. 1947.
  • 63
    Colóquios entre Jesus e Alexandrina, citados por PASQUALE, Humberto, Beata Alexandrina, op. cit. p. 303.
  • 64
    Sobre a colaboração entre autoridades eclesiásticas e médicos em ambientes devocionais no período contemporâneo, ver, por exemplo, PORTERFIELD, Amanda. Healing in the history of Christianity, op. cit. p. 180-184; e GUILLEMAIN, Hervé. Diriger les consciences, guérir les âmes. Une histoire comparée des pratiques thérapeutiques et religieuses (1830- 1939). Paris: Éditions la Découverte, 2006. p. 230-236.
  • 65
    CHARUTY, Giordana. Le couvent des fous. L'internement et ses usages en Languedoc aux XIXe et XXe siècles. Paris: Flammarion, 1985. p. 333.
  • 66
    ROSA, Maria de Lurdes. Hagiografia e santidade, op. cit. p. 331-337.
  • 67
    Expressão consagrada para referir a via mística claustral de Santa Teresa de Lisieux, no final do século XIX, assente numa espiritualidade devocional de pequenas ações reparadoras, em contraste com a mística expressiva e barroca popularizada por Santa Teresa de Ávila (século XVI) e Santa Maria Margarida Alacoque (século XVII). MAÎTRE, Jacques. Thérèse de Lisieux. L'Orpheline de la Bérésina (1873-1897). Paris: Les Éditions du Cerf, 1995. p. 67-68.
  • 68
    Segundo Nathan Mitchell, a Igreja pós-tridentina procurou renovar a cristandade através de novas formas de integração comunitária e de solidariedade social construídas largamente sobre formas e símbolos vernaculares. MITCHELL, Nathan D. The mystery of the Rosary. Marian devotion and the reinvention of Catholicism. Nova York; Londres: New York University Press, 2009. p. 128-129.
  • 69
    Segundo testemunhos locais, os êxtases de Alexandrina foram filmados, sendo o filme regularmente exibido à população em dias de celebração da beata.
  • *
    Agradeço a leitura e as valiosas sugestões de Maria de Lurdes Rosa, assim como os comentários dos pareceristas da revista Topoi. Agradeço também as discussões de versões preparatórias deste artigo com meus colegas do Centro de Estudos de História Religiosa (Universidade Católica Portuguesa) e do Cermes3/Universidade Paris Descartes. Este artigo foi elaborado no âmbito de um projeto de pós-doutoramento financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (Portugal).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2012

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2012
  • Aceito
    23 Maio 2012
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