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O aniquilamento de Cartago e Numância* * Agradeço todas as sugestões dos pareceristas. As traduções são de minha responsabilidade.

Resumos

A tradição historiográfica, iniciada com Políbio, a respeito da trajetória política de Cipião Emiliano (185-129 a.C.), descreveu-a como marcada pela criação de precedentes institucionais por meio de sucessivos atos de concentração de poder e violência militar. Até hoje a maioria dos historiadores tem interpretado essa tradição como favorável à imagem do comandante romano, a despeito das ressalvas de A. Momigliano. Partindo dessas ressalvas, alguns momentos-chave dessa tradição (a obtenção de dois consulados e o aniquilamento das cidades de Cartago e Numância por Cipião) mostram também um viés crítico, sobretudo devido ao contraste entre as imagens tópicas do intelectual aberto ao helenismo e do comandante competente embora truculento.

Cipião Emiliano; Cartago; Numância; helenismo; violência.


The historiographical tradition originated with Polybius about the political career of Scipio Aemilianus (185-129 B.C.) presented it as marked by the creation of institutional precedents through successive acts of concentration of power and of military violence. Until today, most historians have interpreted this tradition as being favorable to the image of the Roman commander, despite A. Momigliano's reservations. Considering these reservations, some key moments in that tradition (Scipio's reaching of two consulships and the annihilation of Carthage and Numantia) present also a critical bias, particularly because of the contrast between the topic images both of the learned man open to Hellenism and of the competent but truculent commander.

Scipio Aemilianus; Carthage; Numantia; Hellenism; violence.


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    1 Filelenismo de Cipião: Plb.31.23-30; destruição de Cartago: Plb.38.19a-22; destruição de Numância: monografia sobre a Guerra Numantina mencionada por Cícero (AdFam.5.12.2) e atualmente perdida.
  • 2
    2 Diodoro: livros 31-32; Plutarco: Apotegmas de reis e comandantes, Vida de Emílio Paulo, Vida de Tibério Graco; Apiano: Guerras Púnicas, Guerras na Ibéria.
  • 3
    3 Plb.31.24.8.
  • 4
    4 BARONOWSKI, Donald Walter. Polybius and Roman imperialism. Londres: Bristol Classical Press, 2011. p. 4; WALBANK, Frank William. Selected papers. Studies in Greek and Roman history and historiography. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. p. 325-330.
  • 5
    5 Plb.36.9.
  • 6
    6 MOMIGLIANO, Arnaldo. Sesto contributo alla storia degli studi classici e del mondo antico t. I. Roma: Storia e Letteratura, 1980. p. 85. A resenha "The historian's skin" foi originalmente publicada em 1974.
  • 7
    7 Rutílio Rufo (t. 1 Peter), legado de Cipião em Numância, também teria escrito uma monografia a respeito.
  • 8
    8 Plb.36.11.2.
  • 9
    9 O exemplo mais recente é BARONOWSKI, Donald Walter. Polybius and Roman imperialism, op. cit. p. 153-154.
  • 10
    10 Ibidem, p. 174.
  • 11
    11 GRUEN, Erich. Culture and national identity in Republican Rome. Ithaca, Nova York: Cornell University Press, 1992. p. 252-258.
  • 12
    12 Plb.31.24.6-7.
  • 13
    13 MARINCOLA, John. Intertextuality and exempla. Histos Working Papers, s.n., p. 5, 2011. Disponível em: <http://research.ncl.ac.uk/histos/Histos_WorkingPapers_APA_7Jan11.html> Acesso em: 29 jan. 2013.
  • 14
    14 HARRIS, William Vernon. The late Republic. In: SCHEIDEL, Walter; MORRIS, Ian; SALLER, Richard (Ed.). The Cambridge economic history of the Greco-Roman World. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 504 e 509: além do crescente afluxo de escravos, técnicos e artistas para Roma, entre 188 a.C. e 163 a.C. o número de cidadãos romanos adultos subiu de 258.000 para 337.000.
  • 15
    15 O filho do Africano: Cic.Brut.77, Sen.35 e Off.1.121; o patrimônio do Africano: Plb.31.26; a adoção de Cipião Emiliano: Plut.Aem.5, Vell.1.10; árvores genealógicas dos Cornelii e dos Aemilii em WALBANK, Frank William. A historical commentary on Polybius III. Oxford: Oxford University Press, 1979. p. 504.
  • 16
    16 Plut.Aem.22 antecipa na sequência os dois feitos que notabilizarão o jovem; Liv.44.44.
  • 17
    17 Emiliano, Políbio e o apreço pela caça: Plb.31.29; Cipião Emiliano patrono da Macedônia: Plb.35.4.8; Emílio Paulo impõe leis à Macedônia: Liv.45.32; aterroriza o Epiro: Plb.30.15; Liv.45.43; Plut.Aem.29. Segundo Tito Lívio, a distribuição não agradou aos soldados, que não tiveram parte no butim de Perseu; Plutarco registra a apreensão generalizada causada pelas meras onze dracmas que coube a cada um ("um povo inteiro reduzido a trocados").
  • 18
    18 Respectivamente Plb.9.16-20 e 31.23-9.
  • 19
    19 HARRIS, William Vernon. The late Republic, op. cit. p. 506.
  • 20
    20 É incerto se Políbio o acompanhou: Plb.3.48.12 e WALBANK, Frank William. A historical commentary on Polybius I, op. cit. ad locum; e se Emiliano partiu como legado ou como tribuno militar: Plb.35.4.9. O pai e o tio do Africano foram mortos em combate na Ibéria em 211 a.C. e rendidos pelo jovem priuatus cum imperio: Plb.10.6-7 e Liv.25.36; em 205 a.C. o Africano fundou Italica: App.Hisp.38; Emílio Paulo exercera a pretura na Ibéria em 191 a.C.: Plut.Aem.4; Tibério Graco, pai do tribuno e sogro de Emiliano, legislou e pacificou a Ibéria, que assim permaneceu por quase vinte anos (179- 153 a.C.): App.Hisp.43.
  • 21
    21 App.Pun.71-2. As tropas de Massinissa serão peças-chave para a tomada de Cartago; seu ressentimento contra os cônsules de 149 a.C., Márcio Censorino e Mânio Manílio, explica parte de suas dificuldades: App.Pun.94.
  • 22
    22 Diod. 32.2 e 4. Procedência dos fragmentos e discussão de interpretações recentes cf. BARONOWSKI, Donald Walter. Polybius and Roman imperialism, op. cit. p. 106-113. Os passos derivariam de um discurso reportado por Políbio e que exporia a visão de observadores gregos; a menção à destruição de Numância (133 a.C.), cuja proveniência é incerta - se de Políbio ou de Diodoro -, não invalida a derivação polibiana nem a cronologia dos demais argumentos.
  • 23
    23 Plb.36.7, Liv.Per.49 e App.Pun.74ss.
  • 24
    24 Plb.36.9.3-17; discussão e interpretações recentes em BARONOWSKI, Donald Walter. Polybius and Roman imperialism, op. cit. p. 101-106; MOMIGLIANO, Arnaldo. Sesto contributo alla storia degli studi classici e del mondo antico t. I, op. cit. p. 84; e CHAMPION, Craige Brian. Cultural politics in Polybius's Histories. Berkeley; Los Angeles; Londres: University of California Press, 2004. p. 196 deixam de lado as tentativas infrutíferas de identificação da opinião de Políbio e se concentram nos significados da apresentação - índice da enormidade do conflito e da necessária indeterminação cultural do historiador, respectivamente. 2
  • 25
    5 Plb.36.2.
  • 26
    26 Plut.Cat.Mai.26-7 e App.Pun.69. A embaixada de Catão à África para dirimir desentendimentos entre Massinissa e Cartago é de 157 a.C. Problemas de cronologia e veracidade do episódio cf. HARRIS, William Vernon. Roman expansion in the west. In: ASTIN, Alan; WALBANK, Frank William et al. (Ed.). The Cambridge ancient history v. VIII: Rome and the Mediterranean to 133 B.C. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. p. 149-151; Cipião Nasica na Macedônia: Zon.9.28.
  • 27
    27 Pilhagem da estátua de Apolo de mil talentos de ouro: App.Pun.127; dias de pilhagem da cidade e divisão do butim: App.Pun.133; HARRIS, William Vernon. Roman expansion in the west, op. cit. p. 152-157.
  • 28
    28 Provavelmente fosse Políbio a principal fonte parafraseada por Apiano: ASTIN, Alan. Scipio Aemilianus. Oxford: Clarendon Press, 1967. p. 4. Cônsules em 149 a.C.: Márcio Censorino e Mânio Manílio; em 148 a.C.: Postúmio Albino e Calpúrnio Pisão. Arrogância de Censorino: App.Pun.80-6, 97 e de Mancino (legado sob ordens de Pisão): App.Pun.113; inatividade de Censorino, Manílio e Pisão: App.Pun.94, 108, 112; incúria e imprudência de Censorino, Manílio e Mancino: App.Pun.99-102, 114.
  • 29
    29 App.Pun.105-9.
  • 30
    30 App.Pun.112.
  • 31
    31 Eleição de Cipião cf. ASTIN, Alan. Scipio Aemilianus, op. cit. p. 61 e ss; Cartago foi arrasada no "início da primavera" de 146 a.C. (App.Pun.127).
  • 32
    32 App.Pun.115-31.
  • 33
    33 A insistência de Apiano em descrever o que havia de ilegalidade nos dois consulados de Cipião (App.Pun.112; Hisp.84; B.C.19) reforça a meticulosidade com que foi articulada a operação. Plb.38.8.7 amplia a dramaticidade do holocausto cartaginês, comparando Asdrúbal explicitamente a um boi de sacrifício.
  • 34
    34 Plb.9.12.1. A análise de Políbio está em Plb.9.12-20; implicações éticas: ECKSTEIN, Arthur. Moral vision in the Histories of Polybius. Berkeley; Los Angeles; Londres: University of California Press, 1995. p. 25-26 e 248.
  • 35
    35 SANCTIS, Gaetano de. Storia dei romani IV.3. Dalla battaglia di Pidna alla caduta di Numanzia. Florença: La Nuova Italia, 1964. p. 74.
  • 36
    36 App.Pun.134-5.
  • 37
    37 Cic.Rep.1.34.
  • 38
    38 Plb.38.21.
  • 39
    39 Cf. App.Hisp.45-7: 10 mil romanos mortos em 153 a.C.; §51-3: Lúculo massacra traiçoeiramente a população de Cauca em 151 a.C.; §59-61: o mesmo Lúculo atraiçoa também os lusitanos em 151 a.C., e Galba dá continuidade à perfídia em 150 a.C.; §66: timidez e inexperiência de Aulo Pompeu em 143 a.C.; §70-4: perfídia de Cepião e assassinato de Viriato em 140 a.C.; §76-9: incúria e inatividade de Pompeu, batido pelos numantinos em 140 a.C.; §80-3: o foedus Mancinus de 137 a.C., desânimo no Senado devido a tantos desastres, fuga vergonhosa de Emílio Lépido de Palantia, que lhe acarreta a privação do consulado em 136 a.C., inatividade de Calpúrnio Pisão em 135 a.C.
  • 40
    40 Os grandes líderes políticos mortos foram Tibério Graco, Emílio Lépido (em 152 a.C.), Catão (em 149 a.C.) e Cláudio Marcelo (em 148 a.C.): ASTIN, Alan. Scipio Aemilianus, op. cit. p. 97; resistências políticas a Cipião Emiliano: Ibidem, p. 80s; censura e fontes: Ibidem, p. 112s; Cipião apoiado pela plebe quando eleito censor: Plut.Aem.38.
  • 41
    41 Discussão em ASTIN, Alan. Scipio Aemilianus, op. cit. p. 129-134.
  • 42
    42 App. Hisp.84.
  • 43
    43 Apiano erra ao afirmar que Emiliano não tinha a idade requerida. O problema é outro: Liv.Per.56: Cipião infringira uma lei de consulato non iterando, provavelmente de 151 a.C.; MARTINO, Francesco de. Storia della costituzione romana t. II. Nápoles: Eugenio Jovene, 1973. p. 422. Novamente o povo o elege cônsul, e novamente o Senado abroga uma lei. Cipião celebrará também um segundo triunfo, embora bem mais modesto do que o primeiro: Plin.33.50.
  • 44
    44 Apiano menciona apenas Rutílio Rufo (Hisp.88), aliado político e legado de Cipião na guerra numantina, como sua fonte, mas pode ter também utilizado a monografia de Políbio mencionada por Cícero (Fam.5.12.2).
  • 45
    45 App.Hisp.90-8.
  • 46
    46 App.Hisp.98.
  • 47
    47 Plb.3.63.4.
  • 48
    48 A guerra para os romanos: MARTINO, Francesco de. Storia della costituzione romana t. II, op. cit. p. 53; Ilúrgia: Plb.11.24.10, Liv.28.20 e App.Hisp.32.
  • 49
    49 Plb.31.29.1. MAUERSBERGER, Arno et al. Polybios-Lexikon I.1. Berlin: Akademie, 2000. p. 113 s.v. ἀνδρεία (Mannhaftigkeit); McDONNELL, Myles. Roman manliness. Virtus and the Roman republic. Nova York: Cambridge University Press, 2006. p. 238 sobre o paralelo entre uirtus e ἀνδρεία. O juízo de Políbio provém de sua apreciação sobre os anos de formação de Emiliano; em 152 a.C., ao oferecer-se voluntariamente para ir à Ibéria, Cipião o fazia "almejando reputação de varonia": Plb.35.4.8.
  • 50
    50 Cf. os episódios envolvendo a cidade de Mantineia e o tirano de Argos Aristômaco em Plb.2.56-61, especialmente os juízos de §58.11: "[os mantineus] mereciam punição maior e absoluta" e §60.7: "[Aristômaco] deveria ter sido arrastado pelo Peloponeso e morrido servindo de punição exemplar". Eventuais motivações políticas de Políbio: WALBANK, Frank William. A historical commentary on Polybius I, op. cit. ad locos.
  • 51
    51 Plb.15.17.3-18.8.
  • 52
    52 Plb.29.20.
  • 53
    53 Plb.38.20.1-3.
  • 54
    54 Νοῦς - lucidez - é a faculdade suprema de um comandante para Políbio: 9.12.1; resulta do concerto entre πρόνοια (presciência), λογισμός (cálculo) e ἀγχίνοια (acume): 10.5.8; PÉDECH, Paul. La méthode historique de Polybe. Paris: Les Belles Lettres, 1964. p. 210-211.
  • 55
    55 ASTIN, Alan. Scipio Aemilianus, op. cit. p. 231.
  • 56
    56 Plut.Reg.Imp.Apoph.201f.
  • 57
    57 Plb.31.25.8; 31.28.10; 31.29.9.
  • 58
    58 Cleômenes: Plb.2.61.4; Perseu: Plb.27.8.4.
  • 59
    59 MARINCOLA, John. Intertextuality and exempla. Histos Working Papers, s.n., p. 3, 2011. Disponível em: <http://research.ncl.ac.uk/histos/Histos_WorkingPapers_APA_7Jan11.html> Acesso em: 29 jan. 2013.
  • 60
    60 No epílogo das Histórias Políbio redige uma pequena prece que, embora tópica, é indício de sua situação: "pedimos a todos os deuses que aquilo que nos resta ainda para viver possa continuar nas mesmas condições; vemos quanto o acaso aprecia invejar os homens e como é mais incisivo no momento em que alguém mais se crê feliz e bem-sucedido na vida" (Plb.39.9.2).
  • 61
    61 BARONOWSKI, Donald Walter. Polybius and Roman imperialism, op. cit. p. 174: "the present study, which builds on the foundations of earlier scholarship, may be taken as a protest against this unjust verdict".
  • 62
    62 Plb.39.8.2.
  • 63
    63 CHAMPION, Craige Brian. Cultural politics in Polybius's Histories, op. cit. p. 196-197.
  • 64
    64 Dito explicitamente em Plb.31.24.11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2013
  • Aceito
    18 Fev 2013
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