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Os sete pecados capitais e os processos de culpabilização em manuais de devoção do século XVIII

Resumos

Neste artigo, analisamos o manual de devoção Mestre da vida que ensina a viver e morrer santamente, escrito pelo dominicano português João Franco, em 1731, a partir das representações dos pecados capitais que apresenta, das recomendações que faz para combatê-los e dos "remédios" que propõe para a salvação das almas. A análise considera, ainda, as estratégias discursivas empregadas pelo célebre pregador para promover a interiorização da culpa e o arrependimento nos leitores católicos. Com o intuito de evidenciar a circulação e a difusão de percepções sobre pecado e culpa e, sobretudo, sobre a salvação das almas na primeira metade do século XVIII, as orientações divulgadas no Mestre da vida são cotejadas com as imagens sobre as penas que os pecadores sofreriam no inferno, que ilustram a obra Desengano dos pecadores, escrita em 1724, pelo padre jesuíta Alexandre Perier.

pecados capitais; salvação; inferno; culpa; manuais de devoção.

deadly sins; salvation; Hell; guilt; devotion manuals.


In this article, we analyze the devotion manual Mestre da vida que ensina a viver e morrer santamente, (Master of Life that Teaches How to Saintly Live and Die), written in 1731 by the Portuguese Dominican João Franco. The analysis focus on the representations of the deadly sins, the advice to combat them, and the "remedies" suggested for the salvation of souls. It also approaches the discursive strategies employed by the celebrated preacher to promote repentance and internalization of guilt in Catholic readers. To highlight the circulation and diffusion of perceptions of sin and guilt and, above all, on the salvation of souls in the first half of the eighteenth century, the guidance offered in Mestre da vida is compared to images of the punishment suffered by sinners in Hell, which illustrate the work Desengano dos pecadores (Sinners Disillusion), written in 1724 by Jesuit priest Alexandre Perier.


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    1 JULIA, Dominique. Leituras e Contra-Reforma. In: CHARTIER, Roger; CAVALLO, Guglielmo. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1999. p. 79-116, p. 66; CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Brasília: Ed. UnB, 1994. p. 98.
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    2 A historiadora Lúcia Bastos das Neves destacou que o comércio de livros no Brasil era bastante promissor, sendo "os livros de religião os que mais se vendiam". Entre o final do século XVIII e início do XIX, muitos livreiros franceses atuavam em Portugal e atendiam aos interesses de particulares e negociantes no Brasil que, por encomenda, requeriam livros. A autora examinou documentação "pertinente ao assunto" como "as licenças concedidas pela Mesa do Desembargo do Paço no Rio de Janeiro aos requerimentos feitos pelos livreiros para desembaraçar seus livros nas Alfândegas, os pareceres emitidos pelos censores régios, os pedidos de diversos livreiros radicados em Lisboa para despachar livros para as principais cidades do Brasil, constante da documentação da (...) Real Mesa Censória, em Portugal". O português João Roberto Bourgeois desembarcou no Rio de Janeiro em 1782 e tornou-se um dos maiores editores no início do século seguinte, noticiando nos jornais da cidade as "obras novas" presentes na sua loja. Manteve ligações, "entre 1809 e 1811, com praças de Lisboa, Porto, Luanda e Londres; e, no Brasil, com São Paulo, Santos e Porto Alegre". NEVES, Lúcia Maria Bastos das. João Roberto Bourgeois e Paulo Martin: livreiros franceses no Rio de Janeiro, no início do oitocentos. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH-RJ, HISTÓRIA E BIOGRAFIAS, X, 2002, Rio de Janeiro. Anais Eletrônicos do X Encontro Regional de História - História e biografias. Rio de Janeiro: Uerj, 2002. p. 3.
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    3 RIBEIRO, Marília de Azambuja; SANTOS, Luísa. A livraria da Fazenda Santa Cruz. In: ENGEMANN, Carlos; AMANTINO, Marcia. Santa Cruz: de legado dos jesuítas a pérola da Coroa. Rio de Janeiro: Eduerj, 2013. p. 145-179.
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    4 RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do Além. A secularização da morte no Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. p. 63.
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    5 CASTRO (FRANCO), João de. Mestre da vida que ensina a viver e morrer santamente. Novamente correto por um religioso da ordem dos pregadores e oferecido à Virgem Santíssima do Rosário por mãos da sua prodigiosa imagem que se venera na vila do Barreiro. Nova edição. Lisboa: Editores Rolland & Semiond, 1882. Publicado desde 1731, alcançou a vigésima edição ainda no século XVIII, em 1762. RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do Além, op. cit. p. 63. A primeira edição foi publicada em Lisboa pela oficina Augustiniana. SILVA, Innocêncio. Dicionario bibliographico portuguez. Estudos de Innocencio Francisco da Silva aplicáveis a Portugal e ao Brasil. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859. T. III, p. 378. Este manual, publicado sob o formato "de livro de bolso", foi, certamente, muito mais acessível, por ser menos caro. De acordo com a historiadora Ana Cristina Araújo, o sucesso editorial que a obra obteve em Portugal, no século XVIII, superou as expectativas. A justificativa para as inúmeras reimpressões pode estar na "virtude da obra", na "fama" e no "carisma do seu autor" que era um "pregador célebre". ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações, 1700-1830. Lisboa: Editorial Notícias, 1997. p. 164. Sua reimpressão por mais de 150 anos atendeu aos interesses da Igreja que, no século XIX, reafirmava seu discurso de autoridade sobre as práticas de leitura. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Ed. Unesp, 1999. p. 112-113.
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    6 É possível que na edição de 1882 que consultamos os editores tenham confundido João Franco com João Baptista de Castro, daí o nome João de Castro. Todas as referências que encontramos ao autor de Mestre da vida, tanto em bibliotecas ibéricas, quanto em textos historiográficos ou literários, assinalam o nome João Franco, para as edições do século XVIII. Então, por que a edição de 1882 assinala a autoria a João de Castro? Seria um equívoco, e neste caso, o João de Castro referenciado teria sido confundido com João Baptista de Castro? Esta é uma hipótese plausível, na medida em que, de acordo com o Dicionario bibliographico portuguez, de 1859, João Baptista de Castro (1700-1775) era padre, presbítero secular, beneficiado na Santa Igreja Patriarcal de Lisboa, vivendo por algum tempo em Roma. João Franco também era um religioso português, dominicano que teria professado a regra em 1704, tendo sido prior no Convento de Lisboa. O Dicionario aponta que Franco "vivia ainda em 1759", desconhecendo as datas de nascimento e morte. SILVA, Innocêncio. Dicionario bibliographico portuguez, op. cit. p.378. Portanto, além de serem contemporâneos um ao outro, ambos eram conterrâneos, religiosos e escritores que gozavam de prestígio e amplo reconhecimento do público letrado, católico e ilustrado da época. É possível, então, que no final do século XIX os nomes tenham sido confundidos. Feitas estas observações, cabe ressaltar que neste artigo utilizaremos a referência a "João Franco", embora o documento consultado assinale "João de Castro". SILVA, Innocêncio. Dicionario bibliographico portuguez, op. cit. Tomo III, p. 301, 378.
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    7 O exemplar do manual aqui analisado se encontra no acervo do Memorial Jesuíta da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), RS. O exemplar utilizado neste artigo não informa o número da edição, possivelmente desconhecida pela oficina gráfica que o imprimiu. Esta observação torna-se mais bem fundamentada quando verificamos o relato do Dicionário bibliográfico que, ao enfatizar o sucesso editorial do manual, destacou existir continuamente a reprodução de "edições sucessivas, cuja enumeração, aliás, difícil de apurar, omito por desnecessária". SILVA, Innocêncio. Dicionario bibliographico portuguez, op. cit. Tomo III, p. 379.
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    8 RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do Além, op. cit. p. 63.
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    9 A obra aqui citada data de 1724 e traz 14 discursos, resultado de suas atividades missionárias no Brasil, e se apresenta com a intenção de mostrar aos leitores os "tormentos" que perturbam o ser humano para, de alguma forma, afastá-los de seus vícios. Uma breve interpretação sobre essa obra, na sua terceira edição, de 1735, pode ser conferida no texto de STRIEDER, Inacio. Desengano dos pecadores, uma crítica social de 1735. Disponível em: <www.recantodasletras.com.br/artigos/2338332>. Acesso em: 24 mar. 2012. Interessante observar o parecer que frei Joaquim de Santa Ana e Silva, censor da Real Mesa Censória, emitiu sobre o livro, em 1771, e que apresenta uma perspectiva mais racional e cética: "Grande parte da obra é consagrada a descrever as penas infernais, com o fim de inspirar o temor no leitor. Um conjunto de estampas medonhas procurava aterrorizar o fiel, incutindo-lhe o medo do inferno. Neste caso, o parecer do censor revelou uma perspectiva que conciliava um propósito reformador, moderno, avesso às superstições e aos fanatismos, com a preocupação sobre os efeitos das leituras diferenciadas que os leitores fariam dessas mesmas imagens. Ou seja, segundo frei Joaquim, enquanto 'o iletrado iria morrer de medo, o que podia despertar nele o fanatismo, o letrado consideraria tudo ridículo, o que conduziria ao ruir dos fundamentos da religião cristã'." Instituto de Investigação Científica Tropical, 2009. Disponível em: <www2.iict.pt/index.php?idc=6&idi=15185>. Acesso em: 24 mar. 2012. O Dicionario bibliographico portuguez faz uma citação da referência completa da obra e nos dá indícios da sua recepção: "Desengano de Peccadores, necessario a todo o genero de pessoas, utilissimo aos missionarios, e aos pregadores desenganados, que só desejam a salvação das almas. Composto em discursos morais. Roma na Off. De Antonio Rossi, 1724, 4o de XXX, 439 pág. A obra foi tão bem acolhida naquele tempo que teve logo uma segunda edição em Lisboa! Conquanto se não recomende pelo estilo, nem pela perspicuidade e pureza da linguagem, é todavia estimada de alguns (isto é, a edição romana) pelas quinze sofríveis gravuras que a acompanham, nas quais por modo esquisito se retratam os tormentos que no inferno padecem os condenados". SILVA, Innocêncio. Dicionario bibliographico portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858. Tomo I, p. 39. Nota-se que, embora não recomendada por religiosos, a obra foi bem aceita pelo público leitor, talvez curioso para tomar contato com as imagens do inferno.
  • 10
    10 Padre jesuíta que atuou como missionário no Nordeste brasileiro entre o final do século XVII e início do século XVIII. Innocencio Francisco da Silva, autor do Dicionario bibliographico portuguez, refere-se a Alexandre Perier como um padre jesuíta, de nacionalidade desconhecida, que "por mais de trinta anos (segundo ele diz) missionou no Estado do Brasil". Desconhecendo as datas de nascimento e morte, o Dicionario assinala que "vivia em Roma a 14 de outubro de 1724", pois nesse dia assinou a dedicatória da sua obra, Desengano dos pecadores, ao cardeal Nuno da Cunha d'Ataíde. SILVA, Innocencio. Dicionario bibliographico portuguez, op. cit. Tomo I, p. 39.
  • 11
    11 CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro e ler romances na época moderna, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. p. 98.
  • 12
    12 ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa, op. cit. p. 147.
  • 13
    13 Ibid, p. 148.
  • 14
    14 Ibid., p. 149.
  • 15
    15 Ibid., p. 152.
  • 16
    16 SILVA, Innocêncio. Dicionario bibliographico portuguez, op. cit. Tomo III, p. 378.
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    17 ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa, op. cit. p. 209.
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    18 É possível, aqui, estabelecer um paralelo com a análise que o historiador Alain Corbin faz em relação ao gosto humano pela praia em sua obra Território do vazio. CORBIN, Alain. Território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. As pinturas dos artistas mudavam à medida que a visão e o gosto em relação à praia alteravam-se e o mar ganhava uma conotação positiva de prazer, lazer e descanso no século XVIII. Do mesmo modo, pode-se dizer que as percepções dos tormentos do Inferno podem ter se alterado a ponto de a sensibilidade religiosa da segunda metade do século XVIII - ou ao menos a dos grupos que representavam os censores - não mais aceitar aquelas representações, repulsando as imagens aterradoras dos sofrimentos da alma no Inferno.
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    19 ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa, op. cit. p. 156.
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    20 Todas as imagens ilustram demônios, em maior ou menor proporção, com feições humanas e características animalescas, e o pecador, com expressões de angústia, medo ou desespero, sendo torturado com instrumentos cortantes ou perfuradores ou ainda por animais. Na época moderna, os homens atribuíam aos animais os impulsos que mais temiam em si mesmos, como a ferocidade, a gula e a sexualidade. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 48, apud FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Sentir, adoecer e morrer: sensibilidade e devoção no discurso missionário jesuítico do século XVII. Tese (doutorado em história) - Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1999. p. 35.
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    21 ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa, op. cit. p. 156.
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    22
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    23 PERIER, Alexandre. Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma: Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 1724. p. 24, apud ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa, op. cit. p. 158.
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    24 Segundo Delumeau, o Juízo Final e a possibilidade de a alma ser condenada ao inferno foram, muitas vezes, representados por pinturas que destacavam as cores vermelho e preto, fogo e serpentes gigantes, causando uma "temível espera" nos vivos. DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos XIII-XVIII). Bauru: Edusc, 2003. p. 334.
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    25 O início do século XIX foi de intensas práticas editoriais no Brasil que, conforme Lúcia Neves, contava com um ávido público consumidor, ao contrário do "que reconhece a historiografia tradicional, baseada exclusivamente em relatos de viajantes". Tal público era "formado por uma elite educada, com certeza, sob as mitigadas Luzes portuguesas, que crescera bastante com a transferência da Corte para o Brasil, mas cuja autonomia intelectual mostra-se bem mais difícil de avaliar". No Rio de Janeiro, na conjuntura do processo de independência do Brasil, já existiam nove livreiros especializados, de tal modo que "o gosto pelos livros intensificou-se, havendo uma diversificação das obras que aqui eram introduzidas". NEVES, Lúcia Maria Bastos das. João Roberto Bourgeois e Paulo Martin, op. cit. p. 10.
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    26 CORBIN, Alain. A influência da religião. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges (Org.). História do corpo: da Revolução à Grande Guerra. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 57-100, p. 57.
  • 27
    27 Ibid., p. 60.
  • 28
    28 PRADO FILHO, Kleber. Uma genealogia das práticas de confissão no Ocidente. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (Org.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 139-146, p. 139.
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    29 FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France, 1979-1980: excertos. Organização de Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social; Rio de Janeiro: Achiamé, 2011. p. 168.
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    30 Interessante perceber que, nos setecentos, os missionários jesuítas, em seu trabalho de evangelização na América, procuraram difundir formas de "bien morir" entre os indígenas guaranis concentrados nas reduções que ergueram na região platina. Segundo a historiadora Eliane Fleck, esta "boa morte" estava vinculada à necessidade da administração dos sacramentos do batismo, da confissão, da extrema-unção e do viático, fundamentais para amenizar o medo da morte e a ameaça da não salvação. Entre o século XVII e o XVIII, a Igreja se empenhou em perpetuar o medo, que pode ser definido como "uma emoção, uma afeição negativa, acompanhada de sofrimento e engendrada por alguma coisa ligada ao futuro, ao que vai acontecer e ao que pode acontecer. Sentir medo é um desconforto em relação à ideia de sofrimento futuro, de um sentimento negativo futuro. WOLFF, Francis. Devemos temer a morte? In: NOVAES, Adauto. Ensaios sobre o medo. São Paulo: Editora Senac, 2007. p. 17-38, p. 19-20. Portanto, neste período, o discurso eclesiástico recomendava a recorrência aos sacramentos que absolveriam o pecador trazendo-lhe o perdão, pois "morrer pecador significava ir para o Inferno, onde a alma sofreria eternos suplícios", e "morrer sem estar em pecado mortal facilitava a ajuda dos santos e do anjo da guarda na salvação da alma". FLECK, Eliane. Sentir, adoecer e morrer, op. cit. p. 280. Tal discurso pode ser compreendido também a partir da consideração de que, no Cristianismo, "tradicionalmente, a esperança cristã mais intensa estava na sobrevivência depois da morte e na recompensa celeste pelos méritos acumulados durante a vida", de tal modo que "simetricamente, o demérito acarretava a punição no inferno". ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan. Dicionário das religiões. Tradução de Ivone Benedetti. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 127.
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    31 Ao final do livro de Alexandre Perier, encontra-se um "Índice das cousas mais notáveis". Entre os conceitos apresentados está o de "consciência". Para ele, a consciência seria "um ditame da razão, um juízo prático, por meio do qual o homem discerne o bem do mal, e conhece o que deve seguir ou fugir. Basta ser homem racional para sentir em si complacência em obrando bem, e tristeza e medo, em tendo obrado mal". PERIER, Alexandre. Desengano dos pecadores, op. cit.
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    32 Outro manual religioso - de confissão - que, assim como Mestre da vida, circulou entre os séculos XVIII e XIX é o do espanhol Manuel de Arceniaga, intitulado Método practico de hacer fructuosamente confesion general de muchos anos, útil para confesores, y penitentes por quanto se proponen, y resuelven los casos mas frequentes que llegan al confesonario. 3. impr. Madri: Imprenta de Ramon Ruiz, 1894. A historiadora Mary Del Priore se valeu desse manual para demonstrar a condenação do aborto pela Igreja Católica, as punições que eram aplicadas aos praticantes - que previam penitências que se estendiam por até cinco anos - e a recepção dessas teses moralistas cristãs através de manuais como este que data de 1724. PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. p. 297, 342.
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    33 O século XVIII despontou, em Portugal, como de inúmeras possibilidades de leitura e de intensas relações entre Igreja e Estado. D. João V (1706-1750) assinou concordata com o Papa Bento XIV (1740-1758), o qual lhe concedeu o título de Rei Fidelíssimo. Ainda sob seu reinado, foi fundada a Academia Real de Biblioteca Portuguesa, cujos membros publicaram obras de memórias, dicionários, história, geografia e ciências.
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    34 CHARTIER, Roger. Do palco à página, op. cit. p. 108.
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    35 Segundo Chartier, a leitura "intensiva" seria aplicada até meados do século XVIII. A partir daí, surgiria o leitor "extensivo", que lia muitos textos, com rapidez, numa leitura "livre, individual e irreverente" e, raramente, os retomava. Ibid. No caso do manual, por ser obra voltada para a conversão, para o estudo e a meditação, muito provavelmente, sua leitura haveria de continuar sendo "intensiva".
  • 36
    36 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. As artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 269-270, grifo nosso.
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    37 Ibid.
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    38 Reflexões a partir do texto de CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, op. cit. p. 262-273; e de CHARTIER, Roger; CAVALLO, Guiglielmo (Org.). História da leitura no mundo ocidental, op. cit. p. 5, 6.
  • 39
    39 As sensibilidades são "práticas situadas em jogos de relações sociais e negociações de poder", portanto, não são apenas experiências internas, subjetivas e privadas, mas também discursos emotivos com efeitos externos, traduzidos e evidenciados materialmente a partir da reação que provocam nos sujeitos. FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Cartografia da sensibilidade: a arte de viver no campo do outro (Brasil, séculos XVI e XVII). In: ERTZOGUE, Mariana; PARENTE, Temis (Org.). História e sensibilidade. Brasília: Paralelo 15, 2006. p. 217-248, 218-219.
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    40 FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. "A Vossa graça nos nossos sentimentos": a devoção à Virgem como garantia da salvação das almas em um manual de devoção do século XVIII. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 32, n. 63, p. 83-118, jan./jun. 2012.
  • 41
    41 DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit.
  • 42
    42 LOPES, Bárbara Macagnan. A confissão e os pecados capitais no Portugal do fim do século XV ao início do XVI. Revista Historiador, ano 3, n. 1, p. 123, jul. 2010. Disponível em: <www.historialivre.com/revistahistoriador>. Acesso em: 22 mar. 2012.
  • 43
    43O sacramento da penitência implica o arrependimento dos fiéis diante dos pecados cometidos, podendo se manifestar internamente, através da dor sentida ou, externamente, mediante a aplicação de castigos ao corpo ou de privações, como jejuns.
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    44 DUBY, Georges. Eva e os padres: damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 19.
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    45 Manuais de confissão tiveram longa duração na história da Igreja, como nos mostram ROUILLARD, Philippe. História da penitência: das origens aos nossos dias. São Paulo: Paulus, 1999. p. 69; e DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 385.
  • 46
    46DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 381. Foi no período medieval que se fixou o setenário dos pecados capitais. A literatura espiritual utilizará esse número, destacando as sete obras de misericórdia, os setes salmos da penitência, as sete horas canônicas etc. Na literatura, o sangue divino das sete chagas lavaria os sete pecados. Na arte, as sete dores da Virgem apagariam os sete pecados capitais. Ibid., p. 366. Sobre a devoção à Virgem como recurso cristão salvacionista, ver FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. "A Vossa graça nos nossos sentimentos", op. cit.
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    47 FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Almas em busca de salvação: sensibilidade barroca no discurso jesuítico (século XVII). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 48, p. 255-300, 2004. Eliane Fleck constatou que os missionários jesuítas incutiam medo e horror nos nativos, com visões aterradoras do Inferno, capazes de ocasionar "a internalização da permanente ameaça de experimentá-lo concretamente". De acordo com os relatos dos missionários, a internalização da noção de pecado e de culpa pelos indígenas ficava atestada nas penitências, flagelações e confissões, procedimentos que pareciam confirmar seu arrependimento e a busca pela salvação FLECK, Eliane Cristina Deckmann. O domínio das almas e o controle dos corpos, Revista Universum, n. 22, v. 2, p. 70-87, 2007; e FLECK, Eliane. Sentir, adoecer e morrer, op. cit. p. 255-256.
  • 48
    48 Existem diferentes classificações e interpretações sobre os sete pecados capitais. Segundo Thais Succi, "na Bíblia, os pecados capitais são: soberba, avareza, luxúria, ira, intemperança, inveja, acídia. (...) De acordo com a Suma Teológica de Tomás de Aquino, os sete seriam: vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Para outros teóricos do pecado, a soberba é tomada pela vaidade, a gula pela intemperança e a preguiça pela acídia. Encontramos também, em outras obras, a concomitância de duas ou mais denominações para o mesmo pecado, como é o caso da vaidade e da soberba; ou pecados que seriam normalmente derivados, considerados capitais." SUCCI, Thais Marini. Os provérbios relativos aos sete pecados capitais. Dissertação (mestrado em estudos linguísticos) - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", São Paulo, 2006. p. 68. Ver também DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 358-366. Os pecados capitais trazidos pelo manual Mestre da vida condizem com os adotados pelo Catecismo da Igreja Católica atualmente.
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    49 Entre o século XV e o XVI, os pecados capitais serviram de inspiração para o artista Jerônimo Bosch, que buscou cenas da vida cotidiana e compôs suas obras com imagens que representavam os homens no auge de seus vícios e temores. SEBASTIÁN, Santiago. La iconografía del pecado. In: LOZANO, José et al. Pecado, poder y sociedad en la historia. Valladolid: Instituto de Historia Simancas, 1992. p. 63-104, p. 74. Os sete pecados capitais também estiveram presentes na obra de Dante Alighieri (1265-1321), Divina comédia, um clássico poema da literatura italiana, escrito no século XIV, que se divide em três partes, Inferno, Purgatório e Paraíso.
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    50 SEBASTIÁN, Santiago. La iconografía del pecado, op. cit. p. 66.
  • 51
    51 FLECK, Eliane. Almas em busca de salvação, op. cit.
  • 52
    52 DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 357.
  • 53
    52 Ibid., p. 358
  • 54
    54 SEBASTIÁN, Santiago. La iconografía del pecado, op. cit. p. 94.
  • 55
    55 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 13.
  • 56
    56 RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do Além, op. cit. p. 65.
  • 57
    57 SEBASTIÁN, Santiago. La iconografía del pecado, op. cit. p. 68.
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    58 A menção que João Franco faz aos "remédios" contra os pecados já era feita por outros escritores, desde o período medieval, como se constata em Libro del buen amor, de Juan Ruiz (1284-1351), que indicava remédios para os pecados através do método da contraposição. SEBASTIÁN, Santiago. La iconografía del pecado, op. cit. p. 68.
  • 59
    59 O padre Luís de Granada, também dominicano, autor de - entre outras obras - "Compêndio da doutrina Cristã" e "Guia de pecadores, e exortação à virtude", parece ter sido bastante admirado por João Franco, pois o Dicionario bibliographico portuguez, do final do século XIX, traz suas impressões sobre Granada. Esse padre nasceu na Espanha em 1504, passando a maior parte de sua vida em Portugal, local de sua morte em 1588, a tal ponto de Franco destacar: "Podemos chamar-lhe nosso, porque entre nós viveu, ensinou e morreu". SILVA, Innocencio. Dicionario Bibliographico Portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1860. Tomo V, p. 296. Jean Delumeau faz várias referências ao padre Luís de Granada em sua obra O pecado e o medo, v. II, especialmente no capítulo 15, "Pecado e pecados".
  • 60
    60 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 93
  • 61
    61 SEBASTIÁN, Santiago. La iconografía del pecado, op. cit. p. 68. Essa luta do bem contra o mal, da virtude contra o pecado, parece ser anterior à Idade Média, tanto que, já no século IV, o poeta espanhol Prudencio Clemente escreveu o poema que transcrevemos, fazendo um contraponto entre as virtudes e os pecados ou vícios: Fe contra Idolatría / Castidad contra Lujuria / Paciencia contra Ira / Humildad contra Soberbia / Sobriedad contra Molicie o Lascivia / Caridad contra Avaricia /Concordia contra Discordia Apud SEBASTIÁN, Santiago. La iconografía del pecado, op. cit. p. 67.
  • 62
    62 Apud DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 212.
  • 63
    63 FRANCO, João. Mestre da Vida, op. cit. p. 92
  • 64
    64 NUNES, Rossana Agostinho. Nas sombras da libertinagem: Francisco de Mello Franco (1757-1822) entre luzes e censura no mundo luso-brasileiro. Dissertação (mestrado em história) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. p. 138.
  • 65
    65 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 93.
  • 66
    66 ARIÈS, Philippe. O homem perante a morte. 2. ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 2000 (1977). v. 1, p. 158.
  • 67
    67 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 94.
  • 68
    68FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. p. 25.
  • 69
    69 O corpo, enquanto "prisão da alma", facilmente ofende e comete "atos criminosos". Porém, "devido a sua verdadeira natureza (sendo imperfeito, até bestial) ele pode, parodoxalmente, ser prontamente desculpado (a fraqueza da carne)". Estas percepções das responsabilidades da mente e do corpo não se alteraram muito até o século XIX. PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992. p. 291-326, 304, 305.
  • 70
    70 LOPES, Bárbara. A confissão e os pecados capitais no Portugal do fim do século XV ao início do XVI, op. cit. p. 128.
  • 71
    71 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 (1986). p. 86.
  • 72
    72 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade, op. cit. p. 25.
  • 73
    73 CARNEIRO, Henrique. Amor, sexo e moral médico-clerical na Época Moderna. Revista História, São Paulo, n. 132, p. 29-42, p. 39, jun. 1995.
  • 74
    74 PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo, op. cit. p. 180-181.
  • 75
    75 Cabe lembrar que no século XVI havia todo um "esforço de modificação de condutas morais e sensibilidades", a "educação do corpo era (...) um meio de educar a alma", pois "a exposição dos corpos não somente era inadmissível, do ponto de vista moral, como também era inadequada à civilização do espírito". FLECK, Eliane. Almas em busca de salvação, op. cit. p. 262.
  • 76
    76 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 94.
  • 77
    77 Lucas 10: 19, Disponível em: <www.bibliaon.com/versiculo/lucas_10_19/>. Acesso em: 23 jan. 2013.
  • 78
    78 DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 471.
  • 79
    79 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 96.
  • 80
    80 PERIER, Alexandre. Desengano dos pecadores, op. cit. p. 343.
  • 81
    81 SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a terra de Santa Cruz, op. cit. p. 87.
  • 82
    82 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 95.
  • 83
    83 LONDOÑO, Fernando Torres. Sob a autoridade do pastor e a sujeição da escrita: os bispos do sudeste do Brasil do século XVIII na documentação pastoral. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 36, p. 161-188, p. 172, 2002.
  • 84
    84 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 96.
  • 85
    85 Ibid., p. 97.
  • 86
    86 CARNEIRO, Henrique. Bebida, abstinência e temperança na história antiga e moderna. São Paulo: Senac, 2010. p. 194.
  • 87
    87 RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do Além, op. cit. p. 51.
  • 88
    88 CARNEIRO, Henrique. Bebida, abstinência e temperança na história antiga e moderna, op. cit. p. 168.
  • 89
    89 SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Conquista e colonização da América portuguesa - O Brasil Colônia, 1500/1750. In: LYNHARES, Maria Yeda et al. (Org.). História geral do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990. p. 33-94, 72-73.
  • 90
    90 PRIORE, Mary Del. Festas e utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 67-69.
  • 91
    91 Neste caso, a oração e a meditação sobre as benesses do Céu e os malefícios do inferno propostas por Franco, em 1731, podem ser comparadas aos Exercícios espirituais adotados pelos jesuítas desde o século XVI, e "que induziam o praticante das meditações a experimentar visões e sensações que materializavam o céu e o inferno". FLECK, Eliane. O domínio das almas, op. cit. p.77.
  • 92
    92 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 98.
  • 93
    93 SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a terra de Santa Cruz, op. cit. p. 340.
  • 94
    94 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p.99.
  • 95
    95Esta percepção repercutiu de forma significativa na produção historiográfica e literária brasileira, como se constata na obra de Paulo Prado, Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, escrita na década de 1920, na qual o escritor endossava a ideia de que os nativos sul-americanos passavam muito tempo deitados em redes e eram indolentes. SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a terra de Santa Cruz, op. cit. p. 87.
  • 96
    96 A representação do Inferno - rico em suplícios - traduzia o medo do Além e de uma eternidade infeliz. ARIÈS, Philippe. O homem perante a morte, op. cit. p. 118, 123, 133.
  • 97
    97 PERIER, Alexandre. Desengano dos pecadores, op. cit. p. 45.
  • 98
    98 Segundo Delumeau, "os teólogos ensinavam que os demônios e feiticeiros se tornavam (...) 'carrascos' do Altíssimo e os agentes de sua justiça". Deus utilizaria os demônios como executantes de sua justiça. Na mentalidade ocidental, a relação existente entre crime e castigo divino reforçava a ideia do Deus terrível, da divindade que pune os homens culpados. Vingar-se, nesta perspectiva, era algo considerado justo porque atributo da natureza divina. DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 201, 335-336.
  • 99
    99 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural, op. cit. p. 45 apud FLECK, Eliane. Sentir, adoecer e morrer, op. cit.
  • 100
    100 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 86-87. 99 Tanto as instruções de condutas chamadas de "remédios espirituais", quanto as próprias "fórmulas" de orações apresentadas são indícios de que o autor previa um retorno do leitor ao texto. O manual, certamente, não se destinava à produção de sentido a partir de uma única leitura, mas também podia ganhar novos significados com a "releitura" e a repetição das fórmulas. CHARTIER, Roger. Do palco à página, op. cit. p. 102.
  • 101
    101 Numa das obras religiosas analisadas por Cláudia Rodrigues, intitulada Brados do pastor às suas ovelhas (1731), alertava-se para o "arrependimento das próprias culpas ainda em vida". RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do Além, op. cit. p. 68. Ao avaliar as manifestações de sensibilidade religiosa nas reduções jesuíticas da Província do Paraguai, no século XVII, Eliane Fleck concluiu que a interiorização do sentimento de culpa pelos indígenas ocorreu simultaneamente à valorização de sensibilidades que exteriorizassem sentimentos de humanidade, piedade, compaixão sensível, bondade e benevolência. FLECK, Eliane. Sentir, adoecer e morrer, op. cit. p. 283. Interiorizar a culpa era reconhecer os pecados para deles, em vida, arrepender-se e deixar a possibilidade de salvação aberta a partir, por exemplo, de práticas piedosas de orações.
  • 102
    102 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p.88.
  • 103
    103 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 87, grifos nossos.
  • 104
    104 Note-se que, através da linguagem, João Franco convocava e mobilizava o fiel para, no momento da leitura, criar uma imagem insistente e obsessiva para "invadir" a alma, "ocupando o espírito, trabalhando o sentido, os sentidos, prestes a cruzar as fronteiras do interior e do exterior, transformando-se em visão ou alucinação". CHARTIER, Roger. Do palco à página, op. cit. p. 100. Essa reflexão sobre os pecados cometidos estava presente também nos Exercícios espirituais, redigidos por santo Inácio de Loyola, no século XVI. Especialmente no quinto exercício, Loyola estimulava o conhecimento, a reflexão e o temor das penas do Inferno para que o cristão pudesse evitar cometer pecados, principalmente, os capitais.
  • 105
    105 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p.87, grifos nossos.
  • 106
    106 As descrições que o dominicano Franco faz dos tormentos demoníacos se aproximam das que o padre jesuíta Antônio Ruiz de Montoya faz na obra Conquista espiritual, de 1639, ao relatar que uma moça dada por morta teria visto "uma tropa de demônios muito feios" e "munidos (...) de garfos". MONTOYA, Antônio Ruiz de. Conquista espiritual. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985 (1639). p. 154 apud FLECK, Eliane. Sentir, adoecer e morrer, op. cit.
  • 107
    107 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 87-88, grifos nossos.
  • 108
    108 A oposição entre o Céu e o Inferno e entre a salvação e a condenação foi recurso retórico e imagético muito utilizado para a conversão de pagãos e infiéis nos séculos XVI e XVII, como se constata nas gravuras de Pellerin, analisadas por Vovelle. Uma delas, que retrata o tema "Espelho do pecador", apresenta dois corações, o "do cristão que se deixa impregnar pela graça divina" e o "do pecador atacado pelo Maligno". VOVELLE, Michel. As almas do purgatório, ou, O trabalho de luto. Tradução de Aline Meyer e Roberto Cattani. São Paulo: Ed. Unesp, 2010. p. 223-224. Essa observação se torna importante para este artigo, na medida em que reforça a permanência da crença medieval na salvação e do medo da condenação no século XVIII. Jean Delumeau, ao referir-se ao exame de consciência recomendado por alguns pregadores do século XVIII, o definiu como um discurso eclesiástico que visava à "superculpabilização" dos fiéis. DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 186-187.
  • 109
    109 PRADO FILHO, Kleber. Uma genealogia das práticas de confissão no Ocidente, op. cit. p. 144.
  • 110
    110 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 88.
  • 111
    111 Ibid., p. 88-89, grifos nossos.
  • 112
    112 Ibid., p.89.
  • 113
    113 Ibid., p. 89, grifos nossos.
  • 114
    114 Ibid., p. 89.
  • 115
    115 Ibid., p. 89. Vale lembrar que, em meio às pestes que grassavam na França dos séculos XVII e XVIII, as pessoas se perguntavam: "de quem é a culpa?". A resposta apontava para a irritação de Deus, que decidira vingar-se contra "os pecados de uma população inteira". DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 201.
  • 116
    116 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 89-90. Michel Foucault, baseando-se nas ideias do cristão cartaginês Tertuliano (séculos II e III), expostas em sua obra A penitência, afirma que o cristão tinha dois caminhos a seguir: ou mostrar-se como pecador, "como alguém que, escolhendo o caminho do pecado, preferiu a imundície à pureza, a terra e a poeira em vez do céu, a pobreza espiritual aos tesouros do céu", ou, então, "expressar sua vontade de libertar-se desse mundo, de livrar-se de seu próprio corpo, de destruir sua própria carne e ter acesso a uma nova vida espiritual". FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos, op. cit. p. 173.
  • 117
    117 Também em relação a este recurso retórico empregado por Franco, constata-se grande semelhança com as adotadas pelos missionários jesuítas na conversão dos nativos americanos. Nas Cartas Ânuas enviadas ao Padre Geral da Companhia de Jesus, os padres relatam que "as aterradoras descrições dos demônios e do inferno" contrastavam com "as dos santos, dos anjos e do céu", que visavam a "transmitir a ideia de tranquilidade, beleza e harmonia, em situações que envolviam a absolvição dos pecados, o alcance (de alguma) cura ou a garantia da boa morte". FLECK, Eliane. O domínio das almas, op. cit. p. 80.
  • 118
    118 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 90, grifos nossos.
  • 119
    118 Ibid., p. 90.
  • 120
    120 Ibid., p. 92.
  • 121
    121 Ibid., p. 13.
  • 122
    122 Ibid, p. 15.
  • 123
    123 DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 15.
  • 124
    124 FRANCO, João. Mestre da vida, op. cit. p. 18.
  • 125
    125 Ibid., p. 19.
  • 126
    126 Ibid., p. 48.
  • 127
    127 Ibid., p. 27.
  • 128
    128 Ibid., p. 28-34.
  • 129
    129 No século XIX, houve uma defensiva das doutrinas oficiais da Igreja nos diversos ramos do conhecimento e do apostolado, bem como um remanejo das antigas ordens religiosas e na formação de novas ordens e congregações devotadas ao trabalho missionário. Pode-se dizer que a postura doutrinária da Santa Sé se consolidou com as encíclicas Quanta cura e Syllabus (1864) que condenavam os "erros modernos", como o racionalismo, o socialismo, o comunismo, a maçonaria, a separação entre Igreja e Estado, o liberalismo etc. Essa reforma na Igreja ficou conhecida também como ultramontanismo, na medida em que o mundo cristão católico seguiu as determinações papais de repúdio à civilização moderna. Desde então, os órgãos dirigentes da Igreja promoveram um culto à figura do papa, chegando a proclamar o dogma da infalibilidade papal no primeiro Concílio Vaticano (1870). MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira, 1890-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 18.
  • 130
    130 DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo, op. cit. p. 15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2013

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2013
  • Aceito
    20 Maio 2013
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