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O despertar de Orfeu: prazer e lazer dos trabalhadores de Macapá (1944-1964)

Resumos

Neste texto, objetivamos analisar a solidariedade constituída pelos trabalhadores de Macapá, nos momentos de prazer e diversão, entre os anos de 1944 e 1964. Argumentamos que esses momentos propiciaram à classe trabalhadora macapaense efêmeras experiências de emancipação das interdições impostas pelos precários meios de sobrevivência e pelas investidas moralizadoras do Estado e da Igreja.

Amazônia; cidade; classe trabalhadora; lazer; festa.


This article analyzes the solidarity built by Macapá's workers in their leisure time, between 1944 and 1964. We argue that such moments propitiated, to Macapá's working class, ephemeral emancipatory experiences from the limitations imposed by poverty and by State and the Church's moralizing campaigns.

Amazon; city; working class; leisure; feast.


Introdução: a regulação do gozo

Foi a partir da ideia de atraso regional que, no pós-1930, formulou-se para a Amazônia um projeto político de valorização econômica e de nacionalização do seu espaço.1 1 D'ARAÚJO, Maria Celina. Amazônia e desenvolvimento à luz das políticas governamentais: a experiência dos anos 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 19, p. 40, jun. 1992. Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, o Norte do Brasil era percebido por muitos políticos e intelectuais como uma região economicamente problemática. Na perspectiva do governo federal, urgia ocupar e valorizar o espaço amazônico para que ele, definitivamente, se integrasse ao restante do país - sobremodo aos centros hegemônicos. Em 1940, discursando aos comerciantes de Belém, Getúlio Vargas afirmou que:

o Pará, toda a Amazônia, não conseguiu adaptar os métodos de trabalho a essa renovação dos processos de aproveitamento dos recursos naturais. Não é momento de indagar as causas dêsse retardamento. Talvez a imprevidência, que La Fontaine simbolizou na fábula da cigarra e da formiga, tenha impedido que se aplicasse em obras duradouras, de técnica agrária e industrial, boa parte do abundante ouro extraído da floresta generosa.2

O atraso da Amazônia, segundo Vargas, possivelmente era resultado do predomínio de uma cultura baseada no gozo despreocupado e imprevidente do tempo e no uso oportunista dos recursos da floresta (aos moldes da cigarra descrita pela fábula referida).3 3 No Sudeste, a valorização do trabalho regular e a disciplinarização da vida de homens e mulheres entravam em choque com a chamada "cultura da malandragem" (TOTA, Antonio Pedro. Cultura, política e modernidade em Noel Rosa. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 3, p. 45-49, jul./set. 2001; e VASCONCELLOS, Gilberto; SUZUKI JÚNIOR, Matinas. A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (Dir.). História geral da civilização brasileira. Tomo III (O Brasil Republicano). São Paulo: Difel, 1984. v. 4, p. 501-523. Embasado em tais pressupostos, o primeiro governo territorial do Amapá tentou disciplinar o homem regional para que ele pudesse ajudar a alavancar o desenvolvimento do país. A criação do Território Federal do Amapá (em 13 de setembro de 1943) e a instalação nele do governo territorial (em 25 de janeiro de 1944) eram apresentadas como marcos inaugurais de um novo e auspicioso tempo na história dos habitantes da Guiana Brasileira.4 4 Após longo processo de debates políticos, o governo federal decidiu criar os territórios federais de Rio Branco, Guaporé, Ponta-Porã, Iguaçu e Amapá. Publicada em 13 de setembro de 1943, essa decisão se apoiava na Constituição de 1937, que definia os territórios como áreas diretamente administradas pelo governo federal (arts. 4o e 6o).

O primeiro governador do Amapá, Janary Gentil Nunes, tentou a todo custo difundir entre os trabalhadores uma narrativa histórica na qual a sua posse simbolizava o fim de um período de pessimismo, abandono, caos, atraso, doenças, analfabetismo, superstição, pobreza e invisibilidade. Segundo ele, iniciava então um luminoso momento de otimismo, patriotismo, progresso em todos os aspectos socioeconômicos.5 5 Como exemplo, destacamos um trecho do Editorial do número especial do jornal Amapá, de 25 de janeiro de 1952: "se o Amapá caminhou mais célere do que outros recantos do país, projetando-se em evidência no cenário econômico e social da Pátria, deve-se ao entrosamento produtivo entre o seu Governo e o seu povo, que sempre marcharam unidos na árdua e gloriosa missão de soerguimento do Território. Foi graças a essa coesão de ideais que nasceu e cresceu, florindo e frutificando, a mística do Amapá, tornando esta terra de heróis e de sofrimentos, numa das mais promissoras esperanças do Brasil atual" (OITO anos de batalha territorial [Editorial]. Amapá, n. 358, 25 jan. 1952. 1a secção, p. 1). A partir desse momento, nas escolas amapaenses, os alunos deveriam ser preparados para integrar o mundo da produção, através do qual se integrariam à própria sociedade. A disciplinarização dos corpos e mentes dos moradores de Macapá deveria levar ao direcionamento da maior parte de suas energias para o trabalho produtivo.6 6 Ver: LOBATO, Sidney da Silva. Educação na fronteira da modernização: a política educacional no Amapá (1944-1956). Belém: Paka-Tatu, 2009.

A criação de uma sociedade pautada na ética do trabalho era algo assumido como uma prioridade pelos janaristas. Segundo o delegado Flávio Maroja, o princípio constitucional de que o trabalho era um dever social foi "um lema que o Governador Janary firmou para os seus auxiliares" e ao qual ele próprio prestou "incondicional obediência". Por outro lado, Maroja, pressupondo que a ociosidade trazia sempre um risco para a sociedade (dada sua natureza criminógena), argumentou que o Amapá - onde a criminalidade não acompanhara o crescimento populacional -, ao invés de se tornar "um seio de Abraão para os ociosos", transformou-se em "uma organização social perfeita e ajustada".7 7 MAROJA, Flávio. O trabalho como fator do equilíbrio social. Amapá, n. 183, 13 set. 1948. p. 6. Em 1951, o advogado Aderbal Melo, ao analisar o crescimento do número de crimes praticados na cidade do Rio de Janeiro, sentenciou: "é a ociosidade a geradora da criminalidade". E acrescentou: "é dessa camada, sem o hábito da árdua batalha diuturna pelo pão sem nódoas em seu miolo, que promana o número sempre crescente dos piores facínoras (...)".8 8 MELO, Aderbal. A ociosidade e o crime. Amapá, n. 319, 21 abr. 1951. p. 6. A centralidade do trabalho no discurso hegemônico desdobrava-se na grande preocupação da classe dirigente com as horas de folga dos que cotidianamente laboravam pela sobrevivência.

Por outro lado, mais do que sobreviver, os sujeitos históricos aqui estudados queriam viver. A moralidade que supervalorizava o trabalho era altamente castradora, pois submetia o tempo livre aos imperativos da racionalidade técnica e da produtividade econômica. Por isso, o gozo do ócio (termo carregado de conotações negativas) causava grande preocupação nos grupos dirigentes. Para eles, tal gozo deveria ser: dosado, regulado e (mormente) policiado. Neste artigo, nos ocuparemos dos desejos, dos prazeres e dos sonhos dos moradores da capital do Amapá. Sonhos que levavam a excessos catárticos. Ressaltamos que a vibração onírica deve ser contabilizada pelo pesquisador preocupado em entender os aspectos latentes das experiências sociais. Nosso objetivo é analisar aquilo que a moral e a pobreza diariamente obstavam ou barravam e compreender as efêmeras experiências emancipatórias, ocorridas nos momentos de prazer e de lazer dos trabalhadores de Macapá.

O tempo do lazer

Macapá, no início de 1944, ganhou o status de capital (em detrimento da escolha inicial, que recaíra sobre a cidade de Amapá). Nesse momento, no entanto, ela era uma vila de algumas centenas de habitantes, abalada pela crise da borracha amazônica do início do século XX.9 9 LOMBAERDE, Padre Júlio Maria. Macapá: sua história desde a fundação até hoje. Macapá, 1987, p. 8. Mimeografado. As construções realizadas pelo governo territorial trouxeram novo fôlego para a combalida economia macapaense. Em números arredondados, Speridião Faissol nos fornece uma síntese do vertiginoso crescimento populacional macapaense neste contexto: "a população de Macapá, que em 1940 era de 2 mil habitantes, foi crescendo para 10 mil em 1950, 25 mil em 1960 e para os seus atuais [1964] 40 mil". Faissol afirma que esse "exagerado crescimento" derivou da criação do Território Federal do Amapá e das ações do governo federal na região. As novas condições de assistência e de vida existentes em Macapá foram o principal foco de atração das populações das ilhas paraenses vizinhas.10 10 FAISSOL, Speridião. Atlas do Amapá. Rio de Janeiro: Instituto Regional de Desenvolvimento do Amapá e Conselho Nacional de Geografia (IBGE), 1966. p. 26. Na verdade, Faissol sistematizou uma série de dados levantados por equipes de técnicos do Instituto Regional de Desenvolvimento do Amapá (Irda), do IBGE e do governo territorial do Amapá. Conforme um articulista da revista Icomi Notícias: "o 'Atlas do Amapá', trabalho realizado pelo Irda (entidade criada e mantida pela Icomi) em colaboração com o IBGE e técnicos do Território, foi resultado de um desses esforços de sistematização do conhecimento disperso que geralmente se tem sobre áreas e regiões brasileiras, com prejuízo para as atividades da Administração Pública e redução do interesse privado pela implantação de iniciativas de ordem econômica (...)" (ATLAS: Amapá de corpo inteiro. Icomi Notícias, n. 34, p. 6, mar./abr. 1967). Paraenses e nordestinos compuseram a maior parte da onda migratória que gerou esse boom populacional.

O crescimento de Macapá a partir de 1944 ensejou um aumento e uma diversificação das opções de lazer dos citadinos. Domingueiras matinais, animadas pelo jazz-band da Guarda Territorial, eram realizadas na Fortaleza de São José. Nas tardes de domingo, os trabalhadores podiam usufruir das festas ocorridas no salão de recepção do Macapá Hotel. Os cinemas da capital (o Cine-Teatro Territorial11 11 Segundo o articulista do jornal Amapá, o Cine Territorial de Macapá (que contava com 280 lugares) deveria propiciar não apenas o entretenimento: "é com alegria que observamos o operário, o agricultor, o criador, o comerciante, o escriturário, etc... nos seus 'bate-papos' cotidianos, aludindo ao filme e ao seu fundo moral ou social, elogiarem mais essa iniciativa que diverte e educa". Em 1946, o contrato assinado com a Twenty Century Fox garantiu a apresentação de filmes com longas metragens em Macapá. Nas quintas-feiras ocorriam sessões populares com ingressos custando Cr$ 3,00. As crianças tinham uma vesperal especial, desde que o filme não fosse considerado "impróprio e prejudicial aos bons costumes que, diariamente, vem aprendendo nas escolas" (Comentário da Semana [seção]. Amapá, n. 55, 6 abr. 1946. p. 2). e o Cine João XXIII12 12 Foi inaugurado pela Igreja em 1963 (INAUGURADO o cinema João XXIII. Amapá, n. 1210, 27 mar. 1963. p. 4). ) eram procurados por públicos de várias idades e preferências. A Rádio Difusora possuía um auditório onde se podia assistir, ao vivo e de graça, a programação dela, que incluía: performances ao piano, shows de calouros, programa infantil (A hora do guri) e outros... Essas eram as diversões da chamada Macapá moderna. Apesar de ficarem concentradas na área urbanizada da cidade, tais opções de lazer eram usufruídas pelos moradores de todos os bairros.13 13 DIVERSÕES. Amapá, n. 252, 7 jan. 1950. p. 3.

Muito populares eram os piqueniques e os banhos na orla do Amazonas. As "praias" de Macapá e de Fazendinha eram ocupadas por dezenas de banhistas nos dias quentes, especialmente nos finais de semana. Referindo-se à pequena praia situada junto à Fortaleza, o articulista do jornal Amapá destacou em 1950: "nas cheias da maré, fica literalmente tomada por banhistas que enchem a tepidez da manhã equatorial com o riso alegre de sua mocidade sadia, com disputa de 'páreos' em água e terra, não faltando o matraquear dos motores de popa que ziguezagueiam pelas redondezas".14 14 Ibid. A "maré convidativa" era a alta, quando as águas do "Rio mar" se avolumavam na beira e propiciavam um prazeroso alívio para o calor.15 15 Em depoimento prestado em setembro de 1949 para um inquérito policial, a paraense de 24 anos, Maria José Borges, disse que "estando a maré convidativa, [ela e Maria Santos] acertaram tomar um banho de praia, atrás da Fortaleza" (Arquivo do Fórum da Comarca de Macapá [doravante: AFCM]. Caixa 299, processo n. 348, de 22 de setembro de 1949, fl. 23). Balneários mais afastados do núcleo urbano eram os preferidos para a realização de bebedeiras e encontros amorosos. Em abril de 1952, Ocimar Melo e seus amigos, "a fim de tomar banho", foram a "uma praia existente para os lados do Beirol, a qual o povo denomina de 'Araxá', a fim de tomar banho", onde se excederam em "libações alcóolicas". 16 16 AFCM. Caixa 275, processo n. 649, de 18 de junho de 1952, fls. 6 e 10.

Nos anos 1960, um grande número de pessoas acorria à praia de Fazendinha, para aí se refrescar e divertir. Preocupados com os possíveis desvios morais, padres e policiais passaram a tentar trazer tais banhistas para a órbita do controle social. Em abril de 1963, o diretor da Divisão de Segurança e Guarda, Uadih Charone, "considerando as constantes comunicações chegadas à Chefia de Polícia com respeito a realização de farras e bacanais efetuados nas praias de Fazendinha, por banhistas inescrupulosos" e também "considerando a necessidade da imediata moralização naqueles locais", resolveu "proibir a realização de farras e bacanais nas praias de Fazendinha".17 17 DIVISÃO de Segurança e Guarda - Portaria nr. 144/63 - DSG. A Voz Católica, n. 185, 12 maio 1963. p. 4. A proibição não surtiu efeito (duradouro), pois, em outubro de 1964, um articulista do jornal A Voz Católica advertia: "um pouco mais de cuidado com a praia de Fazendinha". E explicava: "cuidado eu digo, para prevenir desatinos... físicos e morais".18 18 LUZ e sombras [seção]. A voz católica, n. 260, 19 out. 1964. p. 2. Além das praias, lagos e lagoas (um pouco ou muito distantes do centro urbano) também eram utilizados para banhos e passeios. Como os que ocorriam na Lagoa dos Índios e no Laguinho.19 19 Segundo processo criminal, em 9 de junho de 1957, Lucy Araujo e Raimunda Santana alugaram uma bicicleta e foram tomar banho na Lagoa dos Índios, área afastada da cidade e próxima da ponte "Santa Maria" (AFCM. Caixa 210, processo no 1241, de 26 de agosto de 1957, fl. 12). Num outro processo, Alexandra Ramos relatou que, em 26 de agosto de 1956, fora tomar "um banho num lago situado nas proximidades" de onde morava - o bairro do Laguinho (AFCM. Caixa 210, processo no 1191, de 17 de maio de 1957, fl. 7).

Os jogos de azar também eram um divertimento sempre associado a degenerescência moral. No dia 30 de abril de 1946 (véspera do Dia do Trabalho), o presidente Dutra, pelo Decreto no 9.215, proibiu a realização de jogos de azar em todo o território nacional. No jornal Amapá, de 4 de maio deste ano, lemos que, desde o início do governo de Janary, este "câncer maldito" já encontrava todas as portas fechadas nas terras amapaenses.20 20 PROIBIDA a prática e a exploração de jogos de azar em todo o território nacional. Amapá, n. 59, 4 maio 1946. p. 1. Já em 23 de junho de 1945, aquele mesmo semanário noticiava: "quando jogavam a dinheiro, no barracão onde residem, foram pilhados os operários Alcides Ribeiro, baiano, com 25 anos de idade; José Henrique da Silva, alagoano, com 19 anos de idade e José Barroso de Antunes, pernambucano, com 21 anos de idade".21 21 PRESOS em flagrante quando jogavam. Amapá, n. 14, 23 jun. 1945. Ocorrências policiais, p. 3. Os barracões governamentais que abrigavam operários (juntamente com os subúrbios) eram os principais focos da profilaxia moral promovida pela Polícia. Numa sentença de abril de 1948, o juiz Uriel Sales de Araujo destacou que "no caso concreto, havia o combate moralizador, por parte da polícia, a jogos proibidos e venda de bebidas alcoólicas no barracão onde residiam os operários empregados na construção do hospital desta cidade". Mas, vieram as resistências... Nesta mesma sentença lemos: "contra essa campanha louvavel, contra essa medida legal, rebelou-se o denunciado, elemento indesejavel". 22 22 Na assentada de testemunhas ocorrida em 5 de abril de 1948, o mestre de obras de 38 anos Julio B. de Araujo (natural do estado do Rio de Janeiro) disse que, após um tumulto no barracão, soube pelo próprio denunciado - conhecido como "Raimundo Pará" - "que este convidara Esmerido Silva Muniz e outros operários da referida construção para que, no dia que a Polícia comparecesse no barracão e suas proximidades fazendo investigações e busca no combate ao jogo e à venda de bebidas alcoólicas nos dias proibidos, eles corressem a Polícia a cacete; que, posteriormente, os operários que se tinham comprometido a fazer o que o denunciado mandara, retiraram seus compromissos e rebelaram-se contra a insistência do denunciado em vê-los arrebanhados para a prática da violência; que depois desse caso o denunciado abandonou o emprego e, passados mais ou menos dois meses, retirou-se para as ilhas do Estado do Pará" (AFCM. Caixa 227, processo no 85, de 15 de maio de 1946, fl. 32).

Os padres também estavam empenhados nessa cruzada contra a jogatina. Em abril de 1960, o clero local, através de seu semanário A Voz Católica, ressaltou que não condenava a todos os jogos indiscriminadamente. O articulista esclarecia: "jogar uma canastinha [sic], de noite, sem outro interesse que o de passar umas horas de lazer, com o único prejuízo do sono perdido, quem diz que é mal?". A Igreja condenava sim: o jogo a dinheiro. Isso porque, ainda segundo o referido jornal, o jogador inveterado não jantava mais em casa, saía do trabalho e ia direto para as casas de jogo, furtando-se ao convívio com esposa e filhos, o que resultava num afrouxamento dos laços familiares. A jogatina, assim, era vista como uma patologia social que obstava a formação de um trabalhador previdente e como um mal que corroía a suposta harmonia dos lares cristãos.23 23 PAI e jogador. A Voz Católica, n. 26, 24 abr. 1960. p. 4.

Algumas modalidades de lazer eram consideradas apanágio masculino. Era o caso do futebol. Esporte que era, de longe, o mais popular em Macapá. Por isso, merece ser objeto de estudos mais pormenorizados. Governo, Igreja, empresas e bairros criaram seus times. A hora do jogo oferecia uma oportunidade de constituição de novos laços de solidariedade. Era também um momento de revigoramento da camaradagem cultivada dentro dos mundos do trabalho. Mais do que nos campeonatos oficiais, isto ocorria durante as peladas. Como um pequeno carnaval, a pelada era um momento de suspensão momentânea das hierarquias sociais. Uma experiência genuinamente democrática, mais regida pelo companheirismo do que por rigorosas regras. A respeito de uma pelada que se realizava no campo do Aeroclube de Macapá, José Tostes escreveu em dezembro de 1957: "se alguém pensa que o Governador, chutando a bola, o servente, no arco, engole frango, está enganado... que o chefe da repartição não leva tranco do contínuo!... que ali há hierarquia!?". E prossegue: "nada disso!... O que há, ali, não é bem futebol... mas é pelada, no duro. O que há de verdade, ali, é puríssima democracia (...)".24 24 TOSTES, José Barroso. A pelada. Amapá, n. 887, 8 dez. 1957. p. 3. Nos descampados, praças e praias de Macapá, crianças e adultos entregavam-se a essa efêmera democracia futebolística.

Farras nos botequins

A paixão pelo futebol também se traduzia na adesão a este ou aquele time. As atuações das agremiações eram, frequentemente, tema das animadas e ruidosas conversas de botequim.25 25 Vejamos um exemplo. Num inquérito policial de setembro de 1946, o comerciante Francisco Serrano depôs que fora chamado pelo advogado Lauro Sodré Gomes "para uma reunião no botequim de João Vieira de Assis" e que, quando foi atender a tal chamado - na praça Capitão Assis de Vasconcelos -, avistou Sodré Gomes ansioso na calçada. Nesse momento, Serrano fora avisado pelo jogador apelidado "Labrione" de que, minutos antes, houvera naquele botequim uma discussão acerca de clubes de futebol, no meio da qual veio à baila o nome dele (Serrano). Este, para evitar incidentes, retornou a sua casa (AFCM. Caixa 224, processo no 1469, de 2 de outubro de 1946, fl. 12). Isso porque, à noite, a capital amapaense ganhava uma vibração nova. Não aquela dos músculos crispados no estafante labor diário. Era a vibração mais espontânea e emotiva dos bate-papos entre amigos, regados pelas libações alcoólicas. O rápido crescimento da urbe macapaense poderia ser bem representado pelo vigor de seus entretenimentos noturnos. O grande número de clubes e botequins existentes evidenciava uma pujante movimentação de amantes da boemia. É o que se depreende de vários relatos encontrados nos processos judiciais, como o do funcionário da mineradora Indústria e Comércio de Minérios S.A. (Icomi)26 26 A exploração pela Indústria e Comércio de Minérios S.A. (Icomi) - uma modesta firma constituída em Belo Horizonte, no ano de 1942 - das imensas jazidas de manganês do Amapá criou uma grande onda migratória para Macapá. A Icomi precisava de uma ampla infraestrutura para tornar possível a exploração e o escoamento da produção manganífera amapaense. Esta infraestrutura foi dividida em três seções: a) área de mineração (vila de Serra do Navio e área de extração); b) a ferrovia (que transportava o minério); c) e o Porto de Santana (distrito da capital, distante dela cerca de 20 km), onde terminava a ferrovia e de onde o minério saía, em navios, para o exterior. Abria-se, assim, no Amapá, uma ampla e diversificada frente de trabalho. Pedro Gomes (paraense de 25 anos), que, no dia 24 de agosto de 1957,

saiu de sua referida residência, por volta das vinte e uma horas e sabendo que realizava-se uma festa dançante de aniversário, no bairro do 'Trem', para ali se dirigiu, indo sozinho; que, imediatamente entrou na festa, pois tinha alguns conhecidos na mesma que facilitaram a entrada do declarante; que, entre esses amigos um deles tinha um litro de gim, tendo por isso o depoente tomado alguns goles com guaraná; que, em seguida passou a dançar, tendo conseguido uma namorada, ficando juntamente com ela até por volta [das] vinte quatro horas, saindo em seguida e casualmente passou em frente à sede do Latitude Zero e parou um pouco, não se demorando muito, porque nessa ocasião passou uma camionete da Icomi e o conduziu para a sede do Amapá Clube, onde mora conforme disse acima; que, sentindo fome o declarante foi até o Society Café e ao chegar encontrou-se com um seu conhecido que informou estar o seu colega de serviço, Manoel da Conceição, bastante alcoolizado e ter se dirigido para a piscina; que, imediatamente, dirigiu-se para a piscina, a fim de trazer o seu referido colega.27

Frustrando as investidas normalizadoras que a Icomi fazia no sentido de enquadrar sua "mão de obra" dentro das estreitas expectativas do capitalismo industrial, funcionários dessa empresa - como Pedro Gomes - usavam seus momentos de folga para se divertir em farras (que, em geral, combinavam o usufruto de bebidas alcoólicas e da prostituição) nos botequins de Macapá.28 28 PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. Mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de mineração industrial amazônica (1943-1964). Dissertação (mestrado em história) - Universidade de Campinas, Campinas, 2011. p. 103. Os divertimentos noturnos desta cidade suscitavam o despreocupado gozo do corpo, do tempo e da vontade. Três coisas que a disciplina capitalista cotidianamente teimava em tentar arrancar do controle dos homens. De modo subversivo e efêmero, as noitadas nos bares e lupanares propiciavam aos trabalhadores uma retomada do governo de si. Os "excessos" e o riso catártico rechaçavam a conduta regrada e o tom artificialmente sério das horas do trabalho e do dever. Bem compreendendo este antagonismo moral, em 1949, Álvaro da Cunha escreveu, no poema Noturno de Macapá, os seguintes versos: "ah! Boêmios! Essa reputação de moço sério,/ ou o esforço de manter tal atitude,/ como pesa, às vezes!/ Ver a vida passar todos os meses,/ com ela a juventude/ e o corpo a caminhar pro cemitério".29 29 CUNHA, Álvaro da. Noturno de Macapá. Amapá, n. 250, 24 dez. 1949. p. 3. Cunha nascera em 1923 e era belenense. Mudou-se para o Amapá em 1946. Publicou diversos poemas no jornal Amapá e na Revista do Amapá. Em 1952, com José Pereira da Costa e Marcílio Vianna, fundou a revista literária Latitude Zero. Janarista até o início da década de 1960, ele dirigiu por vários anos a assessoria técnica do governo territorial. No campo literário, publicou: Pássaros de chumbo (em 1951), Modernos poetas do Amapá (em 1960, com a colaboração de Ivo Torres e outros) e Amapacanto (1986). Ver: CUNHA, Álvaro da et al. Modernos poetas do Amapá. Rio de Janeiro: Lux, 1960. p. 71. A boemia possuía uma moral própria, contrária à limitação e à procrastinação do prazer - imperativos dos forjadores do cidadão-trabalhador. No escuro, nos lugares escondidos e afastados dos olhares era que o hedonismo poderia expandir-se. E, nos meios sérios, este somente poderia apresentar-se com licença poética.

Poetas boêmios recorrentemente queixavam-se da vida cotidiana - seara repleta de frustrações. Na poesia Cabaré da angústia (de 1956), o poeta paraense Georgenor Franco escrevia: "nos copos de cerveja que se esvaem/ há a tristeza de poetas líricos/ e a esperança de sonhos incompletos".30 30 FRANCO, Georgenor. Cabaré da angústia [que então compunha o livro inédito Poemas dentro da noite]. Amapá, n. 750, 5 jul. 1956. p. 2. Alegrias e tristezas encontravam grata acolhida nos botequins. Abafados nos ambientes sérios, os dramas pessoais podiam ser francamente expostos na mesa de bar. Aí, a solidariedade mais rapidamente se fortalecia e a camaradagem dos trabalhadores virava cumplicidade e amizade. O autor de Cabaré da angústia, ao tematizar "a esperança de sonhos incompletos", inspirara-se no então comentado poema Sermão da mágoa, de Arthur Neri Marinho. Nesta verdadeiramente bela composição, lemos: "meu coração é público, Senhores!/ é como o botequim dali da esquina,/ À turba não ilude/ sempre há de ter lugar aos sofredores". E mais adiante conclama: "entrai, ó legião de sofredores,/ neste templo onde o ódio não existe./ Entrai que a casa é grande e há hospedagem/ suficiente para a turba triste...".31 31 MARINHO, Arthur Neri. Sermão da mágoa. Amapá, n. 751, 8 jul. 1956. p. 4. Arthur Neri Marinho era chavense (nascido em 1923). Em 1946, começou a trabalhar no gabinete do governador do Amapá e foi diretor da Imprensa Oficial do Território. Seus escritos literários foram publicados em jornais e revistas amapaenses (por exemplo: na revista Rumo) e paraenses (por exemplo: na revista Amazônia). Cf.: Álvaro da et al. Modernos poetas do Amapá, op. cit. p. 37. O botequim era a antítese da racionalidade técnica. Aí o homem não precisava fingir ser uma máquina, ou um ser destituído de sentimentos. Aí ele poderia expor suas fraquezas e decepções, bem como ensaiar uma cura para os males d'alma.

A boemia concentrava-se e ganhava força na doca da Fortaleza. Esse lugar, durante o dia, recebia dezenas de embarcações vindas de vários pontos da Amazônia e do restante do Brasil. Chegada a escuridão, a doca era tomada pelos notívagos que buscavam seus pequenos bares para rápidos aperitivos ou demoradas farras. Alcy Araújo era "o poeta das docas e dos cais". Ele escrevia sobre a interinidade da vida nestes lugares: "sou feito de ondas/ de algas de salsugem/ de barcos voltando/ para a renovação de partidas".32 32 ARAÚJO, Alcy. Chorando mar. In: ARAÚJO, Alcy. Poemas do homem do cais. Rio de Janeiro: MEC Editora, 1983. p. s.n. Alcy Araújo nasceu no município de Bragança (Pará), em 1924. Entre 1941 e 1953 trabalhou para vários jornais paraenses. Em meado de 1953, aceitando convite de Álvaro da Cunha, ingressou no funcionalismo público do território do Amapá, onde se tornou oficial e (depois) chefe de gabinete do governador. Foi diretor da Imprensa Oficial do Território. Além de Poemas do homem do cais, publicou o livro poético Autogeografia. Cf. Álvaro da et al. Modernos poetas do Amapá, op. cit. p. 9. Em Belém, Araújo era tão entregue à inebriante vida noturna da área do cais, que seu amigo Georgenor Franco chegou a temer que ele viesse a sucumbir, juntamente com sua poesia: "tememos até, eu e [Carlos] Lima, amigos de sempre, que Alci naufragasse, não vencido pelas ondas do mar, da Baía do Guajará, mas pelas ondas violentas de uma boemia desregrada, que estava talvez, a comprometer o seu próprio valor poético".33 33 FRANCO, Georgenor. O poéta das docas. Amapá, n. 758, 2 ago. 1956. p. 4. Mas, ao se mudar para Macapá, Alcy Araújo não se afeiçoou à doca da Fortaleza. Ele adotou o moderno e maquinizado Porto de Santana, um cais "mais pesado,/ carregado de idealismo e de metais,/ com apitos de locomotivas egressas do ventre das montanhas,/ - um navio imenso fecundando as entranhas/ de outros navios menores/ na cópula pesada do minério". Em seguida, Araújo esclareceu: "não mais bares das docas,/ - agora o barracão,/ não mais os marinheiros bêbados,/ agora o operário suarento./ Não mais o ranger obsoleto dos guindastes,/ - agora a sinfonia das modernas britadoras".34 34 Ibid.

Assim, a doca da Fortaleza ficou sem seu aedo. Aliás, o poeta Álvaro da Cunha foi um dos detratores dela. Um ano e meio antes de escrever Noturno de Macapá (em julho de 1948), ele, como "moço sério", advertia que estava surgindo em Macapá um grande número de botequins de suspeita higiene e de questionável utilidade social. Os botequins enquistados deveriam, segundo Cunha, ser objeto de severo controle, "pois é sabido que na maioria das cidades é sempre mais calamitosa a praga do alcoolismo e de outras doenças sociais quanto mais disseminado for o número dos estabelecimentos de ócio e dos centros de dissipação".35 35 CUNHA, Álvaro da. D.D.T. Amapá, n. 177, 31 jul. 1948. p. 4. O título do artigo já indica a carga de estigmas que o autor estava jogando sobre a doca, pois o D.D.T. é um veneno muito forte que até alguns anos atrás foi utilizado para afastar pragas e matar insetos. A profilaxia social, desse modo justificada, visava salvaguardar a moral familiar do discurso hegemônico. Em outras palavras, a doca deveria ser higienizada física e moralmente para o bem de toda a cidade. A percepção depreciativa do entorno do igarapé da Fortaleza tinha ampla ressonância. Em suas alegações finais para um processo acerca de crime de sedução, o advogado José Dionísio da Silva Barros, após perguntar "que vida levava Raimunda?", apresentou sua apreciação sobre a suposta vítima, argumentando:

evidentemente a vida de Raimunda estava muito longe de ser a da de menor "absolutamente inexperiente", como é apresentada na denúncia. Além do mais, residindo a ofendida à margem esquerda do Igarapé da Fortaleza, não podia ser um produto infenso às influências do meio. O Exmo. Doutor Juiz conhece que a margem esquerda do Igarapé da Fortaleza, ou seja, na doca, é onde estão localizadas as barracas ou botequins que servem os tripulantes dos barcos que alí aportam, e onde, como em toda parte, se situa preferencialmente o meretrício, quando determinações da polícia não o afastam para outra parte.36

Percebida como espaço criminógeno e fonte de degradação humana, a doca era objeto de frequente policiamento. Igualmente era vista como algo feio que, lamentavelmente, ficava na frente de Macapá.37 37 Arlindo Silva de Oliveira (nascido em 1931) foi entrevistado no dia 13 de outubro de 2006. Foi aluno da Escola de Iniciação Agrícola do Amapá (município) e foi um dos primeiros pilotos de avião do recém-criado Território Federal do Amapá. Durante a entrevista, Arlindo Oliveira relatou-nos: "a 'Beira' era aí, onde é o comercio hoje. Aquilo tudo era madeira. A maioria era formada por judeu ou turco. Houve um incêndio. Disseram que aquilo foi ideia do governo, mas eu acho que não (era muita maldade). Queimou tudo, começaram do zero. Aí começaram a fazer comércio de alvenaria (...). E o mercado era ali. Aquilo era palafita, tinha até prostituição. Uma vez eu fui fazer compra lá e eu vi uma mulher sair de dentro d'um buraco daqueles, completamente nua (...). No bar, de vez em quando você tem ideias interessantes: um disse que faria daquele mercado uma área de artesanato; eu o quartel da guarda municipal, 'porque eu tenho andado por aí e quase todos os quartéis da guarda municipal que eu vejo é mais ou menos naquele estilo'. E outro disse 'não pode ser', e ficou aquela história lá. Eu disse: 'olha é melhor do que implodir, melhor do que a ideia do Gil Gato de meter embaixo. Resolvia dois problemas: a prostituição e a jogatina'. Uma vez mataram um cara lá com negócio de jogo, de jogo de baralho (...). Voltando ao incêndio que atribuíram ao governo, que não queria aquele negócio que era feio... Os caras vinham para cá, queriam ganhar dinheiro, não queriam saber de investir. Só queriam ficar naquilo ali. Vender naquele negócio todo. E hoje ainda existem muitos deles aqui. Aliás, deles não, os descendentes. Foi o velho JK que trabalhou muitos anos pra construir aquilo ali (o Romeu). Mas, naquela época era muito feio aquele pedaço ali, principalmente até ali aquela área da ponte [da rua Cândido Mendes]. Ali, bem no canto tinha um bar chamado Bar Caboclo que era de madeira, mas não foi atingido, porque o incêndio foi mais daquela passagem para trás". No pós-1964, o governo territorial fez desaparecer esse lugar. Depois do grande incêndio da noite do dia 28 de novembro de 1967 (que destruiu muitas das palafitas aí existentes), os desabrigados foram transferidos para outras partes da cidade. Foi construído, então, um canal com o leito concretado e cujas margens foram aterradas.38 38 COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Na ilharga da fortaleza, logo ali na beira, lá tem o regatão: os significados dos regatões na vida do Amapá (1945-1970). Belém: Açaí, 2008. p. 181-192. Em todo o período enfocado aqui, a doca foi, além de um espaço de comércio e moradia, um importante centro de divertimentos populares. Seus botequins e lupanares atraíam homens de toda a cidade, e também de fora dela. Seu apagamento da cartografia urbana deu-se em nome do ideal de uma Macapá higienizada e moralizada...

Como afirmamos, os botequins ensejavam o fortalecimento dos laços de companheirismo e amizade. Em entrevista, Arlindo Oliveira nos disse: "eu gosto muito de frequentar bar, não para beber, para fazer amizade".39 39 Entrevista anteriormente citada. Mas, os bares também oportunizavam desentendimentos, acaloradas discussões e brigas. Tomando o botequim como um "observatório popular"40 40 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Unicamp, 2001. p. 312. e partindo da análise das rixas entre os boêmios, podemos entender todo um amplo espectro de valores e práticas. No Baixo Amazonas, as brigas manifestavam uma concepção popular de justiça. A tradição do uso privado da violência fortaleceu-se em áreas que por décadas ficaram fora do alcance das forças policiais, do Judiciário e das demais agências do poder estatal. Em dezembro de 1947, em suas alegações finais para um processo criminal em torno de lesões corporais, o advogado Marcílio Felgueiras Viana argumentou: "o lugar poção do Matapí como também nas suas adjacências jamais possuiu sequer uma escola. A grande tradição pelo ser costume e mesmo por não saberem a quem se dirigir, era da Justiça pelas próprias mãos".41 41 AFCM. Caixa 240, processo no 90, de 25 de maio de 1946, fl. 38.

Em geral, as comunidades de vizinhança reconheciam as brigas como meios legítimos de solução de conflitos. Tal reconhecimento ficava evidente quando os vizinhos decidiam não interferir na luta corporal. A interferência ocorria apenas em situações especiais - principalmente: quando se tratava do desdobramento de um litígio entre famílias (o que fazia vir à tona a solidariedade doméstica)42 42 Ver por exemplo: AFCM. Caixa 286, processo no 1159SN, de 6 de janeiro de 1946; e AFCM. Caixa 210, processo no 111, de 19 de setembro de 1946. e quando ocorria a necessidade de se reestabelecer um equilíbrio entre os litigantes (como quando um estava armado e o outro não).43 43 Ver, por exemplo: AFCM. Caixa 262, processo no 695, de 11 de setembro de 1952, fls. 7-8, 12; e AFCM. Caixa 286, processo no 1159SN, de 6 de janeiro de 1946. O que observamos nas brigas narradas nos processos criminais é que elas não podem ser tomadas como sintomas de anomia social - ou do "estado de natureza" hobbesiano. Pelo contrário, as rixas eram esforços no sentido de diluir tensões, de (re)estabelecer hierarquias, de reparar danos (em geral, algo atrelado à honra da pessoa). Tratava-se da garantia e do reforço de uma ordem: da micropolítica de grupos e comunidades. A associação da briga à desordem ou a "questões de somenos importância" nascia do estereótipo de que as camadas populares formavam um ente ameboide, instável e destituído de qualquer norma própria.

Feitas estas importantes ressalvas, podemos voltar à questão das brigas ocorridas nos botequins. Elas aconteciam principalmente por dois motivos: a honra e a valentia masculinas. Não podemos entender nenhuma das duas sem inseri-las na estrutura de sensibilidade machista, que tinha raízes profundas na hegemonia dos modelos androcêntricos de então. A honra masculina estava assentada nas noções de força, de virilidade, de destemor e honestidade. O uso da palavra "fresco" para caracterizar alguém era uma das ofensas que comumente causavam brigas.44 44 À luz dos autos por nós analisados, é possível afirmar que o uso de expressões racistas e de termos como "corno" com pouca frequência geravam rixas. No atinente a expressões racistas, ver: AFCM. Caixa 275, processo no 579, de 11 de dezembro de 1951; e AFCM. Caixa 262, processo no 219, de 23 de dezembro de 1952. Já no relativo à utilização da ofensa com o termo "corno", destacamos o seguinte caso: em 13 de dezembro de 1962, Durval Santa Brígida (funcionário público e residente na av. Profa Cora de Carvalho, s.n.) apresentou queixa (através do advogado Alcino da Costa Bahia) contra Otaviano Souza, por este, dias antes, no Bar Sol Risal, ter proferido injúrias contra o querelante, chamando-o de "corno" na presença de várias pessoas e investindo contra o mesmo - sendo, porém, contido. Por tal ato, "além de o querelado ofender-lhe a dignidade", trazia à baila a lembrança da esposa deste, "respeitável e virtuosa mãe de família apesar de pobre" (AFCM. Caixa 270, processo no 1504, de 10 de janeiro de 1963, fls. 2-3). Ver também: AFCM. Caixa 170, processo no 1447, de 14 de novembro de 1961, fl. 23. Em julho de 1952, o motorista paraibano de 28 anos, Severino de Almeida, depôs num inquérito policial que agredira Caetano de Souza, no bar de Aurélio Dantas (em Porto Grande), porque este: o chamou de "Cabra sem vergonha", usou expressões pornográficas e depois o chamou de "fresco", "além de outras palavras ofensivas à dignidade do homem".45 45 AFCM. Caixa 275, processo no 687, de 22 de agosto de 1952, fl. 8. Já em dezembro de 1958, a meretriz Maria Raimunda (paraense de dezenove anos) declarou à Polícia que era empregada do Bar Caipira, aonde presenciara uma discussão na qual Luiz Borges taxara Raimundo Nonato de "fresco" e este chamara aquele de "veado". Luiz fora então contido por Pedro e Aldo. Após ouvir gritaria, Maria Raimunda correra para fora e aí achara Raimundo com um ferimento no peito, do qual saía muito sangue, enquanto L. Borges se afastava com um canivete de lâmina longa.46 46 AFCM. Caixa 286, processo no 1310, de 22 de fevereiro de 1959, fl. 5. Independentemente de ocorrer ou não no botequim, a ofensa com o adjetivo "fresco" gerava brigas. Vejamos alguns exemplos. No dia 5 de maio de 1951, foi realizado o interrogatório presidido pelo juiz U. Araújo, no qual "Cassiporé" depôs: que não eram verdadeiras as acusações feitas contra ele, pois os ferimentos de R. Lemos decorriam da queda deste; que tinha constantes desentendimentos com a ex-sogra, que o chamou de "fresco" - sendo "que essa palavra tem significado muito deprimente na linguagem do povo" -, o que foi suficiente para que ele investisse para agredi-la. Em sua peça de defesa, o advogado de "Cassiporé" afirmou que este foi recebido por sua sogra com insultos, sendo chamado de "fresco", "cuja tradução popular é pederasta passivo" (AFCM. Caixa 299, processo no 352, de 19 de setembro de 1949, fls. 31-33). A outra face da moeda da densidade ofensiva da palavra "fresco" é a força da homofobia no cotidiano dos homens. É o que se depreende do depoimento do ajudante de pedreiro "Manoelzinho" (cearense de 16 anos residente no Trem), que disse à autoridade policial que dias antes fizera aniversário; mas, não autorizara ninguém - e muito menos Luiz Santos (indivíduo "anormal") - a comemorar isto com festa. Disse ainda que era "absolutamente mentirosa e falsa" a alegação de Luiz dos Santos "de manter com ele, como sujeito ativo, contato anal, pois não é como ele nenhum degenerado, mesmo ativo" (AFCM. Caixa 255, processo no 1206, de 29 de abril de 1957, fl. 6). Ver também: AFCM. Caixa 262, processo no 623, de 22 de abril de 1952, fl. 34; e AFCM. Caixa 281, processo no 865, de 19 de dezembro de 1953, fl. 3.

A valentia masculina também figurava entre as causas mais comuns de rixas nos botequins. Ela implicava a imposição da autoridade de um homem sobre outro, através da força e da habilidade em lutas corporais. Quando, no meio de uma discussão no Hotel Macapá, o jogador de futebol Roxinho disse que A. Pimentel "tinha a mania de querer ser valente", quis indicar que este não conseguia impingir medo em ninguém, apesar de pensar o contrário.47 47 AFCM. Caixa 262, processo no 628, de 8 de maio de 1952, fl. 5. A valentia não era simplesmente algo que alguém podia reclamar para si. Ela dependia do reconhecimento de um "tribunal da reputação", formado por observadores aptos a divulgar os atos de coragem que testemunhavam.48 48 SILVA, Fernando Teixeira da. Valentia e cultura do trabalho na estiva de Santos. In: BATALHA, Cláudio H. M. et al. (Org.). Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: Unicamp, 2004. p. 211. O botequim, por abrigar uma sociabilidade predominantemente masculina, era um bom lugar para demonstrações de impetuosidade e força. Casos havia em que o sujeito alcoolizado acabava "tornando-se perigoso e valente". 49 49 AFCM. Caixa 272, processo no 966, de 25 de novembro de 1957, fl. s/n. Mas, apenas alguns conseguiam, verdadeiramente, alcançar grande fama. Era o caso de Raimundo Serra, "homem temido na região [de Ferreira Gomes] pela sua valentia e força física". No processo acerca do assassinato dele, encontramos o depoimento do motorista José Cordeiro (ocorrido em junho de 1957), para quem Serra abusava de sua compleição física para ser valente. Cordeiro afiançou que em Ferreira Gomes muita gente "levantou as mãos para o Céu quando soube de sua morte" e que no Paredão "a satisfação foi geral". O braçal Carlos Leal declarou que corria longe a fama de Raimundo, porque dera pancada em muita gente e porque "não havia nem um outro que lhe pudesse resistir".50 50 AFCM. Caixa 210, processo no 1180, de 19 de julho de 1957, fls. 6-7, 45.

A Polícia reprovava e combatia a valentia. Em 14 de julho de 1945, o jornal Amapá noticiou a prisão de três trabalhadores do vale do rio Matapi, destacando: "ali, são dados a valentes, mas o Comissário, não acreditando nessa bravura recomendou-os em ofício à Polícia desta Capital, e, aqui, aconselhados, compreenderam de que não é profissão nobre essa espécie de valentia".51 51 ERAM valentes na zona onde residem. Amapá, n. 17, 14 jul. 1945. Ocorrências policiais, p. 3. Por um lado, o uso da luta corporal pelos trabalhadores visava promover o desempate entre litigantes e, no caso da valentia, definir os camaradas mais dignos do poder de mando. Por outro lado, a punição dos valentões e o esforço para inibir as brigas visavam trazer para o braço policial do estado o monopólio da violência. A Guarda Territorial procurou impor-se como única mediadora dos desentendimentos cotidianos. Percebendo os espaços de lazer como focos de possíveis conflitos, aí a Guarda foi imiscuir-se. Conforme temos enfatizado, sua finalidade era também "policiar os costumes", ou seja: coibir práticas que levassem o trabalhador aos "excessos" indesejáveis do ponto de vista da ética do trabalho disciplinado e do ideal da família higienizada e moralizada.

Dias de festa

No seu relatório de 1944, o diretor do Departamento de Segurança Pública e Guarda, Paulo Eleutério Cavalcanti de Albuquerque, afirmava: "o Departamento vem dedicando seu maior empenho na redução do consumo de bebidas alcóolicas, punindo severamente os seus infratores; na proteção de menores de ambos os sexos". E mais:

policiando permanentemente as festas e outros meios de diversões populares, impedindo que as crianças participem de reuniões incompatíveis com suas idades; na manutenção dos costumes morais, no respeito à propriedade, no direito ao trabalho e na repressão à vadiagem, tudo isso mediante às ordens aos elementos policiais e portarias amplamente divulgadas, com minuciosas instruções, em todo o Território.52

Com muitas dificuldades, os guardas tentavam realizar esses intentos. Criada pelo Decreto no 8, de 17 de fevereiro de 1944, a Guarda Territorial tinha caráter civil e, além dos trabalhos relativos à "manutenção da ordem", deveria ocupar-se da "construção de edifícios, estradas e caminhos, [e de] todos os trabalhos de utilidade pública relacionados com saneamento, transporte e povoamento, colonização e incremento da produção".53 53 ATOS do Governo do Território Federal do Amapá. Amapá, n. 4, 4 abr. 1945. p. 4. Portanto, o guarda era um factótum do governo ou alguém cuja identidade profissional tinha contornos bastante elásticos. Ademais, os chefes da corporação tinham de trabalhar com um número de subordinados cada vez mais insuficiente, devido ao rápido crescimento populacional macapaense.54 54 Um articulista do jornal A Voz Católica destacou, em maio de 1963 (um momento de grande tensão entre governo e trabalhadores), que o Tenente Uadih Charone estava espalhando guardas em todos os cantos da cidade e acrescentou: "mais não pode fazer, o chefe de polícia, como é seu ardente desejo, por falta de homens" (REPÓRTER curioso [seção]. A Voz Católica, n. 184, 5 maio 1963. p. 3). Quando não eram fixados para fazer atendimentos em delegacias e postos, os guardas trabalhavam no patrulhamento de locais e momentos classificados como criminógenos. Era o caso das festas populares, entre as quais se destacava o carnaval.

Há, na historiografia, um fértil debate sobre a natureza do carnaval. Alguns estudos defendem a tese de que ele exerce uma função estabilizadora, porque é uma "válvula de escape" para tensões sociais. Já outros argumentam que a folia carnavalesca é uma experiência que fortalece uma percepção subversiva da sociedade, porque retira momentaneamente a sacralidade do poder e, assim, expõe normas e convenções ao ridículo. Não cabe aqui remontar em detalhes a este debate. Podemos, entretanto, afirmar que a leitura atenta da própria historiografia indica: a) que ambas as coisas (a função estabilizadora e a subversiva) estão presentes no carnaval; b) que o predomínio de uma ou de outra depende dos condicionantes históricos (o que inviabiliza a adoção de uma regra universal).55 55 No erudito estudo A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Mikhail Bakhtin defende a tese da natureza subversiva do carnaval. Segundo ele, durante a Idade Média, "ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto" (BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 2008. p. 8-9). Outra é a tese defendida pelo antropólogo Roberto DaMatta, que afirma: "seria ingênuo supor que o Carnaval apenas neutraliza e inverte as oposições e posições sociais do cotidiano, abolindo suas dimensões de contraste. Na realidade, as inversões do Carnaval - precisamente pelo fato de permitirem o aparecimento aberto de comportamentos e fantasias abusivas à moralidade diária - terminam por provocar a confiança na ordem" (DAMATTA, Roberto. Ensaios de antropologia estrutural. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 58). Um balanço geral da bibliografia que trata do carnaval pode ser encontrado em: SOIHET, Rachel. Reflexões sobre o carnaval na historiografia - algumas abordagens. Tempo, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 169-188, 1999. O ciclo momesco em Macapá ensejava inversões sociais e, por isso, era também o maior dos pesadelos dos ordenadores. A atmosfera de licenciosidade tomava conta da cidade. As distinções sociais eram diluídas, gerando ambiguidades e estranhamentos. Mas alguns demarcadores sociais eram mantidos - e até reforçados.

Às vésperas da Quaresma, as ambiguidades causadas pela carnavalização da vida podiam propiciar grandes confusões. Foi o que aconteceu na noite dia 5 de março de 1946. Ocorria o baile carnavalesco do Esporte Clube Macapá e o ponteiro do relógio estava algo próximo das duas horas da madrugada quando se iniciou uma briga, envolvendo várias pessoas. Os guardas ali presentes correram com cassetetes em punho a fim de intimidar e apartar os participantes da luta (uma troca caótica de socos, empurrões, pancadas, pontapés e cadeiradas). No meio do tumulto, o guarda José Santiago (acreano de dezenove anos) teve a infelicidade de segurar Paulo Moacir de Carvalho pela gola e de repreendê-lo agressivamente. Santiago não sabia que se tratava da "segunda pessoa do Governador". Mas, seria difícil para o jovem guarda supor que estava repreendendo o presidente do Esporte Clube Macapá, pois Moacir de Carvalho "estava fantasiado de caboclo ou cousa parecida". Se nos dias comuns do ano a roupa funcionava como um importante demarcador (elemento identificador de poder econômico e/ou político), durante o carnaval as fantasias borravam as fronteiras sociais, gerando uma ambiência que dava vazão a momentos de igualitarismo.56 56 AFCM. Caixa 227, processo no 1490SN, de 6 de abril de 1946, fls. 9-10, 28-29.

José Santiago foi imediatamente punido por não ter adivinhado que aquele homem vestido como caboclo era, na verdade, uma autoridade com amplos poderes. Foi preso logo após a afronta. Mas Paulo Moacir de Carvalho deixou claro a todos os guardas que, independentemente das fantasias, algumas demarcações sociais deveriam ser mantidas no carnaval. Em depoimento prestado na delegacia, ele disse que não sabia "atribuir o fato de se achar no recinto do salão tamanha quantidade de gente, digo, de guardas, àquela hora, armados de cassetete, pois que não pedira policiamento reforçado para uma festa que se considera de Elite". Havia uns quinze guardas territoriais no local. Irritado por acreditar ser isto um exagero, Moacir de Carvalho expulsou da festa o investigador da Guarda, Estevam Sampaio, dizendo "que autoridade e dono da festa era ele". As festas que aconteciam nos grandes clubes macapaenses eram frequentadas pelos membros das classes mais abastadas. Usando um pressuposto nada estranho para a Polícia - o de que os focos criminógenos se localizavam nos territórios da pobreza e não nos da "elite" -, o presidente do Esporte Clube Macapá apontou que aqueles guardas não estavam onde deveriam estar. Mas a maior turbulência do carnaval macapaense de 1946 aconteceu exatamente ali.57 57 Ibid., fl. 26.

Enquanto os clubes ofereciam bailes aos mais endinheirados, as ruas e as praças eram o território da folia popular.58 58 Em entrevista, Miracy Barbosa se lembrou das festas nas sedes dos clubes: "(...) existia também a sede do Trem [Esportivo Clube] que fazia os grandes bailes, a sede do [Esporte Clube] Macapá, sede do Amapá [Clube]... Faziam grandes bailes. Mas ali só entrava quem tinha dinheiro (...)". Miracy Martel Barbosa (nascida em 1947) foi entrevistada - pelas pesquisadoras Barbara Lorena Costa e Najayra Monte Verde para o Projeto Banco de História Oral (Probho) da Universidade Federal do Amapá (Unifap) - no dia 19 de março de 2011. Ela nasceu na região das ilhas do Pará e chegou a Macapá quando tinha cinco anos de idade. Pouco depois da criação do Território Federal do Amapá surgiram os "blocos sujos", formados pelos trabalhadores engajados no setor da construção civil macapaense. O primeiro deles foi o bloco Os bandoleiros da saudade, que estreou no carnaval de 1946. Depois vieram as grandes agremiações. Em meado da década de 1960, as batalhas de confetes aconteciam em frente ao Bar do Barrigudo (no bairro do Trem) e na praça Barão do Rio Branco. As escolas de samba Boêmios do Laguinho (criada em 1954), Maracatu da Favela (fundada em 1957) e Piratas da Batucada (de 1962, com sede no Trem) preparavam-se com afinco para essas disputas.59 59 GONÇALVES, Mariana de Araújo. Enredos da memória: história e identidade no carnaval das escolas de samba de Macapá. São Paulo: Ética do Brasil, 2011. p. 39-40. Blocos e escolas exprimiam e reforçavam a solidariedade de vizinhança e o sentimento de pertencimento a um bairro. No carnaval de 1947, o jornal Amapá divulgou o samba O Trem em 1 o lugar - do bloco dos Ferroviários -, no qual se cantavam os seguintes versos: "o TREM fala minha gente não é p'ra você se zangar/ sou o bairro mais querido aqui deste velho lugar/ o povo diz com razão e me quer bem/ que antes de ser Território o meu nome sempre foi TREM".60 60 A SEGUNDA festa dos "ferroviários". Amapá, n. 100, 15 fev. 1947. p. 3. O orgulho de pertencer a um bairro também pulsa nos versos que herdamos "do maior compositor do Laguinho", Raimundo Lino. Senão vejamos: "Laguinho, ô Laguinho/ é bairro de tradição/ Laguinho, mora no meu coração./ É ódio dessa gente/ que não sabe o que faz/ Laguinho é o orgulho de nosso carnaval".61 61 CANTO, Fernando. Telas e quintais. Macapá: Conselho de Cultura do Amapá, 1987. p. 37, 113-114.

Diferentemente das farras (incursões individuais pela vida boêmia), que dependiam tão somente das condições e dos desejos de cada um, as festas obedeciam a um calendário fixo e envolviam toda uma mobilização coletiva, em que cada membro do bairro ou da comunidade de vizinhança disponibilizava um pouco de si (produtos, dinheiro, trabalho, ou simplesmente tempo para o usufruto). Isso explica por que as grandes festividades criavam uma atmosfera de contentamento que se estendia por toda a cidade. Após o carnaval vinham as celebrações de São José e do Marabaixo. Semanas depois, iniciava-se o ciclo das festas juninas. No segundo semestre do ano, destacavam-se o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, o Natal e o Réveillon. Muitas pessoas chegavam das ilhas paraenses e dos interiores próximos para tomar parte nos grandes festejos de Macapá. Como em outros lugares, nos dias de festa, os participantes colocavam suas melhores roupas e calçados, assim como se perfumavam bastante, indicando não ser aquele um tempo comum.62 62 Num comentário sobre como as festividades alteravam o dia a dia no Oiapoque da década de 1940, Alfredo Gama afirmou: "nessas festas, a gente da elite da terra logo pela manhã aparece na rua com seus melhores fatos, embora cheirando a 'penicilina', pois só saem da mala nos dias festivos (...)" (GAMA, Alfredo. Um rio a serviço de dois povos. Belém: Revista da Veterinária, 1947. p. 108). A respeito do esmero com que as pessoas se preparavam para as festas em Gurupá, Wagley destacou: "uma das impressões mais fortes que dali leva o forasteiro é o asseio do povo. Sente-se o cheiro da roupa limpa e os perfumes naturais da floresta amazônica. Mesmo quando está quente o dia, tem-se a impressão do frescor, pois as pessoas banham-se e vestem-se sempre especialmente para cada função religiosa e cada dança que se realiza. Apenas os perfumes baratos, com que se borrifam tanto os homens quanto as mulheres, perturbam a atmosfera extremamente agradável" (WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos. São Paulo: Editora Nacional, 1957. p. 263). Não raro, com sacrifícios, guardava-se algum dinheiro para este momento especial. Frequentemente, gastavam-se os recursos disponíveis de forma imprevidente, advindo, desse modo, o endividamento.

Nos dias festivos, promovia-se uma ruptura com a cotidianidade. De modo geral, os trabalhadores procuravam desvencilhar-se do império da necessidade - da fome, da regulação do pouco e de tudo o que estivesse meramente adstrito à sobrevivência - para ingressar momentaneamente no reino da liberdade - da vontade livre de contingências ou livre do medo de não ter o necessário para permanecer vivo. A música de Orfeu fazia adormecer Prometeu.63 63 No número do jornal A Voz Católica de 16 de fevereiro de 1964 lê-se: "a sombra do carnaval ainda se projeta triste na sociedade, embora há cinco dias tenha passado. Há ainda quem anda de pernas bambas de tanto sapatear; há quem não conseguiu digerir completamente os porres momescos; há quem sinta aperturas e falta do dinheiro jogado fora nas fantasias (...)" (LUZ e sombras [seção]. A voz católica, n. 225, 16 fev. 1964. p. 2). Como acontecia com o sapateiro Antônio Melo, que nos dias de grandes festas (como o carnaval) destacava-se tocando: saxofone, flauta e violino. Outros chamavam a atenção pela dança, como ressaltou Carlos Bezerra: "na área da dança, tínhamos nomes fantásticos: Isnard Lima (uma elegância total), Suzete, meu pai de criação (cujo nome real era Maurício Monteiro da Piedade), Falconeri Santos Mascarenhas, Jeconias Araújo e mais alguns poucos". E acrescentou: "era um prazer ver esses homens dançarem".64 63 No número do jornal A Voz Católica de 16 de fevereiro de 1964 lê-se: "a sombra do carnaval ainda se projeta triste na sociedade, embora há cinco dias tenha passado. Há ainda quem anda de pernas bambas de tanto sapatear; há quem não conseguiu digerir completamente os porres momescos; há quem sinta aperturas e falta do dinheiro jogado fora nas fantasias (...)" (LUZ e sombras [seção]. A voz católica, n. 225, 16 fev. 1964. p. 2). O prazer da música e da dança misturava-se com outros prazeres... Como aqueles ligados ao afeto e ao sexo. Isto fazia das festas (que nos processos judiciais eram percebidas de forma mais genérica, o que incluía as farras) espaços poluentes à moral.

Palavras finais

Procuramos, nas linhas apresentadas, evidenciar que os divertimentos propiciavam aos trabalhadores efêmeras experiências de emancipação das interdições impostas pelos precários meios de sobrevivência e pelas investidas moralizadoras do Estado e da Igreja. Enfocamos também a solidariedade constituída nos momentos de diversão, pois, do lado da solidariedade doméstica e de vizinhança, formaram-se variadas redes de sociabilidade, tais como: clubes esportivos, a boemia, as escolas de samba. Essas redes funcionavam dentro de territorialidades pertencentes à classe trabalhadora e, por isso, vivificavam a solidariedade horizontal. Não faz pouco tempo que os pesquisadores que se preocupam com as questões relativas à luta de classes têm se voltado para a análise das implicações das vivências dos trabalhadores fora do ambiente de trabalho.65 65 O impacto recente do instigante livro A hidra de muitas cabeças, de Peter Linebaugh e Marcus Rediker, fortaleceu na historiografia brasileira (e mesmo ocidental) a insatisfação para com uma concepção restrita de classe trabalhadora (LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008). Marcel van der Linden, em um balanço historiográfico, afirma que "Peter Linebaugh e Marcus Rediker traçaram um quadro fragmentário de como um proletariado multiforme de 'derrubadores de matas e viajantes das águas' se desenvolveu, com vários espaços de luta: 'os campos comuns, a plantation, o navio e a fábrica'" (LINDEN, Marcel van der. Rumo a uma nova conceituação histórica da classe trabalhadora mundial. História, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 12, 2005). A coletânea Culturas de classe apresentou alguns dos esforços de pesquisadores que, nos últimos anos, tentaram dar conta de uma apresentação mais nuançada ou multifacetada da história da formação das classes trabalhadoras e de suas respectivas culturas. Segundo seus organizadores (Claudio H. M. Batalha, Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes), "a ênfase nas relações de produção, no processo e mercado de trabalho, como elementos estruturantes da coesão política dos trabalhadores, fez com que, por muito tempo, o acento recaísse sobremaneira nas lutas, nas formas de organização e nos movimentos políticos" (BATALHA, Claudio H. M.; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre. Apresentação. In: BATALHA, Claudio H. M. et al. (Org.). Culturas de classe, op. cit. p. 12-13).

Nesse movimento de ampliação do raio de visão dos estudos sobre a classe trabalhadora, foram admitidos novos objetos de análise e debate. Atividades até então "invisíveis" aos olhos da historiografia passaram a ganhar destaque. É o caso das variadas formas de divertimento.66 66 A incipiência deste campo de estudo faz com que as seguintes palavras do antropólogo José Guilherme Cantor Magnani ainda sejam bastante válidas: "apesar do atual interesse em torno das condições de existência dos trabalhadores nos grandes centros urbanos, um aspecto concreto - as fontes de entretenimento com que a população preenche o tempo de lazer, nos bairros da periferia - tem sido deixado de lado pela maioria dos estudos e análises. Este aspecto, entretanto, é parte integrante do cotidiano desta população" (MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 3. ed. São Paulo: Unesp; Hucitec, 2003. p. 20). Ao descortinarmos parte dessa diversidade, procuramos evidenciar as inconsistências de estereótipos cuja longevidade ainda nos desafia. Como a ideia de que os trabalhadores formam sempre sociabilidades perigosas e essencialmente marcadas pela anomia. Desafiador foi igualmente conseguir reunir informações necessárias para transpor essas insistentes imagens deformadoras que são projetadas sobre os subalternos. Ao percorrer as muitas páginas de diferentes tipos de documentos, nos deparamos com pessoas que, apesar de muitas privações, interdições e constrangimentos, foram sujeitos de sua própria história. Da história possível.

  • * * Este artigo originou-se de uma parte da tese de doutorado A cidade dos trabalhadores: insegurança estrutural e táticas de sobrevivência em Macapá (1944-1964), elaborada sob a orientação da professora doutora Maria Odila Leite da Silva Dias e defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP), em 2013. Este artigo originou-se de uma parte da tese de doutorado A cidade dos trabalhadores: insegurança estrutural e táticas de sobrevivência em Macapá (1944-1964), elaborada sob a orientação da professora doutora Maria Odila Leite da Silva Dias e defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP), em 2013.
  • 1 1 D'ARAÚJO, Maria Celina. Amazônia e desenvolvimento à luz das políticas governamentais: a experiência dos anos 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 19, p. 40, jun. 1992. D'ARAÚJO, Maria Celina. Amazônia e desenvolvimento à luz das políticas governamentais: a experiência dos anos 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 19, p. 40, jun. 1992.
  • 2 2 VARGAS, Getúlio. Os problemas da Planície Amazônica e o futuro do Pará. In: A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, s.d. v. VIII, p. 55-56. VARGAS, Getúlio. Os problemas da Planície Amazônica e o futuro do Pará. In: A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, s.d. v. VIII, p. 55-56.
  • 3 3 No Sudeste, a valorização do trabalho regular e a disciplinarização da vida de homens e mulheres entravam em choque com a chamada "cultura da malandragem" (TOTA, Antonio Pedro. Cultura, política e modernidade em Noel Rosa. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 3, p. 45-49, jul./set. 2001; e VASCONCELLOS, Gilberto; SUZUKI JÚNIOR, Matinas. A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (Dir.). História geral da civilização brasileira. Tomo III (O Brasil Republicano). São Paulo: Difel, 1984. v. 4, p. 501-523. No Sudeste, a valorização do trabalho regular e a disciplinarização da vida de homens e mulheres entravam em choque com a chamada "cultura da malandragem" (TOTA, Antonio Pedro. Cultura, política e modernidade em Noel Rosa. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 3, p. 45-49, jul./set. 2001; e VASCONCELLOS, Gilberto; SUZUKI JÚNIOR, Matinas. A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (Dir.). História geral da civilização brasileira. Tomo III (O Brasil Republicano). São Paulo: Difel, 1984. v. 4, p. 501-523.
  • 4 4 Após longo processo de debates políticos, o governo federal decidiu criar os territórios federais de Rio Branco, Guaporé, Ponta-Porã, Iguaçu e Amapá. Publicada em 13 de setembro de 1943, essa decisão se apoiava na Constituição de 1937, que definia os territórios como áreas diretamente administradas pelo governo federal (arts. 4o e 6o). Após longo processo de debates políticos, o governo federal decidiu criar os territórios federais de Rio Branco, Guaporé, Ponta-Porã, Iguaçu e Amapá. Publicada em 13 de setembro de 1943, essa decisão se apoiava na Constituição de 1937, que definia os territórios como áreas diretamente administradas pelo governo federal (arts. 4o e 6o).
  • 5 5 Como exemplo, destacamos um trecho do Editorial do número especial do jornal Amapá, de 25 de janeiro de 1952: "se o Amapá caminhou mais célere do que outros recantos do país, projetando-se em evidência no cenário econômico e social da Pátria, deve-se ao entrosamento produtivo entre o seu Governo e o seu povo, que sempre marcharam unidos na árdua e gloriosa missão de soerguimento do Território. Foi graças a essa coesão de ideais que nasceu e cresceu, florindo e frutificando, a mística do Amapá, tornando esta terra de heróis e de sofrimentos, numa das mais promissoras esperanças do Brasil atual" (OITO anos de batalha territorial [Editorial]. Amapá, n. 358, 25 jan. 1952. 1a secção, p. 1). Como exemplo, destacamos um trecho do Editorial do número especial do jornal Amapá, de 25 de janeiro de 1952: "se o Amapá caminhou mais célere do que outros recantos do país, projetando-se em evidência no cenário econômico e social da Pátria, deve-se ao entrosamento produtivo entre o seu Governo e o seu povo, que sempre marcharam unidos na árdua e gloriosa missão de soerguimento do Território. Foi graças a essa coesão de ideais que nasceu e cresceu, florindo e frutificando, a mística do Amapá, tornando esta terra de heróis e de sofrimentos, numa das mais promissoras esperanças do Brasil atual" (OITO anos de batalha territorial [Editorial]. Amapá, n. 358, 25 jan. 1952. 1a secção, p. 1).
  • 6 6 Ver: LOBATO, Sidney da Silva. Educação na fronteira da modernização: a política educacional no Amapá (1944-1956). Belém: Paka-Tatu, 2009. Ver: LOBATO, Sidney da Silva. Educação na fronteira da modernização: a política educacional no Amapá (1944-1956). Belém: Paka-Tatu, 2009.
  • 7 7 MAROJA, Flávio. O trabalho como fator do equilíbrio social. Amapá, n. 183, 13 set. 1948. p. 6. MAROJA, Flávio. O trabalho como fator do equilíbrio social. Amapá, n. 183, 13 set. 1948. p. 6.
  • 8 8 MELO, Aderbal. A ociosidade e o crime. Amapá, n. 319, 21 abr. 1951. p. 6. MELO, Aderbal. A ociosidade e o crime. Amapá, n. 319, 21 abr. 1951. p. 6.
  • 9 9 LOMBAERDE, Padre Júlio Maria. Macapá: sua história desde a fundação até hoje. Macapá, 1987, p. 8. Mimeografado. LOMBAERDE, Padre Júlio Maria. Macapá: sua história desde a fundação até hoje. Macapá, 1987, p. 8. Mimeografado.
  • 10 10 FAISSOL, Speridião. Atlas do Amapá. Rio de Janeiro: Instituto Regional de Desenvolvimento do Amapá e Conselho Nacional de Geografia (IBGE), 1966. p. 26. Na verdade, Faissol sistematizou uma série de dados levantados por equipes de técnicos do Instituto Regional de Desenvolvimento do Amapá (Irda), do IBGE e do governo territorial do Amapá. Conforme um articulista da revista Icomi Notícias: "o 'Atlas do Amapá', trabalho realizado pelo Irda (entidade criada e mantida pela Icomi) em colaboração com o IBGE e técnicos do Território, foi resultado de um desses esforços de sistematização do conhecimento disperso que geralmente se tem sobre áreas e regiões brasileiras, com prejuízo para as atividades da Administração Pública e redução do interesse privado pela implantação de iniciativas de ordem econômica (...)" (ATLAS: Amapá de corpo inteiro. Icomi Notícias, n. 34, p. 6, mar./abr. 1967). FAISSOL, Speridião. Atlas do Amapá. Rio de Janeiro: Instituto Regional de Desenvolvimento do Amapá e Conselho Nacional de Geografia (IBGE), 1966. p. 26. Na verdade, Faissol sistematizou uma série de dados levantados por equipes de técnicos do Instituto Regional de Desenvolvimento do Amapá (Irda), do IBGE e do governo territorial do Amapá. Conforme um articulista da revista Icomi Notícias: "o 'Atlas do Amapá', trabalho realizado pelo Irda (entidade criada e mantida pela Icomi) em colaboração com o IBGE e técnicos do Território, foi resultado de um desses esforços de sistematização do conhecimento disperso que geralmente se tem sobre áreas e regiões brasileiras, com prejuízo para as atividades da Administração Pública e redução do interesse privado pela implantação de iniciativas de ordem econômica (...)" (ATLAS: Amapá de corpo inteiro. Icomi Notícias, n. 34, p. 6, mar./abr. 1967).
  • 11 11 Segundo o articulista do jornal Amapá, o Cine Territorial de Macapá (que contava com 280 lugares) deveria propiciar não apenas o entretenimento: "é com alegria que observamos o operário, o agricultor, o criador, o comerciante, o escriturário, etc... nos seus 'bate-papos' cotidianos, aludindo ao filme e ao seu fundo moral ou social, elogiarem mais essa iniciativa que diverte e educa". Em 1946, o contrato assinado com a Twenty Century Fox garantiu a apresentação de filmes com longas metragens em Macapá. Nas quintas-feiras ocorriam sessões populares com ingressos custando Cr$ 3,00. As crianças tinham uma vesperal especial, desde que o filme não fosse considerado "impróprio e prejudicial aos bons costumes que, diariamente, vem aprendendo nas escolas" (Comentário da Semana [seção]. Amapá, n. 55, 6 abr. 1946. p. 2). Segundo o articulista do jornal Amapá, o Cine Territorial de Macapá (que contava com 280 lugares) deveria propiciar não apenas o entretenimento: "é com alegria que observamos o operário, o agricultor, o criador, o comerciante, o escriturário, etc... nos seus 'bate-papos' cotidianos, aludindo ao filme e ao seu fundo moral ou social, elogiarem mais essa iniciativa que diverte e educa". Em 1946, o contrato assinado com a Twenty Century Fox garantiu a apresentação de filmes com longas metragens em Macapá. Nas quintas-feiras ocorriam sessões populares com ingressos custando Cr$ 3,00. As crianças tinham uma vesperal especial, desde que o filme não fosse considerado "impróprio e prejudicial aos bons costumes que, diariamente, vem aprendendo nas escolas" (Comentário da Semana [seção]. Amapá, n. 55, 6 abr. 1946. p. 2).
  • 12 12 Foi inaugurado pela Igreja em 1963 (INAUGURADO o cinema João XXIII. Amapá, n. 1210, 27 mar. 1963. p. 4). Foi inaugurado pela Igreja em 1963 (INAUGURADO o cinema João XXIII. Amapá, n. 1210, 27 mar. 1963. p. 4).
  • 13 13 DIVERSÕES. Amapá, n. 252, 7 jan. 1950. p. 3. DIVERSÕES. Amapá, n. 252, 7 jan. 1950. p. 3.
  • 14 14 Ibid. Ibid.
  • 15 15 Em depoimento prestado em setembro de 1949 para um inquérito policial, a paraense de 24 anos, Maria José Borges, disse que "estando a maré convidativa, [ela e Maria Santos] acertaram tomar um banho de praia, atrás da Fortaleza" (Arquivo do Fórum da Comarca de Macapá [doravante: AFCM]. Caixa 299, processo n. 348, de 22 de setembro de 1949, fl. 23). Em depoimento prestado em setembro de 1949 para um inquérito policial, a paraense de 24 anos, Maria José Borges, disse que "estando a maré convidativa, [ela e Maria Santos] acertaram tomar um banho de praia, atrás da Fortaleza" (Arquivo do Fórum da Comarca de Macapá [doravante: AFCM]. Caixa 299, processo n. 348, de 22 de setembro de 1949, fl. 23).
  • 16 16 AFCM. Caixa 275, processo n. 649, de 18 de junho de 1952, fls. 6 e 10. AFCM. Caixa 275, processo n. 649, de 18 de junho de 1952, fls. 6 e 10.
  • 17 17 DIVISÃO de Segurança e Guarda - Portaria nr. 144/63 - DSG. A Voz Católica, n. 185, 12 maio 1963. p. 4. DIVISÃO de Segurança e Guarda - Portaria nr. 144/63 - DSG. A Voz Católica, n. 185, 12 maio 1963. p. 4.
  • 18 18 LUZ e sombras [seção]. A voz católica, n. 260, 19 out. 1964. p. 2. LUZ e sombras [seção]. A voz católica, n. 260, 19 out. 1964. p. 2.
  • 19 19 Segundo processo criminal, em 9 de junho de 1957, Lucy Araujo e Raimunda Santana alugaram uma bicicleta e foram tomar banho na Lagoa dos Índios, área afastada da cidade e próxima da ponte "Santa Maria" (AFCM. Caixa 210, processo no 1241, de 26 de agosto de 1957, fl. 12). Num outro processo, Alexandra Ramos relatou que, em 26 de agosto de 1956, fora tomar "um banho num lago situado nas proximidades" de onde morava - o bairro do Laguinho (AFCM. Caixa 210, processo no 1191, de 17 de maio de 1957, fl. 7). Segundo processo criminal, em 9 de junho de 1957, Lucy Araujo e Raimunda Santana alugaram uma bicicleta e foram tomar banho na Lagoa dos Índios, área afastada da cidade e próxima da ponte "Santa Maria" (AFCM. Caixa 210, processo no 1241, de 26 de agosto de 1957, fl. 12). Num outro processo, Alexandra Ramos relatou que, em 26 de agosto de 1956, fora tomar "um banho num lago situado nas proximidades" de onde morava - o bairro do Laguinho (AFCM. Caixa 210, processo no 1191, de 17 de maio de 1957, fl. 7).
  • 20 20 PROIBIDA a prática e a exploração de jogos de azar em todo o território nacional. Amapá, n. 59, 4 maio 1946. p. 1. PROIBIDA a prática e a exploração de jogos de azar em todo o território nacional. Amapá, n. 59, 4 maio 1946. p. 1.
  • 21 21 PRESOS em flagrante quando jogavam. Amapá, n. 14, 23 jun. 1945. Ocorrências policiais, p. 3. PRESOS em flagrante quando jogavam. Amapá, n. 14, 23 jun. 1945. Ocorrências policiais, p. 3.
  • 22 22 Na assentada de testemunhas ocorrida em 5 de abril de 1948, o mestre de obras de 38 anos Julio B. de Araujo (natural do estado do Rio de Janeiro) disse que, após um tumulto no barracão, soube pelo próprio denunciado - conhecido como "Raimundo Pará" - "que este convidara Esmerido Silva Muniz e outros operários da referida construção para que, no dia que a Polícia comparecesse no barracão e suas proximidades fazendo investigações e busca no combate ao jogo e à venda de bebidas alcoólicas nos dias proibidos, eles corressem a Polícia a cacete; que, posteriormente, os operários que se tinham comprometido a fazer o que o denunciado mandara, retiraram seus compromissos e rebelaram-se contra a insistência do denunciado em vê-los arrebanhados para a prática da violência; que depois desse caso o denunciado abandonou o emprego e, passados mais ou menos dois meses, retirou-se para as ilhas do Estado do Pará" (AFCM. Caixa 227, processo no 85, de 15 de maio de 1946, fl. 32). Na assentada de testemunhas ocorrida em 5 de abril de 1948, o mestre de obras de 38 anos Julio B. de Araujo (natural do estado do Rio de Janeiro) disse que, após um tumulto no barracão, soube pelo próprio denunciado - conhecido como "Raimundo Pará" - "que este convidara Esmerido Silva Muniz e outros operários da referida construção para que, no dia que a Polícia comparecesse no barracão e suas proximidades fazendo investigações e busca no combate ao jogo e à venda de bebidas alcoólicas nos dias proibidos, eles corressem a Polícia a cacete; que, posteriormente, os operários que se tinham comprometido a fazer o que o denunciado mandara, retiraram seus compromissos e rebelaram-se contra a insistência do denunciado em vê-los arrebanhados para a prática da violência; que depois desse caso o denunciado abandonou o emprego e, passados mais ou menos dois meses, retirou-se para as ilhas do Estado do Pará" (AFCM. Caixa 227, processo no 85, de 15 de maio de 1946, fl. 32).
  • 23 23 PAI e jogador. A Voz Católica, n. 26, 24 abr. 1960. p. 4. PAI e jogador. A Voz Católica, n. 26, 24 abr. 1960. p. 4.
  • 24 24 TOSTES, José Barroso. A pelada. Amapá, n. 887, 8 dez. 1957. p. 3. TOSTES, José Barroso. A pelada. Amapá, n. 887, 8 dez. 1957. p. 3.
  • 25 25 Vejamos um exemplo. Num inquérito policial de setembro de 1946, o comerciante Francisco Serrano depôs que fora chamado pelo advogado Lauro Sodré Gomes "para uma reunião no botequim de João Vieira de Assis" e que, quando foi atender a tal chamado - na praça Capitão Assis de Vasconcelos -, avistou Sodré Gomes ansioso na calçada. Nesse momento, Serrano fora avisado pelo jogador apelidado "Labrione" de que, minutos antes, houvera naquele botequim uma discussão acerca de clubes de futebol, no meio da qual veio à baila o nome dele (Serrano). Este, para evitar incidentes, retornou a sua casa (AFCM. Caixa 224, processo no 1469, de 2 de outubro de 1946, fl. 12). Vejamos um exemplo. Num inquérito policial de setembro de 1946, o comerciante Francisco Serrano depôs que fora chamado pelo advogado Lauro Sodré Gomes "para uma reunião no botequim de João Vieira de Assis" e que, quando foi atender a tal chamado - na praça Capitão Assis de Vasconcelos -, avistou Sodré Gomes ansioso na calçada. Nesse momento, Serrano fora avisado pelo jogador apelidado "Labrione" de que, minutos antes, houvera naquele botequim uma discussão acerca de clubes de futebol, no meio da qual veio à baila o nome dele (Serrano). Este, para evitar incidentes, retornou a sua casa (AFCM. Caixa 224, processo no 1469, de 2 de outubro de 1946, fl. 12).
  • 26 26 A exploração pela Indústria e Comércio de Minérios S.A. (Icomi) - uma modesta firma constituída em Belo Horizonte, no ano de 1942 - das imensas jazidas de manganês do Amapá criou uma grande onda migratória para Macapá. A Icomi precisava de uma ampla infraestrutura para tornar possível a exploração e o escoamento da produção manganífera amapaense. Esta infraestrutura foi dividida em três seções: a) área de mineração (vila de Serra do Navio e área de extração); b) a ferrovia (que transportava o minério); c) e o Porto de Santana (distrito da capital, distante dela cerca de 20 km), onde terminava a ferrovia e de onde o minério saía, em navios, para o exterior. Abria-se, assim, no Amapá, uma ampla e diversificada frente de trabalho. A exploração pela Indústria e Comércio de Minérios S.A. (Icomi) - uma modesta firma constituída em Belo Horizonte, no ano de 1942 - das imensas jazidas de manganês do Amapá criou uma grande onda migratória para Macapá. A Icomi precisava de uma ampla infraestrutura para tornar possível a exploração e o escoamento da produção manganífera amapaense. Esta infraestrutura foi dividida em três seções: a) área de mineração (vila de Serra do Navio e área de extração); b) a ferrovia (que transportava o minério); c) e o Porto de Santana (distrito da capital, distante dela cerca de 20 km), onde terminava a ferrovia e de onde o minério saía, em navios, para o exterior. Abria-se, assim, no Amapá, uma ampla e diversificada frente de trabalho.
  • 27 27 Colocamos em destaque (negrito) os lugares de entretenimento visitados por Pedro Gomes em apenas uma noite (AFCM. Caixa 255, processo no 1219, de 21 de novembro de 1957, fl. 23). Colocamos em destaque (negrito) os lugares de entretenimento visitados por Pedro Gomes em apenas uma noite (AFCM. Caixa 255, processo no 1219, de 21 de novembro de 1957, fl. 23).
  • 28 28 PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. Mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de mineração industrial amazônica (1943-1964). Dissertação (mestrado em história) - Universidade de Campinas, Campinas, 2011. p. 103. PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. Mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de mineração industrial amazônica (1943-1964). Dissertação (mestrado em história) - Universidade de Campinas, Campinas, 2011. p. 103.
  • 29 29 CUNHA, Álvaro da. Noturno de Macapá. Amapá, n. 250, 24 dez. 1949. p. 3. Cunha nascera em 1923 e era belenense. Mudou-se para o Amapá em 1946. Publicou diversos poemas no jornal Amapá e na Revista do Amapá. Em 1952, com José Pereira da Costa e Marcílio Vianna, fundou a revista literária Latitude Zero. Janarista até o início da década de 1960, ele dirigiu por vários anos a assessoria técnica do governo territorial. No campo literário, publicou: Pássaros de chumbo (em 1951), Modernos poetas do Amapá (em 1960, com a colaboração de Ivo Torres e outros) e Amapacanto (1986). Ver: CUNHA, Álvaro da et al. Modernos poetas do Amapá. Rio de Janeiro: Lux, 1960. p. 71. CUNHA, Álvaro da. Noturno de Macapá. Amapá, n. 250, 24 dez. 1949. p. 3. Cunha nascera em 1923 e era belenense. Mudou-se para o Amapá em 1946. Publicou diversos poemas no jornal Amapá e na Revista do Amapá. Em 1952, com José Pereira da Costa e Marcílio Vianna, fundou a revista literária Latitude Zero. Janarista até o início da década de 1960, ele dirigiu por vários anos a assessoria técnica do governo territorial. No campo literário, publicou: Pássaros de chumbo (em 1951), Modernos poetas do Amapá (em 1960, com a colaboração de Ivo Torres e outros) e Amapacanto (1986). Ver: CUNHA, Álvaro da et al. Modernos poetas do Amapá. Rio de Janeiro: Lux, 1960. p. 71.
  • 30 30 FRANCO, Georgenor. Cabaré da angústia [que então compunha o livro inédito Poemas dentro da noite]. Amapá, n. 750, 5 jul. 1956. p. 2. FRANCO, Georgenor. Cabaré da angústia [que então compunha o livro inédito Poemas dentro da noite]. Amapá, n. 750, 5 jul. 1956. p. 2.
  • 31 31 MARINHO, Arthur Neri. Sermão da mágoa. Amapá, n. 751, 8 jul. 1956. p. 4. Arthur Neri Marinho era chavense (nascido em 1923). Em 1946, começou a trabalhar no gabinete do governador do Amapá e foi diretor da Imprensa Oficial do Território. Seus escritos literários foram publicados em jornais e revistas amapaenses (por exemplo: na revista Rumo) e paraenses (por exemplo: na revista Amazônia). Cf.: Álvaro da et al. Modernos poetas do Amapá, op. cit. p. 37. MARINHO, Arthur Neri. Sermão da mágoa. Amapá, n. 751, 8 jul. 1956. p. 4. Arthur Neri Marinho era chavense (nascido em 1923). Em 1946, começou a trabalhar no gabinete do governador do Amapá e foi diretor da Imprensa Oficial do Território. Seus escritos literários foram publicados em jornais e revistas amapaenses (por exemplo: na revista Rumo) e paraenses (por exemplo: na revista Amazônia). Cf.: Álvaro da et al. Modernos poetas do Amapá, op. cit. p. 37.
  • 32 32 ARAÚJO, Alcy. Chorando mar. In: ARAÚJO, Alcy. Poemas do homem do cais. Rio de Janeiro: MEC Editora, 1983. p. s.n. Alcy Araújo nasceu no município de Bragança (Pará), em 1924. Entre 1941 e 1953 trabalhou para vários jornais paraenses. Em meado de 1953, aceitando convite de Álvaro da Cunha, ingressou no funcionalismo público do território do Amapá, onde se tornou oficial e (depois) chefe de gabinete do governador. Foi diretor da Imprensa Oficial do Território. Além de Poemas do homem do cais, publicou o livro poético Autogeografia. Cf. Álvaro da et al. Modernos poetas do Amapá, op. cit. p. 9. ARAÚJO, Alcy. Chorando mar. In: ARAÚJO, Alcy. Poemas do homem do cais. Rio de Janeiro: MEC Editora, 1983. p. s.n. Alcy Araújo nasceu no município de Bragança (Pará), em 1924. Entre 1941 e 1953 trabalhou para vários jornais paraenses. Em meado de 1953, aceitando convite de Álvaro da Cunha, ingressou no funcionalismo público do território do Amapá, onde se tornou oficial e (depois) chefe de gabinete do governador. Foi diretor da Imprensa Oficial do Território. Além de Poemas do homem do cais, publicou o livro poético Autogeografia. Cf. Álvaro da et al. Modernos poetas do Amapá, op. cit. p. 9.
  • 33 33 FRANCO, Georgenor. O poéta das docas. Amapá, n. 758, 2 ago. 1956. p. 4. FRANCO, Georgenor. O poéta das docas. Amapá, n. 758, 2 ago. 1956. p. 4.
  • 34 34 Ibid. Ibid.
  • 35 35 CUNHA, Álvaro da. D.D.T. Amapá, n. 177, 31 jul. 1948. p. 4. O título do artigo já indica a carga de estigmas que o autor estava jogando sobre a doca, pois o D.D.T. é um veneno muito forte que até alguns anos atrás foi utilizado para afastar pragas e matar insetos. CUNHA, Álvaro da. D.D.T. Amapá, n. 177, 31 jul. 1948. p. 4. O título do artigo já indica a carga de estigmas que o autor estava jogando sobre a doca, pois o D.D.T. é um veneno muito forte que até alguns anos atrás foi utilizado para afastar pragas e matar insetos.
  • 36 36 AFCM. Caixa 299, processo no 257, de 2 de fevereiro de 1949, fl. 52. AFCM. Caixa 299, processo no 257, de 2 de fevereiro de 1949, fl. 52.
  • 37 37 Arlindo Silva de Oliveira (nascido em 1931) foi entrevistado no dia 13 de outubro de 2006. Foi aluno da Escola de Iniciação Agrícola do Amapá (município) e foi um dos primeiros pilotos de avião do recém-criado Território Federal do Amapá. Durante a entrevista, Arlindo Oliveira relatou-nos: "a 'Beira' era aí, onde é o comercio hoje. Aquilo tudo era madeira. A maioria era formada por judeu ou turco. Houve um incêndio. Disseram que aquilo foi ideia do governo, mas eu acho que não (era muita maldade). Queimou tudo, começaram do zero. Aí começaram a fazer comércio de alvenaria (...). E o mercado era ali. Aquilo era palafita, tinha até prostituição. Uma vez eu fui fazer compra lá e eu vi uma mulher sair de dentro d'um buraco daqueles, completamente nua (...). No bar, de vez em quando você tem ideias interessantes: um disse que faria daquele mercado uma área de artesanato; eu o quartel da guarda municipal, 'porque eu tenho andado por aí e quase todos os quartéis da guarda municipal que eu vejo é mais ou menos naquele estilo'. E outro disse 'não pode ser', e ficou aquela história lá. Eu disse: 'olha é melhor do que implodir, melhor do que a ideia do Gil Gato de meter embaixo. Resolvia dois problemas: a prostituição e a jogatina'. Uma vez mataram um cara lá com negócio de jogo, de jogo de baralho (...). Voltando ao incêndio que atribuíram ao governo, que não queria aquele negócio que era feio... Os caras vinham para cá, queriam ganhar dinheiro, não queriam saber de investir. Só queriam ficar naquilo ali. Vender naquele negócio todo. E hoje ainda existem muitos deles aqui. Aliás, deles não, os descendentes. Foi o velho JK que trabalhou muitos anos pra construir aquilo ali (o Romeu). Mas, naquela época era muito feio aquele pedaço ali, principalmente até ali aquela área da ponte [da rua Cândido Mendes]. Ali, bem no canto tinha um bar chamado Bar Caboclo que era de madeira, mas não foi atingido, porque o incêndio foi mais daquela passagem para trás". Arlindo Silva de Oliveira (nascido em 1931) foi entrevistado no dia 13 de outubro de 2006. Foi aluno da Escola de Iniciação Agrícola do Amapá (município) e foi um dos primeiros pilotos de avião do recém-criado Território Federal do Amapá. Durante a entrevista, Arlindo Oliveira relatou-nos: "a 'Beira' era aí, onde é o comercio hoje. Aquilo tudo era madeira. A maioria era formada por judeu ou turco. Houve um incêndio. Disseram que aquilo foi ideia do governo, mas eu acho que não (era muita maldade). Queimou tudo, começaram do zero. Aí começaram a fazer comércio de alvenaria (...). E o mercado era ali. Aquilo era palafita, tinha até prostituição. Uma vez eu fui fazer compra lá e eu vi uma mulher sair de dentro d'um buraco daqueles, completamente nua (...). No bar, de vez em quando você tem ideias interessantes: um disse que faria daquele mercado uma área de artesanato; eu o quartel da guarda municipal, 'porque eu tenho andado por aí e quase todos os quartéis da guarda municipal que eu vejo é mais ou menos naquele estilo'. E outro disse 'não pode ser', e ficou aquela história lá. Eu disse: 'olha é melhor do que implodir, melhor do que a ideia do Gil Gato de meter embaixo. Resolvia dois problemas: a prostituição e a jogatina'. Uma vez mataram um cara lá com negócio de jogo, de jogo de baralho (...). Voltando ao incêndio que atribuíram ao governo, que não queria aquele negócio que era feio... Os caras vinham para cá, queriam ganhar dinheiro, não queriam saber de investir. Só queriam ficar naquilo ali. Vender naquele negócio todo. E hoje ainda existem muitos deles aqui. Aliás, deles não, os descendentes. Foi o velho JK que trabalhou muitos anos pra construir aquilo ali (o Romeu). Mas, naquela época era muito feio aquele pedaço ali, principalmente até ali aquela área da ponte [da rua Cândido Mendes]. Ali, bem no canto tinha um bar chamado Bar Caboclo que era de madeira, mas não foi atingido, porque o incêndio foi mais daquela passagem para trás".
  • 38 38 COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Na ilharga da fortaleza, logo ali na beira, lá tem o regatão: os significados dos regatões na vida do Amapá (1945-1970). Belém: Açaí, 2008. p. 181-192. COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Na ilharga da fortaleza, logo ali na beira, lá tem o regatão: os significados dos regatões na vida do Amapá (1945-1970). Belém: Açaí, 2008. p. 181-192.
  • 39 39 Entrevista anteriormente citada. Entrevista anteriormente citada.
  • 40 40 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Unicamp, 2001. p. 312. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Unicamp, 2001. p. 312.
  • 41 41 AFCM. Caixa 240, processo no 90, de 25 de maio de 1946, fl. 38. AFCM. Caixa 240, processo no 90, de 25 de maio de 1946, fl. 38.
  • 42 42 Ver por exemplo: AFCM. Caixa 286, processo no 1159SN, de 6 de janeiro de 1946; e AFCM. Caixa 210, processo no 111, de 19 de setembro de 1946. Ver por exemplo: AFCM. Caixa 286, processo no 1159SN, de 6 de janeiro de 1946; e AFCM. Caixa 210, processo no 111, de 19 de setembro de 1946.
  • 43 43 Ver, por exemplo: AFCM. Caixa 262, processo no 695, de 11 de setembro de 1952, fls. 7-8, 12; e AFCM. Caixa 286, processo no 1159SN, de 6 de janeiro de 1946. Ver, por exemplo: AFCM. Caixa 262, processo no 695, de 11 de setembro de 1952, fls. 7-8, 12; e AFCM. Caixa 286, processo no 1159SN, de 6 de janeiro de 1946.
  • 44 44 À luz dos autos por nós analisados, é possível afirmar que o uso de expressões racistas e de termos como "corno" com pouca frequência geravam rixas. No atinente a expressões racistas, ver: AFCM. Caixa 275, processo no 579, de 11 de dezembro de 1951; e AFCM. Caixa 262, processo no 219, de 23 de dezembro de 1952. Já no relativo à utilização da ofensa com o termo "corno", destacamos o seguinte caso: em 13 de dezembro de 1962, Durval Santa Brígida (funcionário público e residente na av. Profa Cora de Carvalho, s.n.) apresentou queixa (através do advogado Alcino da Costa Bahia) contra Otaviano Souza, por este, dias antes, no Bar Sol Risal, ter proferido injúrias contra o querelante, chamando-o de "corno" na presença de várias pessoas e investindo contra o mesmo - sendo, porém, contido. Por tal ato, "além de o querelado ofender-lhe a dignidade", trazia à baila a lembrança da esposa deste, "respeitável e virtuosa mãe de família apesar de pobre" (AFCM. Caixa 270, processo no 1504, de 10 de janeiro de 1963, fls. 2-3). Ver também: AFCM. Caixa 170, processo no 1447, de 14 de novembro de 1961, fl. 23. À luz dos autos por nós analisados, é possível afirmar que o uso de expressões racistas e de termos como "corno" com pouca frequência geravam rixas. No atinente a expressões racistas, ver: AFCM. Caixa 275, processo no 579, de 11 de dezembro de 1951; e AFCM. Caixa 262, processo no 219, de 23 de dezembro de 1952. Já no relativo à utilização da ofensa com o termo "corno", destacamos o seguinte caso: em 13 de dezembro de 1962, Durval Santa Brígida (funcionário público e residente na av. Profa Cora de Carvalho, s.n.) apresentou queixa (através do advogado Alcino da Costa Bahia) contra Otaviano Souza, por este, dias antes, no Bar Sol Risal, ter proferido injúrias contra o querelante, chamando-o de "corno" na presença de várias pessoas e investindo contra o mesmo - sendo, porém, contido. Por tal ato, "além de o querelado ofender-lhe a dignidade", trazia à baila a lembrança da esposa deste, "respeitável e virtuosa mãe de família apesar de pobre" (AFCM. Caixa 270, processo no 1504, de 10 de janeiro de 1963, fls. 2-3). Ver também: AFCM. Caixa 170, processo no 1447, de 14 de novembro de 1961, fl. 23.
  • 45 45 AFCM. Caixa 275, processo no 687, de 22 de agosto de 1952, fl. 8. AFCM. Caixa 275, processo no 687, de 22 de agosto de 1952, fl. 8.
  • 46 46 AFCM. Caixa 286, processo no 1310, de 22 de fevereiro de 1959, fl. 5. Independentemente de ocorrer ou não no botequim, a ofensa com o adjetivo "fresco" gerava brigas. Vejamos alguns exemplos. No dia 5 de maio de 1951, foi realizado o interrogatório presidido pelo juiz U. Araújo, no qual "Cassiporé" depôs: que não eram verdadeiras as acusações feitas contra ele, pois os ferimentos de R. Lemos decorriam da queda deste; que tinha constantes desentendimentos com a ex-sogra, que o chamou de "fresco" - sendo "que essa palavra tem significado muito deprimente na linguagem do povo" -, o que foi suficiente para que ele investisse para agredi-la. Em sua peça de defesa, o advogado de "Cassiporé" afirmou que este foi recebido por sua sogra com insultos, sendo chamado de "fresco", "cuja tradução popular é pederasta passivo" (AFCM. Caixa 299, processo no 352, de 19 de setembro de 1949, fls. 31-33). A outra face da moeda da densidade ofensiva da palavra "fresco" é a força da homofobia no cotidiano dos homens. É o que se depreende do depoimento do ajudante de pedreiro "Manoelzinho" (cearense de 16 anos residente no Trem), que disse à autoridade policial que dias antes fizera aniversário; mas, não autorizara ninguém - e muito menos Luiz Santos (indivíduo "anormal") - a comemorar isto com festa. Disse ainda que era "absolutamente mentirosa e falsa" a alegação de Luiz dos Santos "de manter com ele, como sujeito ativo, contato anal, pois não é como ele nenhum degenerado, mesmo ativo" (AFCM. Caixa 255, processo no 1206, de 29 de abril de 1957, fl. 6). Ver também: AFCM. Caixa 262, processo no 623, de 22 de abril de 1952, fl. 34; e AFCM. Caixa 281, processo no 865, de 19 de dezembro de 1953, fl. 3. AFCM. Caixa 286, processo no 1310, de 22 de fevereiro de 1959, fl. 5. Independentemente de ocorrer ou não no botequim, a ofensa com o adjetivo "fresco" gerava brigas. Vejamos alguns exemplos. No dia 5 de maio de 1951, foi realizado o interrogatório presidido pelo juiz U. Araújo, no qual "Cassiporé" depôs: que não eram verdadeiras as acusações feitas contra ele, pois os ferimentos de R. Lemos decorriam da queda deste; que tinha constantes desentendimentos com a ex-sogra, que o chamou de "fresco" - sendo "que essa palavra tem significado muito deprimente na linguagem do povo" -, o que foi suficiente para que ele investisse para agredi-la. Em sua peça de defesa, o advogado de "Cassiporé" afirmou que este foi recebido por sua sogra com insultos, sendo chamado de "fresco", "cuja tradução popular é pederasta passivo" (AFCM. Caixa 299, processo no 352, de 19 de setembro de 1949, fls. 31-33). A outra face da moeda da densidade ofensiva da palavra "fresco" é a força da homofobia no cotidiano dos homens. É o que se depreende do depoimento do ajudante de pedreiro "Manoelzinho" (cearense de 16 anos residente no Trem), que disse à autoridade policial que dias antes fizera aniversário; mas, não autorizara ninguém - e muito menos Luiz Santos (indivíduo "anormal") - a comemorar isto com festa. Disse ainda que era "absolutamente mentirosa e falsa" a alegação de Luiz dos Santos "de manter com ele, como sujeito ativo, contato anal, pois não é como ele nenhum degenerado, mesmo ativo" (AFCM. Caixa 255, processo no 1206, de 29 de abril de 1957, fl. 6). Ver também: AFCM. Caixa 262, processo no 623, de 22 de abril de 1952, fl. 34; e AFCM. Caixa 281, processo no 865, de 19 de dezembro de 1953, fl. 3.
  • 47 47 AFCM. Caixa 262, processo no 628, de 8 de maio de 1952, fl. 5. AFCM. Caixa 262, processo no 628, de 8 de maio de 1952, fl. 5.
  • 48 48 SILVA, Fernando Teixeira da. Valentia e cultura do trabalho na estiva de Santos. In: BATALHA, Cláudio H. M. et al. (Org.). Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: Unicamp, 2004. p. 211. SILVA, Fernando Teixeira da. Valentia e cultura do trabalho na estiva de Santos. In: BATALHA, Cláudio H. M. et al. (Org.). Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas: Unicamp, 2004. p. 211.
  • 49 49 AFCM. Caixa 272, processo no 966, de 25 de novembro de 1957, fl. s/n. AFCM. Caixa 272, processo no 966, de 25 de novembro de 1957, fl. s/n.
  • 50 50 AFCM. Caixa 210, processo no 1180, de 19 de julho de 1957, fls. 6-7, 45. AFCM. Caixa 210, processo no 1180, de 19 de julho de 1957, fls. 6-7, 45.
  • 51 51 ERAM valentes na zona onde residem. Amapá, n. 17, 14 jul. 1945. Ocorrências policiais, p. 3. ERAM valentes na zona onde residem. Amapá, n. 17, 14 jul. 1945. Ocorrências policiais, p. 3.
  • 52 52 NUNES, Janary. Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946. p. 115. NUNES, Janary. Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946. p. 115.
  • 53 53 ATOS do Governo do Território Federal do Amapá. Amapá, n. 4, 4 abr. 1945. p. 4. ATOS do Governo do Território Federal do Amapá. Amapá, n. 4, 4 abr. 1945. p. 4.
  • 54 54 Um articulista do jornal A Voz Católica destacou, em maio de 1963 (um momento de grande tensão entre governo e trabalhadores), que o Tenente Uadih Charone estava espalhando guardas em todos os cantos da cidade e acrescentou: "mais não pode fazer, o chefe de polícia, como é seu ardente desejo, por falta de homens" (REPÓRTER curioso [seção]. A Voz Católica, n. 184, 5 maio 1963. p. 3). Um articulista do jornal A Voz Católica destacou, em maio de 1963 (um momento de grande tensão entre governo e trabalhadores), que o Tenente Uadih Charone estava espalhando guardas em todos os cantos da cidade e acrescentou: "mais não pode fazer, o chefe de polícia, como é seu ardente desejo, por falta de homens" (REPÓRTER curioso [seção]. A Voz Católica, n. 184, 5 maio 1963. p. 3).
  • 55 55 No erudito estudo A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Mikhail Bakhtin defende a tese da natureza subversiva do carnaval. Segundo ele, durante a Idade Média, "ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto" (BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 2008. p. 8-9). Outra é a tese defendida pelo antropólogo Roberto DaMatta, que afirma: "seria ingênuo supor que o Carnaval apenas neutraliza e inverte as oposições e posições sociais do cotidiano, abolindo suas dimensões de contraste. Na realidade, as inversões do Carnaval - precisamente pelo fato de permitirem o aparecimento aberto de comportamentos e fantasias abusivas à moralidade diária - terminam por provocar a confiança na ordem" (DAMATTA, Roberto. Ensaios de antropologia estrutural. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 58). Um balanço geral da bibliografia que trata do carnaval pode ser encontrado em: SOIHET, Rachel. Reflexões sobre o carnaval na historiografia - algumas abordagens. Tempo, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 169-188, 1999. No erudito estudo A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Mikhail Bakhtin defende a tese da natureza subversiva do carnaval. Segundo ele, durante a Idade Média, "ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto" (BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 6. ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 2008. p. 8-9). Outra é a tese defendida pelo antropólogo Roberto DaMatta, que afirma: "seria ingênuo supor que o Carnaval apenas neutraliza e inverte as oposições e posições sociais do cotidiano, abolindo suas dimensões de contraste. Na realidade, as inversões do Carnaval - precisamente pelo fato de permitirem o aparecimento aberto de comportamentos e fantasias abusivas à moralidade diária - terminam por provocar a confiança na ordem" (DAMATTA, Roberto. Ensaios de antropologia estrutural. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 58). Um balanço geral da bibliografia que trata do carnaval pode ser encontrado em: SOIHET, Rachel. Reflexões sobre o carnaval na historiografia - algumas abordagens. Tempo, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 169-188, 1999.
  • 56 56 AFCM. Caixa 227, processo no 1490SN, de 6 de abril de 1946, fls. 9-10, 28-29. AFCM. Caixa 227, processo no 1490SN, de 6 de abril de 1946, fls. 9-10, 28-29.
  • 57 57 Ibid., fl. 26. Ibid., fl. 26.
  • 58 58 Em entrevista, Miracy Barbosa se lembrou das festas nas sedes dos clubes: "(...) existia também a sede do Trem [Esportivo Clube] que fazia os grandes bailes, a sede do [Esporte Clube] Macapá, sede do Amapá [Clube]... Faziam grandes bailes. Mas ali só entrava quem tinha dinheiro (...)". Miracy Martel Barbosa (nascida em 1947) foi entrevistada - pelas pesquisadoras Barbara Lorena Costa e Najayra Monte Verde para o Projeto Banco de História Oral (Probho) da Universidade Federal do Amapá (Unifap) - no dia 19 de março de 2011. Ela nasceu na região das ilhas do Pará e chegou a Macapá quando tinha cinco anos de idade. Em entrevista, Miracy Barbosa se lembrou das festas nas sedes dos clubes: "(...) existia também a sede do Trem [Esportivo Clube] que fazia os grandes bailes, a sede do [Esporte Clube] Macapá, sede do Amapá [Clube]... Faziam grandes bailes. Mas ali só entrava quem tinha dinheiro (...)". Miracy Martel Barbosa (nascida em 1947) foi entrevistada - pelas pesquisadoras Barbara Lorena Costa e Najayra Monte Verde para o Projeto Banco de História Oral (Probho) da Universidade Federal do Amapá (Unifap) - no dia 19 de março de 2011. Ela nasceu na região das ilhas do Pará e chegou a Macapá quando tinha cinco anos de idade.
  • 59 59 GONÇALVES, Mariana de Araújo. Enredos da memória: história e identidade no carnaval das escolas de samba de Macapá. São Paulo: Ética do Brasil, 2011. p. 39-40. GONÇALVES, Mariana de Araújo. Enredos da memória: história e identidade no carnaval das escolas de samba de Macapá. São Paulo: Ética do Brasil, 2011. p. 39-40.
  • 60 60 A SEGUNDA festa dos "ferroviários". Amapá, n. 100, 15 fev. 1947. p. 3. A SEGUNDA festa dos "ferroviários". Amapá, n. 100, 15 fev. 1947. p. 3.
  • 61 61 CANTO, Fernando. Telas e quintais. Macapá: Conselho de Cultura do Amapá, 1987. p. 37, 113-114. CANTO, Fernando. Telas e quintais. Macapá: Conselho de Cultura do Amapá, 1987. p. 37, 113-114.
  • 62 62 Num comentário sobre como as festividades alteravam o dia a dia no Oiapoque da década de 1940, Alfredo Gama afirmou: "nessas festas, a gente da elite da terra logo pela manhã aparece na rua com seus melhores fatos, embora cheirando a 'penicilina', pois só saem da mala nos dias festivos (...)" (GAMA, Alfredo. Um rio a serviço de dois povos. Belém: Revista da Veterinária, 1947. p. 108). A respeito do esmero com que as pessoas se preparavam para as festas em Gurupá, Wagley destacou: "uma das impressões mais fortes que dali leva o forasteiro é o asseio do povo. Sente-se o cheiro da roupa limpa e os perfumes naturais da floresta amazônica. Mesmo quando está quente o dia, tem-se a impressão do frescor, pois as pessoas banham-se e vestem-se sempre especialmente para cada função religiosa e cada dança que se realiza. Apenas os perfumes baratos, com que se borrifam tanto os homens quanto as mulheres, perturbam a atmosfera extremamente agradável" (WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos. São Paulo: Editora Nacional, 1957. p. 263). Num comentário sobre como as festividades alteravam o dia a dia no Oiapoque da década de 1940, Alfredo Gama afirmou: "nessas festas, a gente da elite da terra logo pela manhã aparece na rua com seus melhores fatos, embora cheirando a 'penicilina', pois só saem da mala nos dias festivos (...)" (GAMA, Alfredo. Um rio a serviço de dois povos. Belém: Revista da Veterinária, 1947. p. 108). A respeito do esmero com que as pessoas se preparavam para as festas em Gurupá, Wagley destacou: "uma das impressões mais fortes que dali leva o forasteiro é o asseio do povo. Sente-se o cheiro da roupa limpa e os perfumes naturais da floresta amazônica. Mesmo quando está quente o dia, tem-se a impressão do frescor, pois as pessoas banham-se e vestem-se sempre especialmente para cada função religiosa e cada dança que se realiza. Apenas os perfumes baratos, com que se borrifam tanto os homens quanto as mulheres, perturbam a atmosfera extremamente agradável" (WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos. São Paulo: Editora Nacional, 1957. p. 263).
  • 63 63 No número do jornal A Voz Católica de 16 de fevereiro de 1964 lê-se: "a sombra do carnaval ainda se projeta triste na sociedade, embora há cinco dias tenha passado. Há ainda quem anda de pernas bambas de tanto sapatear; há quem não conseguiu digerir completamente os porres momescos; há quem sinta aperturas e falta do dinheiro jogado fora nas fantasias (...)" (LUZ e sombras [seção]. A voz católica, n. 225, 16 fev. 1964. p. 2). No número do jornal A Voz Católica de 16 de fevereiro de 1964 lê-se: "a sombra do carnaval ainda se projeta triste na sociedade, embora há cinco dias tenha passado. Há ainda quem anda de pernas bambas de tanto sapatear; há quem não conseguiu digerir completamente os porres momescos; há quem sinta aperturas e falta do dinheiro jogado fora nas fantasias (...)" (LUZ e sombras [seção]. A voz católica, n. 225, 16 fev. 1964. p. 2).
  • 64 64 Carlos Emanoel de Azevedo Bezerra (nascido em 1948) foi entrevistado - pelas pesquisadoras Alcione Barros e Rosicleide Barbosa para o Projeto Banco de História Oral (Probho) da Unifap - no dia 24 de março de 2011. Nascido em Portel (no Pará), em 1959 transferiu-se para Macapá, onde se tornou, primeiramente, vendedor e, depois, jornalista. Carlos Emanoel de Azevedo Bezerra (nascido em 1948) foi entrevistado - pelas pesquisadoras Alcione Barros e Rosicleide Barbosa para o Projeto Banco de História Oral (Probho) da Unifap - no dia 24 de março de 2011. Nascido em Portel (no Pará), em 1959 transferiu-se para Macapá, onde se tornou, primeiramente, vendedor e, depois, jornalista.
  • 65 65 O impacto recente do instigante livro A hidra de muitas cabeças, de Peter Linebaugh e Marcus Rediker, fortaleceu na historiografia brasileira (e mesmo ocidental) a insatisfação para com uma concepção restrita de classe trabalhadora (LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008). Marcel van der Linden, em um balanço historiográfico, afirma que "Peter Linebaugh e Marcus Rediker traçaram um quadro fragmentário de como um proletariado multiforme de 'derrubadores de matas e viajantes das águas' se desenvolveu, com vários espaços de luta: 'os campos comuns, a plantation, o navio e a fábrica'" (LINDEN, Marcel van der. Rumo a uma nova conceituação histórica da classe trabalhadora mundial. História, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 12, 2005). A coletânea Culturas de classe apresentou alguns dos esforços de pesquisadores que, nos últimos anos, tentaram dar conta de uma apresentação mais nuançada ou multifacetada da história da formação das classes trabalhadoras e de suas respectivas culturas. Segundo seus organizadores (Claudio H. M. Batalha, Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes), "a ênfase nas relações de produção, no processo e mercado de trabalho, como elementos estruturantes da coesão política dos trabalhadores, fez com que, por muito tempo, o acento recaísse sobremaneira nas lutas, nas formas de organização e nos movimentos políticos" (BATALHA, Claudio H. M.; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre. Apresentação. In: BATALHA, Claudio H. M. et al. (Org.). Culturas de classe, op. cit. p. 12-13). O impacto recente do instigante livro A hidra de muitas cabeças, de Peter Linebaugh e Marcus Rediker, fortaleceu na historiografia brasileira (e mesmo ocidental) a insatisfação para com uma concepção restrita de classe trabalhadora (LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008). Marcel van der Linden, em um balanço historiográfico, afirma que "Peter Linebaugh e Marcus Rediker traçaram um quadro fragmentário de como um proletariado multiforme de 'derrubadores de matas e viajantes das águas' se desenvolveu, com vários espaços de luta: 'os campos comuns, a plantation, o navio e a fábrica'" (LINDEN, Marcel van der. Rumo a uma nova conceituação histórica da classe trabalhadora mundial. História, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 12, 2005). A coletânea Culturas de classe apresentou alguns dos esforços de pesquisadores que, nos últimos anos, tentaram dar conta de uma apresentação mais nuançada ou multifacetada da história da formação das classes trabalhadoras e de suas respectivas culturas. Segundo seus organizadores (Claudio H. M. Batalha, Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes), "a ênfase nas relações de produção, no processo e mercado de trabalho, como elementos estruturantes da coesão política dos trabalhadores, fez com que, por muito tempo, o acento recaísse sobremaneira nas lutas, nas formas de organização e nos movimentos políticos" (BATALHA, Claudio H. M.; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre. Apresentação. In: BATALHA, Claudio H. M. et al. (Org.). Culturas de classe, op. cit. p. 12-13).
  • 66 66 A incipiência deste campo de estudo faz com que as seguintes palavras do antropólogo José Guilherme Cantor Magnani ainda sejam bastante válidas: "apesar do atual interesse em torno das condições de existência dos trabalhadores nos grandes centros urbanos, um aspecto concreto - as fontes de entretenimento com que a população preenche o tempo de lazer, nos bairros da periferia - tem sido deixado de lado pela maioria dos estudos e análises. Este aspecto, entretanto, é parte integrante do cotidiano desta população" (MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 3. ed. São Paulo: Unesp; Hucitec, 2003. p. 20). A incipiência deste campo de estudo faz com que as seguintes palavras do antropólogo José Guilherme Cantor Magnani ainda sejam bastante válidas: "apesar do atual interesse em torno das condições de existência dos trabalhadores nos grandes centros urbanos, um aspecto concreto - as fontes de entretenimento com que a população preenche o tempo de lazer, nos bairros da periferia - tem sido deixado de lado pela maioria dos estudos e análises. Este aspecto, entretanto, é parte integrante do cotidiano desta população" (MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 3. ed. São Paulo: Unesp; Hucitec, 2003. p. 20).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014
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