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Li a resposta de João Cezar de Castro Rocha e pus-me a pensar. Haveria muitas maneiras de elaborar uma tréplica. De modo maduro e sucinto: "a autora optou por fazer o mesmo que Kant". De modo maduro e menos sucinto (é de bom tom não parecer inatingível): "Numa festa, dois acadêmicos começam a discutir. A certa altura, o clima esquenta. Um deles desiste de pensar e de beber. Joga o vinho no rosto do outro. Este, lentamente, tira o lenço do bolso, tenta dar um jeito na lente dos óculos. E diz: bela intervenção". Nenhuma das duas me agradava por completo. Seria participar do comércio das citações de corredores e congressos. Não.

Como o caso dá o que pensar, esbocei uma resposta digna da pesquisadora que pretendo ser, considerando a bibliografia que tenho como referência, particularmente em sociologia do conhecimento e em história das controvérsias. Aprecio a reflexão que vou elaborando, volto à réplica e logo me dou conta de que não estou escrevendo uma "tréplica", mas algo entre artigo, ensaio, balanço bibliográfico. Além disso, sou advertida de que, apesar da elegância da atitude, o texto poderia ser entendido como um exercício de distanciamento, como se eu não estivesse implicada no que examino. De fato, a réplica de Castro Rocha é bela por não conter suas emoções, seria de bom tom demonstrar as minhas. Receei irritar ainda mais meu interlocutor. Sinceramente, nada mais estranho às minhas intenções, tanto com a resenha quanto com a tréplica. Não.

Há entretanto outros motivos pelos quais esta última modalidade de resposta também não poderia ser adotada. Passado o momento inicial de lisonjeio - nunca fui citada e "criticada" tantas vezes num mesmo texto -, percebo o óbvio ululante: minha tese não foi lida, o texto dela foi citado - e, infelizmente, uma coisa não implica necessariamente a outra. Ademais, os problemas teóricos, metodológicos e interpretativos, nada implícitos, às minhas resenhas escapam inteiramente ao meu interlocutor. E, por motivos que prefiro não especular, ele não concebe a possibilidade de haver autonomia intelectual em relação àqueles que se elogia e se aprecia. Confissão involuntária disso encontra-se na passagem em que Castro Rocha chega mesmo a perguntar como é possível que eu não esteja de acordo com quem "elogio" e me cobre coerência com o seu pressuposto a meu respeito, segundo o qual reconhecimento é sinônimo de submissão. Se a modalidade de excelência intelectual que elegi, pela qual trabalho com afinco, pagando o alto preço que ela implica, está ausente de seu horizonte de atitudes possíveis, não há explicação que o faça compreendê-la. Com efeito, a "réplica" me responde menos do que parece querer me atingir. Como respondê-la sem alimentar seu princípio motriz? Cogito não responder.

Mas eu me preocupo, é evidente. Há sempre leitores que se deixam levar pela aparência demolidora de palavras violentas, e eles em geral são tagarelas. Volto a Norbert Elias e me tranquilizo ao mesmo tempo que me inquieto com sua "sociologia da fofoca".1 1 ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. Resisto à vaidade de silenciar e, na tentativa de responder sem entrar na espiral da agressividade, ensaio estilo oposto. Evitação metódica do panteão de citações, texto enxuto, equilíbrio, em suma. Eis o que sai: "Só é mais ordinário do que subestimar os autores quando se alcança alguma idade, superestimar autores quando se é jovem. Ao escrever a resenha, cometi este erro. Mas não o cometeria duas vezes". A atitude aí pressuposta me agrada, pois há beleza e dignidade em se reconhecer um erro. Entretanto, ela me onera pela arrogância. Nada mais distante das minhas condutas. Não.

Desisto dela e me indago - não exatamente, nem apenas, o que escrever, mas - o que fazer? Meu detrator não tem mesmo que ler minha tese inteira e tampouco os livros que resenhei - embora esse fosse talvez o único antídoto à tortura a que submeteu meus textos. Castro Rocha tem uma obra da qual cuidar e ela toma seu tempo e energia, como deve ser, afinal. Contudo, isso não interdita nem a mim nem a ninguém o exercício de colocar alguns livros em diálogo - como tentei fazer na resenha.2 2 A saber: o livro de Castro Rocha, a tese de livre-docência de Hélio de Seixas Guimarães (Machado de Assis, o escritor que nos lê. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013) e o livro de Pascoale Casanova (A república mundial das letras. São Paulo: Estação Liberdade, 2002). Em tempo: "as críticas" dirigidas a este livro afirmam que a autora peca nas análises dos textos, mas não mostram em que essas análises demoliriam o argumento dela. Sigo me indagando se esse gênero de questionamento à sociologia da literatura reclama por mais análise ou por mais citações. Discerni-las não é fundamental? E se houver nisso transgressão, pois entrelaça o que na vida anda junto e só naquela ficção convencional da divisão social do trabalho disciplinar caminha separado - não será ainda mais legítimo?

Alguns episódios do cotidiano levam-me a pensar na irresponsabilidade perante as novas gerações. Pois é certo que a expansão universitária das últimas décadas moldou agentes "racionais" do ponto de vista da carreira profissional. Elaboro uma hipótese com um exemplar típico-ideal do "quadro de recepção" desse pequeno tiroteio. Seja por autocensura refletida, seja por inculcação de princípios impensados, rotineiramente este aluno "racional" se sente pouco encorajado a pensar por si próprio (propor novos arranjos lógicos, elaborar outros programas de pesquisa etc.). Como reage em face da brutalidade da desqualificação a que somos expostos se ousamos, em face dos riscos materiais e simbólicos envolvidos nessa (des)ventura? No longo prazo, o que esperar de nossas práticas intelectuais senão reprodução dos quadros e posições, crescimento com estagnação - para brincar (a sério, é preciso explicar?) com trocadilhos do léxico econômico. Convicta de que seria patético tentar me defender de tiros com argumentos, elimino todas as respostas que havia imaginado. Bem ponderadas as coisas, a tréplica já foi escrita. É a própria resenha.

Sine ira et studio

Volto, então, a trabalhar em minha pesquisa. Em meio à transcrição de correspondências, consulta a arquivos pessoais, leitura de rodadas e mais rodadas de críticas, réplicas, tréplicas, reconstituição do campo, elaboração de prosopografia, delineamento de habitus - enfim, mergulhada em conceitos, técnicas de pesquisa e materiais cujo domínio é pressuposto para o boa prática da história intelectual e da sociologia da cultura -, deparo-me com uma sentença.

Ofereço o contexto para que ela faça sentido. Numa controvérsia, estabelecida entre numerosos economistas e historiadores a respeito do conceito de modo de produção, um filósofo constrói para si o lugar de árbitro da controvérsia. A discussão segue em alto nível, ninguém alega se tratar de um intruso, e ele é tido, na configuração, digamos, como um "superego teórico". Então, depois de dissecar os pressupostos lógicos dos adversários em pugna, esse filósofo-árbitro dirigiu-se ao autor do livro que deu origem ao debate, em termos que deixo entre aspas, mas não citarei ipsis litteris: "seu texto é desconcertante, apaixonante. Sempre agrada estar diante de um talento a serviço da formulação das questões e da superação das mesmas, guardando escrupulosamente o respeito por certas regras do jogo (pensar, afinal, não será isso mesmo?). Lendo o senhor - novamente - são as 'regras do jogo' que me pareceram contestáveis. Mas só elas, juro".

Eis a paráfrase da sentença que eu gostaria de ter escrito e com a qual eu colocaria um ponto final na prosa. Mas eu não sou este filósofo. Então, esgotado meu tempo para elaboração da tréplica, do mesmo modo que Guido, aquele diretor de 8 1/2 de Fellini, optou por não fazer seu filme, eu optei por não responder. Mas só porque se esgotou o tempo, juro.

  • 1 1 ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
  • 2 2 A saber: o livro de Castro Rocha, a tese de livre-docência de Hélio de Seixas Guimarães (Machado de Assis, o escritor que nos lê. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013) e o livro de Pascoale Casanova (A república mundial das letras. São Paulo: Estação Liberdade, 2002). Em tempo: "as críticas" dirigidas a este livro afirmam que a autora peca nas análises dos textos, mas não mostram em que essas análises demoliriam o argumento dela. Sigo me indagando se esse gênero de questionamento à sociologia da literatura reclama por mais análise ou por mais citações. Discerni-las não é fundamental? A saber: o livro de Castro Rocha, a tese de livre-docência de Hélio de Seixas Guimarães (Machado de Assis, o escritor que nos lê. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013) e o livro de Pascoale Casanova (A república mundial das letras. São Paulo: Estação Liberdade, 2002). Em tempo: "as críticas" dirigidas a este livro afirmam que a autora peca nas análises dos textos, mas não mostram em que essas análises demoliriam o argumento dela. Sigo me indagando se esse gênero de questionamento à sociologia da literatura reclama por mais análise ou por mais citações. Discerni-las não é fundamental?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014
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