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A Impressão Régia do Rio de Janeiro e a colonização dos sertões na construção do novo império português na América (1808-1822)

RESUMO

Este artigo busca uma primeira aproximação a um conjunto de publicações da Impressão Régia do Rio de Janeiro entre 1808 e 1822, que visavam a ressaltar as medidas tomadas pela Coroa portuguesa, estabelecida então no Rio de Janeiro, com o fim de promover a integração política das diferentes regiões surgidas do processo de colonização da América. Essas publicações são abordadas sob o viés da sua importância para a efetivação do projeto de criação de um novo império português na América, nascido das reformas ilustradas do império português, chamando-se a atenção para o papel político exercido pela imprensa na sustentação e legitimação desse projeto político e ressaltando a relação existente entre cultura e poder no reformismo ilustrado português.

Palavras-chave:
imprensa; império português; civilização; sertões; colonização.

ABSTRACT

This paper aims to do a first approach to a set of publications of the Royal Press (Impressão Régia) of Rio de Janeiro between 1808 and 1822, which sought to highlight the measures taken by the Portuguese Crown, then established in that city, in order to promote the political integration of the different regions emerged from the Portuguese colonization process of America. These publications are discussed in the context of their importance to implement the project of a new Portuguese Empire in America, born of the enlightened reforms of the existing empire. The goal is to draw attention to the political role played by the press in support of and to legitimate this political project, highlighting the intrinsic relationship between culture and power in the Portuguese enlightened reformism.

Keywords:
press; Portuguese Empire; civilization; hinterlands; colonization

Introdução

Em 1o de maio de 1808, quando já estava a uma distância segura das tropas napoleônicas, o então príncipe regente de Portugal d. João resolve abandonar a política de amizade aparente com os franceses seguida até então e publicar um Manifesto onde expõe as justificativas para a transferência da sua Corte para a América e, finalmente, declara formalmente guerra à França. Segundo o texto desse documento, a falta de reconhecimento, por parte da França, do direito de Portugal à neutralidade frente ao conflito entre França e Inglaterra (direito fixado inclusive em tratados firmados entre França e Portugal), e a posterior invasão do território português por tropas francesas fez com que o monarca português tomasse a resolução de transferir sua Corte para seus domínios americanos. Afirmava ainda, em trecho muito citado daquele documento, que não era com injúrias e nem com vãs ameaças, ao contrário do que praticavam os franceses, que "a Corte de Portugal levantará a sua voz do seio do novo império que vai criar".1 1 Manifesto, ou exposição fundada, e justificativa do procedimento da Corte de Portugal a respeito da França, desde o princípio da Revolução até a época da invasão de Portugal; e dos motivos, que a obrigaram a declarar a guerra ao imperador dos franceses, pelo fato da invasão, e da subsequente Declaração de Guerra feita em consequência do Relatório do Ministro das Relações Exteriores. COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense ou Armazém Literário. Setembro de 1808. p. 256. E o seio do novo império português não era outro senão o Rio de Janeiro, onde o príncipe regente havia acabado de se instalar com a sua Corte.

Expressava, dessa forma, na decisão de transferir a Corte, a execução de um projeto político que já estivera em pauta antes, em momentos nos quais a monarquia corria algum risco de se perder, havendo sido considerado por diversos estadistas e letrados portugueses desde a restauração da monarquia em 1640, e ganhando força durante o século XVIII, no contexto do reformismo ilustrado português. Na conjuntura da guerra contra a França napoleônica, a ideia de transferência da Corte para a América foi defendida por d. Rodrigo de Sousa Coutinho, secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos (entre 1796 e 1801) e presidente do Real Erário (entre 1801 e 1803), que afirmava em sua Memória sobre a mudança da sede da monarquia, escrita em 1803, que Portugal não era a melhor parte da monarquia, e que diante do quadro de incertezas que rondava o reino na Europa, sempre restaria ao soberano a alternativa de criar um poderoso império no Brasil, de onde poderia tornar a reconquistar o que poderia ter perdido na Europa.2 2 Carta dirigida ao príncipe regente d. João fazendo uma detalhada exposição sobre as condições políticas da Europa em face das Guerras de Napoleão; aludindo à invasão da Península; e provável invasão às capitanias do Rio Grande e São Paulo pelos franceses. Quinta de São Pedro, 16 de agosto de 1803 - BNRJ/MN, Coleção Linhares, I-29, 13, 22. Dessa forma, ao finalmente ser posta em prática, em finais de 1807, a transferência da Corte atualizava projetos longamente acalentados por letrados e estadistas portugueses, e não apenas atendia unicamente à pressão britânica pela abertura de mercados.

O pensamento ilustrado português tinha como motivação principal a superação do sentimento manifestado por estadistas e letrados naturais do reino e das colônias na segunda metade do século XVIII, de que o império português estava em uma situação de decadência econômica e atraso cultural. Assim, a difusão das Luzes em território português deu origem a uma cultura científica alicerçada em um pragmatismo que, orientado por uma política de Estado, estimulava os estudos de finalidade prática, em detrimento dos estudos políticos e filosóficos, tendo como principal objetivo a regeneração econômica do reino, condição fundamental para evitar a fragmentação do império.3 3 Lorelai Kury chama a atenção para o fato de que o pragmatismo não era um atributo exclusivo das Luzes portuguesas. Tendo a defesa da utilidade dos estudos da natureza se transformado em lugar comum durante o alto Iluminismo. KURY, Lorelai. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde - Manguinhos. V. 11 (suplemento 1), p. 110, 2004. Fruto dessa política de Estado foi o desenvolvimento do conhecimento de história natural, em particular da colônia portuguesa da América, com a finalidade de desenvolver um novo padrão de exploração colonial que auxiliasse na superação daquela situação. O que aponta para a existência de uma articulação entre política e cultura, ou entre saber e poder, no pensamento ilustrado português. Como ressalta Ângela Domingues, com o objetivo de recuperar o poder e prestígio de que a monarquia portuguesa gozara outrora, a ciência é mobilizada como de fonte de conhecimento e como forma de domínio "da natureza pelo homem, dos recursos naturais pelo Estado, dos 'bárbaros' ameríndios e africanos pelos portugueses 'civilizados'."4 4 DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império português em finais do Setecentos. História. Ciências, Saúde - Manguinhos. V. VIII (suplemento), p. 832, 2001.

D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi o principal incentivador de uma política de fomento da exploração das potencialidades econômicas naturais das colônias ultramarinas de Portugal. Tal atitude era representativa da sua consciência da fragilidade do reino e da sua dependência econômica e política em relação aos seus domínios coloniais. O que deixou expresso em Memória sobre o melhoramento dos domínios de Sua Majestade na América, que apresentou ao Conselho de Ministros de Portugal em 1798, onde o desenvolvimento da metrópole passava a ser concebido conjunta e articuladamente ao da sua principal colônia. Revertendo a lógica do processo histórico de dominação colonial, d. Rodrigo buscou construir a imagem de uma "união natural" existente entre os interesses coloniais e os metropolitanos, onde deveria prevalecer o sentimento de pertencimento à nação lusa. O projeto de reformas ilustradas do ministro naturalizava a ideia da interdependência e da reciprocidade nas relações entre a metrópole e suas conquistas.5 5 A respeito dos projetos de reforma do império português de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, ver LYRA, Maria de Lourdes Vianna. A utopia do poderoso império. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, p. 66-83.

Dessa forma, Sousa Coutinho passou a ser uma espécie de coordenador das atividades científicas nas colônias, sendo um grande entusiasta das expedições científicas ao ultramar.6 6 SANTOS, Nívia Pombo Cirne dos. Dom Rodrigo de Souza Coutinho: pensamento e ação político-administrativa no império português (1778-1812). Dissertação (Mestrado). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2002, p. 131-161. Tais expedições, também conhecidas pelo nome de viagens filosóficas, tinham o objetivo de realizar o inventário dos recursos naturais desses territórios e das suas aplicações econômicas; e eram complementadas pelo emprego de correspondentes residentes no ultramar (em geral, bacharéis da Universidade de Coimbra, nascidos nos territórios coloniais), a serviço do desenvolvimento científico e econômico do império. Esses homens compunham aquilo que o historiador inglês Kenneth Maxwell denominou de a "Geração de 1790". Uma verdadeira "força-tarefa", nas palavras do autor, incumbida de fornecer informações práticas para a Coroa portuguesa.7 7 MAXWELL, Kenneth. A geração de 1790 e a ideia do império luso-brasileiro. In: Chocolates, piratas e outros malandros: ensaios tropicais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 190. Na síntese de Magnus Pereira e Ana Lúcia Cruz:

Agentes do império e filhos da Ilustração em Portugal, esses intelectuais brasileiros do século XVIII foram responsáveis não só por produzir informações de primeira mão sobre o mundo colonial, mas por dar feição de planos e projetos a muitas das ideias que articulavam a unidade do mundo português no complexo contexto de sua diversidade cultural e descontinuidade espacial.8 8 PEREIRA, Magnus; CRUZ, Ana Lúcia. Os colonos cientistas da América portuguesa: questões historiográficas. Revista de História Regional, v. 19, p. 10, 2014.

Baseado em um modelo ilustrado de conhecer e intervir na realidade, resumido na frase sem livros não há ilustração, a fundação de tipografias assumiu um lugar importante na política reformista ilustrada de Sousa Coutinho. Tais tipografias exerciam o papel de divulgação do conhecimento científico sobre História Natural, incentivando o emprego de novos produtos e técnicas agrícolas baseadas na razão e não mais na pura empiria. Como afirma Nívia P. C. dos Santos: "Acreditavam que a leitura teria o poder de melhorar o futuro dos homens, procurando divulgar algo que ainda estava inacessível para a maioria deles".9 9 SANTOS, Nívia Pombo Cirne dos. Dom Rodrigo de Souza Coutinho: pensamento e ação político-administrativa no império português (1778-1812), op. cit., p. 220. Com esse fim, ele fundou em 1799 a Oficina Calcográfica, Tipoplástica e Literária do Arco do Cego. Colocada sob a direção do botânico natural de Minas Gerais, frei José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811).10 10 Anteriormente, Frei Veloso já havia sido editor do periódico agrário Paladio Portuguez ou Clarim de Pallas que anuncia os novos descobrimentos n'agricultura, artes, manufacturas, commercio, etc., publicado pela Officina Patriarchal de Lisboa, entre abril e maio de 1796. NUNES, Maria de Fátima. Imprensa periódica científica (1772-1852): leituras de "sciencia agrícola" em Portugal. Lisboa: Estar Editora, 2001, p. 67-68. Entre as principais tarefas editoriais da tipografia do Arco do Cego incluíam-se a compilação dos textos, tradução de obras em língua estrangeira e discussões sobre os diversos ramos da História Natural. Essa tipografia foi extinta por decreto de d. Rodrigo de 7 de dezembro de 1801, que também reorganizou a Impressão Régia de Lisboa (criada pelo alvará de 24 de dezembro de 1768), transferindo para essa instituição o pessoal e oficinas da Tipografia do Arco do Cego. Significativamente, d. Rodrigo extinguia o trabalho da Tipografia do Arco do Cego no mesmo ano em que deixava a Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos para assumir a presidência do Erário Régio, ao qual a Impressão Régia de Lisboa estava subordinada. Dessa forma, transferia as funções de difusão de conhecimentos científicos sobre o império português para outra tipografia que continuaria sob o seu comando. Assim, pode-se afirmar, como faz Nívia Pombo Cirne dos Santos, que esse trabalho de impressão e divulgação estava no centro das preocupações de d. Rodrigo e de seu projeto de reformas ilustradas para o império.11 11 SANTOS, Nívia Pombo Cirne dos, Dom Rodrigo de Souza Coutinho: pensamento e ação político-administrativa no império português (1778-1812), op. cit., p. 217-222.

A Impressão Régia do Rio de Janeiro foi criada pelo decreto de 13 de maio de 1808 para dar continuidade na nova sede do império português ao trabalho executado pela sua homônima lisboeta. Estava subordinada à Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, então sob a responsabilidade de d. Rodrigo de Sousa Coutinho. A nova tipografia é criada em um momento no qual o projeto de reforma do império se transforma em um projeto de construção de um novo império português na América, posto em prática com a transferência da Corte. Frente às tensões políticas que essa nova situação criava, a tipografia atuou na legitimação e sustentação daquele projeto político. Dessa forma, a sua função cultural de difundir o conhecimento das Luzes na nova sede do império português se apresentava ao mesmo tempo como uma função política.

O território onde se vinha criar o novo império português, no entanto, ainda carecia de uma unidade ou centralização política, estando constituído de regiões, geradas e ordenadas a partir da fundação dos núcleos urbanos coloniais.12 12 Ao analisar o processo de colonização da América portuguesa, Ilmar R. de Mattos critica as interpretações que veem a existência, desde o seu princípio, de uma unidade político-administrativa que unificasse o território da colônia. Segundo ele, em que pesem os esforços de muitos em identificar uma unidade nacional em gestação desde o período colonial, a realidade construída pelo processo de colonização foi bem outra: o de formação de regiões. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990, p. 23-33. Como explica Maria de Lourdes Viana Lyra, se até então não interessara à metrópole a inter-relação das regiões coloniais, a partir da instalação da Corte no Rio de Janeiro tornava-se impositiva a criação de condições práticas de intercomunicação entre todas as partes do território. E, nesse contexto, a abertura de vias de comunicação pelo interior colocava-se como medida prioritária uma vez que, além de necessárias à efetivação da prática administrativa entre a capital do novo império português na América e as demais regiões surgidas do processo de colonização, tornava-se indispensável à ocupação plena do território, que se queria definido e integrado, e à ampliação das transações comerciais: "Assegurar as fronteiras consideradas naturais, mas ainda não bem definidas, dos seus domínios e interligar politicamente os dispersos núcleos de ocupação no vasto Novo Mundo português passaram a constituir as metas prioritárias da Corte do Rio de Janeiro."13 13 LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império, op. cit., p. 136-137.

Três tipos de publicação intimamente relacionados entre si, emanados dos prelos da Impressão Régia do Rio de Janeiro, buscavam ressaltar os esforços encetados pelo Estado português para o estabelecimento de uma comunicação mais regular entre a nova Corte do Rio de Janeiro e as regiões mais afastadas da América portuguesa, promovendo um maior conhecimento sobre o estado da colonização dos sertões da colônia no início do século XIX: os roteiros de viagem pelas capitanias interiores da América portuguesa, os mapas estatísticos populacionais e as notícias sobre a pacificação das nações indígenas que ainda habitavam aqueles sertões. Conforme explica Maria Elisa Mäder, enquanto a região colonial representava o espaço preenchido pela ordem da colonização estabelecida pela Igreja e pelo Estado (o "mundo da ordem", o "cheio"), o sertão era o espaço ainda não totalmente preenchido pela ordem colonizadora (o "mundo da desordem", o "vazio").14 14 MÄDER, Maria Elisa Noronha de Sá. O vazio: o sertão no imaginário da colônia nos séculos XVI e XVII. Dissertação (Mestrado). Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1995. O sertão era, sobretudo, o espaço do Outro da civilização, refúgio para aqueles que se recusavam a se tornar civilizados, sob a tutela do Estado português e da religião cristã. Mas era também o espaço onde viajantes naturalistas e administradores coloniais encontravam os produtos com potencialidade econômica para ajudar o império português a superar a situação de crise. Uma e outra característica justificavam sua integração ao processo de colonização. O que nos permite classificá-lo como uma categoria complexa.

O objetivo do presente artigo é analisar uma parte daquele conjunto documental, apontando para o papel que a imprensa assume no sentido de auxiliar os esforços encetados pelo Estado português para promover a articulação política das diversas regiões ao poder central recém-estabelecido no Rio de Janeiro, com a necessária colonização dos sertões e sua integração. Busca-se, dessa forma, chamar a atenção para o papel político exercido pela imprensa na sustentação e legitimação do projeto de criação do novo império português na América.

Autores como Marco Morel, Lucia Bastos Neves, Tânia Bessone Ferreira e Mariana Monteiro de Barros identificam uma renovação das abordagens políticas e culturais da imprensa, nas últimas décadas, que redimensiona a importância da imprensa como fonte documental, na medida em que enuncia discursos e expressões de protagonistas sociais, por um lado; e como agente histórico que intervém nos processos e episódios, em vez de servir-lhes como simples "reflexo", por outro: "Força ativa e não mero registro de acontecimentos".15 15 BARROS, Mariana Monteiro de; MOREL, Marco. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 9. A abordagem da atuação da Impressão Régia do Rio de Janeiro como agente histórico nos permite chamar a atenção para a indissolúvel relação entre cultura e poder que embasa o trabalho das tipografias nas monarquias absolutas.

Conhecer, colonizar, civilizar

A Impressão Régia do Rio de Janeiro publicou, entre janeiro de 1813 e dezembro de 1814, a revista O Patriota: Jornal literário, político e mercantil. Periódico de cultura e ciências que publicava estudos de ciências, literatura, história, geografia, estatística, política, entre outros. Segundo definição de Lorelai Kury, "O Patriota foi o primeiro jornal brasileiro a publicar artigos densos e analíticos sobre ciências e artes, culturas e letras".16 16 KURY, Lorelai (Org.). Iluminismo e império no Brasil - O Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008, p. 9. Uma pequena parte dessa produção nos interessa particularmente para o objetivo que nos ocupa nesse artigo: os relatos e roteiros de viagem pelas capitanias interiores da América portuguesa e outros pontos do império, produzidos por letrados e administradores coloniais.17 17 Segundo levantamento feito pelo autor a partir das classificações apresentadas no Índice Geral do Patriota, publicado no último número do periódico, tais memórias, classificadas na sua esmagadora maioria nas categorias de História, Geografia ou Topografia, perfazem aproximadamente 10% do total de publicações do periódico ao longo dos seus dois anos de vida. Tais relatos apresentavam formatos muito variados. Os mais simples apenas indicavam os principais pontos de referência ao longo de um caminho e as distâncias entre eles, tais como o Roteiro para seguir a melhor estrada do Maranhão para a corte do Rio de Janeiro, o Roteiro para regressar com a maior presteza que se pode imaginar e o Roteiro para seguir a estrada do Maranhão para a cidade da Bahia. Todos de autoria de José Pedro Cézar de Menezes e escritos em 9 de fevereiro de 1810:

Da Corte do Rio de Janeiro ao Arraial de S. Luzia se gastam 10 dias; aqui sendo em tempo de águas se embarca em canoa ligeira e vai sair ao Rio de S. Francisco com oito dias, e ao dito arraial 12 - e à cidade de Oeiras 10 - a Aldeias Altas 7 - e a Maranhão 5, e em 44 dias se faz uma tão longa viagem.18 18 MENEZES, José Pedro Cezar de. Roteiro para regressar com a maior presteza que se pode imaginar. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 6, p. 8, dezembro de 1812. Cezar de Menezes havia sido governador da capitania do Piauí entre 1803 e 1805.

Como se percebe desse pequeno roteiro, apesar do esforço por parte da Coroa no sentido de abrir novos caminhos terrestres, os rios ainda eram as principais vias de acesso aos sertões no início do século XIX.19 19 Apenas nas partes não navegáveis dos rios as viagens eram feitas utilizando-se dos caminhos terrestres, quando então se colocavam as canoas sobre carros de boi. As entradas ao sertão por meio da navegação fluvial eram denominadas de monções, e se tornaram mais frequentes a partir do segundo decênio do século XVIII, após a descoberta das minas de Cuiabá e Mato Grosso. Roteiros mais completos faziam a descrição geográfica dos rios utilizados ao longo do caminho, informando sobre as suas condições de navegabilidade, mas também sobre as suas potencialidades econômicas. Como, por exemplo, na descrição do rio Tietê, ponto de partida da Viagem da capitania de São Paulo à Vila de Cuiabá:

O rio Tietê, que se diz ter 180 a 200 léguas de curso, tem a sua origem nas serranias da costa do mar, entre as Vilas de Santos e S. Sebastião. As suas margens são compostas de frondosos e espessos matos, que produzem várias espécies de frutas silvestres e palmitos de que se utilizam os navegantes. Entre as árvores frutíferas é digna de nota a que produz a fruta chamada Jataiz, que não sabemos classificar, mas cuja casca é de tal grossura que os gentios e sertanejos dela fabricam canoas, em que navegam. Do seu lenho, por ser mui sólido e de muita duração, se servem os moradores com vantagem para a fábrica de seus engenhos de açúcar; e da resina, que com profusão destilam as suas raízes, se utilizam os índios para as suas luzes e para vários enfeites que usam trazer nas orelhas e beiços, preparando-a para este último fim, de maneira que muito se assemelha ao verdadeiro alambre. Estes bosques são todos povoados de grande quantidade de caças e de inumerável variedade de aves. O rio é também fertilíssimo de ótimos pescados.20 20 Viagem da capitania de São Paulo à Vila de Cuiabá. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 5, p. 55-56, maio de 1813. O periódico não indica a autoria e nem a data de escritura do texto. Manoel Salgado Guimarães supõe que essa memória também seja de autoria de José Pedro Cezar de Meneses. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. As luzes para o império: história e progresso nas páginas de O Patriota. In: KURY, Lorelai (Org.). Iluminismo e império no Brasil - O Patriota (1813-1814), op. cit., p. 88.

A memória segue com a descrição das potencialidades econômicas dos outros rios que compõem o trajeto, que levava ainda cerca de cinco meses no começo do século XIX (Paraná, Pardo, Camapoã, Coxiim, Taquari, Paraguai e Cuiabá):

O rio Grande, ou Paranam, abunda igualmente em excelente peixe, e nas suas margens se encontram, do mesmo modo, as frutas em abundância de caças. {...} O rio Coxiim corre entre ribeiras férteis de caça; mas não se encontram nelas as frutas silvestres. As suas águas são excelentes e salutíferas. {...} O rio Taquari é ainda mais fértil de pescados que o Coxiim. As suas ribeiras, compostas de matos e de aprazíveis campinas, são todas povoadas da mesma variedade e abundância de caças. {...} O Paraguai tem mais de 60 braças de largura; {...} As águas desse rio são péssimas por quentes e cheias de areias, mas nelas se cria grande fartura de pescados. {...} As suas beiradas têm a mesma variedade de caças que as do precedente. {...} O Cuiabá, além de gozar das mesmas particularidades dos precedentes, pelo que respeita à caças e pescados, tem a de se encontrar logo acima da sua barra, dia e meio ou dois dias de viagem, na sua margem esquerda, um famoso bananal do qual se utilizam com profusão os viandantes e os índios que vivem por essas paragens. {...} Além disso, as suas campinas criam o arroz com uma abundância incrível e de melhor qualidade do que o cultivado, por ser muito graúdo.21 21 Viagem da capitania de São Paulo à Vila de Cuiabá, p. 57-60.

Esses roteiros de viagem mantinham o mesmo espírito e objetivo pragmático das memórias resultantes das viagens filosóficas que caracterizaram a difusão da Ilustração no império português no final do século XVIII. Alguns autores já ressaltaram a filiação entre o projeto editorial de O Patriota e das tipografias criadas no final do século anterior em Portugal sob o comando de Sousa Coutinho. Segundo Lorelai Kury, por exemplo, a diversidade temática dos artigos de O Patriota, fruto do caráter enciclopédico do trabalho dos seus colaboradores, e a preocupação didática na forma da abordagem ligavam o periódico ao ambiente intelectual ilustrado europeu.22 22 KURY, Lorelai. Descrever a pátria, difundir o saber. In: KURY, Lorelai (Org.). Iluminismo e império no Brasil - O Patriota (1813-1814), op. cit., p. 141-178. Essa filiação fica ainda mais clara se atentamos para o fato de que o periódico publicou alguns relatos de expedições científicas às diversas partes do império português escritos ainda no final do século XVIII, como o Extrato da viagem que fez ao sertão de Benguela no ano de 1785 o bacharel Joaquim José da Silva e as Notícias sobre Cabo Negro, extraídas dos fragmentos da viagem do doutor Joaquim José da Silva, que são parte do diário da viagem de dois anos que aquele naturalista realizou entre 1785 e 1787 pelos sertões de Angola; ou o Ensaio político sobre as ilhas de Cabo Verde para servir de plano à história filosófica das mesmas, de João da Silva Feijó, que tratava das observações feitas por ele quando de sua estada naquelas ilhas entre os anos de 1783 e 1797.23 23 As expedições de Joaquim José da Silva e de João da Silva Feijó foram duas das quatro primeiras expedições científicas que saíram de Lisboa em direção ao Ultramar. As outras duas foram as de Manoel Galvão da Silva para Goa e Moçambique e de Alexandre Rodrigues Ferreira para a região amazônica da América portuguesa.

Duas outras memórias publicadas pelo periódico, a Descrição geográfica da capitania de Mato Grosso e o Discurso sobre a urgente necessidade de uma povoação na Cachoeira do Salto do Rio Madeira, para facilitar o utilíssimo e indispensável comércio que pela carreira do Pará se deve fomentar para o Mato Grosso, de que resulta a prosperidade de ambas as capitanias, ambas de autoria de Ricardo Francisco de Almeida Serra, guardam muitas semelhanças com os relatos de viagem de João da Silva Feijó e Joaquim José da Silva, para além do fato de terem sido escritas também no final do século XVIII (1797). A primeira, publicada em cinco partes, entre julho de 1813 e janeiro/fevereiro de 1814, além de uma descrição geográfica detalhada da capitania, com a sua localização exata em graus, minutos e segundos de latitude e longitude e a descrição detalhada dos rios que lhe dão acesso, com indicação das suas condições de navegabilidade e suas potencialidades econômicas, principalmente a presença de metais preciosos; inclui também descrições históricas, políticas e sociais das suas principais vilas. A descrição da Vila de Cuiabá, por exemplo, inclui um breve histórico da sua fundação, a situação da sua economia no momento da escrita da memória e, mesmo, uma pequena observação sobre a aparência de seus habitantes:

As minas do Cuiabá foram descobertas em 1718; estabeleceu-se o arraial em 1723 e criou-se a vila em 1727. Presentemente é um grande povo, que com as suas dependências monta a 18 mil almas. O país é fértil em carnes, pescados, frutas e hortaliças; as minas são bastante ricas, mas em tempo de seca faltam as águas para minerar; delas se extraem anualmente 20 arrobas de ouro, de toque superior a 23 quilates. Os habitantes são de uma constituição robusta.24 24 SERRA, Ricardo Francisco de Almeida. Descrição geográfica da capitania do Mato Grosso. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 2, p. 56, agosto de 1813.

A diferenciá-la, porém, das memórias de Joaquim José da Silva e João da Silva Feijó está o importante fato de que, ao contrário daqueles autores, Almeida Serra não era um naturalista, mas um administrador colonial. Sargento-mor do Real Corpo de Engenheiros, ele havia sido governador interino da capitania do Mato Grosso no ano de 1796.25 25 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. As luzes para o império: história e progresso nas páginas de O Patriota, op. cit., p. 88. Explica Ângela Domingues que letrados e administradores coloniais criaram e sustentaram aquela rede de informação que permitiu ao Estado português conhecer de forma mais aprofundada os seus domínios coloniais. Os trabalhos de uns e outros, por atender a objetivos semelhantes, por vezes se confundiam. Como afirma aquela autora: "Em alguns casos, os cientistas acabaram por produzir discursos administrativos e, em contrapartida, os funcionários sistematizaram informação de natureza científica."26 26 DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império português em finais do Setecentos, op. cit., p. 825. Não por acaso, o que sobressai da descrição de Almeida Serra é a importância geopolítica estratégica daquela capitania para o império colonial português. Preocupavam muito particularmente a ele as questões decorrentes do fato de a capitania fazer fronteira com as possessões espanholas, e os perigos da mútua penetração em território alheio por meio da navegação dos rios que, cortando a capitania do Mato Grosso, por um lado adentravam em território espanhol, e por outro, na direção inversa, davam acesso aos colonos espanhóis ao centro dos domínios portugueses da América e suas riquezas naturais:

A capitania do Mato Grosso, a mais ocidental do Brasil, compreende um vasto terreno situado no centro da América meridional, cuja superfície equivale aproximadamente a 48.000 léguas quadradas. Pelo norte confina com as duas capitanias do rio Negro e do Grão-Pará, pelo sul e leste com as de Goiás e de S. Paulo; e pelo ocidente com o Peru, que por este lado se limita com os três governos espanhóis, do Paraguai, de Chiquitos e de Moxos. O {rio} Paraguai, comum na sua parte média a ambas as nações confinantes, juntamente com grande parte dos rios Guaporé, Mamoré e Madeira, formam a raia dos dois Estados, ficando a capitania do Mato Grosso naturalmente cingida por um largo e extenso fosso de 500 léguas de âmbito, que a separa e defende dos domínios espanhóis; por meio do qual, e do grande número de rios que desaguam nos quatro que o formam, se pode penetrar para muitos e distantes pontos do interior do Brasil, e até chegar ao centro dos ricos estabelecimentos do populoso Peru.27 27 SERRA, Ricardo Francisco de Almeida. Descrição geográfica da capitania do Mato Grosso. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 1, p. 47, julho de 1813.

A outra memória de Almeida Serra sobre a capitania do Mato Grosso publicada em O Patriota se ocupa de um objeto mais pontual: a necessidade do estabelecimento de uma povoação que servisse de escala para os comerciantes que demandavam a capitania pelo caminho que vinha do Pará.28 28 Já na Descrição geográfica da capitania do Mato Grosso afirmava o autor que a viagem entre São Paulo e Cuiabá lhe parecia "muito menos vantajosa do que a praticada desde a cidade marítima do Pará até Vila Bela, pelos rios Amazonas, Madeira, Mamoré e Guaporé". SERRA, Ricardo Francisco de Almeida. Descrição geográfica da capitania do Mato Grosso. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 2, p. 58, agosto de 1813. Esperava com isso diminuir os custos do transporte como forma de incentivar o comércio e, consequentemente, desenvolver a capitania da qual ele era o governador interino. Além de uma tabela com as "distâncias dos lugares mais notáveis da navegação da cidade do Pará até Vila Bela, capital do Mato Grosso", a cada passo a memória chama a atenção para a potencialidade econômica da capitania em geral, e da localização onde recomendava o estabelecimento da povoação em particular: "Além de outros efeitos naturais do país, são aqueles terrenos formados pelas melhores terras fundais, e as mais próprias para uma abundante cultura que, igualmente no Pará, tem pronta venda, como tabaco, algodão, café, arroz, anil e açúcar".29 29 SERRA, Ricardo Franco de Almeida. Discurso sobre a urgente necessidade de uma povoação na Cachoeira do Salto do Rio Madeira, para facilitar o utilíssimo comércio que pela carreira do Pará se deve fomentar para o Mato Grosso, de que resulta a prosperidade de ambas as capitanias. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 3, p. 7, março/abril de 1814. Todavia, como forma de convencer os seus leitores da necessidade do estabelecimento dessa povoação, o autor inicia essa memória mais uma vez sublinhando a importância estratégica da capitania:

A capitania do Mato Grosso, confinante com os domínios espanhóis do riquíssimo, amplo e populoso Peru, pela longa fronteira de 500 léguas de extensão que circundam, separam e formam em profundo fosso os grandes rios Paraguai, Guaporé, Mamoré e Madeira, sendo a mais remota colônia do principado português do vastíssimo Brasil, e a mais distante a respeito dos seus portos marítimos, guardando em si ainda não tocadas e ricas minas, cobrindo as capitanias interiores deste vasto continente. Guardando em si ainda não tocadas e ricas minas {...}.30 30 Ibid., p. 3.

A posição escolhida para o estabelecimento do novo núcleo de povoamento, na cachoeira do Salto do Rio Madeira, também seria estratégica, não apenas pela potencialidade econômica do local, mas também porque a

privativa posse deste lugar não só será a chave do rio da Madeira e a segurança da sua navegação e dos terrenos que limitam por sul a extrema da capitania do Pará e da maior e mais superior parte do rio das Amazonas, mas servirá de grande estorvo à nação que não a possuir. E será um ponto pelo meio do qual se pode penetrar até ás suas possessões.31 31 Ibid., p. 7.

Como explica Ângela Domingues, o melhor conhecimento e exploração econômica dos domínios coloniais passava não apenas pelo conhecimento das suas potencialidades econômicas, mas também dos seus limites físicos.32 32 A autora chama a atenção para o fato de que na mesma época em que se realizaram as viagens científicas às colônias, segunda metade do século XVIII, se procedeu também à demarcação de limites entre as monarquias ibéricas na América do Sul. DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império português em finais do Setecentos, op. cit., p. 824. Manoel Luiz Salgado Guimarães, por sua vez, reflete sobre o lugar da história em um periódico que se definia como literário, político e mercantil (não havendo a designação "histórico" em seu título), analisando as características das memórias classificadas nessa categoria no índice do periódico. Chamou a atenção do autor o fato de o periódico comportar, nessa categoria, uma diversidade significativa de temas e interesses que não necessariamente recobrem o que hoje entendemos como temas de história. Porém, não obstante a diversidade de temas que integravam o repertório possível de uma narrativa que se definia como "histórica", Manoel consegue identificar uma constante que parece atravessar o conjunto desses textos: o seu valor documental e a sua utilidade para a administração portuguesa.33 33 Refletindo sobre o significado do título do periódico, Marco Morel chama a atenção para a polissemia de que se revestiam termos como Pátria (e seu derivado Patriota) e Nação, no início do século XIX. Enquanto Pátria deveria ser entendida como o local de nascimento; Nação se referia ao território imperial, que abrangia quatro continentes. Assim, O Patriota expressava uma concepção ativa e utilitária de patriotismo, oriunda da Ilustração e do enciclopedismo. Patriota era o indivíduo útil ao Estado e que, com isso, demonstrava a sua lealdade e proximidade com o monarca na defesa do governo e das suas instituições. Lorelai Kury, por sua vez, afirma que, segundo essa acepção, o ideal do herói patriota baseava-se antes no critério da utilidade técnica e científica do que no desempenho incomum em batalhas ou na escrita de poemas e epopeias gloriosas. Dessa forma, pela compreensão da escolha do título do periódico, a produção de O Patriota parece apontar para o desejo de participação no projeto político reformista ilustrado de reerguimento do império português a partir da sua colônia da América. Conclui o autor que a narrativa histórica confundia-se com a memória da atuação do Estado português em sua tarefa colonizadora, enfatizando a coragem para enfrentar os desafios de um novo mundo desconhecido e cobiçado por inimigos. O que justificaria o número significativo de memórias sobre as capitanias mais afastadas do litoral, como Goiás e Mato Grosso, as áreas mais distantes e desconhecidas da administração do império, sediada no Rio de Janeiro:34 34 As capitanias de Goiás e do Mato Grosso foram criadas pela Coroa portuguesa em 9 de maio de 1748, a partir de um desmembramento do território da capitania de São Paulo. Que, por sua vez, já era, ela mesma, um desmembramento, feito em 1720, da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, criada em 1709. A capitania de Goiás tinha como núcleo urbano ordenador a Vila Boa de Goiás (atual cidade de Goiás, ou Goiás Velho), e a do Mato Grosso a Vila Bela da Santíssima Trindade do Mato Grosso.

Confundem-se, assim, na produção de um texto considerado de história pelos editores do periódico, demandas formuladas com base nas novas necessidades administrativas por parte do Estado português, como também exigências de fixação de uma memória de feitos passados e seus respectivos autores com vistas ao trabalho da lembrança. Recordação que busca sempre sublinhar que em suas tarefas administrativas o Estado monárquico português espalhava a civilização como legado maior de sua ação.35 35 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. As luzes para o império: história e progresso nas páginas de O Patriota, op. cit., p. 97. Significativamente, o autor identifica uma "enorme semelhança temática e de interesses" entre os textos classificados como "de história" publicados em O Patriota e aqueles que iriam integrar as páginas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) em sua primeira fase (entre 1838 e 1850). Ibid., p. 82.

O autor aponta para o fato de que a publicação dos relatos e roteiros de viagem em O Patriota pretendia dar a conhecer às populações do litoral um vasto e desconhecido território localizado no interior da América portuguesa. Um território que se apresentava ameaçador enquanto não fosse controlado por um conhecimento que o decodificasse segundo as regras da cultura das Luzes:

A preocupação com as regiões interiores do Brasil, sua descrição e esquadrinhamento está presente num conjunto bastante variado de relatos que tendem a reforçar certos princípios justificativos de tais narrativas sobre esses territórios. Conhecê-los seria a melhor maneira de integrá-los e, dessa forma, promover a sua civilização, enfatizando não apenas os aspectos econômicos capazes de promover essa integração, como sobretudo as possibilidades de integração das populações indígenas, este outro da civilização e que parece representar uma ameaça constante.36 36 Ibid., p. 92-93.

Nessa citação de Manoel Salgado aparece a outra grande preocupação de naturalistas e administradores coloniais que percorriam as regiões interiores da América portuguesa: a presença indígena. Roteiros e relatos de viagem dedicavam especial atenção à identificação das populações indígenas existentes nos caminhos percorridos, nomeando e descrevendo as diferentes "nações" e indicando o seu grau de amizade ou, pelo contrário, de hostilidade com relação aos colonos portugueses. Como, por exemplo, na Viagem da capitania de São Paulo a Cuiabá:

Chegando ao rio Taquari, continua a navegação por ele abaixo por espaço de 6 ou 7 dias, até que se chega ao lugar chamado Pouso Alegre, onde se incorporam todas as canoas para prosseguirem a sua derrota debaixo do comando de um cabo, que ali se elege para a governar e dirigir e fazer as disposições necessárias para resistirem a qualquer ataque do gentio Paiaguá, que vive embarcado. Para este efeito se armam em guerra tantas canoas quantas se julgam necessárias para a defensa das outras, e nelas se embarcam gentes práticas e de valor conhecido, providas de armas de fogo com as competentes munições.37 37 Viagem da capitania de São Paulo à Vila de Cuiabá, p. 53.

Ao fim do trajeto, a descrição da Vila de Cuiabá ressalta a sua posição de isolamento no sertão. Ameaçada constantemente pelas incursões das nações indígenas que destruíam plantações e matavam colonos que depois eram devorados, representando um entrave ao desenvolvimento da região:

Esta Vila mui bem conhecida não carece de ser por nós descrita; lamentaremos somente o triste estado de este rico país, pelas incessantes perseguições do gentio caiapó, que continuamente ataca e mata habitantes e escravos pelos sítios e lavras, apesar das suas precauções, o que concorre incrivelmente para o atrasamento da indústria e da agricultura.38 38 Ibid., p. 54-55.

Dessa forma, se cientistas ilustrados e administradores coloniais olhavam para o sertão sempre ressaltando a potencialidade científica, econômica e estratégica para o império português daqueles vastos e desconhecidos territórios (lugar da exploração medicinal da natureza ou da busca de minas de metais preciosos), não podiam também deixar de enxergar os seus aspectos negativos e perigosos. Como afirma Janaína Amado, a imagem do sertão podia aproximá-lo do inferno ou do paraíso, dependendo de quem falava.39 39 AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 8, n, 15, p. 145-151, 1995.

Maria Elisa Noronha de Sá Mäder, analisando as diferentes imagens do sertão presentes nos relatos de viagem, crônicas, narrativas, diários e cartas de descobridores, viajantes, missionários e cronistas portugueses que viveram ou percorreram a colônia nos séculos XVI e XVII, conclui que para esses homens o que prevalece é a concepção da região como um "vazio". Esse "vazio", no entanto, era preenchido por imagens constituídas a partir de elementos existentes no imaginário dos homens daquela época. Dessa forma, a autora chama a atenção para a delimitação do sertão para além da sua dimensão espacial, como um "espaço mental", dotado de conteúdo social e que traduzia a visão de mundo do homem português do Renascimento. Segundo essas imagens, o sertão era o espaço da barbárie e da selvageria. Colaborava para a construção dessa representação social do sertão o fato de que, à medida que avançava o processo de colonização, os indígenas contrários aos portugueses abandonavam o litoral, "internando-se" pelo interior do território. Refúgio para aqueles que se recusavam a se tornar "civilizados", sob a tutela do Estado português e da religião cristã: "assim, ficavam na costa os gentios mais "dóceis" ao contato com os portugueses, enquanto fugiam para o sertão aqueles mais hostis, que se recusavam a integrar a ordem da fé ou do império".40 40 MÄDER, Maria Elisa Noronha de Sá. O vazio: o sertão no imaginário da colônia nos séculos XVI e XVII, op. cit., p. 45.

Do século XVI ao início do século XIX essa representação parece ter se reforçado pela importância que o conceito de civilização adquire no ambiente intelectual iluminista. Segundo Norbert Elias o termo civilização pode se referir a uma grande variedade de fatos, desde o nível de desenvolvimento da tecnologia e dos conhecimentos científicos até às ideias religiosas e os costumes. Porém, segundo esse autor, esse conceito expressa, antes de qualquer coisa, a consciência que o ocidente tem de si mesmo. O conceito de civilização resumiria tudo em que a sociedade ocidental, desde o século XVIII, se julgava superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas, porém mais primitivas (ou menos civilizadas): "Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e muito mais".41 41 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. v. 1, p. 23. Ser civilizado seria apresentar um conjunto de maneiras que a sociedade encarava como a forma superior de se portar, de crer e de fazer. No século XVIII, ser civilizado era estar ligado ao mundo cristão. Ser obediente aos mandamentos de Deus e do seu representante legal na terra: o rei. Logo, ser civilizado era ser cristão e súdito.

Porém, civilização não seria apenas um estado, mas sobretudo um processo. Na virada do século XVIII para o XIX, sob a influência das ideias iluministas, os países europeus consideravam o processo de civilização como terminado em suas próprias sociedades. Nesse momento em que a consciência da civilização, vale dizer, a consciência da superioridade de seu próprio comportamento e sua corporificação na ciência, tecnologia ou arte começou a se espraiar pelas nações europeias, estas, se autodefinindo como nações civilizadas, atribuíram a si próprias o papel de porta-estandartes do processo civilizador. Baseadas na ideia da sua superioridade, expresso no seu mais alto grau de civilização, essas nações se veem como as transmissoras a outrem dessa mesma civilização.

Marcia Amantino afirma que o processo - iniciado no século XVI - de conquista e colonização do Novo Mundo pelos portugueses desencadeou uma série de contatos entre a civilização europeia e a indígena, onde havia uma constante reafirmação dos valores ocidentais católicos e brancos sobre as sociedades não católicas e não brancas e, por isso, consideradas inferiores. Esses povos rapidamente se transformaram no "outro" da civilização, seu avesso.42 42 AMANTINO, Marcia. A conquista de uma fronteira: o sertão oeste de Minas Gerais no século XVIII. Dimensões. Vitória, v. 14, p. 70, 2002. Magnus Pereira e Ana Lúcia Cruz, por outro lado, criticam esse esquema interpretativo bipolar e, segundo eles, simplista que tem servido de base metodológica e epistemológica a muitos estudos sobre contatos culturais entre europeus e nativos americanos. Pereira e Cruz consideram o estranhamento exagerado (nós × os outros) antes um efeito literário, produzido deliberadamente pelos relatos de viagem, do que um fato científico. Segundo eles, no século XVIII "a polaridade entre europeu e nativo há muito havia desparecido". PEREIRA, Magnus; CRUZ, Ana Lúcia. Os colonos cientistas da América portuguesa: questões historiográficas, op. cit., p. 32. E com base nessas representações negativas justificava-se a sua dominação e o aniquilamento. Estabelecia-se, dessa forma, uma dialética de povoamento/despovoamento. Era preciso primeiro despovoar esses sertões das suas populações originais para que pudessem ser povoados por colonos portugueses. A guerra contra a barbárie, do terreno e de seus habitantes, tornava a conquista mais necessária, mais valorizada e mais dignificada: "Todas essas dificuldades tinham um local por excelência: o sertão, ou seja, a fronteira que separava a barbárie da civilização".43 43 Ibid., p. 71. O processo de povoamento dessas regiões, seu desenvolvimento econômico e sua integração ao projeto político, é tratado pela imprensa do início do século XIX como o processo do avanço da civilização sobre a barbárie. A primeira caracterizada como a existência de comércio, indústria, artes e conhecimentos científicos, além da presença do próprio Estado. E a segunda como aquelas áreas que, ainda não integradas à colonização portuguesa, e faltas de todos aqueles atributos, continuavam nas mãos das populações indígenas. Obstáculo à expansão da civilização por impedir a navegação dos rios e a passagem pelas terras por elas ocupadas.

A Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro periódico publicado na América portuguesa, sob a administração da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, também abordava nas suas edições as medidas tomadas pelo príncipe regente para a integração das regiões do novo império português da América. Do total de 32 notícias levantadas sobre o tema, entre 1808 e 1821, dezessete (44%, portanto) chamam a atenção para o andamento do processo de pacificação das nações indígenas ainda não totalmente integradas ao processo de colonização portuguesa no início do século XIX; e nove (28%) abordam a abertura de novas estradas, de canais e de rios para a navegação.44 44 Levantamento realizado pelo autor. O restante a medidas gerais de colonização (5) e ao estabelecimento de uma companhia de mineração em Cuiabá (1).

A respeito do processo de pacificação das nações indígenas, a edição de 17 de maio de 1809 noticia os primeiros resultados da Carta Régia de 13 de maio de 1808, que ordenava ao governador da capitania de Minas Gerais que empreendesse uma "guerra ofensiva" contra a "atroz raça antropófaga" dos índios genericamente denominados de botocudos que habitavam as margens do rio Doce, criando a Junta da Civilização e Conquista dos Índios e Navegação do Rio Doce:

Principiam, pois, a sentir-se já os saudáveis efeitos das sábias e paternais providências que S.A.R foi servido dar pela carta régia de 13 de maio do ano passado, não só porque aqueles índios devastadores começam a destruir-se, mas porque assim se animam já os colonos a entrarem novamente para a cultura dos terrenos que haviam abandonado pelo susto das atrocidades daqueles bárbaros.45 45 Gazeta do Rio de Janeiro, no 71, 17 de maio de 1809. Seguiram-se outras cartas régias sobre a civilização dos índios e as providências a serem tomadas para a navegação do Rio Doce e a colonização do território banhado por esse rio e seus afluentes, em 2 de dezembro de 1808, em 5 de novembro de 1808, 1o de abril de 1809 e 7 de outubro de 1809. A respeito da Junta de Civilização e Conquista dos Índios e Navegação do rio Doce, ver SILVA, Tarcísio Glauco. Junta de Civilização e Conquista dos Índios e navegação do rio Doce: fronteiras, apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). Dissertação (Mestrado em História Social das Relações Políticas) - Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo, 2006.

Segundo a dita Carta Régia, essa guerra ofensiva deveria continuar até que os indígenas, "movidos do justo terror" das armas imperiais, pedissem a paz e "sujeitando-se ao doce julgo das leis e prometendo viver em sociedade". Então, deveriam ser estabelecidos em aldeamentos onde deveria haver igrejas e eclesiásticos que cuidassem da sua educação religiosa e civil. Essas pessoas também estavam autorizadas a utilizá-los como força de trabalho, transformando-os em "vassalos úteis", segundo o texto da mesma Carta Régia. O que chama a atenção para a sempre premente questão da utilização da mão de obra indígena. Da mesma forma, todos os indígenas "que se tomarem com as armas na mão em qualquer ataque", seriam considerados prisioneiros de guerra e entregues para o serviço do comandante da respectiva divisão que fizer o apresamento pelo prazo de dez anos "e todo o mais tempo em que durar sua ferocidade, podendo ele empregá-los em seu serviço particular durante esse tempo e conservá-los com a devida segurança, mesmo em ferros, enquanto não derem provas do abandono de sua atrocidade e antropofagia".47 46 BRASIL. Leis etc. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. p. 37-41. A junta estabelecia, dessa forma, como chama a atenção Tarcísio Glauco da Silva, um relacionamento de confronto e proteção com os indígenas, que não implicava uma contradição, uma vez que o confronto estava reservado para os índios hostis, enquanto os indígenas aldeados deveriam ser protegidos.48 48 BRASIL. Leis etc. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. p. 37-41.

Como sugere o título dado à junta que então se estabelecia, as providências que se tomavam para a conquista e civilização das nações indígenas não eram um fim em si mesmas. Mas estavam relacionadas, por um lado, à abertura de rios à navegação, para o transporte de pessoas e mercadorias entre as capitanias de Minas Gerais e Espírito Santo; e, por outro, à abertura de terrenos para a colonização e o desenvolvimento de atividades produtivas. A Carta Régia de 13 de maio, no seu último parágrafo, deixa esse aspecto bem claro:

Propondo-me igualmente por motivo destas saudáveis providências contra os índios botocudos, preparar os meios convenientes para se estabelecer para o futuro a navegação do rio Doce, que faça a felicidade dessa capitania, e desejando igualmente procurar, com a maior economia da minha Real Fazenda, meios para tão saudável empresa; assim como favorecer os que quiserem ir povoar aqueles preciosos terrenos auríferos, abandonados hoje pelo susto que causam os índios botecudos {sic}.49 49 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1821): cultura e sociedade. Rio de Janeiro: EdUerj, 2007, p. 245.

Com o fim de incentivar o povoamento e o cultivo das terras que, até então, vinham sendo assoladas pelos ataques indígenas, estabelece o mesmo documento que os terrenos que voltassem a ser cultivados ficariam isentos do pagamento de dízimo e os gêneros de comércio que navegassem pelo rio Doce também estariam isentos das tarifas de exportação e importação, ambos pelo prazo de dez anos. Por fim, aqueles que se propusessem a estabelecer-se nos ditos terrenos, sendo devedores da Real Fazenda, receberiam a graça de uma moratória pelo período de seis anos. Dessa forma, como ressalta Maria Beatriz Nizza da Silva, a pacificação de nações indígenas refratárias ao processo de colonização, a abertura de importantes rios para a navegação e a construção de novas estradas e caminhos entre os núcleos urbanos do litoral e do interior eram atividades complementares que atendiam ao objetivo último de aumentar a colonização e desenvolver a produção e o comércio: "Tanto o ataque aos botocudos e a outros índios bravos quanto a abertura de estradas e o aproveitamento das vias fluviais tinham como objetivo último a criação de povoações, o aumento do número de colonos e o desenvolvimento da agricultura ou da mineração,"50 50 Gazeta do Rio de Janeiro, no 71, 4 de setembro de 1813.

O pensamento da Economia Política, que se dissemina entre finais do século XVIIII e início do século XIX a partir da obra de Adam Smith Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações (publicado originalmente, em 1776, na Inglaterra), estabelecia um forte vínculo entre comércio e civilização. Na civilização cada homem e cada nação se dedicam à produção daquilo que se ajusta melhor às suas faculdades naturais e, em conse­quência, necessitam trocar. E, no âmbito da sociabilidade promovida pelo comércio aconteceria o refinamento das relações humanas e, consequentemente, o processo civilizador de que fala Elias. Ao contrário, no estado de barbárie cada um produz somente aquilo que a vida exige, não havendo contato e, portanto, comércio entre os homens. A relação que os habitantes da América portuguesa do início do século XIX estabeleciam entre povoamento, comércio e o desenvolvimento daquilo que compreendiam como civilização fica claro em notícia publicada na edição da Gazeta do Rio de Janeiro de 4 de setembro de 1813 sobre as medidas tomadas para a abertura da navegação do rio Jequitinhonha, outra importante via de comunicação e transporte de gêneros, que ligava as capitanias de Minas Gerais e Bahia:

O Príncipe Regente Nosso Senhor, desejando fazer sensíveis aos habitantes do Brasil os paternais desvelos com que procura a prosperidade dos seus fiéis vassalos, e conhecendo que da facilidade das estradas resulta a comunicação dos povos, e desta nasce o aumento da agricultura e do comércio, tem empregado as suas sábias providências nestes importantes objetos. {...} A navegação do referido rio, junta à qualidade de terreno e à salubridade do clima, convidam os povos a estabelecer-se vantajosamente nas beiras da nova estrada, e anunciam um rápido progresso de civilização e interesses de comércio. {...} E para facilitar a exportação dos gêneros pelo Jequitinhonha, ordenou também S.A.R. que se promovesse a navegação daquele rio, da qual há de resultar o interesse recíproco e particular dos fazendeiros, assim na exportação dos próprios gêneros, como nos fretes das canoas postadas nos lugares cômodos para receberem por baldeação os gêneros logo que a passagem das cachoeiras permitir a navegação. {grifos meus}51 51 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial, op. cit., p. 34. Como explica Janaína Amado, foi a partir do litoral que se construíram as imagens do sertão desde o começo do processo de colonização. O sertão se apresentava para o homem do litoral, como em um jogo de espelhos, no seu reflexo invertido. AMADO, Janaína. Região, sertão, nação, op. cit., p. 148..

Dessa forma, no início do século XIX estava generalizada a ideia de que a agricultura de gêneros para a exportação era fonte de civilização. Como explica Ilmar de Mattos, o distanciamento simbólico entre o sertão e a civilização era reforçado pelo distanciamento físico entre os núcleos urbanos do litoral e os do interior. Afirma aquele autor que ainda em meados do século XIX levava-se três meses para ir do Rio de Janeiro à capital da Província de Goiás e cerca de cinco para atingir a de Mato Grosso, enquanto que, por outro lado, os núcleos urbanos do litoral estavam a apenas cinquenta dias de distância da Europa. O maior contato com a Europa fazia com que a sociedade do litoral fosse vista como o espaço de difusão de valores como a civilização e a ordem social, enquanto o sertão continuava sendo interpretado como o espaço da barbárie, da violência, da arbitrariedade, refratário às formas estatais de organização política, tal qual nos primórdios dos contatos entre europeus e indígenas americanos.52 52 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial, op. cit., p. 37. No entanto, apesar da documentação da época reforçar esse aspecto, não era apenas a distância física que separava o sertão da civilização. Era o desenvolvimento de uma atividade econômica, com o estabelecimento de fluxos comerciais e cadeias de interdependência, propiciando a integração de novas áreas ao centro do novo império no Rio de Janeiro, que transformava o sertão em região: "Fora por meio da atividade agrícola que a moeda colonial alcançara sua efetivação a mais acabada no quadro da colonização portuguesa na América, enriquecendo colonizadores e gerando colonos."53 53 BONATO, Tiago. O olhar, a descrição: a construção do sertão do Nordeste brasileiro nos relatos de viagem do final do período colonial (1783-1822). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010, p. 154. Discordo do autor, porém, quando ele afirma, ainda na mesma página, que "de região longe do mar, o sertão passa a ser visto como região deserta, infértil, incivilizada" (Ibid.). No seu trabalho, o autor busca nos relatos de viagem de finais do século XVIII e XIX as raízes do imaginário do sertão nordestino que, reforçado ao longo século XIX, chegou até os dias de hoje. Caracterizado pela seca, a aridez, o pouco desenvolvimento, o gado, as doenças e a formação de uma cultura sertaneja. Ao contrário, como procurei deixar claro ao longo do texto, penso que nas representações emanadas das viagens científicas o que é sempre ressaltado é a potencialidade econômica e a importância geopolítica estratégica dos sertões. A necessidade de colonizá-lo e desenvolvê-lo em proveito do império. Um dos motivos para essa discordância talvez seja porque Bonato e eu nos referimos a diferentes sertões. Apesar de afirmar que pretende tratar do sertão como categoria complexa e não meramente geográfica, na base do trabalho do autor está a identificação do sertão com a região Nordeste (estados do Piauí, Maranhão, Ceará e Rio Grande do Norte). Parece-me que o autor projeta para o século XVIII uma delimitação geográfica e uma representação do sertão que fazem mais sentido para o século XIX. No meu trabalho, diferentemente, sertão é a denominação atribuída a toda região não integrada ao processo de colonização (povoamento e desenvolvimento de atividade produtiva). Por esse motivo, concordamos com Tiago Bonato quando este afirma que conceitualmente o sertão pode ser interpretado como uma categoria complexa: "A principal mudança na concepção do sertão no fim do período colonial foi nesse nível: o sertão geográfico, apartado do mar e oposto ao litoral, como era concebido até então deu lugar a outros sertões. Deixa de ser meramente categoria geográfica e passa a ser categoria cultural, social."54 54 MEIRELLES, Juliana Gesuelli. Imprensa e poder na corte joanina: A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-182). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008, p. 141.

Considerações finais

Duas ordens de considerações finais podem ser extraídas do que ficou dito neste artigo. Por um lado, há as considerações a respeito do papel político da Impressão Régia do Rio de Janeiro na criação do novo império português na América. A manutenção do papel de difusão do conhecimento com fins pragmáticos fazia da Impressão Régia do Rio de Janeiro herdeira das tipografias criadas no Reino no contexto do reformismo ilustrado português. Assim como nas suas congêneres reinóis, sua função cultural de impressão e divulgação dos saberes úteis ao desenvolvimento do império era também uma função política. Entendendo a imprensa como agente histórico, como sugerem as abordagens mais recentes de história da imprensa, é possível afirmar, concordando com a perspectiva de Manoel Salgado, que a tipografia acompanhava os esforços encetados pelo Estado português em sua tarefa colonizadora, construído a memória da sua atuação. E, dessa forma, colaborando na efetivação daquele projeto político de criação de um novo império português na América. Como explica Juliana Gesuelli Meirelles, ressaltando as profundas vinculações existentes entre saber e poder (ou entre cultura e política) no pensamento ilustrado português, a Coroa portuguesa, sob o governo joanino, concebeu a imprensa como parte fundamental da sua ação política e cultural e, consequentemente, em um âmbito mais amplo, "como âncora de sustentação do império português em ambos os lados do Atlântico".55 55 Por isso, segundo o autor, a região colonial seria um espaço vivo, em movimento, que expressava a dominação exercida pelo colonizador sobre um território e sobre os demais agentes participantes da aventura colonizadora. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial, op. cit., p. 26-28.

Por outro lado, observar as medidas tomadas no início do século XIX para a abertura da navegação nos vales dos rios Doce e Jequitinhonha e o cultivo das áreas vizinhas nos levam à consideração de que o sertão estava fisicamente mais perto da civilização do que imaginavam os homens do século XIX. Como chamaram a atenção Maria Elisa Mader e Marcia Amantino, o sertão pode ser entendido conceitualmente como o oposto da região colonial, na medida em que esta última representava o espaço preenchido pela ordem da colonização estabelecida pela Igreja e pelo Estado (o "mundo da ordem", o "cheio"), aquele era o seu contrário (o "mundo da desordem", o "vazio"). Porém, da mesma forma que a região colonial se caracterizava não por suas características naturais, mas por ser um espaço socialmente construído e delimitado a partir das relações estabelecidas entre os agentes do processo colonizador (colonizadores, colonos e colonizados), em termos do exercício dos seus monopólios, como definiu Ilmar de Mattos,56 56 Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Juiz de Fora, MG, Brasil. ­E-mail: sergioscorza@ig.com.br. os sertões também não se distinguiam por suas características naturais ou por sua localização espacial, mas antes por serem espaços socialmente construídos e delimitados a partir de uma determinada representação que o associava à ausência de civilização. O que enfatizava o caráter do sertão como um espaço mental ou como uma categoria complexa. Dessa forma, não era necessário subir os rios até o Mato Grosso ou Goiás para se ver fora da civilização. Esse espaço, ainda no começo do século XIX, poderia mesmo estar a poucas léguas de áreas há muito integradas ao processo de colonização.

Fontes documentais

ANÔNIMO. Viagem da capitania de São Paulo à Vila de Cuiabá. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 5, p. 50-61, maio de 1813.

Carta Régia de 13 de maio de 1808. Manda fazer guerra aos índios Botocudos. In: BRASIL. Leis etc. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891, p. 37-41.

Gazeta do Rio de Janeiro, no 71, 17 de maio de 1809.

Gazeta do Rio de Janeiro, no 71, 4 de setembro de 1813.

MENEZES, José Pedro Cezar de. Roteiro para regressar com a maior presteza que se pode imaginar. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 6, p. 8, dezembro de 1812.

SERRA, Ricardo Francisco de Almeida. Descrição geográfica da capitania do Mato Grosso. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 2, p. 50-62, agosto de 1813.

SERRA, Ricardo Francisco de Almeida.. Discurso sobre a urgente necessidade de uma povoação na Cachoeira do Salto do Rio Madeira, para facilitar o utilíssimo e indispensável comércio que pela carreira do Pará se deve fomentar para o Mato Grosso, de que resulta a prosperidade de ambas as capitanias. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 2, p. 3-16, mar./abr. 1814.

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  • 1
    Manifesto, ou exposição fundada, e justificativa do procedimento da Corte de Portugal a respeito da França, desde o princípio da Revolução até a época da invasão de Portugal; e dos motivos, que a obrigaram a declarar a guerra ao imperador dos franceses, pelo fato da invasão, e da subsequente Declaração de Guerra feita em consequência do Relatório do Ministro das Relações Exteriores. COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense ou Armazém Literário. Setembro de 1808. p. 256.
  • 2
    Carta dirigida ao príncipe regente d. João fazendo uma detalhada exposição sobre as condições políticas da Europa em face das Guerras de Napoleão; aludindo à invasão da Península; e provável invasão às capitanias do Rio Grande e São Paulo pelos franceses. Quinta de São Pedro, 16 de agosto de 1803 - BNRJ/MN, Coleção Linhares, I-29, 13, 22.
  • 3
    Lorelai Kury chama a atenção para o fato de que o pragmatismo não era um atributo exclusivo das Luzes portuguesas. Tendo a defesa da utilidade dos estudos da natureza se transformado em lugar comum durante o alto Iluminismo. KURY, Lorelai. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de informações (1780-1810). História, Ciências, Saúde - Manguinhos. V. 11 (suplemento 1), p. 110, 2004.
  • 4
    DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império português em finais do Setecentos. História. Ciências, Saúde - Manguinhos. V. VIII (suplemento), p. 832, 2001.
  • 5
    A respeito dos projetos de reforma do império português de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, ver LYRA, Maria de Lourdes Vianna. A utopia do poderoso império. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, p. 66-83.
  • 6
    SANTOS, Nívia Pombo Cirne dos. Dom Rodrigo de Souza Coutinho: pensamento e ação político-administrativa no império português (1778-1812). Dissertação (Mestrado). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2002, p. 131-161.
  • 7
    MAXWELL, Kenneth. A geração de 1790 e a ideia do império luso-brasileiro. In: Chocolates, piratas e outros malandros: ensaios tropicais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 190.
  • 8
    PEREIRA, Magnus; CRUZ, Ana Lúcia. Os colonos cientistas da América portuguesa: questões historiográficas. Revista de História Regional, v. 19, p. 10, 2014.
  • 9
    SANTOS, Nívia Pombo Cirne dos. Dom Rodrigo de Souza Coutinho: pensamento e ação político-administrativa no império português (1778-1812), op. cit., p. 220.
  • 10
    Anteriormente, Frei Veloso já havia sido editor do periódico agrário Paladio Portuguez ou Clarim de Pallas que anuncia os novos descobrimentos n'agricultura, artes, manufacturas, commercio, etc., publicado pela Officina Patriarchal de Lisboa, entre abril e maio de 1796. NUNES, Maria de Fátima. Imprensa periódica científica (1772-1852): leituras de "sciencia agrícola" em Portugal. Lisboa: Estar Editora, 2001, p. 67-68.
  • 11
    SANTOS, Nívia Pombo Cirne dos, Dom Rodrigo de Souza Coutinho: pensamento e ação político-administrativa no império português (1778-1812), op. cit., p. 217-222.
  • 12
    Ao analisar o processo de colonização da América portuguesa, Ilmar R. de Mattos critica as interpretações que veem a existência, desde o seu princípio, de uma unidade político-administrativa que unificasse o território da colônia. Segundo ele, em que pesem os esforços de muitos em identificar uma unidade nacional em gestação desde o período colonial, a realidade construída pelo processo de colonização foi bem outra: o de formação de regiões. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990, p. 23-33.
  • 13
    LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império, op. cit., p. 136-137.
  • 14
    MÄDER, Maria Elisa Noronha de Sá. O vazio: o sertão no imaginário da colônia nos séculos XVI e XVII. Dissertação (Mestrado). Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1995.
  • 15
    BARROS, Mariana Monteiro de; MOREL, Marco. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 9.
  • 16
    KURY, Lorelai (Org.). Iluminismo e império no Brasil - O Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008, p. 9.
  • 17
    Segundo levantamento feito pelo autor a partir das classificações apresentadas no Índice Geral do Patriota, publicado no último número do periódico, tais memórias, classificadas na sua esmagadora maioria nas categorias de História, Geografia ou Topografia, perfazem aproximadamente 10% do total de publicações do periódico ao longo dos seus dois anos de vida.
  • 18
    MENEZES, José Pedro Cezar de. Roteiro para regressar com a maior presteza que se pode imaginar. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 6, p. 8, dezembro de 1812. Cezar de Menezes havia sido governador da capitania do Piauí entre 1803 e 1805.
  • 19
    Apenas nas partes não navegáveis dos rios as viagens eram feitas utilizando-se dos caminhos terrestres, quando então se colocavam as canoas sobre carros de boi. As entradas ao sertão por meio da navegação fluvial eram denominadas de monções, e se tornaram mais frequentes a partir do segundo decênio do século XVIII, após a descoberta das minas de Cuiabá e Mato Grosso.
  • 20
    Viagem da capitania de São Paulo à Vila de Cuiabá. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 5, p. 55-56, maio de 1813. O periódico não indica a autoria e nem a data de escritura do texto. Manoel Salgado Guimarães supõe que essa memória também seja de autoria de José Pedro Cezar de Meneses. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. As luzes para o império: história e progresso nas páginas de O Patriota. In: KURY, Lorelai (Org.). Iluminismo e império no Brasil - O Patriota (1813-1814), op. cit., p. 88.
  • 21
    Viagem da capitania de São Paulo à Vila de Cuiabá, p. 57-60.
  • 22
    KURY, Lorelai. Descrever a pátria, difundir o saber. In: KURY, Lorelai (Org.). Iluminismo e império no Brasil - O Patriota (1813-1814), op. cit., p. 141-178.
  • 23
    As expedições de Joaquim José da Silva e de João da Silva Feijó foram duas das quatro primeiras expedições científicas que saíram de Lisboa em direção ao Ultramar. As outras duas foram as de Manoel Galvão da Silva para Goa e Moçambique e de Alexandre Rodrigues Ferreira para a região amazônica da América portuguesa.
  • 24
    SERRA, Ricardo Francisco de Almeida. Descrição geográfica da capitania do Mato Grosso. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 2, p. 56, agosto de 1813.
  • 25
    GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. As luzes para o império: história e progresso nas páginas de O Patriota, op. cit., p. 88.
  • 26
    DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império português em finais do Setecentos, op. cit., p. 825.
  • 27
    SERRA, Ricardo Francisco de Almeida. Descrição geográfica da capitania do Mato Grosso. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 1, p. 47, julho de 1813.
  • 28
    Já na Descrição geográfica da capitania do Mato Grosso afirmava o autor que a viagem entre São Paulo e Cuiabá lhe parecia "muito menos vantajosa do que a praticada desde a cidade marítima do Pará até Vila Bela, pelos rios Amazonas, Madeira, Mamoré e Guaporé". SERRA, Ricardo Francisco de Almeida. Descrição geográfica da capitania do Mato Grosso. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 2, p. 58, agosto de 1813.
  • 29
    SERRA, Ricardo Franco de Almeida. Discurso sobre a urgente necessidade de uma povoação na Cachoeira do Salto do Rio Madeira, para facilitar o utilíssimo comércio que pela carreira do Pará se deve fomentar para o Mato Grosso, de que resulta a prosperidade de ambas as capitanias. O Patriota: Jornal literário, político, mercantil, etc. Rio de Janeiro: Impressão Régia do Rio de Janeiro, no 3, p. 7, março/abril de 1814.
  • 30
    Ibid., p. 3.
  • 31
    Ibid., p. 7.
  • 32
    A autora chama a atenção para o fato de que na mesma época em que se realizaram as viagens científicas às colônias, segunda metade do século XVIII, se procedeu também à demarcação de limites entre as monarquias ibéricas na América do Sul. DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império português em finais do Setecentos, op. cit., p. 824.
  • 33
    Refletindo sobre o significado do título do periódico, Marco Morel chama a atenção para a polissemia de que se revestiam termos como Pátria (e seu derivado Patriota) e Nação, no início do século XIX. Enquanto Pátria deveria ser entendida como o local de nascimento; Nação se referia ao território imperial, que abrangia quatro continentes. Assim, O Patriota expressava uma concepção ativa e utilitária de patriotismo, oriunda da Ilustração e do enciclopedismo. Patriota era o indivíduo útil ao Estado e que, com isso, demonstrava a sua lealdade e proximidade com o monarca na defesa do governo e das suas instituições. Lorelai Kury, por sua vez, afirma que, segundo essa acepção, o ideal do herói patriota baseava-se antes no critério da utilidade técnica e científica do que no desempenho incomum em batalhas ou na escrita de poemas e epopeias gloriosas. Dessa forma, pela compreensão da escolha do título do periódico, a produção de O Patriota parece apontar para o desejo de participação no projeto político reformista ilustrado de reerguimento do império português a partir da sua colônia da América.
  • 34
    As capitanias de Goiás e do Mato Grosso foram criadas pela Coroa portuguesa em 9 de maio de 1748, a partir de um desmembramento do território da capitania de São Paulo. Que, por sua vez, já era, ela mesma, um desmembramento, feito em 1720, da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, criada em 1709. A capitania de Goiás tinha como núcleo urbano ordenador a Vila Boa de Goiás (atual cidade de Goiás, ou Goiás Velho), e a do Mato Grosso a Vila Bela da Santíssima Trindade do Mato Grosso.
  • 35
    GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. As luzes para o império: história e progresso nas páginas de O Patriota, op. cit., p. 97. Significativamente, o autor identifica uma "enorme semelhança temática e de interesses" entre os textos classificados como "de história" publicados em O Patriota e aqueles que iriam integrar as páginas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) em sua primeira fase (entre 1838 e 1850). Ibid., p. 82.
  • 36
    Ibid., p. 92-93.
  • 37
    Viagem da capitania de São Paulo à Vila de Cuiabá, p. 53.
  • 38
    Ibid., p. 54-55.
  • 39
    AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 8, n, 15, p. 145-151, 1995.
  • 40
    MÄDER, Maria Elisa Noronha de Sá. O vazio: o sertão no imaginário da colônia nos séculos XVI e XVII, op. cit., p. 45.
  • 41
    ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. v. 1, p. 23.
  • 42
    AMANTINO, Marcia. A conquista de uma fronteira: o sertão oeste de Minas Gerais no século XVIII. Dimensões. Vitória, v. 14, p. 70, 2002. Magnus Pereira e Ana Lúcia Cruz, por outro lado, criticam esse esquema interpretativo bipolar e, segundo eles, simplista que tem servido de base metodológica e epistemológica a muitos estudos sobre contatos culturais entre europeus e nativos americanos. Pereira e Cruz consideram o estranhamento exagerado (nós × os outros) antes um efeito literário, produzido deliberadamente pelos relatos de viagem, do que um fato científico. Segundo eles, no século XVIII "a polaridade entre europeu e nativo há muito havia desparecido". PEREIRA, Magnus; CRUZ, Ana Lúcia. Os colonos cientistas da América portuguesa: questões historiográficas, op. cit., p. 32.
  • 43
    Ibid., p. 71.
  • 44
    Levantamento realizado pelo autor. O restante a medidas gerais de colonização (5) e ao estabelecimento de uma companhia de mineração em Cuiabá (1).
  • 45
    Gazeta do Rio de Janeiro, no 71, 17 de maio de 1809. Seguiram-se outras cartas régias sobre a civilização dos índios e as providências a serem tomadas para a navegação do Rio Doce e a colonização do território banhado por esse rio e seus afluentes, em 2 de dezembro de 1808, em 5 de novembro de 1808, 1o de abril de 1809 e 7 de outubro de 1809. A respeito da Junta de Civilização e Conquista dos Índios e Navegação do rio Doce, ver SILVA, Tarcísio Glauco. Junta de Civilização e Conquista dos Índios e navegação do rio Doce: fronteiras, apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). Dissertação (Mestrado em História Social das Relações Políticas) - Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo, 2006.
  • 46
    BRASIL. Leis etc. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. p. 37-41.
  • 47
    SILVA, Tarcísio Glauco. Junta de Civilização e Conquista dos Índios e Navegação do Rio Doce: fronteiras, apropriação de espaços e conflitos (1808-1814), op. cit.
  • 48
    BRASIL. Leis etc. Colecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891. p. 37-41.
  • 49
    SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1821): cultura e sociedade. Rio de Janeiro: EdUerj, 2007, p. 245.
  • 50
    Gazeta do Rio de Janeiro, no 71, 4 de setembro de 1813.
  • 51
    MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial, op. cit., p. 34. Como explica Janaína Amado, foi a partir do litoral que se construíram as imagens do sertão desde o começo do processo de colonização. O sertão se apresentava para o homem do litoral, como em um jogo de espelhos, no seu reflexo invertido. AMADO, Janaína. Região, sertão, nação, op. cit., p. 148..
  • 52
    MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial, op. cit., p. 37.
  • 53
    BONATO, Tiago. O olhar, a descrição: a construção do sertão do Nordeste brasileiro nos relatos de viagem do final do período colonial (1783-1822). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010, p. 154. Discordo do autor, porém, quando ele afirma, ainda na mesma página, que "de região longe do mar, o sertão passa a ser visto como região deserta, infértil, incivilizada" (Ibid.). No seu trabalho, o autor busca nos relatos de viagem de finais do século XVIII e XIX as raízes do imaginário do sertão nordestino que, reforçado ao longo século XIX, chegou até os dias de hoje. Caracterizado pela seca, a aridez, o pouco desenvolvimento, o gado, as doenças e a formação de uma cultura sertaneja. Ao contrário, como procurei deixar claro ao longo do texto, penso que nas representações emanadas das viagens científicas o que é sempre ressaltado é a potencialidade econômica e a importância geopolítica estratégica dos sertões. A necessidade de colonizá-lo e desenvolvê-lo em proveito do império. Um dos motivos para essa discordância talvez seja porque Bonato e eu nos referimos a diferentes sertões. Apesar de afirmar que pretende tratar do sertão como categoria complexa e não meramente geográfica, na base do trabalho do autor está a identificação do sertão com a região Nordeste (estados do Piauí, Maranhão, Ceará e Rio Grande do Norte). Parece-me que o autor projeta para o século XVIII uma delimitação geográfica e uma representação do sertão que fazem mais sentido para o século XIX. No meu trabalho, diferentemente, sertão é a denominação atribuída a toda região não integrada ao processo de colonização (povoamento e desenvolvimento de atividade produtiva).
  • 54
    MEIRELLES, Juliana Gesuelli. Imprensa e poder na corte joanina: A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-182). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008, p. 141.
  • 55
    Por isso, segundo o autor, a região colonial seria um espaço vivo, em movimento, que expressava a dominação exercida pelo colonizador sobre um território e sobre os demais agentes participantes da aventura colonizadora. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do estado imperial, op. cit., p. 26-28.
  • 56
    Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Juiz de Fora, MG, Brasil. ­E-mail: sergioscorza@ig.com.br.
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    Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Juiz de Fora, MG, Brasil. ­E-mail: sergioscorza@ig.com.br.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2015
  • Aceito
    19 Jun 2015
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