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Surfe, política e relações internacionais

Laderman, Scott. . Empire in Waves: a Political History of Surfing. Berkeley: University of California Press, 2014.

A obra do professor da Universidade de Minnesota, Duluth (Estados Unidos) constrói uma história política do surfe entre o fim do século XIX e o presente. Para tanto, explora um universo amplo e variado de fontes, pesquisadas, sobretudo, nos Estados Unidos. A descrição e a análise das fontes são entremeadas por uma boa contextualização realizada a partir de diálogo com a bibliografia, ao que se soma a perspicácia dos comentários e das problematizações apresentadas. O livro tem trechos saborosos de ler, seja pelo conteúdo das fontes ou pela análise acurada e, às vezes, mordaz.

No plano historiográfico, afirmações como a de que o prazer, intimamente associado ao ato de surfar, é também político, podem soar óbvias para aqueles familiarizados com os movimentos feministas do século XX, mas significam um avanço na história política do esporte e na história do surfe. No primeiro caso, Laderman acrescenta uma nova perspectiva a uma vertente quase sempre preocupada com políticas estatais, ou com o uso do esporte como ferramenta de mobilização e luta por movimentos sociais (de independência, de trabalhadores, identitários etc.).1 1 Isto para não falar das frequentemente repetitivas pesquisas sobre Jogos Olímpicos, Copas do Mundo de futebol e identidade nacional. O autor aborda diacronicamente as relações entre uma modalidade e a política, cobrindo um período extenso, o que, salvo raras exceções - como o futebol (Brasil) e o futebol americano e o beisebol (nos Estados Unidos) -, permanece algo por fazer na história do esporte. Sua obra contribui para os estudos do surfe ao evitar a ênfase na história cultural ou no desenvolvimento das pranchas, comuns nos trabalhos sobre a modalidade.

O primeiro capítulo aborda o surfe no Havaí entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do XX, período que inclui um golpe de estado (1893) e a anexação pelos Estados Unidos (1898). As restrições à prática impostas por governantes estrangeiros e missionários cristãos integraram o processo de colonização do território e de subjuga-ção da população nativa. Nas primeiras décadas do século XX, o surfe é ressignificado pelos interesses imperialistas, tornando-se um dos principais elementos de promoção do arquipélago como destino turístico. Laderman explora fontes como panfletos, livros, revistas, pôsteres e cartões postais e, mais importante, realiza uma releitura de fontes conhecidas - como revistas2 2 Como Surfer’s Journal. e autores famosos da literatura memorialística sobre o surfe3 3 Como a autobiografia de Duke Kahanamoku, escritos diversos (cartas, reportagens e artigos) de Alexander Hume Ford e os livros dos jornalistas Drew Kampion e Matt Warshaw sobre história do surfe. Cf. KAHANAMOKU, Duke; BRENNAN, Joe. Duke Kahanamoku’s World of Surfing: Nova York: Grosset & Dunlap Publishers, 1968. KAMPION, Drew. Stoked: a History of Surf Culture. Salt Lake City: Gibbs Smith, 2003. WARSHAW, Matt. The History of Surfing. San Francisco: Chronicle Books, 2010. -, discutindo tais obras e a trajetória de seus autores a partir de articulações, pressupostos e objetivos políticos. Isto lhe permite contrariar a literatura jornalística, que situa a exploração comercial do surfe a partir dos anos 1970.

O capítulo dois enfoca as “viagens, a diplomacia cultural e as políticas de exploração do surfe” entre as décadas de 1940 e 1970 (p. 41). Em outras palavras, dá-se atenção à “globalização da cultura do surfe no pós-guerra”, estimulada pelas trajetórias de viajantes que se tornariam célebres, bem como ao fato de “as indústrias culturais dos Estados Unidos abraçarem o esporte”: via produções cinematográficas como Maldosamente Ingênua (Gidget) e Alegria de Verão (The Endless Summer); indústria fonográfica, com artistas como Beach Boys e Jan and Dean; e programas televisivos (p. 41-42).

O capítulo três aborda a construção da Indonésia como um destino paradisíaco, com a destacada promoção do surfe na política de divulgação turística levada a cabo pela ditadura de Suharto, nos anos 1970, a qual contou com intensa “colaboração dos surfistas com as autoridades indonésias” (p. 5). Em meados da década, Bali, promovida em revistas e filmes de surfe, tornou-se o principal destino turístico da modalidade fora dos Estados Unidos. A construção da ilha como um “paraíso” ignorou os cerca de 80 mil balineses assassinados pela repressão política após setembro de 1965, bem como o apoio dos Estados Unidos à matança em outras ilhas.4 4 Os assassinatos em massa foram um dos principais métodos de repressão política do regime de Suharto. De acordo com Laderman, “o primeiro campeonato internacional de surfe profissional realizado na Indonésia”, em 1980, contou com discursos de um general, de um ministro e do governador de Bali; e com uma parada de surfistas acompanhando a banda militar, na mesma época em que o governo do país executava um genocídio em Timor Leste (p. 77).

Este capítulo é o de maior densidade, discutindo os acontecimentos a partir de sua relação com a cultura do surfe, com a política interna da Indonésia e com os contatos desse país com os Estados Unidos. Frases como: “a história do surfe, como o próprio surfe, com muita frequência se situa numa bolha ideológica” (p. 63); e “para os surfistas que viajavam ao redor do globo, levar em consideração a realidade política dos lugares que visitavam significava o risco de poluir a transcendência da experiência de descer ondas” evidenciam o ponto de vista do autor, para quem a postura de ignorar questões políticas está relacionada com as próprias características e valores do surfe moderno. Isto tornava possível à cultura do surfe tanto ignorar os banhos de sangue quanto referir-se repetidamente ao espírito pacífico dos indonésios.

O capítulo quatro trata do surfe e do boicote esportivo à África do Sul devido ao apartheid. O assunto aparecia intermitentemente em revistas de surfe estadunidenses e australianas desde a década de 1960. Contudo, em 1985, quando três atletas profissionais de ponta decidem boicotar as competições em território sul-africano, o movimento ganha força e repercussão na modalidade. O texto se beneficia da grande variedade de fontes, incluindo filmes, livros e revistas da Austrália e da África do Sul.

O último capítulo foca a indústria do surfe e a “mercadorização da experiência”. Uma das principais contribuições é a análise da participação da indústria do surfe na “competição global estimulada por corporações multinacionais para reduzir salários, enfraquecer condições de trabalho e diluir proteções ambientais”, algo muito distinto da imagem positiva e ecológica que boa parte dos adeptos e do público geral nutrem em relação à modalidade (p. 147). Por outro lado, parece-me pouco produtiva a discussão sobre se é ou não contraditório o fato de o surfe ter se desenvolvido de tal maneira, se isto é inevitável etc. Neste ponto, a narrativa se distancia de um bom trabalho de interpretação histórica e flerta com uma visão essencialista do esporte.

Em suma, o livro problematiza uma série de elementos presentes na cultura do surfe e estabelece uma mirada interessante para a relação entre esporte e política. Contudo, como qualquer obra, tem limites. Aponto três.

Primeiro, ao afirmar que o surfe é “uma força cultural nascida no império (...), basea­da no poder do Ocidente e inserida no capitalismo neoliberal” (p. 7), o autor fornece a chave para se compreender o foco central, mas também um limite fundamental de seu trabalho: trata-se de uma história política do surfe relativa à política externa dos Estados Unidos, e não de uma história política (geral) deste esporte, como o título sugere. Para ser justo: esta grandiosidade nos títulos é comum na historiografia de países como Grã-Bretanha, França e Estados Unidos.

Segundo, o uso de fontes e de bibliografia exclusivamente em língua inglesa limita a análise e as perspectivas apresentadas. Como é comum entre autores anglófonos, Laderman não reconhece o problema. Em dado momento, afirma não ser possível saber se os vietnamitas surfavam durante a guerra com os Estados Unidos. Ora, por que não é possível saber? Pela inexistência de fontes? Ou pela impossibilidade de acessá-las, já que não estão em inglês? Uma pesquisa de história oral que consulte surfistas do Vietnã atual poderia trazer informações sobre a prática do surfe durante a guerra - ou sobre sua inexistência. Trata-se de uma postura relativamente comum: ignorar, como possibilidade de acesso ao conhecimento, tudo que pode haver de fontes e de historiografia sobre o surfe em outros idiomas. Não se reconhece, assim, a limitação estrutural que o desconhecimento de outros idiomas impõe ao desenvolvimento da pesquisa histórica.

Terceiro, a narrativa dos acontecimentos recentes e a crítica à atuação das empresas (capítulo cinco) é, do ponto de vista científico, o ponto mais frágil: desaparece o olhar historiográfico, e a narrativa se limita a enfileirar frases remetendo a fontes. Pessoal e politicamente, concordo com muitas afirmações e críticas do autor, mas às vezes elas são pouco rigorosas e generalizantes, como ao dizer que os surfistas tendem a pensar desta ou daquela maneira, ou que a empresa de surfwear X é vista da forma Y pelo conjunto dos surfistas. Ademais, o capítulo apresenta, em maior grau, um traço que permeia o livro: para cada período histórico (ao que corresponde, mais ou menos, cada capítulo), o autor escolhe um assunto e uma questão - o que, em si, não é um problema. Contudo, acaba deixando em segundo plano o diálogo entre os capítulos e entre os períodos estudados. Desta forma, no último, ignora discussões dos anteriores que poderiam trazer densidade à análise: a disseminação global do surfe, a criação de um circuito mundial profissional, as mitologias em torno do Havaí e a emergência de mercados importantes como Brasil e Japão. No mesmo sentido, o capítulo crítica (com razão) a participação das multinacionais do surfe na selvageria promovida pelo neoliberalismo. Contudo, pouco responsabiliza as empresas pela conivência com regimes autoritários (tema do capítulo três), ou pelas representações estereotipadas e imperialistas, em peças publicitárias, de cidadãos de diversas regiões do mundo (o que permitiria dialogar com os quatro primeiros capítulos).

Não obstante tais limites, trata-se de uma contribuição sólida para a história do esporte, por inserir na história política uma modalidade quase sempre abordada pelo viés da história cultural, e por fazê-lo adotando uma perspectiva que busca transcender as fronteiras do nacional (ainda que limitada às políticas interna e externa dos Estados Unidos). Destaque-se também o fato de a obra mobilizar um imenso volume e variedade de fontes (embora, como apontei, num único idioma), num subcampo ainda muito dependente dos veículos impressos, particularmente os jornais diários. Trata-se de mais um título de história do esporte que mereceria ser objeto de tradução para o português, algo que ainda parece interessar pouco às editoras, inclusive às universitárias.

  • 1
    Isto para não falar das frequentemente repetitivas pesquisas sobre Jogos Olímpicos, Copas do Mundo de futebol e identidade nacional.
  • 2
    Como Surfer’s Journal.
  • 3
    Como a autobiografia de Duke Kahanamoku, escritos diversos (cartas, reportagens e artigos) de Alexander Hume Ford e os livros dos jornalistas Drew Kampion e Matt Warshaw sobre história do surfe. Cf. KAHANAMOKU, Duke; BRENNAN, Joe. Duke Kahanamoku’s World of Surfing: Nova York: Grosset & Dunlap Publishers, 1968. KAMPION, Drew. Stoked: a History of Surf Culture. Salt Lake City: Gibbs Smith, 2003. WARSHAW, Matt. The History of Surfing. San Francisco: Chronicle Books, 2010.
  • 4
    Os assassinatos em massa foram um dos principais métodos de repressão política do regime de Suharto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2016
  • Aceito
    05 Nov 2016
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