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Entre brâmanes, cirurgiões e mercadores: agentes da produção e circulação do conhecimento médico no Oriente português setecentista

Brahmins, merchants and surgeons: agents of production and circulation of medical knowledge in eighteenth-century Portuguese India

Entre Brahmanes, cirujanos y mercaderes: agentes de la producción y circulación del conocimiento médico en el Oriente portugués del siglo XVIII

RESUMO

O objetivo deste artigo é o de compreender os processos históricos de construção, reconfiguração e circulação de conhecimento médico e farmacêutico no Oriente português no século XVIII. Parte-se do princípio de que, ao longo da Era Moderna, os domínios coloniais portugueses fizeram parte de intensas dinâmicas de produção de conhecimento científico. Nesses espaços, ocorreram diversos e complexos processos de composição de saberes, ao mesmo tempo profundamente relacionados com as muitas especificidades e idiossincrasias locais e estreitamente conectados aos canais de circulação de conhecimento estabelecidos pelas instituições imperiais. Dessa forma, procurar-se-á demonstrar o papel fundamental das populações locais, assim como de suas respectivas tradições médicas, na construção e circulação desses saberes.

Palavras-chave:
História da Medicina; Goa; Índia portuguesa; raiz de João Lopes Pinheiro; Ignácio Caetano Afonso

ABSTRACT

This article aims to understand the historic processes of construction, reconfiguration and circulation of medical and pharmaceutical knowledge in Portuguese India during the eighteenth century. It builds on the assumption that, throughout the Modern Era, Portuguese colonial domains were part of an intense process of production of scientific knowledge. In these spaces, knowledge was produced via diverse and complex means that were deeply related to local idiosyncrasies and closely connected to the channels of knowledge circulation established by imperial institutions. This paper aim to demonstrate the fundamental role of local populations and their respective medical traditions in the construction and circulation of medical knowledge.

Keywords:
History of Medicine; Goa; Portuguese India; João Lopes Pinheiro Root; Ignácio Caetano Afonso

RESUMEN

El objetivo de este artículo es comprender los procesos históricos de construcción, reconfiguración y circulación de conocimiento médico y farmacéutico en el Oriente portugués durante el siglo XVIII. Se parte del principio de que, a lo largo de la Era Moderna, los dominios coloniales portugueses hicieron parte de intensas dinámicas de producción de conocimiento científico. En estos espacios, ocurrieron diversos y complejos procesos de composición de saberes, al mismo tiempo profundamente relacionados con las muchas especificidades e idiosincrasias locales y estrechamente conectadas a los canales de circulación de conocimiento establecidos por las instituciones imperiales. De esta forma, se pretende demostrar el papel fundamental de las poblaciones locales, así como de sus respectivas tradiciones médicas en la construcción y circulación de esos saberes.

Palabras clave:
Historia de la Medicina; Goa; India portuguesa; Raíz de João Lopes Pinheiro; Ignácio Caetano Afonso

Objetivos

Durante a Era Moderna, os territórios sob a autoridade da Coroa portuguesa foram palco de processos históricos de construção de saberes relacionados aos mais diversos campos do conhecimento. Para os propósitos deste artigo, as dimensões consideradas abrangem a medicina, cirurgia e farmácia1 1 Aqui compreendida como a atividade dos boticários. , e os saberes produzidos no espaço geográfico do império português no oceano Índico, cujo centro político e administrativo era Goa, na costa ocidental da Índia. Em termos temporais, o foco desta análise será direcionado ao século XVIII2 2 Após as grandes derrotas militares e perdas territoriais impostas por seus rivais europeus, ingleses e holandeses, e também por diversas potências asiáticas, ao longo do período entre 1580, o império oriental português passou, durante boa parte do século XVIII, por um intenso processo de reorganização. Para uma discussão mais aprofundada a respeito desse tópico ver: BRACHT, 2018, p. 167-192. .

O objetivo central deste artigo é compreender como ocorreram os processos de produção e circulação de conhecimentos médicos e farmacêuticos no Oriente Português. A hipótese central é de que as populações locais, assim como de suas respectivas tradições médicas, desempenharam papel fundamental na construção desses saberes. Nesse sentido, pretende-se demonstrar que grande parte desse conhecimento foi produzido por, e circulou a partir de, indivíduos que não eram médicos, cirurgiões ou boticários treinados na Europa. Partindo-se dessa hipótese, três questões podem ser formuladas. Como resultado de processos históricos ocorridos na Ásia e África oriental, e através do encontro entre europeus, africanos e asiáticos, quais dinâmicas de conflito podem ser identificadas a partir desses processos? Como se deu a circulação desses saberes no âmbito do império oriental, e também entre o Oriente e a Europa? Essa circulação ocorria apenas nos territórios controlados pelos portugueses ou podia estender-se a outros impérios e nações?

As respostas a tais questões presumem a compreensão das relações culturais e epistemológicas entre esses mundos, que envolveram a construção dos saberes no âmbito da farmácia, cirurgia e medicina.

Entre físicos e panditos: evidências de uma convivência conflituosa

As primeiras autoridades portuguesas que chegaram à Índia logo perceberam que os médicos e curandeiros locais, panditos3 3 O termo Pandit é sânscrito, embora faça parte do léxico da maior parte das línguas do subcontinente indiano, e significaria originalmente sábio, professor ou, ainda, filósofo. Geralmente era uma das designações dadas àqueles que possuíam educação superior, sendo estes frequentemente brâmanes, os quais também estavam ligados de forma íntima à prática da medicina ayurvédica e aos conhecimentos sobre drogas medicinais. Nos escritos portugueses, desde o século XVI, o termo panditos refere-se quase que exclusivamente aos médicos Vaydias, que praticavam uma medicina de distinguível caráter popular, uma vez que incorporava massivamente o percurso empírico de milhares de anos de prática médica, mas também indubitavelmente influenciada pelos ancestrais princípios do Ayurveda e dos sistemas muçulmanos. , como os portugueses os chamavam, eram mais bem informados do que seus congêneres europeus sobre as artes de combate às doenças tropicais (PEARSON, 2001bPEARSON, Michael N. The Portuguese State and Medicine in Sixteenth-Century Goa. In: MALEKANDATHHIL, Pius; SOUZA, Teotonio R. de. The Portuguese and Socio-Cultural Changes in India, 1500 - 1800. Kerala: Fundação Oriente, 2001b. p. 401-419.). Existem diversas evidências da influência da medicina tradicional indiana, ou Ayurveda, na forma como os médicos europeus absorveram e apreenderam conhecimento sobre remédios e doenças do subcontinente indiano (WALKER, 2002WALKER, Timothy D. Evidence of the Use of Ayurvedic Medicine in the Medical Institutions of Portuguese India, 1680-1830. In: SALEMA, A. (ed.). Ayurveda: at the crossroads of care and cure. Lisboa: Centro de História de Além Mar, 2002. p. 74-104.). Em parte devido às dificuldades em se atender às necessidades, no que tange não apenas à presença de médicos, mas também à disponibilidade de remédios que fossem eficientes no tratamento das doenças próprias das Índias Orientais, um grande número de médicos, boticários, cirurgiões, herboristas e filósofos naturais acrescentaram, a partir da medicina indiana, importantes contribuições ao desenvolvimento dos conhecimentos sobre plantas, animais e doenças. Isso deu-se basicamente de duas formas.

A primeira, e mais frequente, foi através dos muitos médicos Vaydias, herboristas e boticários indianos que prestaram serviços aos hospitais e autoridades portuguesas (WALKER, 2002WALKER, Timothy D. Evidence of the Use of Ayurvedic Medicine in the Medical Institutions of Portuguese India, 1680-1830. In: SALEMA, A. (ed.). Ayurveda: at the crossroads of care and cure. Lisboa: Centro de História de Além Mar, 2002. p. 74-104.). A informação foi largamente absorvida através da observação da prática diária desses curadores. A segunda, menos frequente, mas igualmente importante, era o estabelecimento de diálogo e permuta de informações entre os agentes europeus e indianos. Muitos dos médicos, boticários ou mesmo mercadores europeus foram capazes de estabelecer extensas redes de contatos, das quais recebiam, eventualmente mediante pagamento, informações sobre as propriedades curativas das diversas drogas locais (PEARSON, 1996PEARSON,Michael N. First Contacts Between India and European Medical Systems: Goa in the sixteenth century. In: ARNOLD, David (ed.). Warm Climates and Western Medicine: the emergence of tropical medicine, 1500-1900. Amsterdam: Editions Rodopi . V B. 1996. p. 20-41.). Pode-se supor que tais redes não foram constituídas sem o emprego de consideráveis doses de energia, diálogo, negociação e esforço, de ambas as partes.

No que se refere aos europeus e suas redes de contato, os que conseguiram estabelecê-las puderam adentrar um universo restrito. Em um manuscrito, composto por mais de 100 páginas e 82 receitas médicas, as quais eram utilizadas no Hospital Real de Goa por volta de 1696, há a informação de que, por aquela época, havia “[…] só nesta cidade de Goa Mais de oitenta mestres ou panditos” 4 4 BNP - Biblioteca Nacional de Portugal, seção de reservados - CÓD. 2102, João dos Reis, Caderno de várias receitas medicinais orientais, 1696., fl 3. . Estes, segundo o autor, o cirurgião João dos Reis, não eram propensos a compartilhar suas receitas e conhecimentos5 5 Idem. . O conflito pode ser depreendido a partir da leitura do manuscrito de Reis. O capítulo “Uso e prática dos panditos do Oriente”6 6 Idem. é uma descrição de seus métodos, no qual o autor também deixou evidenciar alguns aspectos da natureza das relações entre europeus e indianos no cotidiano do Hospital Real: “[...] dos simples não dão versão de couza algūa por fácil que seja porque se perguntava pela versão do douto que davão sobre sangria ou outro medicamento respondião que assim não nos podem dar versão”.7 7 Ibidem, fl. 5.

João dos Reis queixa-se, dessa forma, das dificuldades que encontrou em estabelecer sua própria rede de acesso aos medicamentos e receitas indianas.

O Hospital Real de Goa foi criado pela Coroa ainda no século XVI, inicialmente administrado pela Irmandade da Misericórdia, e, a partir do final do mesmo século, pela Companhia de Jesus (BASTOS, 2010aBASTOS, Cristiana. Medicine, Colonial Order and Local Action in Goa. In: DIGBY, Anne; WALTRAUD, Ernst; MUHKARJI, Projit B. (eds.). Crossing Colonial Historiographies: histories of colonial and indigenous medicines in transnational perspective. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2010a., p. 188). As posições de comando, tanto administrativas quanto médicas, foram, até meados do século XVIII, maioritariamente ocupadas por portugueses. Havia sempre muitos nativos a trabalhar no hospital, mas geralmente em funções subalternas (BASTOS, 2010bBASTOS, Cristiana. Hospitais e sociedade colonial. Esplendor, ruína, memória e mudança em Goa. Ler História, n. 58, p. 61-79, 2010b.). Não obstante, isso não impedia que os serviços de médicos ou curandeiros indianos fossem requisitados, mesmo dentro do próprio hospital (PEARSON, 2001bPEARSON, Michael N. The Portuguese State and Medicine in Sixteenth-Century Goa. In: MALEKANDATHHIL, Pius; SOUZA, Teotonio R. de. The Portuguese and Socio-Cultural Changes in India, 1500 - 1800. Kerala: Fundação Oriente, 2001b. p. 401-419.). No manuscrito de João dos Reis há a indicação de que era comum, em troca de pagamento, que doentes recebessem, clandestinamente, tratamentos ministrados por panditos que trabalhavam no hospital.

Os hospitais e a própria prática da medicina em si eram fronteiras, zonas de contato. Aqui utiliza-se o conceito delimitado por Mary Louise Pratt, para quem uma zona de contato seria então o locus dos “[…] encontros coloniais, os espaços nos quais povos antes separados, em termos históricos e geográficos, entram em contato estabelecendo relações contínuas, geralmente envolvendo condições de coerção, desigualdade extrema e conflito insolúvel” (PRATT, 1992PRATT, Mary Louise. Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation. Londres/Nova Iorque: Routledge, 1992., p. 6)8 8 Tradução do autor. No original: “[…] space of colonial encounters, the space in which peoples geographically and historically separated come into contact with each other and establish ongoing relations, usually involving conditions of coercion, radical inequality, and intractable conflict”. .

Em relação à medicina, segundo Michael N. Pearson (2001bPEARSON, Michael N. The Portuguese State and Medicine in Sixteenth-Century Goa. In: MALEKANDATHHIL, Pius; SOUZA, Teotonio R. de. The Portuguese and Socio-Cultural Changes in India, 1500 - 1800. Kerala: Fundação Oriente, 2001b. p. 401-419.), a única área na qual os portugueses levavam clara vantagem, se comparadas suas práticas às correntes no Oriente, era na atenção que o Estado dispensava ao cuidado com os doentes. Consequentemente, as autoridades coloniais, ao implementarem os modelos de saúde que conheciam, procuraram, em diversas oportunidades, enfraquecer, ou mesmo suprimir, a importância social dos médicos e curandeiros locais.

Em Goa, uma ordem de expulsão de todos os médicos hindus chegou a ser expedida em 1563. Embora nunca tenha sido de fato cumprida, não há registro de sua revogação, o que certamente contribuiu para que tenha sido um eficaz instrumento de pressão e coerção. Em 1574, os médicos hindus foram proibidos de andar pelas ruas de Goa carregados em palanquins ou mesmo a cavalo, sob pena de multas ou confisco do animal. Em 1618, o Senado de Goa passou a permitir que médicos Vaydias cristãos exercessem a profissão, desde que devidamente examinados e autorizados pelo físico-mor (PEARSON, 2001bPRATT, Mary Louise. Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation. Londres/Nova Iorque: Routledge, 1992.). No entanto, as permissões nunca deveriam ser estendidas a mais de trinta indivíduos, criando-se então uma fila de espera. Legalmente, essa determinação não foi alterada antes do final do século XVIII. Portanto, é razoável supor que dentre os 80 panditos que trabalhavam em Goa por volta de 1700, a maior parte não dispusesse de licença para atuar como médico. A tensão alargava-se à disputa por credibilidade ou mesmo eventual clientela. Aparentemente, o fato de terem licença emitida pelo físico-mor não conferia vantagem aos médicos portugueses. Como observou João dos Reis, os panditos do Hospital Real, “[…] aprenderão como outros nesta cidade como praticantes por que vai qualquer Mestrinho, sem ponta de Barba, e já he Mestre com dois outrez aprendizes detraz de Si e em menos de hum anno já curão, e já ass. Místicas E dão a eles mais Credito que ao medico portuguez […]”9 9 BNP - Biblioteca Nacional de Portugal, seção de reservados - CÓD. 2102, João dos Reis, Caderno de várias receitas medicinais orientais, 1696., fl 6.

Os conflitos cotidianos, embora frequentemente mediados pelo poder colonial em favor dos europeus, não necessariamente conferiam vantagens aos que estivessem sob a proteção das autoridades. A disputa era diária, e o atrito produzia considerável calor. Na maior parte das vezes, as acusações tendiam a desqualificar as capacidades do oponente:

São os taez panditos muy ambiçiozos, e mordazes […] pera outros porem mais covardez e pozilanimos, de sorte que cada qual se tem por iminente na faculdade o que só mostrão em provarem que não entendem muitos outros uzos e praticas trazem porem couzas Rediculas e de pouco momento e por iço as deixo em silençio […] [os panditos] facilmente as concedem ao doente que pede.10 10 BNP - Biblioteca Nacional de Portugal, sessão de reservados - CÓD. 2102, João dos Reis, Caderno de várias receitas medicinais orientais, 1696., fl 6.

No entanto, isso não impedia que, no território da disputa, também se produzissem apropriações e reconfigurações. O cotidiano do Hospital Real, descrito no manuscrito de João dos Reis, fornece indícios valiosos a esse respeito. Das 82 receitas descritas, 40 são compostas de pelo menos um tipo de erva, ou ingrediente nomeado em língua de Goa. Dentre essas, 19 são caldos à base de um dos componentes mais fundamentais da terapêutica Ayurveda, o arroz. O cereal era utilizado no combate às febres e à enfermidade chamada Mordexim, que alguns autores - entre eles Michael N. Pearson - associam ao cólera, não obstante o termo pudesse também designar uma grande variedade de infecções causadoras de problemas intestinais agudos (PEARSON, 2001bPRATT, Mary Louise. Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation. Londres/Nova Iorque: Routledge, 1992.). Contra a Mordexim, a receita mais comum era um preparado cozido de arroz, carne e gordura de galinha, e um preparado feito com diversas outras drogas locais. Essa receita, descrita ainda no século XVI por cronistas e médicos portugueses, era denominada em Concani, a língua de Goa, Kanjii, ou Canji (PEARSON, 2001aPEARSON, Michael N. Hindu Medical Practice in Sixteenth-Century Western India: evidence from Portuguese sources. Portuguese Studies, n. 17, p. 100-113, 2001a.). João dos Reis dedicou um capítulo inteiro a esse medicamento, seu preparo, variações e usos. Dividido em duas partes, primeiro uma dissertação breve sobre o arroz, suas virtudes e usos no oriente, depois, as receitas propriamente ditas, iniciadas com o tópico “Canja, que couza he e como se uza nesta India”11 11 Idem. , no qual afirma serem as canjas a “[…] principal dieta nesse Hospital de Goa”. As variações apresentadas foram todas devidamente classificadas dentro do contexto teórico do Galenismo, reconfiguradas, revalidadas para serem receitadas por médicos certificados, mais confiáveis, na visão do autor, do que os “mordazes” panditos.

A produção de conhecimento, na Índia portuguesa, refletia os conflitos que eram inerentes às próprias estruturas sociais do Império. Nesse âmbito, evidenciam-se as rivalidades que existiam entre europeus e indianos, que disputavam espaço no campo da cura e assistência aos doentes, dentro e fora dos hospitais. Entretanto, considerando-se tais condições, resta indagar sobre a própria produção e circulação desses saberes, assim como sobre a natureza dos agentes produtores. É sobre essas questões que pretendo responder a partir de agora.

Médicos, cirurgiões, mercadores e boticários: agentes de produção, circulação e reconfiguração de conhecimento

Em 1696, quando João dos Reis escreveu seu caderno de receitas, as suas principais queixas eram contra o fato de que, na Índia, os médicos indianos, panditos que nunca haviam estudado em uma instituição europeia, trabalhavam dentro do Hospital Real a prescrever medicamentos e a competir com os poucos médicos portugueses existentes. O Hospital Real, que inicialmente era uma instituição cujo comando esteve nas mãos de portugueses, transformou-se, lentamente, em palco de conflitos que espelhavam as próprias contradições da sociedade colonial, passando a ser cada vez mais local de trabalho de médicos indianos. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, as dificuldades para suprir as necessidades do Império fizeram com que passasse a ser cada vez mais comum a concessão de licenças para o exercício da medicina, cirurgia e a produção de medicamentos a indivíduos nascidos e educados nas colónias (LOPES, 1996LOPES, Maria de Jesus dos Mártires. Goa setecentista: tradição e modernidade 1750-1800. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 1996.). A imensa lacuna nos recursos humanos imperiais foi uma das razões para o aparente sentido de urgência com que as reformas no ensino e na produção de conhecimentos foram implementadas desde a década de 1750.

Quase um século depois de João dos Reis se ter queixado quanto ao elevado número de panditos que competiam contra os médicos portugueses, em Goa já não existia mais concorrência. Por volta de 1780 não havia nenhum médico que tivesse frequentado a universidade, ou cirurgião formado na Europa, a trabalhar na Índia portuguesa (BASTOS, 2010bBASTOS, Cristiana. Hospitais e sociedade colonial. Esplendor, ruína, memória e mudança em Goa. Ler História, n. 58, p. 61-79, 2010b.). Essa situação pouco se alterou até ao final do século. Em 1799, o governador e capitão general do Estado da Índia, Francisco Antônio da Veiga Cabral da Câmara (1733-1810), escreveu a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que ocupava o cargo de secretário de Estado da Marinha e do Ultramar, a informá-lo que “[…] actualmente não há neste Estado Medico Algum Português formado na Universidade, que tanto os do Hospital, como os outros, nenhum deles estudou a faculdade com Methodo, e que todos devem ser considerados como Praticos”.12 12 HAG - Historical Archive of Goa, Monções do Reino, nº 271.

Também não existiam instituições superiores a ensinar medicina, embora alguns professores metropolitanos o tenham feito de forma efêmera desde o século XVII, sendo essa uma constante fonte de reivindicações das elites locais, tanto a portuguesa quanto a indiana (BASTOS, 2010bBASTOS, Cristiana. Hospitais e sociedade colonial. Esplendor, ruína, memória e mudança em Goa. Ler História, n. 58, p. 61-79, 2010b.). Mesmo que estivessem submetidos às autoridades imperiais, a maior parte dos médicos, cirurgiões e boticários da Índia portuguesa era nativa, indiana. Embora as licenças para a prática dessas profissões fossem estendidas apenas aos cristãos, muitos não cristãos exerciam-nas à revelia das autoridades. Na prática, o Estado há muito que não era capaz de exercer controle efetivo sobre as atividades ligadas à assistência e cura dos doentes, muito menos sobre a fabricação e distribuição de medicamentos (BASTOS, 2010bBASTOS, Cristiana. Hospitais e sociedade colonial. Esplendor, ruína, memória e mudança em Goa. Ler História, n. 58, p. 61-79, 2010b.).

Após a expansão territorial que triplicou o tamanho do território sob o controle de Goa nos anos anteriores a 1788, o desequilíbrio numérico entre cristãos e hindus passou a favorecer largamente os últimos, tornando virtualmente impossível qualquer tipo de controle sobre os praticantes de todos os níveis da medicina tradicional. Mesmo assim, as questões de saúde estavam no centro das preocupações da Secretaria de Estado da Marinha e do Ultramar. Um dos motivos era a necessidade de prover tratamento médico e cirúrgico adequado às numerosas tropas, principalmente aos oficiais, sempre necessárias devido ao constante clima hostil a envolver as relações entre Goa e seus vizinhos, o império Marata e o Reino de Mysore.

Além dos soldados, a própria população de Goa sofria com as enfermidades. Para a administração imperial, a Índia nunca foi território fácil em termos de provisão de cuidados com a saúde. As taxas de mortalidade foram sempre as mais altas do Império entre europeus e escravos, e também entre as populações locais. Goa localiza-se em uma planície repleta de terrenos alagadiços, excelentes para a proliferação de mosquitos transmissores de doenças, principalmente a malária. Além dessa, outras enfermidades graves também eram grandes ceifadoras de vidas. Dentre todas, certamente a mais mortífera era a Mordexim. Como o Hospital Real sempre fora, desde o século XVI, uma instituição para atender os portugueses, principalmente os que ocupavam o topo da hierarquia imperial, diversas instituições funcionaram em Goa e seus arredores para o atendimento às populações locais. Essas instituições foram tão variadas quanto eram complexas as estratificações da sociedade goesa. Pela multiplicidade dos agentes que trabalhavam nesses hospitais e pelo fato de não terem sido esses espaços isolados dos conflitos, próprios da Goa colonial, afigura-se esclarecedora a interpretação de Cristiana Bastos a respeito da convivência dentro desses hospitais: “Concentram-se assim nos hospitais coloniais de Goa não apenas episódios e práticas de tratamento, cura, morte, resgate, redenção, encontro, experimentação, mas também as histórias de inclusão, exclusão, ocupação, equilíbrio de poder e capacidade de negociar ou decidir” (BASTOS, 2010bBASTOS, Cristiana. Hospitais e sociedade colonial. Esplendor, ruína, memória e mudança em Goa. Ler História, n. 58, p. 61-79, 2010b., p. 68).

Durante a maior parte do período colonial a assistência aos doentes foi feita, maioritariamente, por dois grupos bastante heterogêneos. O primeiro era composto por médicos, cirurgiões, boticários, herboristas e curandeiros indianos, educados total ou parcialmente nas suas próprias tradições. Em maior número, atuavam de forma mais capilarizada entre as populações nativas não cristãs, mas também entre portugueses, indo-portugueses e lusodescendentes. A maior parte dos indivíduos desse grupo era hindu, concentrava-se mais nas comunidades em que as populações cristãs eram minoritárias ou mesmo inexistentes, principalmente nos territórios das Novas Conquistas (LOPES, 1996LOPES, Maria de Jesus dos Mártires. Goa setecentista: tradição e modernidade 1750-1800. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 1996.). Eventualmente, era também procurada por cristãos, principalmente os indianos, residentes nas aldeias mais afastadas. O segundo grupo era composto por agentes educados na tradição europeia. Desses, parte substancial esteve ligada à ação das ordens religiosas. Virtualmente todas as ordens participavam de alguma etapa na cadeia dos cuidados com a saúde ou a assistência, desde os dominicanos, passando pelos franciscanos, aos agostinianos sendo que, até 1760, no entanto, os jesuítas foram os mais ativos (ŽUPANOV, 2008ŽUPANOV, Ines G. Conversion, Illness and Possession: catholic missionary healing in Early Modern South Asia. In: GUENZI, Caterina; ŽUPANOV, Ines G. (org.). Divins remèdes: médecine et religion en Inde. Paris: Editions de L’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2008. p. 263-300.) . Após a expulsão da Companhia de Jesus, a Ordem dos Irmãos Hospitaleiros de São João de Deus assumiu papel cada vez mais relevante.

Ainda que os dois grupos possam ser descritos separadamente, o mesmo não se pode dizer quanto ao universo dos conhecimentos que circulavam entre eles. Desde o século XVI, médicos, cirurgiões e boticários europeus absorveram tudo o que foi possível sobre os usos, técnicas e o conhecimento médico asiático (PEARSON, 2001bPEARSON, Michael N. The Portuguese State and Medicine in Sixteenth-Century Goa. In: MALEKANDATHHIL, Pius; SOUZA, Teotonio R. de. The Portuguese and Socio-Cultural Changes in India, 1500 - 1800. Kerala: Fundação Oriente, 2001b. p. 401-419.). Através da zona de contato, por entre a fronteira seletivamente permeável estabelecida entre os dois universos que agora conviviam em um mesmo espaço, o caminho contrário também foi trilhado. Médicos, herboristas e curandeiros indianos passaram a compartilhar e utilizar técnicas, medicamentos e abordagens conceituais introduzidas pelos europeus (PEARSON, 2001aPEARSON, Michael N. Hindu Medical Practice in Sixteenth-Century Western India: evidence from Portuguese sources. Portuguese Studies, n. 17, p. 100-113, 2001a.). Ambos os lados se influenciavam mutuamente. Com a supressão da Companhia de Jesus, após 1760, tenderam a aumentar mais ainda, em termos relativos, os contingentes de praticantes locais de medicina, farmácia e cirurgia. O Reino, através de seus representantes coloniais, concedia anualmente muitas licenças para prática das diversas profissões ligadas à saúde. No entanto, a insalubridade extrema continuava a causar graves problemas à administração local e o descalabro das instituições, principalmente do Hospital Real, era alvo de críticas contumazes por parte de funcionários da Coroa e outros agentes. Em 1783, o naturalista Manuel Galvão da Silva descreveu em cores vivas suas impressões sobre as condições do Hospital Real de Goa.

Tenho observado, Exmo. Senhor, que quasi todos os dias vai morrendo no Hospital a gente de transporte, que vinha boa, apezar de ter suportado as grandes incomodidades que traz consigo huã tao longa viagem; não sei a verdadeira cauza, por ter andado sempre por fora de Goa; mas posso certificar a V.Ex.a que o mesmo Hospital, e os mezinheiros que o assistem darão cabo de quanta gente S. Magestade mandar para estes Estados. O Hospital, em vez de ser ventilado, claro, e ter o devido asseio, he hum calabouço cheio de gradez, rotulas, e vidraças de ostra, onde jamais o ar tem livre accesio: o terrivel cheiro que exhala hum cano que vem de dentro parar muito perto no mar, não deixa parar por ali junto embarcação alguã. Há neste Hospital huã casa chamada dos Fracos, que todos que nella entrão não escapão; não porque já não podessem viver; mas pelo desamparo em que os largão; e o terror que os acaba de matar mays sêdo. Os chamados Physicos são homens sem instrução, e que nunca souberam, nem pelo nome o que seja Medicina, e o mais celebre deles, precisa quando alguém quer que lhe receite, fecha lho, para se não embriagar.

Relatos a respeito da falta de condições do Hospital Real foram frequentes desde o século XVII. A falta de profissionais formados pelos padrões europeus era encarada, por parte das autoridades, como a principal responsável pelas dificuldades sanitárias pelas quais passava o Estado da Índia. De fato, o mesmo tipo de desconfiança contra os médicos indianos, revelada por João dos Reis em 1699, continuava a estar presente ao final do século XVIII. É uma amostra do clima de conflito aberto que permeava as relações sociais no campo da saúde.

Embora existissem muitos médicos, cirurgiões e boticários locais a trabalhar em diversas instituições, as autoridades coloniais constantemente pediam à Coroa que enviasse pessoas capacitadas a ensinar medicina e cirurgia. Tais súplicas não eram novas, faziam-nas desde pelo menos o final do século XVII. Foram também atendidas diversas vezes, embora nunca se tenha estabelecido nenhum procedimento sistemático quanto à resolução do problema. Em 20 de abril de 1785, para atender aos pedidos desta vez feitos pelo então governador e capitão general do Estado da Índia, o ministro Melo e Castro, designou o cirurgião do exército, Francisco Manuel Barroso da Silva, para ir a Goa, onde assumiria o posto de cirurgião-mor do Estado da Índia, com a missão de ministrar aulas de cirurgia e anatomia, além de dirigir o estabelecimento de um Jardim Botânico14 14 ADB - Arquivo Distrital de Braga, Família Araújo de Azevedo (1489/1879) / António de Araújo de Azevedo/ Conde da Barca (1787/1817) / Carta de Francisco Manuel Barroso da Silva - Código de Referência: PT/UM-ADB/FAM/FAA-AAA/001525. .

Uma vez em Goa, Francisco Manuel passou a trabalhar com uma equipe de médicos, cirurgiões, enfermeiros e boticários indianos e luso-descendentes. Devido às condicionantes locais, a chegada de um cirurgião vindo do Reino pouco alterava a dinâmica dos trabalhos no Hospital Real. Os medicamentos trazidos da Europa obedeciam também ao ritmo das monções e frequentemente eram considerados inadequados ao tratamento das doenças locais. Muitas vezes chegavam deteriorados ou extraviavam-se durante a viagem. As boticas dos hospitais goeses estavam sempre repletas de frascos contendo substâncias já consideradas impróprias para uso, devido à sua antiguidade ou estado de deterioração (BASTOS, 2010bBASTOS, Cristiana. Hospitais e sociedade colonial. Esplendor, ruína, memória e mudança em Goa. Ler História, n. 58, p. 61-79, 2010b.). Como era de se esperar, isso impactava nos preços dos medicamentos, tornando-os virtualmente inacessíveis à maior parte da população (BRACHT, 2017BRACHT, Fabiano. Ao ritmo das monções: medicina, farmácia, história natural e produção de conhecimento na Índia portuguesa no século XVIII. Tese (Doutorado em História), Universidade do Porto, Porto, 2017.). Outro fator deve ser levado em consideração: os mercados de Goa disponibilizavam uma grande variedade de medicamentos locais, vendidos por herboristas e receitados por médicos nativos.

Mesmo assim, havia demanda por medicamentos europeus. Existia uma considerável dinâmica de fabricação de medicamentos em Goa. Até 1760, a botica dos jesuítas foi um importante centro produtor, o que conferia aos padres da Companhia lucros consideráveis, embora formalmente não lhes fosse permitido obtê-los (WALKER, 2007WALKER, Timothy D. A Commodities Price Guide and Merchant’s Handbook to the Ports of Asia: Portuguese trade information - gathering and marketing strategies in the Estado da India (circa 1750-1800). In: BORGES, Charles J.; PEARSON, M. N. (eds.). Metahistory: History questioning History. Lisboa: Nova Vega, 2007. p. 569-579.). O fato é que desde o século XVI, desenvolvia-se um ambiente de produção compartilhada de conhecimento terapêutico, não apenas a contar com substâncias originárias de Goa e os respectivos conhecimentos locais a respeito delas, mas também com aquelas que circulavam através das redes comerciais do Império.

Em termos de material humano disponível, a Índia portuguesa desenvolveu também uma interessante particularidade, a qual impactava diretamente nas relações sociais no campo das profissões da saúde. Embora a ideia inicial dos colonizadores tivesse sido abolir o sistema de castas, devido à sua ligação ancestral com a religião hindu, na prática, ao longo dos séculos, o que se desenvolveu foi o resultado de disputas e acomodações, a partir das quais as elites nativas puderam aspirar - embora nem sempre alcançar - o melhor dos dois universos. Indianos, principalmente pertencentes às castas Brâmane e Charodó, convertidos ao cristianismo, conservaram seus estatutos, castas e propriedades ancestrais. Ao mesmo tempo, tinham acesso à cadeia dos benefícios que a administração colonial reservava àqueles que estivessem enquadrados no jogo, pelo menos nas aparências, das regras impostas pelo cristianismo (LOPES, 1996LOPES, Maria de Jesus dos Mártires. Goa setecentista: tradição e modernidade 1750-1800. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 1996.).

Muitos dos conversos tornaram-se importantes ativistas cristãos. Claro que transformações sociais dessa natureza também não constituíram processos lineares e livres de conflitos. As elites indianas convertidas, ao mesmo tempo em que almejavam extrair o melhor dos dois mundos, tinham também que lutar em duas frentes. Por um lado, contra as barreiras raciais impostas por parte da administração colonial, por outro, frente à desconfiança das numerosas elites e comunidades de não convertidos (XAVIER; ŽUPANOV, 2015XAVIER, Ângela Barreto; ŽUPANOV, Ines G. Ser brâmane na Goa da Época Moderna. Revista de História (São Paulo), n. 172, p. 15-41, 2015.). De certa forma, deparavam-se também com o pior das duas dimensões. Mas foi justamente esse embate que produziu as características intrínsecas ao fenômeno, na sua constante busca por um equilíbrio que nunca viria. Para isso, também foram capazes de desenvolver grande variedade de estratégias e construir inúmeros canais de negociação (XAVIER; ŽUPANOV, 2015XAVIER, Ângela Barreto; ŽUPANOV, Ines G. Ser brâmane na Goa da Época Moderna. Revista de História (São Paulo), n. 172, p. 15-41, 2015.). A prática da medicina e das artes da cura era um deles, sem dúvidas (BASTOS, 2010bBASTOS, Cristiana. Hospitais e sociedade colonial. Esplendor, ruína, memória e mudança em Goa. Ler História, n. 58, p. 61-79, 2010b., p. 74; LOPES, 1996LOPES, Maria de Jesus dos Mártires. Goa setecentista: tradição e modernidade 1750-1800. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 1996.). Os charodós dedicaram-se maioritariamente às atividades ligadas às letras e ao comércio, principalmente a partir do início do século XIX. No século XVIII, os brâmanes tinham na medicina uma das suas atividades preferenciais (BASTOS, 2010bBASTOS, Cristiana. Hospitais e sociedade colonial. Esplendor, ruína, memória e mudança em Goa. Ler História, n. 58, p. 61-79, 2010b., p. 74).

Desde 1788 o físico-mor do Estado da Índia era goês, um brâmane católico cuja família havia muitas gerações adotado religião e nomes cristãos (WALKER, 2016XAVIER, Ângela Barreto; ŽUPANOV, Ines G. Ser brâmane na Goa da Época Moderna. Revista de História (São Paulo), n. 172, p. 15-41, 2015.). Ignácio Caetano Afonso manteve-se no cargo médico mais importante da Índia por cerca de dez anos, até sua morte em 1798, sem nunca haver estudado medicina nos moldes universitários europeus. A correspondência oficial do Estado da Índia revela, inclusive, que ele havia sido treinado por seu antecessor, o português Luís da Costa Portugal, que também instruíra outros profissionais enquanto ocupou o cargo de físico-mor (WALKER, 2016WALKER, Timothy D. The Medicines Trade in the Portuguese Atlantic World: acquisition and dissemination of healing knowledge from Brazil (c. 1580-1800). Social History of Medicine, v. 3, n. 26, p. 1-29, 2013.). A partir da análise dessa correspondência, feita por Thimoty DWalker (2016)WALKER, Timothy D. Global Cross-Cultural Dissemination of Indigenous Medical Practices through the Portuguese Colonial System: evidence from sixteenth to eighteenth-century ethno-botanical manuscripts. In: WENDT, Helge (ed.). The Globalization of Knowledge in the Iberian Colonial World. Berlim: Max Planck Research Library for the History and Development of Knowledge, 2016. p. 161-192., pode-se inferir com alguma segurança que o treinamento médico de Ignacio Caetano Afonso não foi apenas aquele ministrado pelo antigo físico-mor. A tradição bramânica no exercício da medicina ultrapassava os limites do alcance das autoridades coloniais. Ainda segundo Walker, Ignácio Caetano aprendeu com vários outros mestres, com grande probabilidade de quase todos como ele, panditos, brâmanes, católicos ou hindus, e médicos reconhecidos pelas comunidades locais.

De posse da autoridade de físico-mor, Ignacio Caetano tinha também a incumbência de examinar aqueles que pretendiam exercer o cargo de médico em qualquer parte do território do Estado da Índia. Apenas no ano de 1795, a rainha D. Maria I despachou três vezes ao governador e capitão general do Estado da Índia, Francisco Antônio da Veiga Cabral da Câmara, a conceder autorização para que os examinados por Ignacio Caetano Afonso pudessem exercer a profissão de médico. Os contemplados foram Camilo do Rosário de Sá e Noronha15 15 ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Código de referência - PT/TT/GEI-JRF/001/0062 - Junta da Real Fazenda do Estado da Índia, Livro 62, Documento nº 32. , Agostinho Salvador Clemente16 16 Ibidem, Documento nº 216. e José Caetano Lobo17 17 Ibidem, Documento nº 306. , os dois primeiros moradores da aldeia de Loutulim; o último, na freguesia de Sirulá. Em comum, todos trabalharam por algum período no Hospital Militar. Sabe-se que eram todos indianos, não luso-descendentes. Isso significa que havia mecanismos de reprodução do conhecimento médico que estavam, pelo menos em parte, sob o controle de indivíduos nascidos e formados localmente.

O conhecimento que produziam era também um reflexo disso, uma mescla sincrética composta do uso de elementos locais e europeus, combinados com substâncias que faziam parte da miríade de produtos a circular pelo Império. Em termos teóricos, para serem aceitos a serviço dos hospitais, enquadravam-se nos parâmetros exigidos pelas autoridades europeias. Em termos de eficiência esperada, embora tenham sido comuns as queixas quanto às práticas dos médicos do Oriente, as fontes documentais também sugerem que, ao olhar das autoridades, esses indivíduos cumpriam bem o papel que deles se esperava. Essa bipolaridade não surpreende, fazia parte dos processos de negociação entre as autoridades locais e o governo de Lisboa. O próprio governador, Cabral da Câmara, fez repetidos elogios ao Ignacio Caetano, ainda que sempre a reiterar o fato de ele nunca haver frequentado uma universidade (WALKER, 2016WALKER, Timothy D. Global Cross-Cultural Dissemination of Indigenous Medical Practices through the Portuguese Colonial System: evidence from sixteenth to eighteenth-century ethno-botanical manuscripts. In: WENDT, Helge (ed.). The Globalization of Knowledge in the Iberian Colonial World. Berlim: Max Planck Research Library for the History and Development of Knowledge, 2016. p. 161-192.).

Em 1794, a atender uma requisição feita por Martinho de Melo e Castro ao antecessor de Cabral da Câmara no governo da Índia, Francisco da Cunha e Meneses (1747-1812), Ignácio Caetano compôs um pequeno documento, com informações a respeito de quatro raízes medicinais que eram utilizadas nos serviços do Hospital Real, intitulado Descripçoens e virtudes das raízes medicinaes18 18 HAG - Historical Archive of Goa, Monções do Reino, nº 265. . O documento é um relatório sobre quatro raízes, pau cobra ou Hampaddu, raiz de mongus, raiz de João Lopes Pinheiro e raiz de calumba. As notícias sobre seus usos chegavam a Lisboa através das redes que mantinham o governo imperial informado das potencialidades naturais do Império. Como era comum a respeito desses assuntos, pediram-se as devidas diligências. Uma vez em Goa, a requisição foi repassada ao físico-mor. Boa parte da circulação de conhecimento seguia precisamente esse percurso, muitas vezes tendo os propósitos acadêmicos como elementos apenas secundários.

Embora, pelas notícias de seus usos em Goa, tenham despertado a atenção do ministro, nenhuma das ditas raízes era oriunda da Índia portuguesa. O pau cobra e a raiz de mongus vinham do Ceilão; as raízes de João Lopes Pinheiro e de calumba eram trazidas de Moçambique. Tampouco eram essas substâncias novas dentro dos circuitos médicos do Império. O próprio Ignácio Caetano advertiu que, se as autoridades quisessem saber mais sobre suas virtudes, deveriam consultar as “[…] obras dos boticários deste reino […]”19 19 HAG - Historical Archive of Goa, Monções do Reino, nº. 265. , inclusive com referências ao fato de as tais obras conterem informações mais completas do que as que ele próprio poderia fornecer20 20 Idem. . É percetível que houve um relativo descompasso entre as informações que requisitou o ministro e as que foram fornecidas pelo físico-mor. Embora tenha cumprido a demanda, e enviado as informações sobre as ditas raízes, elas não seguiram no formato esperado. Isso evidencia que havia percepções distintas a respeito de quais conteúdos seriam relevantes, por parte de ambos os lados em diálogo, cada qual atento à sua realidade específica. O assunto, no entanto, não se encerrou. Alguns anos mais tarde, novas diligências sobre a mesma temática foram encomendadas por Lisboa (WALKER, 2016WALKER, Timothy D. Global Cross-Cultural Dissemination of Indigenous Medical Practices through the Portuguese Colonial System: evidence from sixteenth to eighteenth-century ethno-botanical manuscripts. In: WENDT, Helge (ed.). The Globalization of Knowledge in the Iberian Colonial World. Berlim: Max Planck Research Library for the History and Development of Knowledge, 2016. p. 161-192.).

Em 1799, atendendo às requisições feitas no ano anterior, novas descrições foram preparadas. Ignácio Caetano já havia falecido há quase um ano (WALKER, 2016) e as informações, escritas em forma de relatório e enviadas ao ministro em exercício, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, continham as mesmas raízes, acrescidas de mais sete substâncias. Dessa vez, a encomenda foi repassada ao cirurgião-mor, Francisco Manuel Barroso da Silva, o mesmo que havia sido enviado à Índia para dar aulas em 1785. A nova lista compôs-se também de plantas de diversas partes do Império, dessa vez fazendo referência ao fato de que as informações tinham sido conseguidas a partir de herboristas e médicos locais. Aliás, junto com o cirurgião-mor, mais três desses médicos assinaram o documento. Quando o documento seguiu para Lisboa, o governador viu-se na obrigação de declarar que, apesar de médicos licenciados, nenhum deles havia frequentado a universidade para estudar medicina, nem mesmo Francisco Manuel Barroso da Silva, pois esse era apenas cirurgião21 21 Idem. .

De fato, deve-se registrar algo interessante a respeito da questão social e da validação do conhecimento produzido. Embora os textos tenham sido escritos pelo cirurgião-mor e por mais três médicos goeses que trabalhavam no Hospital Militar, a veracidade das informações foi referendada, no documento que seguiu para Lisboa, através de uma declaração, assinada pelo então secretário-geral do Estado da Índia, José Caetano Pacheco Tavares22 22 Idem. .

Mesmo que nenhuma das substâncias citadas nos documentos constituísse novidade na Europa, as informações a respeito de sua procedência e uso ainda eram consideradas incompletas ao final do século XVIII. Em Goa, as investigações a esse respeito continuaram. Em correspondência com o Real Museu da Ajuda, enviada em 1800, o cirurgião-mor, Barroso da Silva, reuniu informações mais completas a respeito da raiz de João Lopes Pinheiro, ou ainda, raiz da árvore tefoleira23 23 AHMB - Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Remessa 388a. . No documento que produziu podem ser encontradas informações que permitem desvendar os caminhos percorridos por uma planta ou produto medicinal, uma vez dentro dos canais de circulação do Império. Após muitos anos a reunir informações a respeito do medicamento, Barroso da Silva conseguiu decifrar alguns dos mistérios que envolviam a sua origem. Segundo pôde apurar, João Lopes Pinheiro foi um mercador português:

[…] que acompanhou para a Azia huma Missão Jesuita e hindo a Moçambique, e seu Continente em companhia dos ditos Padres, observou que um Cafre de Manica, que costumava curar diferentes enfermidades somente com uso de diferentes Raizes, Arvores, Arbustos, Plantas, e Frutos […]24 24 AHMB - Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Remessa 388a.

Como era frequente em expedições desse tipo, um de seus integrantes contraiu uma enfermidade, de sorte que relata-se que o dito curandeiro

[…] veio em certa occazião curar hum dos ditos Padres de huma dezentéria que o tinha já posto nos últimos dias de vida, aplicou-lhe repetidas vezes no dia, e noite huma raiz rossada com Agoa, e algumas vezes com Leite, sobre huma pedra, e que em poucos dias ficou curado o dito Padre.25 25 Idem.

João Lopes Pinheiro teria depois testemunhado “repetidos curativos da mesma natureza […]”. Em contato com os curandeiros locais, “[…] fez todas a dilligencias por via de outros Cafres, para saber, e conhecer a Arvore de que se tirava tão precioza Raiz […]”. Através de um intenso processo de permuta e negociação, Lopes Pinheiro adquiriu porções da dita raiz, chegando “[…] a fazer uso della nas referidas enfermidades com grande successo […]”. A operação foi bem-sucedida, ao ponto que o mercador “[…] chegou a acumular Cabedaes com a dita aplicação, dando à referida Raiz o sue próprio nome”26 26 Idem. .

Ainda segundo apurou Barroso da Silva, alguns anos mais tarde João Lopes Pinheiro estabeleceu-se como comerciante em Goa, onde continuou a fazer fortuna, a comercializar a prodigiosa raiz. Entretanto, sua estada na capital do Estado da Índia teria sido curta, pois:

[…] oferecendo-lhe ocasião, passou logo a Batavia, onde com as ditas Raizes continuou a fazer prodigiosas curas, e nessa Cidade deu a huma Madama Holandeza porção das ditas Raizes, com a instrução da sua aplicação para a referida enfermidade, a qual Madama passando à Europa repartio com Gassbios della e o instruhio na sua aplicação.27 27 Idem.

Embora, em passagem posterior a essa, tenha posto em dúvida a afirmação a respeito de que os holandeses teriam conseguido a raiz de forma gratuita, Barroso da Silva afirmou ser certo que essa foi mesmo a trajetória de um homem chamado João Lopes Pinheiro, mercador, principal responsável pela disseminação de um remédio de origem africana, por toda a Ásia, depois através da Europa. De fato, há sentido nesse percurso. A raiz de João Lopes Pinheiro era referida com esse nome nas farmacopeias portuguesas desde 1760, quando apareceu na terceira edição da Pharmacopea Tubalense de Manoel Rodrigues Coelho. Após o historial do medicamento, o que se segue é uma extensa análise de suas aplicações e usos, principalmente em Goa, de forma a completar as lacunas então existentes na literatura. O maior interesse dirigiu-se às aplicações no combate às disenterias e o Mordexim, males sempre causadores de grande preocupação, mas também se reconheceu o seu valor como um potente agente febrífugo.

A partir de suas investigações, Barroso da Silva concluiu que deveriam existir diversas espécies do arbusto do qual a raiz era extraída, nativas de diversas regiões do Índico. Sebastião Dalgado, autor do Glossário Luso-Asiático, publicado em Coimbra em 1919, identificou a raiz de João Lopes Pinheiro com as plantas do gênero Todalia, que teriam sido identificadas ainda no século XVIII por Lineu e também por Jean Baptiste Lamark (1744-1829) (DALGADO, 1919DALGADO, Sebastião Rodolfo. Glossário Luso-Asiático , v. I. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1919., p. 382). Não é possível, a partir dos dados disponíveis, aferir a precisão da associação de Dalgado, no entanto, deve-se registrar que algumas plantas desse gênero são atualmente utilizadas como fonte de medicamentos fitoterápicos na África Oriental e Sul da Ásia28 28 As informações a respeito dos usos medicinais das plantas do gênero Todalia estão disponíveis no repositório digital JSTOR Global Plants: http://plants.jstor.org/compilation/Paullinia.asiatica. . É também plausível a ideia de que as raízes comercializadas, as quais circulavam também entre a Ásia e a Europa, fossem extraídas de diversas espécies diferentes, dentro de um mesmo gênero botânico. A circulação de drogas tinha razoável capilaridade, à margem dos canais oficiais, o que torna muito difícil o seu rastreamento. No relato de Barroso da Silva existem indícios importantes a respeito de como se dava a constituição das redes informais, por onde boa parte do conhecimento circulava. A respeito das informações que descobriu, inclusive sobre os usos terapêuticos da raiz de Lopes Pinheiro, declarou:

Parte destas noticias me forão comunicadas por Paulo Lopes natural de Gôa, dedicado ao estudo de Medicina, passando depois a Moçambique, onde residio exercitando a dita profissão perto de 50 annos, e donde eu tive, os primeiros encontros com elle, e recolhendo se depois a esta sua Patria, onde morreo com idade de mais de 90 annos […] Elle me afirmava ter conhecido João Lopes Pinheiro três anos antes da extinção dos Jezuitas, que na Azia foi em 1760, annos em que foi empreça a Farmaopea Tubalence em Roma […]29 29 AHMB - Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Remessa 388a.

A cronologia completa da circulação do conhecimento é difícil de ser desvendada, entretanto, outros aspectos são igualmente importantes. Primeiro, pode-se constatar que havia alguma celeridade no processo de transmissão de informações. Estas circularam entre Moçambique, Goa e a colónia holandesa da Batávia, na Indonésia, aparentemente em grande velocidade. Ao chegarem à Europa foram logo processadas, a ponto de fazerem parte de publicações dos anos 1760. Deve-se levar em conta que a navegação no Índico estava sempre sujeita aos ciclos anuais das monções, sendo que toda a circulação devia obedecer ao seu ritmo pendular e semestral. O mesmo se verificava em relação às comunicações com a Europa.

A própria trajetória da planta, pelas mãos das diversas pessoas que dela fizeram parte, atesta as propriedades transformadoras da circulação do conhecimento (SECORD, 2004SECORD, James A. Knowledge in Transit. Isis, v. 4, n. 95, p. 654-672, 2004.). A raiz impressionou João Lopes Pinheiro em Moçambique por volta da década de 1750, ou alguns anos antes, após este haver testemunhado seu uso por parte dos curandeiros locais. João Lopes negociou, então, com os detentores originais do conhecimento, a obtenção das informações que julgava importantes. No processo de negociação, é provável que os locais tenham transmitido apenas o que acharam pertinente. Quem é capaz de dizer o quanto esconderam? Considere-se também as barreiras linguísticas, ou referentes às diferentes concepções de natureza, doença e cura que pudessem ter os envolvidos na negociação. Nessa zona de contato foi produzida a ressignificação que permitiu a inclusão do medicamento ao universo europeu.

Após chegar à Índia, João Lopes Pinheiro ainda teria encontrado ali a mesma raiz. Ou seria uma outra espécie? De qualquer forma, houve uma nova ressignificação, transmitida aos médicos, boticários, herboristas e curandeiros locais. A raiz de João Lopes Pinheiro passou a ser comercializada nos mercados de Goa, agora associada a novos nomes e significados. Nesse aspecto, também é importante o fato de João Lopes Pinheiro, disseminador do medicamento, nunca ter sido mencionado como médico, cirurgião, droguista ou boticário - o que poderia significar que possuía algum treinamento ou a posse de uma licença - mas sim como mercador. Como negociante, circulou para fora dos limites do Império português, pela Batávia holandesa. É difícil imaginar que se tivesse dirigido para lá sem nenhum conhecimento ou contato prévio com os agentes locais, portugueses, ou ainda, goeses ali radicados. De qualquer forma, sabe-se que obteve sucesso em comercializar seus produtos na Europa, incluindo um deles em um eficaz meio de divulgação, uma farmacopeia. Para completar o processo de circulação, quando novas informações a respeito da raiz de João Lopes Pinheiro foram enviadas à Europa pelos médicos indianos do Hospital Real30 30 HAG - Historical Archive of Goa, Monções do Reino Monções do Reino, nº 265 e 271. , entre eles o físico-mor Ignácio Caetano Afonso, esses procuraram a validação das informações que enviavam mediante o recurso a uma autoridade médica europeia, remetendo para o conteúdo da Pharmacopea Tubalense. Assim, fecha-se um ciclo através do qual o conhecimento foi produzido e reconfigurado em intrincados processos de negociação envolvendo agentes locais e europeus.

Considerações finais

Na historiografia sobre os impérios coloniais, tem havido cada vez mais espaço para questionamentos relativos ao papel das populações locais dentro de seus processos de construção. Também, maior relevância tem sido conferida à discussão quanto à importância dos circuitos e dos mecanismos extraoficiais, e das redes auto-organizadas, no estabelecimento de pontes de ligação entre colonizadores e colonizados, e também entre os vários diferentes espaços imperiais. Essas perspectivas têm sido aplicadas tanto no âmbito da economia quanto no da cultura, da religião, e dos saberes (POLÓNIA, 2013POLÓNIA, Amélia. Self-Organised Networks in the First Global Age. The Jesuits in Japan. The Bulletin of the Institute for World Affairs Kyoto Sangyo University, n. 28, p. 133-158, fev. 2013.; POLÓNIA, 2017POLÓNIA, Amélia. Interactions Between the Local and the Global: brokers and go-betweens within the Portuguese State of India (1500-1700). Asian Review of World Histories. Special, n. 5, v. 1, p. 113-139, 2017.; POLÓNIA; ANTUNES, 2017POLÓNIA, Amélia; ANTUNES, Cátia. (eds.). Mechanisms of Global Empire Building. Porto: CITCEM/Afrontamento, 2017.). Essa questão se relaciona, principalmente, às matérias relativas aos mecanismos e aos resultados da circulação de bens - materiais ou culturais - através dessas estruturas de ligação.

Nesse sentido, torna-se fundamental a compreensão a respeito do papel de diversas categorias de agentes históricos, tais como, intermediários e tradutores, sem os quais nem mesmo as instituições coloniais ou as ordens religiosas poderiam ter tido sucesso no propósito de aproximação às comunidades locais, muito menos acesso aos seus conjuntos de práticas e saberes (POLÓNIA, 2017POLÓNIA, Amélia; ANTUNES, Cátia. (eds.). Mechanisms of Global Empire Building. Porto: CITCEM/Afrontamento, 2017.). Esses indivíduos eram das mais variadas origens e compunham um quadro extremamente diversificado de participantes a construir as muitas dimensões da sociabilidade e do compartilhamento de conhecimentos e outros aspectos culturais. Estrangeiros, habitantes locais ou mestiços, esses indivíduos representavam os mais variados papéis nas complexas estruturas sociais coloniais. Mercadores e vendedores de drogas medicinais, médicos, cirurgiões, herbaristas, boticários, missionários, curandeiros de aldeia e parteiras, tais agentes compuseram um quadro exponencialmente mais complexo do que aquele que se pode depreender, se investigados apenas os canais oficiais e a ação institucional das ordens religiosas (RAJ, 2010RAJ, Kapil. Relocating Modern Science: circulation and the construction of knowledge in South Asia and Europe, 1650-1900. Basingsotke: Palmgrave Macmillan, 2010. ; BRACHT, 2016BRACHT, Fabiano. Condicionantes sociais e políticos nos processos de produção de conhecimento: o caso da Índia portuguesa do século XVIII. In: POLÓNIA, Amélia; BRACHT, Fabiano; CONCEIÇÃO, Gisele Cristina da; PALMA, Monique (orgs.). História e ciência: ciência e poder na Primeira Idade Global. 1. ed. Oporto: Universidade do Porto. Faculdade de Letras, 2016.; BRACHT, 2017BRACHT, Fabiano. The Eastern Portuguese Empire: frontiers and contact zones in knowledge production contexts. In: POLÓNIA, Amélia; BRACHT, Fabiano; CONCEIÇÃO, Gisele C.; PALMA, Monique (orgs.). Cross-cultural Exchange and the Circulation of Knowledge in the First Global Age. 1. ed. Porto: Edições Afrontamento/CITCEM, 2018. p. 167-192.). Neste artigo, procurei demonstrar como se deu a ação de indivíduos que podem ser enquadrados em algumas das categorias descritas acima, e qual foi sua relação com a produção e circulação de conhecimento no Oriente português ao longo do século XVIII.

Devido ao modelo centralizador da administração imperial, que não permitia que nas colônias se estabelecessem instituições de ensino superior, ou mesmo imprensa, a circulação de pessoal qualificado e de textos ficava estreitamente condicionada pelas limitadas capacidades metropolitanas. Isso certamente teve impacto considerável na circulação do conhecimento, entre a Índia e a Europa. Um dos resultados desse processo foi, por exemplo, o estabelecimento de padrões de circulação razoavelmente dinâmicos, baseados em redes de indivíduos auto-organizados, que envolviam as diversas partes do Império Oriental, principalmente a Índia e Moçambique, e também outros pontos do Índico, incluindo algumas colônias de nações europeias rivais. No caso de diversas drogas medicinais, entre elas a raiz de João Lopes Pinheiro, aqui analisada, esse foi um fator fundamental. Dada a necessidade do enfrentamento das doenças asiáticas e das dificuldades logísticas para o abastecimento dos hospitais e boticas com medicamentos vindos da Europa, houve um grande aproveitamento, por parte dos europeus, de muitos dos elementos locais. Também pela existência de sólidas tradições médicas, há séculos consolidadas, os habitantes locais sempre contaram com um razoável poder de negociação, numa intensa zona de contato entre os dois complexos culturais, o europeu e o indiano.

Fontes primárias

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  • AHMB AHMB - Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Remessa 388a.
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  • ANTT ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Código de referência - PT/TT/GEI-JRF/001/0062 - Junta da Real Fazenda do Estado da Índia, Livro 62, Documento nº 216.
  • ANTT ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Código de referência - PT/TT/GEI-JRF/001/0062 - Junta da Real Fazenda do Estado da Índia, Livro 62, Documento nº 306.
  • BNP BNP - Biblioteca Nacional de Portugal, sessão de reservados - CÓD. 2102, João dos Reis, Caderno de várias receitas medicinais orientais, 1696.
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  • HAG HAG - Historical Archive of Goa, Monções do Reino, nº 265.

Referências

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  • 1
    Aqui compreendida como a atividade dos boticários.
  • 2
    Após as grandes derrotas militares e perdas territoriais impostas por seus rivais europeus, ingleses e holandeses, e também por diversas potências asiáticas, ao longo do período entre 1580, o império oriental português passou, durante boa parte do século XVIII, por um intenso processo de reorganização. Para uma discussão mais aprofundada a respeito desse tópico ver: BRACHT, 2018, p. 167-192.
  • 3
    O termo Pandit é sânscrito, embora faça parte do léxico da maior parte das línguas do subcontinente indiano, e significaria originalmente sábio, professor ou, ainda, filósofo. Geralmente era uma das designações dadas àqueles que possuíam educação superior, sendo estes frequentemente brâmanes, os quais também estavam ligados de forma íntima à prática da medicina ayurvédica e aos conhecimentos sobre drogas medicinais. Nos escritos portugueses, desde o século XVI, o termo panditos refere-se quase que exclusivamente aos médicos Vaydias, que praticavam uma medicina de distinguível caráter popular, uma vez que incorporava massivamente o percurso empírico de milhares de anos de prática médica, mas também indubitavelmente influenciada pelos ancestrais princípios do Ayurveda e dos sistemas muçulmanos.
  • 4
    BNP - Biblioteca Nacional de Portugal, seção de reservados - CÓD. 2102, João dos Reis, Caderno de várias receitas medicinais orientais, 1696., fl 3.
  • 5
    Idem.
  • 6
    Idem.
  • 7
    Ibidem, fl. 5.
  • 8
    Tradução do autor. No original: “[…] space of colonial encounters, the space in which peoples geographically and historically separated come into contact with each other and establish ongoing relations, usually involving conditions of coercion, radical inequality, and intractable conflict”.
  • 9
    BNP - Biblioteca Nacional de Portugal, seção de reservados - CÓD. 2102, João dos Reis, Caderno de várias receitas medicinais orientais, 1696BNP BNP - Biblioteca Nacional de Portugal, sessão de reservados - CÓD. 2102, João dos Reis, Caderno de várias receitas medicinais orientais, 1696. ., fl 6.
  • 10
    BNP - Biblioteca Nacional de Portugal, sessão de reservados - CÓD. 2102, João dos Reis, Caderno de várias receitas medicinais orientais, 1696., fl 6.
  • 11
    Idem.
  • 12
    HAGHAG HAG - Historical Archive of Goa, Monções do Reino, nº 271. - Historical Archive of Goa, Monções do Reino, nº 271.
  • 14
    ADB ADB ADB - Arquivo Distrital de Braga, Família Araújo de Azevedo (1489/1879) / António de Araújo de Azevedo/ Conde da Barca (1787/1817) / Carta de Francisco Manuel Barroso da Silva - Código de Referência: PT/UM-ADB/FAM/FAA-AAA/001525.- Arquivo Distrital de Braga, Família Araújo de Azevedo (1489/1879) / António de Araújo de Azevedo/ Conde da Barca (1787/1817) / Carta de Francisco Manuel Barroso da Silva - Código de Referência: PT/UM-ADB/FAM/FAA-AAA/001525.
  • 15
    ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Código de referência - PT/TT/GEI-JRF/001/0062 - Junta da Real Fazenda do Estado da Índia, Livro 62, Documento nº 32ANTT ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Código de referência - PT/TT/GEI-JRF/001/0062 - Junta da Real Fazenda do Estado da Índia, Livro 62, Documento nº 32..
  • 16
    Ibidem, Documento nº 216ANTT ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Código de referência - PT/TT/GEI-JRF/001/0062 - Junta da Real Fazenda do Estado da Índia, Livro 62, Documento nº 216..
  • 17
    Ibidem, Documento nº 306ANTT ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Código de referência - PT/TT/GEI-JRF/001/0062 - Junta da Real Fazenda do Estado da Índia, Livro 62, Documento nº 306..
  • 18
    HAG - Historical Archive of Goa, Monções do Reino, nº 265.
  • 19
    HAG HAG HAG - Historical Archive of Goa, Monções do Reino, nº 265.- Historical Archive of Goa, Monções do Reino, nº. 265.
  • 20
    Idem.
  • 21
    Idem.
  • 22
    Idem.
  • 23
    AHMBAHMB AHMB - Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Remessa 388a. - Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Remessa 388a.
  • 24
    AHMB - Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Remessa 388a.
  • 25
    Idem.
  • 26
    Idem.
  • 27
    Idem.
  • 28
    As informações a respeito dos usos medicinais das plantas do gênero Todalia estão disponíveis no repositório digital JSTOR Global Plants: http://plants.jstor.org/compilation/Paullinia.asiatica.
  • 29
    AHMB - Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Remessa 388a.
  • 30
    HAG - Historical Archive of Goa, Monções do Reino Monções do Reino, nº 265 e 271.
  • 13
    AHMBAHMB AHMB - Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Remessa 387. - Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa, Remessa 387.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2019
  • Aceito
    28 Nov 2019
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