Introdução
Em uma carta de 31 de julho de 1943, a bibliotecária afro-americana Dorothy Porter, da Universidade Howard, em Washington (D.C.), escreveu para o sociólogo norte-americano Donald Pierson, na época em São Paulo, requisitando um juízo acerca da identificação racial de alguns autores brasileiros que queria incluir em uma bibliografia sobre “livros de poesia escritos por negros ou por pessoas com ascendência negra conhecida”.2 Pierson respondeu dizendo haver “pouca consciência racial no Brasil, tanto de negros quanto de brancos”, e rascunhou, no verso da carta, sua avaliação. Ele não sabia falar de alguns nomes, como Juliano Moreira e Augusto dos Anjos. De outros não havia dúvida quanto à branquitude, como Carlos Drummond de Andrade e Olavo Bilac, tampouco à negritude, a exemplo de Solano Trindade e Manuel Querino. Oliveira Vianna, “mulato”. Cassiano Ricardo, “talvez”. Sílvio Romero recebe uma definição intrigante: in a way, algo como “de certa forma”.3
No auge do racismo científico em fins do século XIX, Romero tinha escrito (em 1882) uma sentença que se tornou clássica no pensamento social: a de que “todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas idéias” (ROMERO, 1953, p. 55). Estaria Pierson ironizando sociologicamente o vaticínio do escritor e subestimando sua correspondente? Dificilmente. O que essa enigmática definição representa é, talvez, uma simbólica amostra dos desafios com os quais Porter se deparou para realizar sua Afro-Braziliana: a Working Bibliography (PORTER, 1978), extensa bibliografia sobre o negro no Brasil iniciada em meados dos anos 1940 e publicada em 1978.
Em sua carreira de bibliotecária, Porter publicou resenhas, artigos e, sobretudo, bibliografias, e tem sido reconhecida nos Estados Unidos (SIMS-WOODS, 2014; GUNN, 1993). Uma parcela de seu trabalho, porém, permanece ignorada: as suas relações de mais de quatro décadas com o Brasil, consumadas na Afro-Braziliana. Para o historiador ganês Anani Dzidzienyo, Porter foi articuladora intelectual fundamental dos intercâmbios de ideias entre o Brasil e Estados Unidos no século XX.4
Nascida em Warrenton (VA), Dorothy Porter Wesley (1905-1995), graduada por Howard, foi a principal responsável por transformar o Moorland-Spingarn Research Center, onde trabalhou entre 1930 e 1973, em um dos mais importantes repositórios de materiais sobre a experiência afro-diaspórica no mundo. Sua maior contribuição para o debate racial, principalmente nos Estados Unidos, além da constituição desse acervo e da compilação de bibliografias, está em sua visão das bibliotecas como espaços de reprodução, mas também de enfrentamento do racismo institucional, o que realizou desafiando um dos principais alicerces de seu campo: a Classificação Decimal de Dewey, sistema de organização bibliográfica elaborado em 1876 pelo americano Melvil Dewey, que era na época em que lhe foi designada a curadoria do acervo de Howard, em 1930, o principal meio de ordenar livros.
O sistema de Dewey, refletindo preconceitos do tempo e do autor que o idealizou (ADLER, 2017), não permitia acomodar obras que refletissem adequadamente a experiência negra. Livros de/sobre negros tinham nesse sistema duas possibilidades de classificação: 325 (colonização) e 326 (escravidão). Em muitas “bibliotecas brancas”, como Porter coloca, “qualquer livro, fosse uma obra de poemas de James Weldon Johnson, que todos sabiam que era um poeta negro, seria classificado sob o número 325. E isso me parecia estúpido” (PORTER apud NUNES, 2018).5 Porter decidiu criar então seu próprio sistema, constituindo a coleção por autor e gênero para assinalar o papel do negro em todas as áreas do conhecimento. Tal perspectiva deu a essas obras, à coleção e ao espaço novos significados: para além de apenas um local de consulta, a iniciativa “produziu um novo imaginário negro” (HELTON, 2019, p. 102),6 reorganizando esses documentos de modo mais inclusivo.
A partir dessa posição em Howard, Porter se tornou uma intelectual pública pela descolonização de bibliotecas e arquivos. Como desdobramento dessa perspectiva, ela objetivou também coletar, através da diáspora africana, livros e artefatos culturais que “fortalecessem o conhecimento de nossa própria herança”, como ela afirmou, já no final de sua vida: “Não haveria maneira de os escravos africanos terem sobrevivido” à escravidão “se não tivessem sido mentalmente, espiritualmente e fisicamente fortes. Nós sobrevivemos. E é importante para os jovens saberem como nós sobrevivemos” (PORTER apudSCARUPA, 1990, p. 15).7
Uma terceira faceta de sua ação profissional e intelectual está na pioneira elaboração de bibliografias. Para ela, o trabalho bibliográfico era parte da Librarianship, pois não se poderia ser uma “boa bibliotecária se não se conhecesse a literatura necessária para auxiliar pesquisadores e estudantes” (PORTER apudSCARUPA, 1990, p. 15).8 É na intersecção entre a politização das bibliotecas, a busca paciente de documentos e a confecção de bibliografias críticas da diáspora africana que se inscreve o horizonte de aproximação de Porter com a realidade afro-brasileira.
Parte de seu acervo pessoal e profissional se encontra desde 2012 na Beinecke Library da Universidade Yale, em New Haven (CT). Nesse conjunto de papéis há 10 caixas, denominadas “Afro-brazilians”.9 O material se refere ao trabalho da Afro-Braziliana, a mais compreensiva bibliografia do tipo feita no século XX, com mais de 5.000 entradas. Estão nesse arquivo projetos da obra, telegramas, cadernos de viagens, artigos, rascunhos e dezenas de cartas trocadas com brasileiros e principalmente brasilianistas nos Estados Unidos.
De modo geral, queremos dar a conhecer neste artigo o acervo de Yale para o campo dos estudos afro-brasileiros em suas conexões nos espaços-tempo do mundo afro-latino-americano. Dentro dessa perspectiva, objetivamos analisar, por meio de uma “etnografia do arquivo” (CUNHA, 2004) de Porter, as múltiplas dimensões e as redes de relacionamentos intelectuais empreendidos através do trabalho de bibliotecários e bibliófilos das “Américas Negras” (BASTIDE, 1974) entre os anos 1940 e 1970, período de desenvolvimento da Afro-Braziliana. Em um terceiro nível, problematizamos “os mecanismos de produção dos objetos culturais” (DUBY, 2011, p. 147) segundo a perspectiva de uma história sociocultural da bibliografia, observando esse espaço do conhecimento como mais do que a compilação e organização de obras, mas como contexto de entrelaçamento de práticas sociais e de saber, inseridas em processos históricos específicos e produzidas, nesta análise, principalmente por bibliotecários(as) e bibliófilos(as) negros(as).
A Afro-Braziliana
“A história do negro não será nunca completamente conhecida até que cada livro, panfleto e manuscrito sobre o assunto tenha sido encontrado e compilado em formato bibliográfico” (PORTER, 1941, p. 264).10 Porter levou a sério o próprio vaticínio e foi uma bibliotecária diligente em Howard. De 6.499 itens em 1930, a coleção do Moorland-Spingarn Research Center passara a ter mais de 180.000 itens catalogados em 1973, ano de sua aposentadoria.
O crescimento do acervo se explica pela costura de uma bem planejada rede de correspondência com vendedores e colecionadores de livros, autores, editores, historiadores, outros bibliófilos e bibliotecários e também pelo apoio financeiro de membros proeminentes da comunidade afro-americana (SCARUPA, 1990). Seria tal estrutura de relacionamento entre ela e esses agentes que daria ensejo à reunião de material sobre o Brasil, durante quase meio século.
Ela desejava, antes de tudo, suprir as lacunas de conhecimento que dizia possuir sobre escritores negros da América Latina (SCARUPA, 1990, p. 15). Para isso, a partir de meados dos anos 1930 frequentava arquivos e bibliotecas em Washington. De uma larga visão nos primeiros tempos do trabalho, restringiu o olhar para um dos maiores países negros das Américas, o Brasil (p. 15).
O impulso acadêmico para uma “afro-brasiliana” pode ser entendido, no plano intelectual internacional, pelo contexto de emergência de Estudos Brasileiros nos Estados Unidos surgido durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil cresceu em importância estratégica no cenário global. Nessa conjuntura, estudiosos brasileiros foram convidados em diversas ocasiões para atividades em universidades norte-americanas, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e o bibliógrafo Rubens Borba de Moraes, que foi chamado pelo historiador hispanista Lewis Hanke e pelo compositor Willian Berrien para coordenar, diante do sucesso do Handbook of Latin American Studies (1936) por eles organizado, um Handbook of Brazilian Studies. O livro, patrocinado pela Rockefeller e pelo American Council of Learned Societies, deveria ser publicado até 1944, mas o foi apenas em 1949 (NICODEMO; SANTOS; PEREIRA, 2018).
Em 3 de dezembro de 1943, dirigindo-se ao historiador negro Rayford W. Logan, que fora seu professor em Howard, ela pedia ajuda financeira para o American Council of Learned Societies, dizendo preparar uma “Bibliografia do Negro na América Latina”.11 Em outro memorando para Logan, reafirmava a necessidade de organizar um conjunto maior de obras que realçassem a contribuição do negro na América Latina não só na literatura, mas também “na ciência, na arte, na música, na religião [...]”.12 Porter notava um aumento na produtividade em vários níveis institucionais naqueles últimos dez anos sobre o negro no Brasil:
Essa produtividade foi estimulada largamente pelos Congressos Afro-Brasileiros, o primeiro realizado no Recife em 1933 e o segundo na Bahia em 1937; pelo reconhecimento oficial dado aos esforços de indivíduos na ocasião da celebração do aniversário de 50 anos da abolição da escravidão no Brasil quando o Ministro da Educação sugeriu que se preparasse um sumário detalhado das realizações do negro no Brasil e para o estabelecimento de centros de estudo sobre o problema de raça e cultura no Brasil.13
O ministro era Gustavo Capanema, que assinara Lei Federal em 13 de maio de 1938, normatizando as comemorações do Cinquentenário da Abolição. O primeiro dos congressos havia sido liderado por Gilberto Freyre. Já o segundo tivera como articulador o pesquisador negro Edison Carneiro. O congresso da Bahia teve a participação também de Arthur Ramos, que trocara cartas com Rayford Logan ainda em 1936, quando este solicitara sua contribuição para a “Encyclopedia of the Negro”, projeto do sociólogo afro-americano W. E. B. Du Bois.14 Porter e Ramos, ao que a falta de evidências indica, não se corresponderam/conheceram.
Mesmo sem provavelmente ter conhecido as ideias de Porter, Ramos fez parte de um contexto interamericano de intercâmbios sobre a posição do Brasil nas Américas Negras que ajudou a engendrar as condições de possibilidade para o trabalho da bibliógrafa. Entre 1930-40, Ramos dialogou com antropólogos caribenhos como Fernando Ortiz (Cuba) e Jean Price-Mars (Haiti) e norte-americanos como o antropólogo Melville Herskovits e o historiador Richard Pattee, que lhe pediam constantemente bibliografia sobre o negro no Brasil (FAILLACE, 2004).
Essa movimentação intelectual faz inteligíveis palavras de Porter de que, apesar da carência de estudos sobre o negro brasileiro nos Estados Unidos, “existem ocasionalmente, contudo, alguns acadêmicos por esse país que estão estudando as várias fases da vida e da história do Negro na América Latina”.15 Um deles lera atentamente seu projeto, em 1944: Rüdiger Bilden, historiador alemão radicado nos Estados Unidos, que se notabilizara por sua produção entre 1920 e 1930 em história da escravidão e das relações raciais no Brasil.16
Outro com projeto similar ao dela era Melville Herskovits. Em fevereiro de 1945, Lewis Hanke a informava de uma conversa havida entre ele e o antropólogo, quando este lhe confidenciara “a possibilidade de organizar uma bibliografia sobre ‘o Negro na América Latina’”.17 Em carta para ela, um mês mais tarde, Herskovits dizia não ter avançado em seus objetivos, mas se comprazia em saber de suas ideias e solicitava cooperação.
No mês seguinte, Porter responderia que naquele estágio o trabalho se achava restrito a prosa, poesia, crítica literária, ensaios gerais e biografias brasileiras e hispano-americanas, e que Howard começara a desenvolver uma coleção de América Latina.18 Enquanto escrevia para Herskovits, a bibliotecária estava concluindo o período de uma bolsa que recebera em abril de 1944 do Julius Rosenwald Fund. No pedido de apoio que mandou para essa instituição, ela detalhou o desígnio de “preparar um ensaio bibliográfico sobre as contribuições do negro para a poesia e ficção hispano-americana e brasileira”.19 Entre os propósitos estava trazer à luz escritores afrodescendentes e fornecer informação bibliográfica para universidades, de modo a serem construídas coleções afro-latino-americanas.
Embora seus planos fossem ambiciosos, inéditos e instigassem especialistas, a bibliografia não deixou de estar enredada em tensões diversas. Em 27 de novembro de 1944, Porter descreveu suas atividades e os percalços enfrentados no processo para o então diretor de bolsas do Rosenwald Fund, William Haygood. Se bem que notasse o interesse despertado, ela dizia que “uma ou duas pessoas haviam expressado preocupação com minha abordagem. Eles não querem enfatizar demais a influência do negro na cultura brasileira”.20 No entanto, ela garantia ter encontrado copioso material que dava ao negro “total crédito por sua contribuição e que [indicava] o disseminado uso do Negro como tema na literatura”.21
Conquanto não se possa afirmar peremptoriamente, talvez as coerções da ideologia racial-democrática, instigadas pela difusão internacional das teses de Gilberto Freyre - como a ideia de “escravidão benigna” no Brasil de Casa-grande & senzala (1933) em Slave and citizen (1946), de Frank Tannembaum,22 livro que foi objeto, por sinal, de resenha favorável de Porter, em 1947 - e da imagem oficial que o país passou a projetar no concerto das nações a partir dos anos 1930-40 como lugar de harmonia racial23 estivessem repercutindo em alguns de seus interlocutores. Uma carta de 1952 do historiador luso-americano Manoel Cardozo, professor na Universidade Católica de Washington, curador da Coleção Oliveira Lima e interlocutor de Freyre, fornece pistas sobre a resistência de certos espíritos nos Estados Unidos e talvez estendida para interessados nos estudos afro-brasileiros. Comentando um artigo sobre o abolicionismo no Brasil por ela redigido e a ele enviado, Cardozo pontua: “[...] existem, claro, armadilhas em escrever a história do Brasil de um ponto de vista [...] do negro [...] a psicologia do negro americano não é sempre um bom elemento para se ter em mente ao interpretar a história de nações com negros em sua população”.24 Esse comentário, mais do que censurar o subjetivismo da autora, pode ser tomado como uma ligação possível entre o discurso representado por Freyre (na crítica à ideia de um “ponto de vista negro”, seja americano ou brasileiro) e as escolhas teóricas de Porter, nas décadas de 1940-50.
Ao valorizar o negro brasileiro em seus próprios termos de experiência humana, Porter se colocava, mesmo que não expressamente - ao menos não nas décadas de 1940-50 -, contra sua subjugação a um projeto racial assimilador que, em acordo com o discurso dominante, via o negro brasileiro em uma ordem social na qual suas particularidades históricas, culturais, políticas e intelectuais eram elididas - em outras palavras, branqueadas.
Em relatório para o Rosenwald Fund em meados de 1945, mais problemáticas se assomaram. Examinando obras em língua inglesa sobre a literatura latino-americana, Porter identifica como “problema de procedimento” o fato de que os poucos autores que ao campo se dedicavam o faziam pela ênfase nas realizações extraordinárias de indivíduos negros ou na temática de relações raciais, não conectando as vidas dos escritores negros da América Latina à filosofia e à arte, desprezando a história de sua criatividade intelectual. Para ela, isso se devia ao fato de que os estudantes nos Estados Unidos eram demovidos do “estudo direto do elemento Negro pelo real fenômeno da mistura racial na América Hispânica e especialmente no Brasil”.25 Contudo, mesmo reconhecendo a miscigenação para o entendimento dominante das conformações nacionais na América Latina, Porter apresenta singular consciência da ideia de democracia racial. Mais à frente, ela procura explicar ao que aludia:
Refiro-me à difícil conotação que o termo negro implica a mente de um brasileiro [...]. Para o brasileiro, o termo negro significa uma pessoa de sangue africano puro. No Brasil, um homem é um negro se é preto e se tem traços negroides. A cor ou raça de um homem não é comumente mencionada na literatura impressa, provavelmente pela razão de que existe nos países em questão menos consciência de raça.26
Discutem-se nesse trecho aspectos das classificações raciais no Brasil em relação às normas sociais comumente atribuídas aos Estados Unidos. Naquele país, prevaleceria o sistema de marca (fenótipo); neste último, o de origem (hipodescendência), como demonstrou Oracy Nogueira (1985). A bibliotecária tangenciava um assunto se lhe revelaria de difícil trato: “alguns escritores vão considerar que um dado autor pertence à raça negra, enquanto outros irão se referir a este autor como branco”,27 dizia sobre Castro Alves. Em um pedido de renovação de bolsa para o Rosenwald Fund, em 1946, algumas das problemáticas são revistas: “[...] a falta de material impresso em inglês, a terminologia, diferenças nos costumes latino-americanos acerca do elemento negro nas populações”,28 entre outros. As dificuldades decorrentes do contraste entre o sistema dominante de classificação racial do Brasil e seu próprio entendimento dessa questão na condição de afro-americana a acompanhariam até a publicação da Afro-Braziliana, em 1978, como haveremos de notar na sequência.
Apesar desses sérios contratempos, o trabalho prosseguiu. No pedido de renovação de bolsa, ainda em 1946, ficava claro que o volume de informação sobre o negro na literatura latino-americana, somando cerca de 4.000 entradas identificadas, era desproporcionalmente maior para o Brasil, que passou a ser priorizado nos anos seguintes. A partir de então, Porter redimensionou também o universo temático, congregando títulos de quaisquer outros aspectos da presença histórica afro-brasileira. Em outra carta para o Rosenwald Fund, ela desejava “[...] visitar algumas das bibliotecas nos países latino-americanos e suplementar o trabalho que eu tenho feito até o momento”.29 Tal aspiração seria realizada no final da década de 1950.
Seus passaportes registram duas viagens para o Brasil. Em 1959, chegou a Salvador em 21 de julho. Ela visitava o país para participar - ao que parece, voluntariamente, representando Howard - do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, no Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, em agosto de 1959. Na oportunidade, teria discutido seu projeto bibliográfico sobre o negro no Brasil com os presentes e procurado estabelecer pontes para incrementar o trabalho. Deixando a Bahia, andou por bibliotecas e livrarias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, saindo do país em 14 de agosto. Retornaria em agosto de 1974, em viagem da qual não sobreviveu quase nenhum registro.
Do final dos anos 1950 até a época de publicação do livro, os documentos de sua relação com o Brasil escasseiam em Yale. As informações mais importantes do período são mesmo as encontradas na Afro-Braziliana, sobretudo em seu prefácio. Porter diz que a maior parte do trabalho foi feita entre os anos de 1944 e 1945, como bolsista do Rosenwald Fund. As duas - pouco conhecidas, por falta de fontes - viagens para o Brasil, em 1959 e 1974, teriam sido também essenciais, pois foram ocasião para a compra dos livros que passariam a formar a base da coleção Afro-Braziliana do Moorland-Spingarn Research Center.
O prefácio discute inicialmente as categorias raciais identificadoras dos autores. Ciente das “sensibilidades” dos brasileiros que “talvez não queiram ser referidos pelos termos ‘derrogatórios’ mulato, mestiço ou negro”, ela usa afro-brazilian para aqueles vistos na literatura como “homem de cor”, “mulato”, “negro”, “pardo”, “preto”, “crioulos” (filhos de escravos) e para as pessoas conhecidas por terem “uma gota de sangue negro” (PORTER, 1978, p. ix).30 Os “afro-brasileiros” levam um asterisco, mas, no caso de um informante brasileiro (a Brazilian critic) considerar um autor “mulato” e outro dizer “branco”, ficaria sem a marcação (p. x). As escolhas de Porter eram coerentes aos limites de seu arcabouço cultural no tocante ao seu entendimento das classificações raciais no Brasil e nos Estados Unidos - e ela opta na Afro-Braziliana pelo padrão da hipodescendência (“one drop rule”) -, mas, por cuidadosas que fossem, seriam inapelavelmente alvo da crítica de leitores brasileiros, posteriormente.
Embora não se pusesse abertamente no prefácio como uma leitora crítica da realidade racial no Brasil, Porter estava nessa época, talvez mais do que nos anos 1940-50, já consciente das contradições da situação social e política afro-brasileira, e se mostrava atenta ao que havia sido feito até 1978 na construção dos movimentos negros. Ela lembrava os intelectuais negros Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento, que tinham se destacado pela promoção identitária dos afro-brasileiros entre 1940 e 1950, e não escapava à sua narrativa, ademais, a movimentação política em São Paulo dos anos 1970 (PEREIRA, 2013), quando o movimento negro se rearticula em várias regiões do Brasil, resultando no Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, em São Paulo. A essa emergência social ela aderia sutilmente pela opção de um significante político (afro-brazilian) que, ao mesmo tempo em que interpelava o antirracialismo da formação racial-democrática (GUIMARÃES, 1999), alinhava-se às lutas de construção positiva da negritude brasileira, com o fim de constituir e nomear seu trabalho bibliográfico de mais de 40 anos.
A recepção brasileira à Afro-Braziliana
Os papéis do acervo de Porter sinalizam boa recepção da Afro-Braziliana nos Estados Unidos. No Brasil, a acolhida foi menor, pois era um livro caro, publicado apenas em inglês e em outro país e potencialmente restrito a especialistas versados na língua e cultura anglo-americana. Entretanto, as principais leituras brasileiras da obra, que são duas resenhas de Wilson Martins e Abdias Nascimento, foram entusiásticas e evidenciaram que a autora potencializou o debate dos diálogos e contrastes entre raça no Brasil e nos Estados Unidos.
Wilson Martins é mais conhecido nos estudos afro-brasileiros por ter produzido livros da história do Paraná em que “a escravidão e a presença do negro são secundarizadas, quando não omitidas” (OLIVEIRA, 2005, p. 220). Na resenha Mal-entendidos intercontinentais (1979), ele vê na Afro-Braziliana o exemplo de uma “refração deformadora” imposta pelas “estruturas mentais e quadros de valores” dos norte-americanos sobre a conjuntura brasileira, como o termo “afro-brasileiro”, que lhe soa equivocado por estar baseado na regra da “gota de sangue”, contrária à multiplicidade característica das categorias de cor no Brasil, o que inviabilizaria “a existência do preconceito nos termos polarizantes do ódio racial”. Martins censura ainda aqueles que ao conceito se aferravam como estratégia política de identificação racial, como Abdias Nascimento: “Vê-se que muitos de nossos compatriotas, depois de refletir, como um espelho, as noções históricas e sociais dos EUA em matéria de relações e conceitos raciais, servem agora de espelho onde os norte-americanos as reencontram numa aparente confirmação” (MARTINS, 1979, p. 2).
A resposta de Nascimento e sua avaliação da Afro-Braziliana não tardaram. Em Reflections of an Afro-Braziliano (1979), o autor, na condição de “afro-brasileiro consciente”, encontra na obra de Porter um “mapa da liquidação mental dos afro-brasileiros” e uma “documentação da supremacia branca triunfante”, posto que reproduziria - de modo não intencional - a “ideologia do branqueamento” (NASCIMENTO, 1979, p. 274) e o discurso da “democracia racial”. Espanta-se ao perceber que Antônio Vieira, um “defensor da escravidão”, e o Barão de Cotegipe, um “defensor do regime escravista”, receberam o asterisco de “afro-brasileiros”. Por outro lado, lamenta o fato de autores afro-brasileiros que “agiram como espelhos da sociedade dominante (branca ou ariana), e que, apesar de serem influentes escritores, em suas obras não incluíram praticamente nada que os identificasse da forma que fosse às suas origens africanas” (p. 275), exemplos de Machado de Assis e Mário de Andrade, ganharem a mesma designação.
Enquanto personagens tradicionalmente entendidos como brancos se tornam negros, como Castro Alves e Carlos Gomes, outros conhecidos membros da comunidade negra não são assim nomeados, como Arlindo Veiga dos Santos e José Correia Leite, o geógrafo Milton Santos e até mesmo Pelé. Posicionando essas demarcações nos contextos históricos, políticos e sociais de sua produção, Nascimento defende o conceito de afro-brasileiro, procedendo a uma genealogia de sua gestação dos quilombos até o MNU, que o mobilizava politicamente. Era uma resposta aos “acadêmicos colonizados”, como Martins, que, revelando sua “deformidade intelectual”, não fez em sua resenha sociologicamente cética e desdenhosa ao conceito “nenhuma alusão à sistemática e sutil repressão, constante e frustrante, que historicamente tem perseguido, implacavelmente, qualquer livre identificação dos afro-brasileiros com sua origem étnica e espiritual” (p. 277). A denúncia dessa repressão através do significante político “afro-brasileiro” seria parte de um processo maior de preservação da “inteligência e energia negra”, cuja destruição tinha sido “documentada involuntariamente no livro de Porter” (p. 281). Sua avaliação era, como se vê, diametralmente oposta à de Martins, ao dar ênfase ao caráter contestatório e político-ideológico dos conceitos. Apesar das críticas, endereçadas mais à consciência racista31 brasileira do que à obra, Nascimento ponderou que o livro, que deveria se chamar “Entendimentos Intercontinentais” (p. 282), era uma importante contribuição para as interconexões entre os afrodescendentes nas Américas Negras.
A Afro-Braziliana tornou-se uma referência sobre a contribuição intelectual e cultural de autores negros na América afro-latina para o público acadêmico norte-americano, cujos olhos têm observado atentamente, desde meados do século XIX, as conformações raciais ao sul do Rio Grande, especialmente o Brasil (ANDREWS, 1997). Nos mais de 40 anos de sua elaboração, a atuação de Dorothy Porter refletiu, nas palavras do historiador afro-americano Robin Kelley, um “amplo entendimento diásporo da história social e política dos negros” (KELLEY, 1999, p. 1.058)32 e documentou diferentes fases e modalidades do pensamento brasileiro concernente à raça. Através da Afro-Braziliana, Porter realizou uma das mais sofisticadas críticas ao racismo brasileiro do século XX, em suas manifestações acadêmicas, intelectuais e epistêmicas, apontando a colossal magnitude dos silêncios e lacunas que recobriam o campo bibliográfico sobre o negro.
Seus objetivos em relação ao Brasil devem ser entendidos no contexto da constituição política do acervo do Moorland-Spingarn Research Center e das bibliografias críticas que ela considerava desdobramento da constituição de uma biblioteca especializada, no caso, com uma proposta de enfrentamento do racismo no campo da Librarianship. O tempo longo decorrido entre a concepção da Afro-Braziliana, nos anos 1940 - momento em que ela afirma ter feito a maior parte do trabalho -, e a publicação do livro pode ser explicado por razões operacionais (contatos com editoras e autores no Brasil), teóricas (as questões de classificação racial) e mesmo políticas, pois no final da década de 1970 a margem para uma perspectiva de valorização do negro enquanto sujeito autor de sua história e dos modos de contá-la estava se ampliando. A Afro-Braziliana consolidou um campo bibliográfico sobre a experiência afro-brasileira, projeto que vem sendo continuado contemporaneamente por uma nova geração de estudiosos negros das áreas de Biblioteconomia e Ciência da Informação no Brasil (SILVA; LIMA, 2018).
Considerações finais
O exame da Afro-Braziliana demonstrou uma possibilidade de pesquisa sobre redes de relação intelectual por intermédio de obras bibliográficas entre diferentes contextos espaço-temporais, notadamente o Brasil e os Estados Unidos, em uma época crucial de mudanças sociais e de entendimentos históricos e sociológicos sobre raça, dos anos 1940 até o final da década de 1970. A história da construção social, cultural e intelectual dos gestos bibliográficos de Porter se constituiu de tensionamentos teóricos, disputas narrativas, dissensos políticos e leituras conflitantes das categorias e do imaginário racial brasileiro quando comparadas à referencialidade atribuída ao sistema de classificação racial dos Estados Unidos.
A disposição interna do trabalho de Porter pode ser objeto de análises especializadas no futuro da pesquisa científica, com ferramentas de outras áreas da História, das Ciências Sociais e da Biblioteconomia. O acervo em Yale, no que concerne aos intercâmbios com os mundos africano e afro-latino-americano, é ainda pouco explorado. Uma agenda de pesquisa aguarda ser construída não só perante as potencialidades da documentação, mas também em face da constituição de outras “Afro-Brazilianas” - e de “brasilianas” atravessadas por outros temas - em bibliotecas, arquivos e museus norte-americanos no século XX, a exemplo do Schomburg Center for Research in Black Culture (Nova York) e arquivos de brasilianistas e afro-brasilianistas (MEIHY, 1990) presentes em diversas instituições universitárias dos Estados Unidos.