Introdução
No início do século XV, quando o Cisma da Igreja já se arrastava há duas décadas (STUMP, 2009, p. 395-442), intensificando o ímpeto das autoridades temporais e eclesiásticas pela sua solução, o teólogo chanceler da Universidade de Paris, Jean Gerson (1363-1429), comunicava em uma de suas correspondências privadas a preocupação com a grande “necessidade de educação do povo e a solução das questões morais em nossos tempos”. Conclamava, assim, os teólogos da universidade a deixarem a natureza somente especulativa de seu ofício e a tomarem para si o papel de condutores morais e espirituais da Cristandade em tempos de crise. O letrado desferia pesadas críticas aos seus pares, que, segundo ele, estavam mais centrados no estudo e nas operações intelectuais por si mesmas, em prejuízo do comprometimento devocional e moral, considerados mais necessários diante de tão delicado contexto. Concluía que, “em tal situação crítica e entre tantos perigos para as almas, dificilmente se pode[ria] estar satisfeito em brincar com matérias [...] que são completamente supérfluas”, referindo-se aos estudos teológicos sem efeitos para a conversão e a salvação de todos (GERSON, 1998, p. 174).2
Desde 1399 no cargo de chanceler3 (GIEYSZTOR, 1996, p. 128) da mais célebre universidade do Ocidente cristão, Jean Gerson enfrentava os impasses políticos que marcaram os reinados de Carlos VI e Carlos VII e envolviam aquela instituição na trama de alianças entre os poderes temporais e eclesiásticos (GERSON, 1998, p. 18).4 O estabelecimento da corte papal em Avinhão de 1309 a 1377, em que a proximidade com o rei francês e a vida opulenta dos cardeais era censurada, culminara na divisão que submeteu a Igreja à gerência antagônica de dois patriarcas, eleitos pelos cardeais leais aos reis franceses e por aqueles partidários de Roma, respectivamente (ROLLO-KOSTER; IZBICKI, 2009, p. 70-71). Os teólogos universitários empenhados em restabelecer a unidade da Igreja por meio de um acordo entre as partes frustraram-se com a intransigência orgulhosa de ambos os pontífices, que não acataram a proposta de renúncia apresentada em 1395, prolongando as tensões (PASCOE, 1973, p. 11).5 O Cisma fomentava, nesse sentido, a percepção de um contexto de triunfo do pecado, especialmente em referência aos vícios dos eclesiásticos, que se afastavam do modelo dos apóstolos. Tal panorama incutia no doutor de Paris uma convicção: a de que, naquele momento, mais importantes do que a erudição e o conhecimento teórico eram a fé, a piedade e a afetividade, requisitos que considerava ausentes nos teólogos e eclesiásticos e encontrava nas pessoas chamadas de “simples”, que “têm fé” mesmo sem instrução e iniciação nos conhecimentos teológicos.
A oração, definida como prática afetiva por excelência, aparecia, portanto, nos escritos do chanceler como remédio à falta de piedade e aos vícios observados naqueles tempos: “a oração não é nada além do afeto humilde e devoto dirigido finalmente a Deus” (GERSON, 1960, v. VII, p. 238), ensinava no tratado La Mendicité Spirituelle, de 1401, endereçado aos “simples” em língua vernácula (NAGY, 2006, p. 444, 446, 455, 463; CASAGRANDE, 2013, p. 115).6 O teólogo destacava o valor das gentes “de devoção” que se dedicavam por completo à oração, também chamadas de “contemplativas” - não necessariamente monges ou religiosos -, que seriam tão responsáveis por atrair a graça de Deus como as pessoas ativas, voltadas às obras de misericórdia corporais. Os que rezam “são úteis como os olhos são ao corpo” e, por meio de sua proximidade com Deus, conseguem dons para todos; por isso, “mais proveitosa a toda a Igreja [é] a oração devota de um contemplativo do que [as obras de] cem [pessoas] que levam a vida ativa e socorrem as necessidades corporais” (GERSON, 1960, VII, p. 36).7 Curiosamente, em um tempo em que o reino da França enfrentava profundas tensões não somente espirituais e religiosas, mas também materiais, com a guerra, a violência, a pestilência e a pobreza (CHIFFOLEAU, 1980, p. 325-37; CHIFFOLEAU, 1979), um clérigo renomado e influente defendia a superioridade da oração, da contemplação (BROWN, 1987, p. 171; FISHER, 2006, p. 217; PETRY, 1957, p. 17; HARRINGTON, 2004, p. 8-9)8 e do recolhimento espiritual em detrimento das ações “corporais” (SCHMITT, 2014, p. 306),9 exteriores e caritativas, e enaltecia os exemplos de gente devota.
A oração como refúgio e remédio
A oração constituía para o chanceler de Paris uma forma de refúgio perante os males do tempo. Às suas amizades mais próximas, envolvidas ao seu lado na querela do Cisma, como o ex-chanceler Pedro D´Ailly, recomendava “o alimento da devoção interior” (GERSON, 1998, p. 260).10 Da mesma maneira que aconselhava seus colegas da universidade, Gerson procurava direcionar a atenção dos fiéis simples para as necessidades espirituais e não apenas corporais de toda a comunidade cristã, destacando o potencial inestimável da contemplação e da oração, que podiam e deviam ser praticadas por todos e não apenas pelos religiosos, prelados ou teólogos como ele. O chanceler avançaria ainda mais em sua defesa da oração e do recolhimento devocional ao compor, especificamente para os simples e leigos, textos de iniciação à contemplação, prática monástica que tratava da experiência momentânea de suspensão dos sentidos e união da alma a Deus, conduzida pela oração e pela meditação. Esse assunto foi apresentado a esse público a partir de ensinamentos simplificados em língua vernácula, nomeadamente nos textos Montaigne de Contemplation e La Mendicité Spirituelle.
Em 1401, ao escrever em francês para os simples o texto que definiu como o seu “tratado de oração”, o citado La Mendicité Spirituelle, Jean Gerson retomava uma pergunta corrente (HASENOHR, 2015, p. 66): “Por que dizem os salmos as gentes que não os entendem [...], pois não sabem nada do latim?” (GERSON, 1960, v. VII, p. 238)11 Resguardando a velha prática de ensinar e proferir as orações na língua latina, o teólogo explica que o fato de os fiéis não compreenderem o que diziam em suas preces não impedia a comunicação com Deus, desde que a intenção e o afeto sinceros os motivassem. Ademais, “as pessoas simples iletradas dizem as orações que não sabem para fazer reverência a Deus, louvar ou agradecer as palavras sagradas reveladas [...] ou para obedecer à Igreja e ao confessor” (GERSON, 1960, VII, p. 240).12 A questão retomada pelo teólogo fazia sentido num período em que, em diversas plagas do Ocidente, se começavam a elaborar escritos devocionais nas línguas vernáculas, de conteúdo variado, trazendo ensinamentos sobre as maneiras de rezar, bem como fórmulas para uso pessoal, conforme a uma crescente reivindicação dos laicos (LE GOFF; SCHMITT, 2006, p. 237-252)13 por maneiras mais pessoais, afetivas e íntimas de diálogo com o sagrado (CHIFFOLEAU, 2011, p. 104-117; VAUCHEZ, 1987, p. 10).14 Tais escritos de devoção diferiam dos livros de horas dos nobres, cuja leitura, encorajada pela Igreja como prática dos bons cristãos, ainda se fazia em latim, com base no ofício monástico e com reduzido espaço para a língua vernácula (HASENOHR, 2015, p. 65-66).15
A defesa da validade da prática da oração em latim para os leigos movidos apenas pela piedade genuína não impediria, portanto, que autoridades como o próprio Gerson, preocupadas com as lacunas e com a fragilidade da pastoral francesa do período, apostassem não apenas no fortalecimento da pregação, mas significativamente na difusão escrita dos ensinamentos religiosos, com a composição de tratados de oração em francês. O chanceler determinava que, naquele tempo de tribulações, da mesma maneira que “em tempos de pestes a faculdade de medicina compôs um pequeno tratado para informar as pessoas”, deveria ser elaborado um breve texto “sobre os principais pontos de nossa religião, e especialmente em seus preceitos, para a instrução das pessoas ignorantes” (GERSON, 1998, p. 174).16 Tal desígnio cumpria o escrito de 1401-1402, intitulado A.B.C. des simples gens, que obteve larga fortuna no Ocidente ao ser traduzido para outras línguas e que se dirigia a todos, clérigos e leigos, “pequenos e grandes, meninos e meninas e outras pessoas simples”, elencando como fundamentais o aprendizado das orações principais, o Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo, ao lado dos mandamentos, das virtudes e dos dons do Espírito Santo, entre outros pontos da fé definidos como obrigatórios para todo fiel (GERSON, 1960, v. VII, p. 155).17
No reino francês, o Cisma contribuía para o enfraquecimento da ação dos clérigos no âmbito local ou paroquial, em decorrência da polarização política que minava não apenas a viabilidade administrativa, mas também a confiança dos fiéis nas autoridades eclesiásticas (DAILEADER, 2009, p. 96; BLUMENFELD-KOSINSKI, 2006, p. 5-7). Com isso, preocupações similares às de Gerson também impulsionavam outros letrados a compor textos em língua vernácula para os leigos - ou na tradução de escritos latinos -, no intuito de minimizar essas lacunas, contendo as orações e os preceitos básicos da fé. O Doctrinal de Sapience, concebido pelo arcebispo de Reims, Guy de Roye (1345-1409), é descrito no prefácio como “livro em francês e de grande proveito e edificação”, feito “para a salvação das almas de todo o povo, e em especial das simples pessoas laicas”, e trazia os artigos da fé católica, os julgamentos de Deus, as penas do inferno, as alegrias do paraíso, a paixão de Cristo, apresentados “brevemente e de forma simples, para a gente simples” (GUY DE ROY, 1485, p. 1).18 Quando se escrevia a este público não versado no latim, era, em suma, para instruir sobre um conjunto de preceitos fixos, por meio de fórmulas, tópicas e divisões muito semelhantes e repetitivas, como no texto anônimo Bons enseignemens pour endoctriner simple gens, que, feito para a “salvação das almas do simples povo cristão e para mostrá-los de forma básica” o conteúdo da fé,19 continha a lista dos mandamentos, dos pecados segundo as partes do corpo; as descrições do inferno e do paraíso; a maneira de confessar e considerações sobre as três orações básicas - conteúdo muito semelhante ao de textos vernáculos que circulavam em outros reinos cristãos.
Difundia-se, por conseguinte, nos séculos XIV e XV, um tipo específico de texto edificante em língua vernácula, de caráter básico e sumário a respeito das principais obrigações de todo fiel no âmbito privado e público, quanto aos pecados, aos sacramentos e às orações, estando Jean Gerson na dianteira da confecção e da difusão desse tipo de manual para uso de curas e fiéis, não somente do reino da França - dadas as numerosas traduções dos escritos desse letrado -, com uma linguagem simples e cotidiana. Os escritos sobre a oração em francês acompanhavam, desse modo, essa iniciativa mais ampla de compor textos em língua vernácula para apurar a instrução básica dos leigos nos assuntos da fé. No entanto, ao lado dos tópicos da fé cristã listados como básicos e obrigatórios pelos prelados que então começavam a redigir seus textos na língua do povo - como os sacramentos, os pecados, os artigos de fé, os mandamentos -, alguns escritos elencavam temas menos familiares ao público leigo. Esses textos, por sua vez, apresentavam um caráter mais devocional, ascético, espiritual ou místico (KENNEY, 2013, p. 93-127)20, nos moldes monásticos, em vez de apenas moral, catequético e sacramental. Sugeriam uma devoção interior (AUGUSTINE, 2002, p. 61; VON MOOS, 1995, p. 131-140)21 fundada na leitura, na meditação e na oração, e abriam, portanto, o caminho para o público laico aprimorar sua devoção pessoal no âmbito privado - especialmente a partir dos tratados de Gerson mencionados acima, voltados aos “simples” e às mulheres.22
Anseios dos laicos por uma vida de plena devoção
O texto anônimo Avisements sur le fait du gouvernement quotidien, feito no século XV para os laicos que desejassem aprofundar sua devoção, constituiu um desses guias morais e espirituais, com orientações sobre o governo dos pensamentos, da fala, do corpo e das ocupações cotidianas, tendo em vista uma vida mais voltada para a oração e para o recolhimento devocional. O texto propunha que o fiel se distanciasse o mínimo possível das ocupações “espirituais” - exceto em caso de mulheres casadas e serviçais -, e ensinava a rezar: “Quando se está em oração, que se coloque todo esforço em espantar do seu coração todos os pensamentos mundanos estranhos a Deus e que se considere a quem fala, a Deus, e que ele está presente”.23 Além de orientar a disposição emocional do fiel em relação ao mundo, recomendava a maneira reverenciosa e humilde de se dirigir ao Criador24. Diferentes dos livros de horas e das orações básicas aprendidas no âmbito geral e mais rudimentar da catequese, textos desse tipo apresentavam, além das mencionadas três orações principais, outros modelos de prece, mais complexos e para circunstâncias mais específicas. Esses escritos listavam, em suma, as diretrizes de um programa de vida integralmente voltada para a devoção e para oração. Ao lado de considerações sobre como se portar em oração ou sobre os benefícios da prece para a alma, ou explicações mais elaboradas das asserções do Pai Nosso e da Ave Maria, ajuntavam-se fórmulas em primeira pessoa, para serem praticadas em silêncio ou pela voz, em local retirado das movimentações terrenas.
Exemplos dessas orientações para o cotidiano encontram-se nos comentários bíblicos do século XV sobre o Carmen de muliere forti, como o livro de François Le Roy, da ordem religiosa de Fontevraud, Le livre de la femme forte et vertueuse, impresso por Simon Vostre em Paris. Esse texto apresentava orações para cada versículo e exprimia um diálogo pessoal, íntimo e afetivo com Deus: “Meu doce e benigno salvador, [...] de todo o meu coração eu te suplico e peço que queira me conceder as virtudes acima citadas [...] para que pela tua graça eu possa ser a mulher forte e virtuosa de quem fala Salomão” (LE ROY, s/d).25 O escrito destinava-se ao mesmo tempo “a pessoas religiosas e outras gentes de devoção”,26 sugerindo a transposição de modalidades devocionais monásticas para o cotidiano de certos grupos devotos laicos. No mesmo sentido, o comentário da referida passagem bíblica elaborado anteriormente pelo teólogo e bispo de Meaux, Jean de Bory (- 1432) - também confessor de Catarina da França e tutor dos filhos de Carlos VI -, Exposition du Carmen de muliere forti, assinalava que se dirigia “mais especialmente à instrução das mulheres de religião ou de mulheres que vivem em castidade fora do casamento e que se entregam ao serviço de Deus em seu coração”,27 referindo-se às mulheres que escolhiam levar uma vida devota doméstica, sem votos religiosos formais, mas à semelhança das monjas.
No reino da França dos séculos XIV e XV, tornava-se cada vez mais comum os leigos, em especial mulheres, sobretudo solteiras e viúvas, optarem por uma vida de ascese e recolhimento devocional de inspiração monástica em seus próprios lares, seguindo uma disciplina devota sem se vincular a uma ordem religiosa, mas geralmente com a supervisão de um mentor clérigo, na maioria das vezes o próprio confessor (WEBB, 2007, p. x, 119-121). A escolha por tal forma de vida ambígua, entre o estatuto religioso e laico, não constituía uma singularidade francesa, já que se alastrava em diversos pontos da Cristandade, simultaneamente, entre grupos sociais diversos. No reino da França, esse modo de vida ampliava-se tanto no que dizia respeito aos fiéis que praticavam a devoção em suas próprias casas, sob orientação do diretor espiritual clérigo (CASAGRANDE, 1990, p. 139), quanto aos que adentravam grupos devocionais laicos mais autônomos, muitas vezes à margem da condução clerical, como o caso das beguinas, grupo reconhecido em Paris desde o século XIII, com proteção do rei (MILLER, 2014). Diante desse público, os letrados empenhados na instrução dos leigos e das mulheres fizeram dos livros e da escrita vernácula instrumentos de base para ordenar e conduzir a busca por práticas devotas mais introspectivas, pessoais e privadas, sendo o acesso aos livros facilitado pelo papel e em seguida pela imprensa, e também pelas bibliotecas comunais e paroquiais (BARBIER, 2005, p. 86; FEBVRE; MARTIN, 1992, p. 149; CHARTIER, 1989; CHIFFOLEAU, 2011, p. 111-113). Letrados como Cristina de Pisano recomendavam às damas boas leituras devocionais e alertavam as famílias para que lhes proibissem os livros mundanos e supérfluos, isto é, que não contribuíam para a virtude e para a salvação (LABARGE, 1997, p. 89-100).
O interesse crescente dos laicos por uma vida de ascese e oração - que não constituía uma novidade, mas se aprofunda no período - manifestou-se nas próprias irmãs do chanceler Gerson, para quem ele escreveu parte de seus textos de devoção em francês: mulheres sem casamento que, por decisão própria, passaram a se dedicar ao retiro devocional em casa; eram virgens que renunciaram ao matrimônio e uma delas viúva que não pretendia se casar novamente. O valor da “simplicidade” observado nelas, no que dizia respeito à sua pouca instrução, não impediu o letrado de fundar sua missão instrutiva no aprendizado das letras, aconselhando-lhes: “seria muito proveitoso que possais aprender a ler romance28, pois eu vos enviarei livros de devoção, e vos escreverei com frequência com muita alegria e muito prazer” (GERSON, 1960, v. VII, p. 420).29 Os textos para elas continham ensinamentos básicos da catequese, como os mandamentos, os vícios e virtudes, os artigos de fé, com espaço para a prática privada da meditação e da oração. As prescrições visavam ordenar todo o tempo diário, como se elas de fato vivessem num monastério: deveriam ler textos religiosos todos os dias; “fazer orações juntas algumas vezes, em especial após o jantar, para afastar as más melancolias e tentações”; “dizer as orações nas horas determinadas, como às matinas, às terças, às vésperas, ao pôr do sol e à meia-noite”; ouvir a missa o mais frequentemente possível, entre outras indicações. Em uma correspondência de 1399-1400, o teólogo compôs um guia de orações para cada dia da semana, e, da mesma forma, o La Mendicité Spirituelle acompanhava-se de uma sequência de “orações” e “meditações” (STERPONI, 2008, p. 555-559; KARNES, 2011).
Em meio à percepção geral de um mundo em desordem, acentuada pela escandalosa concorrência entre dois papas, alguns coetâneos eram admirados por sua imagem piedosa e plena entrega à oração, num período em que a santidade passava a associar-se cada vez mais à capacidade de contato íntimo e excepcional com Deus do que às obras corporais (VAUCHEZ, 1987, p. 255)30 e em que os leigos ansiavam por uma maior intimidade e proximidade em relação às figuras sagradas dos santos, de Cristo e da Virgem. Pertencente ao círculo de amizades de Gerson e D´Ailly, o jovem cardeal Pedro de Luxemburgo (1369-1387) foi venerado como uma figura santa emblemática da fidelidade ao Papa de Avinhão, Clemente VII, e ao reino da França, justamente porque frequentava os monges celestinos e considerava sua dedicação à oração de grande valia para a missão de pôr fim ao Cisma (GUENÉE, 1987, p. 177). A Chronique du Religieux de Saint Denis menciona o quanto ele “foi piedoso, casto e sóbrio [...] e que, ainda que estivesse sobre a Terra, já habitava o Céu” (1889, p. 479).31
Um texto para mulheres devotas atribuído ao cardeal circulou após sua morte com o título Les trois journées du chemin de pénitence, ou la Diète du salut, par Pierre de Luxembourg com um programa de oração. Nos conselhos desse texto, a devoção é entendida como o conteúdo afetivo dirigido a Deus, enquanto a oração é a sua forma: “esforçar-te-á para ter verdadeira devoção em oração”. Aproximando-se dos ensinamentos de Gerson sobre como se preparar para falar com Deus, o livreto expõe, por exemplo, “Dez coisas que ajudam a ter devoção”, como a pureza de coração, a escolha do lugar mais adequado, a direção do pensamento segundo determinados tópicos e temas, agir e sentir segundo as virtudes.32 Mas não apenas os religiosos e clérigos que se voltavam com mais afinco para a oração constituíam modelos, já que também muitos leigos eram por isso considerados dignos de elogio e imitação. Uma certa Agnes d´Auxerre é mencionada por Gerson em um de seus escritos para as irmãs, como exemplo (BROWN, 1987, p. 216) a ser imitado: “uma mulher muito devota” que, de forma muito amorosa e humilde - isto é, com a devida reverência e rebaixamento perante Deus -, colocava-se como uma mendicante, por meio da imaginação, e pedia mentalmente dons espirituais aos santos, “fazendo uma procissão [...], com ardor e diligência, para si e para os outros” (GERSON, 1960, v. VII, p. 172).33
No entanto, a plena entrega à oração e à devoção nem sempre configurava comportamentos exemplares e elogiosos, na visão de algumas autoridades eclesiásticas. Com a multiplicação, no século XIV, das práticas devocionais nos centros urbanos do reino - das associações paroquiais laicas com supervisão clerical ou das comunidades informais que imitavam o modo de vida monástico, como as “beguinarias” -, amadurecia a reivindicação de uma relação privilegiada e direta com Deus, expressa em escritos e gestos muitas vezes excessivos, sobretudo entre as mulheres, como os jejuns debilitantes e outras mortificações que se acompanhavam de visões (BOQUET; NAGY, 2008p. 274; BOQUET; NAGY, 2015, p. 266-265, 315).34 Esses grupos atraíam a admiração de alguns e a desaprovação de clérigos preocupados com a negligência dos sacramentos e obrigações estabelecidas pela Igreja (ANDERSON, 2011, p. 158),35 bem como com a conformidade às virtudes da obediência, da moderação e da discrição - virtudes monásticas obrigatórias -, sendo seus integrantes acusados de seguir “apenas os próprios afetos, sem regra nem ordem, deixando de lado a lei de Cristo” (GERSON, 2008, p. 69).36
O papa Clemente V já havia se referido, no decreto de 1311-1312, Cum de Quibusdam, durante o Concílio de Viena, às mulheres chamadas beguinas - expressão que, na verdade, encobria uma ampla variedade de grupos -, que não prometiam obediência a ninguém, nem professavam nenhuma regra e que, por isso, não poderiam ser consideradas religiosas. Denunciava que, conduzidas pela “insanidade”, pregavam sobre os assuntos mais elevados, como a Trindade e a essência divina, introduzindo “opiniões contrárias à fé católica a respeito dos artigos da fé e dos sacramentos da Igreja” e que, por enganarem “muitas pessoas simples”, “sob o véu da santidade”, mereciam ser postas “sob suspeita” (TANNER, 1990, p. 374).37 Tal desconfiança acentuou-se ao longo do século XIV desde a condenação, em 1310, da beguina Margarida Porete e de seu livro em língua vernácula, Miroir des simples âmes annéanties, que tratava do êxtase místico resultante da união entre Deus e a alma, possível por meio apenas do amor, para além do intelecto e das normas sacramentais (BAILEY, 2003, p. 64-65).38 Malgrado sua proibição, o texto continuou sendo difundido entre os laicos ao longo de todo o século XIV e XV (HASENOHR, 1999, p. 1.349, 1.360), perpetuando assim a sedução de um caminho para Deus mais afetivo, íntimo e direto, à revelia dos preceitos clericais.
No mesmo sentido, as experiências de contato direto, afetivo e excepcional com Deus tornaram-se mais numerosas com a instauração do Cisma, e vinham dos mais variados pontos da Cristandade. Os teólogos consideravam suspeitas as experiências espirituais incomuns ou chamadas de “extraordinárias”, resultantes de uma devoção demasiado apaixonada, como os relatos de visões, revelações, êxtases ou recebimento de estigmas, acompanhados do externar descomedido das emoções. Os que comunicavam publicamente suas visões, êxtases e revelações com frequência expressavam motivações políticas, polarizando-se a favor do papado de Roma ou de Avinhão. Em defesa do retorno do pontífice a Roma, por exemplo, estavam as veneradas Catarina de Siena (1347-1380) e Brígida da Suécia (- 1373), que tinham acesso direto ao Papa e enviavam cartas aos monarcas. Em contrapartida, do lado dos franceses, além de Pedro de Luxemburgo, despontavam figuras secundárias, porém muito cultuadas, como o clérigo Jean de Varennes (- 1396?) e a laica Maria Robine (- 1399), que exaltavam o rei e o Papa Clemente VII. Os critérios de aceitação ou de reprovação desses casos esbarravam, da mesma forma, nas divisões religiosas e políticas daquele cenário (VAUCHEZ, 1987, p. 254-255; VAUCHEZ, 1999; BLUMENFELD-KOSINSKI, 2006, p. 42-50, 77-78).
Diante desse quadro, em que muitos buscavam ter voz sobre questões da Igreja a partir de convicções pessoais alegadamente inspiradas por Deus, clérigos renomados, como o pregador ibérico Vicente Ferrer, que então passava pela França em pregação, alertavam sobre o perigo de se buscar “as vias extraordinárias” de comunicação com Deus, o que poderia conduzir a ilusões. “Aqueles que querem viver em devida submissão a Deus não devem desejar obter [...] visões, revelações ou sentimentos que estejam além da natureza e do estado ordinário dos que amam a Deus e lhe dirigem uma crença filial”, alertava o valenciano, pois tais desejos que vão além do “ordinário” derivam do orgulho, da presunção e da vã curiosidade sobre as coisas de Deus (FERRER, 1866, p. 370-371)39. Também Jean Gerson aconselhava os interessados numa devoção interior a não ansiar pelo “extraordinário, mas desejar a via ordinária para a salvação, pois o orgulhoso será enganado” (GERSON, 1959, p. 33).40
Diretrizes para o cotidiano devoto dos leigos
Para contornar os erros e excessos devocionais, uma exigência ao se colocar em oração, segundo os textos de direção espiritual elaborados por clérigos como o chanceler, consistia em desviar a atenção das agitações mundanas e voltar-se com constância e profundidade às coisas eternas, em pensamentos e gestos. A solidão, ou o retiro espacial esporádico, bem como o silêncio, elementos fundadores da vida monástica, não deixavam de ser recomendados nesses escritos. Além de ajudar a fixar o pensamento na prece e na meditação, ao furtar-se dos olhares dos outros, evitava-se o orgulho, preocupação contundente num período em que se denunciava a vanglória resultante das exibições de fé e de supostos contatos incomuns e diretos com Deus. Entre a lista de dez passos que ajudariam o cristão a ter devoção, isto é, a dirigir-se a Deus com afeto verdadeiro, o livro atribuído a Pedro de Luxemburgo prescreve justamente a chamada “busca do lugar secreto”, ou seja, afastado de companhias, para que, ao rezar, o fiel não fosse visto, e, desse modo, a vanglória ligada ao ato de se exibir como devoto não o impedisse de obter “o fruto de sua oração”.41
A ideia do silêncio e solidão interiores - não referentes ao espaço objetivo -, por meio dos quais seria possível acessar Deus, era afirmada nos escritos místicos que começavam a ser compostos nas línguas vernáculas no século XIV (MCGINN, 1996, p. 206-208; MCGINN, 2001, p. 6-12; BLUMENFELD-KOSINSKI; ROBERTSON, 2002). Por meio dessa tópica, transpunha-se para o mundo dos laicos a possibilidade de vivenciar uma devoção interior sem abandonar o mundo, a vida doméstica e urbana. Meister Eckhart (1260-1328), um dos principais nomes dessa mística vernácula que ultrapassava o domínio dos teólogos monásticos, já considerava que aquele que carrega Deus dentro de si, no pensamento, o terá “em todos os lugares, nas ruas e entre as pessoas, não menos do que na igreja, no deserto ou na cela” (2009, p. 490),42 e, com isso, tornava possível a busca de conexão com Deus em qualquer ambiente. Jean Gerson, por sua vez, ao ensinar a contemplação aos simples, também explanou a noção de silêncio e solidão interiores, considerados mais importantes do que o retiro corporal, referindo-se a um estado do pensamento e do coração. Para ele, “segundo diversos estados e condições”, isto é, leigos ou clérigos, poder-se-ia “encontrar seu lugar secreto para estar em paz e silêncio”, já que “o principal segredo e silêncio deve[m] estar dentro da alma, mais do que do lado de fora”, quer dizer, “quando a alma expulsa para fora de si [...] toda preocupação mundana” (GERSON, 1960, v. VII, p. 32).43 Assim, a vida contemplativa, isto é, dedicada à oração, deixava, na visão desses letrados, de ser apanágio de monges e clérigos.
Porém, atento aos erros devocionais de seus coetâneos, que denunciava e pretendia combater para salvaguardar a ortodoxia das práticas religiosas, o chanceler apontou antigos preceitos monásticos que advertiam sobre os perigos da solidão: na Montaigne de Contemplation, recorreu a Sêneca ao aconselhar que não se buscasse permanecer só por muito tempo (GERSON, 1960, v. VII, p. 27). No entanto, recorda que o próprio Sêneca e também os santos louvaram a solidão e a ociosidade, como forma de servir a Deus, concluindo que a busca bem-sucedida da solidão dependia da compleição de cada um e que os feitos memoráveis dos santos deveriam ser admirados humildemente em vez de imitados. Reforçava, portanto, os perigos da solidão exterior para aqueles inexperientes e desprovidos de capacidade de resistir às tentações do mundo, bem como a dimensão interior do retiro, referindo-se aos que, mesmo estando “seules de corps”, sofriam pesada companhia dentro de si mesmas, onde ocorrem “grandes ruídos e palavrórios”. Entre os excessos de ascetismo denunciados por Gerson, estava um fenômeno urbano comum no reino da França no século XIV, principalmente entre mulheres: a reclusão voluntária, o confinamento em celas adjacentes a igrejas, hospitais e leprosários. Dizia ele que as reclusas “desapontaram-se miseravelmente, porque quiseram voar antes que tivessem asas” (GERSON, 1960, v. VII, p. 27-28).44 A tópica dos perigos da solidão, nesse sentido, alertava para os riscos da arrogância por parte daqueles que, sem vocação ou preparo, confiavam apenas em si próprios, abrindo mão dos conselhos e das repreensões de outrem para se erigir moral e espiritualmente (WEBB, 2007, p. xiv).
Por isso, o teólogo de Paris aconselhava suas irmãs sobre a importância dos labores corporais, como o cultivo das atividades domésticas e da penitência, antes de poderem “estar sós e em segredo” e se dedicarem por completo “a pensar em Deus à maneira das eremitas ou reclusas”.45 Diante dos riscos de orgulho e desobediência, ao se ensinar aos leigos o abandono das ocupações mundanas para adentrar a vida de oração, sem deixar as ocupações moderadas (GERSON, 1960, v. VII, p. 21; CASAGRANDE; VECCHIO, 2003, p. 129-137), diretores como Gerson conciliavam de alguma forma a vida dos laicos ao princípio do contemptus mundi, bem como a via ordinária ou sacramental para a salvação e o diálogo interior com Deus. A atratividade da solidão interior para os leigos e a reserva que cercava a reclusão, todavia, não impediam que os escritos de direção espiritual oferecessem sugestões quanto ao lugar e as disposições corporais mais apropriadas e eficazes para o fiel comunicar a Deus seu afeto genuíno e a obtenção, em retorno, dos dons espirituais de que necessitava.
O governo dos pensamentos tinha um papel central nessa busca da intimidade e da introspecção, fundamentava o ato de alojar-se dentro de si, de “retourner en soi”, nos termos de Gerson, e deveria guiar todo o percurso de oração, mas as deliberações corporais e espaciais não deixavam de ter seu peso. Aconselhava Gerson aos iniciantes - ou àqueles que ainda não tivessem a capacidade de encontrar silêncio e “retirar-se em si mesmos” estando em companhia de outrem, o que demandaria tempo, prática e “grande perfeição” - que a escolha cuidadosa de um lugar exterior poderia ser proveitosa, já que “para ter o segredo e o silêncio da alma por dentro, é conveniente buscar o segredo e o silêncio por fora” (GERSON, 1960, v. VII, p. 32-33).46 Considerou, assim, a variedade de posturas e espaços válidos segundo a compleição física e afetiva (CASAGRANDE, 2013)47 de cada um: “as florestas” ou “os desertos”; “os segredos dos campos”; “os locais secretos das igrejas ou de suas próprias casas”, enumerando algumas posturas, como ajoelhar-se, sentar-se, inclinar-se, sendo o repouso preferível ao movimento e a noite a hora mais cômoda (GERSON, 1960, v. VII, p. 32-33).
A figura solitária da Virgem Maria em oração constituía o modelo capital de devoção interior nesses escritos para as mulheres devotas. No sermão Poenitemini, proferido na igreja da abadia de Saint-Antoine-des-Champs, em janeiro de 1403, Gerson descreveu as ações da Virgem logo após a morte de Jesus. Na ocasião, ela vivencia a dor não pela exibição, mas pelo recolhimento e interiorização em seu quarto, afastada dos olhares dos outros e diante apenas do seu oratório pessoal, esse elemento do mobiliário doméstico que se tornava mais comum no tempo do chanceler: (WEBB, 2007, p. 125) “Nossa Senhora”, explica, “retirou-se sozinha para seu pequeno quarto e seu oratório secreto, onde deu graças e encomendou a Deus a guarda de São João, que se retirou em seu pequeno quarto separado. [...] Não saiu do lugar, nem falou a ninguém” (GERSON, 1960, v. VII/2, p. 518).48 Cristina de Pisano também incorporava o modelo da seulette, a mulher solitária contemplativa que, por meio de sua oração, atuava na solução dos problemas do mundo (WALTERS, 2012, p. 133, 136, 142). Cada vez mais preponderante desde o século XII, a figura de Maria fundamentou a construção das devoções pessoais e privadas, não apenas como objeto de culto e veneração, mas também como modelo para a imitação (FULTON, 2002, p. 202), com maior ênfase, nos séculos XIV e XV, em seus traços humanos e nos vestígios do sagrado incrustados na vida doméstica, o que promovia uma maior identificação por parte dos fiéis (RUBIN, 2009, p. 89, 96, 104).
O quarto aparecia como lugar privilegiado nas referências às vidas de pessoas devotas, como a laica Catarina de Siena e outas figuras mais ou menos insignes (WEBB, 2007, p. 125). O desenvolvimento das modalidades de vida religiosa doméstica nos séculos XIV e XV contribuía para fazer desse espaço da casa o principal lugar para os laicos buscarem uma relação mais íntima com Deus, retiro que geralmente conciliavam com a ida regular à igreja ou com as obras de caridade. O livro de devoção da rainha Joana d’Évreux (1310-1371) prescrevia: “se não estiveres fora e se estiveres em tua casa, mantém-te o mais reclusa que puderes em teu quarto, pois em seu quarto foi saudada a gloriosa Virgem Maria”; recomendava também a leitura de algum bom texto e a execução de “alguma obra salutar em casa”, e que se evitassem a mãe, os irmãos e irmãs.49 No mesmo sentido, o supracitado Avisements destacava: “quando quiseres orar a teu pai celestial, entra em teu quarto [...] e reza a Ele em segredo”, que dizer, de forma solitária.50 A casa e o quarto configuravam, pois, os ambientes mais seguros para essa devoção laica ansiosa por formas mais íntimas de diálogo com Deus e que se queria supervisionada e distante do retiro considerado orgulhoso das beguinas e reclusas.
Os manuais de oração em língua vernácula e o diálogo mais íntimo com Deus ganhavam espaço no cotidiano dos leigos também na medida em que, nos séculos XIV e XV, os lares passavam a acomodar mais possibilidades materiais para o desenvolvimento da oração privada. A proliferação dos livros portáteis de oração, para serem lidos silenciosamente durante a missa ou em casa, acompanhava-se da consolidação do uso de expressões sugerindo o contato ocular com o texto (como a ênfase no verbo veoir) e uma leitura a ser feita “com o coração”, quieta, bem como de um vocabulário para se referir ao ato de estar consigo, como “privauté” e “secret”. A leitura silenciosa e privada começou, dessa maneira, a fundamentar e a incentivar o cotidiano devoto doméstico de leigos como as irmãs do chanceler Gerson. Recorriam-se, além dos livros, a capelas particulares, amuletos, rosários, altares móveis, imagens impressas e miniaturas em madeira, para adornar os ambientes reservados à oração (FAURE, 2001; BOZOKY, 2001); elementos mais corriqueiros não apenas entre os grandes, mas nas famílias ascendentes. Essa devoção doméstica importava padrões e modelos conhecidos, monásticos, e constituía não uma alternativa à religião pública, mas uma extensão desta, onde os seus gestos e palavras eram reafirmados (WEBB, 2007, p. 97, 122, 123, 131).
Conclusão
O debate que se acende no período do Cisma e avança ao longo do século XV sobre as formas consideradas legítimas e as julgadas errôneas de devoção apontava para a necessidade de regrar a comunicação pessoal com o sagrado, dando pistas sobre a pertinência de se formular novos ensinamentos sobre a oração e a devoção no reino da França, onde iniciativas de compor livros em língua vernácula para os leigos ganhavam corpo. Apesar de veicularem tópicos como a contemplação, que, em tese, propunham uma relação direta e “extraordinária” com o sagrado e avançavam para além do repertório instrutivo básico ou “ordinário” necessário a todos os fiéis - a saber, os sacramentos, os mandamentos, as virtudes, os artigos de fé, as orações principais -, tais textos de oração resguardavam de algum modo a adequação ao que podemos traduzir por uma devoção humilde, obediente, discreta e moderada, formulada por clérigos que se mostravam conservadores dos parâmetros ascéticos tradicionais e do valor dos sacramentos.51 Os escritos aqui analisados ilustram, em suma, a preocupação de que essa “devoção interior” fosse ensinada de uma maneira que não negligenciasse a ênfase na obrigação de todo fiel de respeitar os sacramentos e de agir segundo os preceitos fundamentais da fé cristã.