Introdução
Os debates recentes promovidos pela UNESCO para promoção do patrimônio imaterial da humanidade motivaram, na Argentina e no Uruguai, a realização de novas “ativações patrimoniais” como as define Llorenç Prats (2004), para afirmar o tango e Carlos Gardel como patrimônio de uma e de outra nação.
O tango, estilo musical surgido na região portenha nas últimas décadas do século XIX, passou por inúmeras ressignificações. De representação dos pobres e excluídos dos subúrbios de Buenos Aires e Montevidéu naquele período, passou a ser aceito e valorizado entre segmentos médios e das elites portenhas depois de seu estrondoso sucesso na Europa e, inclusive, elevado a representação nacional e motivo de orgulho na Argentina e no Uruguai na época da carreira de Carlos Gardel. Desde aquele período, travaram-se disputas nacionalistas entre os dois países relacionadas ao pertencimento do tango e à própria nacionalidade de Gardel.
Conforme Ramón Pelinski (2009), o nomadismo e a transterritorialidade foi característica do tango desde seu início. Conforme o autor:
O nomadismo é uma característica fundamental do tango, caracterizado por um ‘impulso migratório’ que, dadas as circunstâncias econômicas ou políticas em que os emigrantes e exilados são forçados a empreender a diáspora, é antes uma expulsão. Nômades são os emigrantes que no final do século XIX chegaram ao Rio da Prata e nômades também são aqueles que renunciaram (ou tiveram que renunciar) para se tornarem sedentários domesticados para espalhar o tango para outras latitudes. A cultura do nomadismo configura a própria dança do tango em seus encontros com o parceiro desconhecido [...]. Subjacente a essas perspectivas parciais está a capacidade do tango de desafiar as condições existenciais do ser humano. A natureza potencialmente universal dessas condições é precisamente o que ativa a disponibilidade do tango para encontros com culturas distantes até que se torne uma “metáfora global” (PELINSKI, 2009, p. 1-3).2
A globalização do tango pressupõe, porém, um local de origem que é a região portenha. Pressupõe também processos de disseminação, de hibridização e surgimento de novos estilos de tango. Haveria, conforme o autor, às vezes na teoria, às vezes na prática, a proposição da existência de uma oposição entre um tango portenho e um tango diaspórico. Contudo, como conclui:
Se assumirmos uma perspectiva dialética, poderíamos afirmar que a resolução teórica deste conflito se encontra no tango ‘glocal’, que contém, ao mesmo tempo em que supera o tango portenho identitário e o portenho nômade, a identidade e sua diferença como promessa de plenitude sempre incompleta e não realizada (PELINSKI, 2009, p. 51).3
Neste artigo, analiso o período recente da ressignificação do tango e de Gardel como patrimônio imaterial e observo os usos recentes de discursos nacionalistas construídos no decorrer do século XX nas ativações patrimoniais realizadas sobre ele. De forma geral, ao menos nos países ocidentais, as ativações patrimoniais ocorridas desde a construção da noção contemporânea de patrimônio no contexto da Revolução Francesa até o final do século XX privilegiaram os bens materiais4. Datam do final dos anos 1960 e início dos 1970 várias críticas a uma concepção tradicional, monumentalista e nacionalista de patrimônio, e a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, realizada em 1972, apresentou recomendações relacionadas à valorização da diversidade cultural, da ampliação da noção de patrimônio histórico e artístico para patrimônio cultural e da ampliação da noção de monumento. Essas recomendações propunham a superação de uma concepção tradicional sobre monumentalidade e davam suporte para a valorização de manifestações culturais diversas e efêmeras, de natureza imaterial.
No âmbito jurídico, como nos explica Souza Filho (2009), afirma-se que todo o patrimônio material também é composto de uma imaterialidade, um sentido atribuído a ele, um significado para determinados grupos sociais. Contudo, faz-se necessária a preservação da materialidade daquele objeto em si, acreditando-se que a preservação daquela materialidade implica a preservação do próprio significado do bem. Quando se trata de bens de natureza imaterial ou intangível não há uma materialidade em si a ser preservada. Trata-se de rituais, crenças, formas de expressão, formas de fazer que devem ser conhecidas e preservadas.
A noção recente de patrimônio imaterial também se distingue da noção de folclore, construída desde o século XIX. Apesar de as duas noções - patrimônio imaterial e folclore - poderem se referir a bens culturais similares, como a música popular, há uma forma muito distinta de compreensão acerca da relação entre esses bens e a cultura nas duas noções. Ao abordar o folclore, autores como Canclini apontam para críticas feitas a essa noção na contemporaneidade, especialmente seus limites em termos de pensar a cultura como sendo praticamente estática5 e sua relação com a forma romântica de explicar os nacionalismos.
Prats afirma que o caráter simbólico do patrimônio e sua capacidade de representar uma identidade explicam os interesses e a mobilização de recursos para sua preservação e exposição (PRATS, 2004, p. 15-22). No caso do tango e de Gardel, as disputas e interesses relacionados à construção de versões sobre as identidades nacionais na Argentina e no Uruguai, como pretendo demonstrar, influenciaram as ativações patrimoniais entre o final do século XX e início do XXI. Para tanto, focalizarei especificamente a musealização de Gardel nos dois países ocorrida com a criação do Museo Carlos Gardel, em Tacuarembó, no Uruguai, e do Museo Casa Carlos Gardel, em Buenos Aires, Argentina. Para tanto, utilizo, como fontes, documentação oficial relacionada à criação de ambos os museus, publicações relacionadas a eles e a composição das exposições dos museus, focalizando o que foi escolhido dos acervos para ser apresentado ao público e qual versão sobre a identidade nacional de Gardel e do tango está presente nessas escolhas.
O tango e Gardel disputados
Gardel foi o principal artista do tango no rádio, na indústria fonográfica e no cinema argentino e realizou também uma carreira internacional de grande sucesso atuando como mediador na construção de um imaginário acerca da nação Argentina e da região platina em vários países. O sucesso do tango na Europa desde o início do século XX e o próprio sucesso nacional e internacional de Gardel nos ajudam a compreender o fato de essa manifestação cultural, anteriormente associada principalmente aos pobres, aos subúrbios, à prostituição e à exclusão nas cidades de Buenos Aires e Montevidéu, passar a ser aceita e valorizada também por segmentos médios e das elites argentinas e uruguaias, inclusive tornando-se motivo de orgulho nacional.
O sucesso do tango na Europa ocorreu no início do século XX, junto com outras danças populares que chegaram do Novo Mundo: o tango portenho, o maxixe brasileiro, o jazz norte-americano. Conforme Pelinski, um dos motivos do sucesso do tango foi por ser considerada a mais latina e mais “desafricanizada e europeia” das danças, tendo que sua origem negra havia sido escondida em uma Argentina que queria se representar como branca. Dessa forma:
A sociedade europeia encontra no tango de Buenos Aires a dose de exotismo e erotismo para projetar nele seu olhar colonial (de voyeur) e seus desejos reprimidos [...]. De fato, se aceitarmos as afirmações de Stefan Zweig (2002) sobre a permeabilidade moral e social que reinava na Paris dos 900, o tango chegou ao momento oportuno como uma oferta artística de erotismo que, depois da domesticação coreográfica, as mulheres podiam expor em público sem se expor a uma condenação moral. [...] É nesse sentido que o tango foi considerado durante a sua primeira diáspora como um símbolo de modernidade e libertação (ou liberalização) das relações entre os sexos e os setores sociais ainda dominados pela moral vitoriana (PELINSKI, 2009, p. 8-9).6
Gardel começou sua carreira de cantor no início dos anos 1910, justamente no período em que o tango se transformava em estrondoso sucesso em vários países. Em 1912, fez suas primeiras gravações em disco e iniciou sua parceria com o cantor uruguaio José Razzano (a qual durou até 1925). Os dois se apresentaram, além de Buenos Aires, em várias províncias argentinas, no Chile e na cidade de Montevidéu. Em 1917, Gardel teve sua consagração com a interpretação da canção “Mi noche triste”, tango de Samuel Castriota e Pascual Contursi, considerada como um marco de uma nova fase na história do tango, a do tango canción. Em toda sua carreira, gravou 930 canções, sendo a grande maioria realizada na Argentina. Também atuou em diversos filmes, tendo iniciado sua carreira no cinema gravando dez curtas-metragens filmados em 1930 na Argentina e, posteriormente, desenvolvendo sua carreira cinematográfica internacional nos Estados Unidos, nos estúdios Paramount Pictures7. Contudo, nesses filmes gravados no exterior, também interpretava a figura argentina ou portenha que havia construído anteriormente. Tendo vivido sua vida desde a infância em Buenos Aires e iniciado e desenvolvido grande parte de sua carreira no teatro, no rádio, na indústria fonográfica e no cinema argentino, Gardel apresentou-se, em sua obra musical e cinematográfica, como ligado àquela identidade nacional.
Gardel construiu e apresentou uma versão acerca da identidade nacional argentina, articulando em suas músicas, imagem e performance, elementos portenhos, gauchos e imigrantes (KERBER, 2014). Contudo, o fato de não ter nascido na Argentina fazia com que Gardel, ao ser indagado por jornalistas, desse respostas imprecisas como: “‘Minha pátria é o tango’, costumava dizer, ou ‘Sou cidadão da avenida Corrientes’” (COLLIER, 1988, p. 91).
Apesar de a produção musical e cinematográfica de Gardel associá-lo predominantemente à Argentina, investigadores uruguaios, no decorrer do século XX, utilizando vários documentos, afirmaram que, apesar de ter vivido a maior parte de sua vida na Argentina, Gardel era uruguaio, tinha nascido na cidade de Tacuarembó no interior daquele país. Como pretendo demonstrar nesse artigo, além das disputas pela identidade nacional de Gardel terem sido travadas entre uruguaios e argentinos no decorrer do século XX, os debates recentes sobre patrimônio imaterial também foram influenciados por essas disputas e fizeram com que os governos dos dois países estabelecessem legislação e criassem instituições para tanto, entre as quais estão os dois museus sobre Gardel que serão analisados.
No final do século XX, quando a UNESCO passou a assumir a responsabilidade pela promoção do patrimônio cultural imaterial da humanidade e iniciou, a seguir, o processo de inscrição desses bens, artistas e intelectuais na Argentina e no Uruguai travaram uma disputa em termos de definir a qual dessas duas nações pertencia o tango e Gardel. Numa tentativa de resolução do conflito, foi aprovado pela UNESCO, em 2009, o tango como patrimônio cultural imaterial da Argentina e do Uruguai. Apesar de resolvido como ocorreria esse registro pela UNESCO8, do ponto de vista de artistas, intelectuais e das próprias ações dos governos nacionais e municipais a questão não pareceu estar tão resolvida. Especialmente em relação a Gardel, as ações realizadas por governos nacionais e municipais foram predominantemente na perspectiva de afirmá-lo com pertencente a uma ou a outra identidade nacional.
Ao abordar a relação do tango com o “mundo das instituições” na Argentina, Julián Barsky afirma ter havido uma primeira etapa, entre os anos de 1880 e 1930, na qual o tango e todas as suas formas de manifestação eram praticamente ignorados pelo Estado. Entre os anos de 1930 e 1983 haveria, segundo o mesmo autor, uma segunda etapa, quando o tango passou a sofrer controle principalmente quanto ao conteúdo que é veiculado, no âmbito de uma indústria cultural já bastante desenvolvida. Finalmente em uma terceira etapa, do ano 1983 até os dias de hoje, o Tango conta com ações ativas por parte do Estado, com destaque para o surgimento da consciência para a sua preservação e com legislação específica (BARSKY, 2016, p. 55-56).
Para o projeto que foi aprovado pela UNESCO em 2009, os governos de Argentina e Uruguai tiveram que se comprometer a realizar uma série de ações para a preservação e promoção do tango como patrimônio imaterial da região platina, e não especificamente de uma nação. Em relação a Gardel, os argentinos criaram o Museo Casa Carlos Gardel no local onde o artista residia no bairro do Abasto, em Buenos Aires. Os uruguaios criaram o Museo Carlos Gardel em Tacuarembó, cidade na qual o artista teria nascido9.
Além do museu dedicado ao artista, na Argentina também foi criado o Centro de Estudos Gardelianos, definido como uma associação civil, sem fins lucrativos, inscrita na Inspección General de Justicia no dia 10 de dezembro de 200210. Na página do Centro na internet está disponibilizada a sua organização administrativa, sua composição, notícias, fotos e artigos. Analisando-se essa documentação, percebe-se que o Centro é dominado pelo grupo defensor da tese de que Gardel não é uruguaio. Há artigos sobre vários temas relacionados a Gardel, mas sobre o local de nascimento, apenas textos que afirmam que ele nasceu na França ou que ele não nasceu no Uruguai. Destaca-se nesse sentido o artigo “Invalidez de la documentación uruguaya de 1920”, escrito por Juan Carlos Esteban (ESTEBAN, s/d), que explica justamente por que a documentação apresentada pelos uruguaios não confirma o nascimento de Gardel naquele país.
A figura de Gardel é de extrema importância nos dois países e possui fortes vínculos com as duas identidades nacionais. Desde 1977, os argentinos celebram o Dia Nacional do Tango, em 11 de dezembro, dia de nascimento de Carlos Gardel, e o Decreto 1.235 do Poder Executivo Nacional criou, em 1990, a Academia Nacional del Tango (pertence ao Ministério da Ciência e Tecnologia da República Argentina).
Carozzi (2003), a partir de investigação etnológica que contava com observação das práticas realizadas em relação a Gardel em lugares como seu túmulo, analisou a importância desse artista para argentinos e, em especial, portenhos, naquele momento de comemoração dos 68 anos de seu falecimento. A autora afirma que Gardel goza de certa sacralidade, que na linguagem cotidiana “ser Gardel” significa ser excelente, que é um dos defuntos mais famosos (e milagrosos) para os visitantes do cemitério da Chacarita, e que o governo da cidade de Buenos Aires passou a promover o bairro do Abasto desde 1998, quando o tango passou a ser considerado patrimônio imaterial daquela cidade, como o lugar onde viveu Gardel.
A Lei argentina nº 23.980 de 1991 foi uma das primeiras que surgiu especificamente voltada para o tema do tango, criando a Instituto Nacional del Tango, que ficaria sob a responsabilidade da então Subsecretaría de Cultura de La Nación e deveria se ocupar de diversas atividades para a valorização do gênero. O texto dessa lei apresenta como objetivos a promoção do tango no país e no exterior e a realização de atividades culturais voltadas para sua divulgação, como a organização de um museu próprio sobre o tema e o incentivo de pesquisas específicas sobre o assunto. A mesma lei também estabelece a criação do prêmio Carlos Gardel, de caráter anual, atribuído a artistas que se destacassem na prática do tango.
Embora essa lei tenha criado uma instituição, o tango não havia ainda sido classificado como patrimônio, ato que ocorreu com a aprovação da Lei Nacional nº 24.684 de 1996, que atribui ao tango o status de “parte integrante del patrimonio de la Nación”. Para esse reconhecimento, foram consideradas diversas formas nas quais o tango se manifesta, tais como a música, as letras, a dança e as representações plásticas alusivas. A lei determina que é de interesse nacional as diversas atividades que venham a promover o tango na Argentina, através de estímulos fiscais, e no exterior, com a previsão de facilidades alfandegárias para transporte de equipamentos específicos para a prática dessa expressão cultural em outros países.
As ações realizadas por argentinos e uruguaios para a promoção do tango e de Gardel como elementos identitários são anteriores às discussões sobre patrimônio imaterial e pode-se afirmar que essas últimas acabaram dando uma continuidade e reforçando disputas travadas anteriormente pelo pertencimento do artista.
O Museo Casa Carlos Gardel
A criação do Museo Casa Carlos Gardel, fundado em 4 de março de 2003, já se insere nesse contexto em que a noção de patrimônio imaterial é central. No mesmo ano da inauguração, o governo da cidade de Buenos Aires publicou um livro sobre esse museu (MUSEOS DE BUENOS AIRES, 2003), cujo prólogo é escrito pelo próprio chefe do governo da Cidade de Buenos Aires Aníbal Ibarra11. É interessante perceber que Ibarra, advogado e político, não é um especialista em Gardel, nem em tango, mas se propõe a escrever sobre a importância de Gardel. Isso pode ser interpretado como mais uma demonstração da própria importância de Gardel para Buenos Aires. O chefe de governo pode não ser especializado no tema, mas deve saber sobre os elementos da cultura importantes para a cidade.
No mesmo livro, há uma nota, escrita por Jorge Telerman, secretário de Cultura da cidade de Buenos Aires; um texto intitulado “Un homenaje legítimo y necessário”, escrito por Silvia Fajre, subsecretária do patrimônio cultural da cidade de Buenos Aires; um “Prólogo del editor”, escrito por Mónica Guariglio, diretora geral de museus da cidade de Buenos Aires; e um texto intitulado “La restauración del Museo Casa Carlos Gardel”, escrito pelo arquiteto Martín Luis Italiano. Todos esses textos têm em comum um objetivo de convencer o leitor de que a importância de Gardel para Buenos Aires é tanta que se faz necessário que o poder público realize investimentos como esses (do Museu e do livro) para a preservação e promoção da memória sobre esse artista.
A seguir, o livro traz uma sequência de artigos e imagens de Gardel. O primeiro artigo, escrito por Guadalupe Aballe, apresentada como docente, investigadora e estudiosa da infância de Gardel, traz a versão sobre ele ter nascido na França (e não no Uruguai). Como ela, os demais autores convidados para essa publicação são todos defensores dessa versão de um Gardel nascido na França.
Além do livro, também foi criada uma página do museu de Buenos Aires na internet. Nos objetivos da instituição apresentados nessa página, é reforçada novamente a ligação entre Gardel e Buenos Aires. Em relação à preservação e difusão do patrimônio, afirma que o objetivo é:
Reunir um notável acervo de diversos objetos que pertenceram a Carlos Gardel e Berthe Gardes, que fizeram parte da casa Jean Jaurès e que podem contribuir para a reconstrução histórica da época e dos costumes de vida do cantor e de sua mãe. Organizar o material bibliográfico que trate da temática de Carlos Gardel, do tango desde as origens até os dias atuais, da vida artística de Buenos Aires e do resto do país e do mundo na época do intérprete para colocá-lo a serviço tanto do novo leitor quanto do pesquisador. Organizar uma coleção de mídia com o acervo completo da discografia de Garlos Gardel, nas diversas edições. Reunir os documentários que possam ter tratado o tema de Carlos Gardel, de sua época, de suas performances, para integrá-lo à série de produções filmográficas. Dispor todo o material existente em um cadastro que possa ser consultado pessoalmente e pela internet. 12
Dessa forma, a instituição já se apresenta na perspectiva de promover a associação entre Gardel, Buenos Aires e Argentina.
O acervo do museu conta com discos e filmes de Gardel, objetos que pertenceram ao artista e uma biblioteca composta basicamente por obras sobre ele e sobre o tango na Argentina. Há uma exposição permanente em algumas das salas do museu. Na sala Hamlet Pelusso, estão expostos móveis, objetos e fotos associadas a momentos da vida de Gardel na Argentina. Na sala “Carlos Gardel suena en la radio”, que era anteriormente o aposento no qual estava o escritório, a exposição de fotografias e trechos de jornais demonstra a atuação de Gardel em emissoras de rádio de Buenos Aires.
O livro lançado sobre o Museo possui artigos de diversos autores que abordam diversas facetas de Gardel: o encontro de Gardel com o tango, os compositores das suas canções, seus filmes, seu estilo, sua paixão pelo turfe, suas trajetórias em Paris e Nova Iorque etc. De diversas formas, são estabelecidas relações de vínculo de Gardel com Buenos Aires ou como representante da Argentina no exterior. Alguns dos textos dedicam-se mais especificamente a isso. Em “Gardel Buenos Aires”, de Eduardo Vázquez, é abordada justamente a identificação entre Gardel e a capital argentina. Isso, segundo o autor, teria continuado a se desenvolver após seu falecimento:
A identificação do portenho com sua figura tornou-se mais abstrata com o passar do tempo [...]. Gardel foi para muitos a síntese do que é geralmente considerado portenho típico pelo amor ao bairro, à mãe, à noiva que tudo perdoa, por acreditar que não existe país como o nosso, etc. (MUSEOS DE BUENOS AIRES, 2003, p. 141).13
Nesse sentido, percebe-se que as ativações patrimoniais realizadas no Museo Casa Carlos Gardel foram predominantemente direcionadas para afirmar Gardel como associado à cidade de Buenos Aires e àquela nação, mesmo que admitindo que o artista tenha nascido em outro país. Ele seria, nessa versão, um imigrante que se tornou extremamente portenho e argentino, como tantos outros imigrantes que chegaram à Argentina na mesma época e que, justamente nesse período do início da carreira do cantor, passaram a ter direito a voto com a Lei Saenz Peña, de 1912. A relação do maior cantor de tango de todos os tempos com a identidade nacional argentina se daria não pelo dado do local de seu nascimento, mas por toda uma trajetória de vida desde a infância bem como pela recorrente representação em sua obra do vínculo com aquela cultura e nação.
O Museo Carlos Gardel
Na outra margem do rio da Prata, uruguaios se mobilizaram para afirmar Gardel como associado à sua identidade nacional. Em 2003, por iniciativa do governo uruguaio, a UNESCO incorporou a voz de Gardel no Programa Memória do Mundo. Especificamente, tratou-se da conservação de 800 discos originais gravados por Gardel que pertencem ao colecionador uruguaio Horacio Loriente. Também no Uruguai, em 2005, houve criação da Federação Uruguaia de Tango.
Em 2012, um conjunto de autores publicou um livro intitulado Gardel es uruguaio (POSADA, 2012). Essa publicação parece ser uma resposta à publicação de 2003 sobre o Museo Casa Carlos Gardel. Nela, todos os autores, a partir de distintas perspectivas e utilizando diversa documentação, afirmam a nacionalidade uruguaia de Gardel. A elaboração dessa obra certamente é influenciada pelas disputas nacionalistas motivadas pelas ativações patrimoniais sobre o tango.
Carlos Arezo Posada (coordenador do projeto-livro Gardel es uruguayo) dividiu a temática gardeliana em cinco etapas: a) Ponte do ouvido (primeiros estudos sobre a temática, com ênfase no trabalho de Erasmo Silva Cabrera, de 1967); b) Resgate da memória (estudos em periódicos, entrevistas, documentos oficiais); c) A volta de tuerca (a revalorização do trabalho de Cabrera, com novas visões, sobretudo sociológicas); d) A criação do movimento nacional (a militância sistemática a partir de 1995, reivindicando a nacionalidade de Gardel); e e) A consolidação e internacionalização da tese uruguaia (seus meios de comunicação e difusão). Seu suporte argumentativo repousa sobre uma extensa pesquisa documental, que coloca o sujeito Carlos Gardel dentro de determinado tempo e espaço (a cidade de Tacuarembó a partir de fins do século XIX, com toda a sua efervescência cultural e artística de influências europeias).
A reivindicação da nacionalidade uruguaia gira em torno da declaração de nascimento em Tacuarembó (entre os autores dos capítulos do livro, Juan Moreno Gómez apresentou a cédula de estrangeiro de Gardel para ingressar na Venezuela e Jorge Hegedus destacou o fato de que, após o artista ter sido liberado do hospital em um incidente armado em 1915, ele se dirigiu primeiramente a Tacuarembó), do seu reconhecimento jurídico, de reportagens em que o próprio Gardel reconhece ter nascido em Tacuarembó, além de crônicas com referências à sua nacionalidade. Contudo, Posada não nega que a Argentina foi, de fato, a pátria artística de Gardel (que ganhou sua cidadania em 1923), mesmo que este tenha circulado por vezes no Uruguai, de 1915 a 1935.
A documentação utilizada por Posada e por outros autores do livro para comprovar a nacionalidade uruguaia de Gardel (boa parte dessa documentação encontra-se no Museo Carlos Gardel, em Tacuarembó) é composta pelos seguintes documentos: a) Registro de nacionalidade uruguaia do Consulado Uruguaio em Buenos Aires, ficha de 8 de outubro de 1920; b) Cédula de identidade nº 383.017 expedida em Buenos Aires em 4 de novembro de 1920 (consta seu nascimento em Tacuarembó em 11 de dezembro de 1887); c) Certificado de Boa Conduta nº 218.125, ficha de 15 de fevereiro de 1923 (emitida pela polícia federal após o golpe de estado de José Félix Benito Uriburu); d) Carta de cidadania argentina de 7 de março de 1923; e) Livro de inscrição de 9 de maio de 1923, nº 1.717, Selo Militar (consta seu nascimento em Tacuarembó em 11 de dezembro de 1887); f) Ficha Eleitoral, nº 236.001 (consta seu nascimento em Tacuarembó em 11 de dezembro de 1887); g) Passaporte e novo Certificado de Boa Conduta de 11 de outubro de 1927 (consta seu nascimento em R. O. de Uruguai em 11 de dezembro de 1887); h) Passaporte e Certificado de Boa Conduta renovados; i) Autorização para trabalhar em Paris, de 16 de março de 1931, outorgada em Paris (consta seu nascimento em Tacuarembó em 11 de dezembro de 1887); j) Passaporte expedido na Oficina Consular Argentina, na cidade de Niza, França, em 31 de dezembro de 1932; k) Escritura pública outorgada em Montevidéu, em 30 de outubro de 1933, aquisição de três terrenos em Playa La Mulata (consta seu nascimento em Tacuarembó em 11 de dezembro de 1887); l) Renovação do passaporte nº 02421, em Buenos Aires, em 2 de novembro de 1933; m) Cédula de Registro de Estrangeiros para os Estados Unidos da Venezuela, de 20 de abril de 1935 (consta seu nascimento em Tacuarembó em 11 de dezembro de 1887). Os autores do livro também se utilizam de várias entrevistas e reportagens publicadas na imprensa14. Alguns desses documentos foram reproduzidos em tamanho aumentado e expostos no Museo Carlos Gardel de Tacuarembó.
Nas comemorações do setuagésimo aniversário da morte de Gardel, o governo de Tacuarembó convidou o arquiteto (pioneiro na investigação gardeliana) Nelson Boyardo, para falar sobre o artista, exaltado como símbolo da identidade nacional uruguaia. No livro, Boyardo (2012) fez questão de discutir a sua obscura origem e o debate em torno disto. No mesmo livro, Martina Iñiguez refuta a tese de que Gardel teria nascido em Toulouse, na França, e que, na verdade, ele era filho de Carlos Escayola com María Leila Oliva, cunhada de Escayola (motivo pelo qual Gardel não poderia ter sido registrado no livro de registros civis de Tacuarembó) (IÑIGUEZ , 2012). Segundo a autora, a origem francesa não passaria de uma manobra de Armando Defino (produtor de Gardel) para que Maria Berthe Gardes (que cuidou de Gardel desde criança) administrasse os bens do artista após a sua morte.
Nesse sentido, a origem francesa, tomada como “história oficial”, seria uma falsa historiografia, dadas as suas inconsistências documentais, uma vez que Gardel afirma ter nascido em Tacuarembó. Não obstante, Ricardo Ostuni (2012), Nelson Sica Dell’Isola (2012) e José Monterroso Davessa (2012) observam a vinculação de Gardel com um nativismo rio-platense e a repercussão disso na sua constituição artística, sobretudo em suas primeiras gravações.
No ano seguinte ao da publicação desse livro, entre 27 e 30 de setembro de 2013, foi realizado em Montevidéu o Colóquio Internacional El Tango Ayer y Hoy, organizado pelo Centro Nacional de Documentación Musical Lauro Ayestarán, que pertence ao Ministério da Educação e Cultura do Uruguai. No ano seguinte, foi publicado o livro resultante desse evento, reunindo artigos de alguns dos principais pesquisadores sobre o tango de diversas áreas do conhecimento (antropologia, musicologia, literatura, entre outros) (AHARONIÁN, 2014). O primeiro capítulo do livro, escrito por Daniel Vidart, antropólogo catedrático de antropologia da Universidad de la República, trata justamente de Gardel.
Vidart faz um resumo da bibliografia que tratou da nacionalidade de Gardel:
Hoje sabemos tudo ou quase tudo que pode ser conhecido sobre um homem cujos cronistas contemporâneos restauraram uma biografia vulgar, embora controversa. Restam apenas dúvidas sobre o local de seu nascimento. O jornalista compatriota Erasmo Silva quis provar, por meio de fotocópias de modestos papéis desbotados de livro acadêmico (e às vezes surpreendente), que Gardel, uruguaio de nascimento, era filho natural de um pecuarista de Tacuarembó [...] Depois dele, com uma argumentação mais apurada e abundante, seguida por Nelson Bayardo e Eduardo Payssé González, cujos estudos têm reforçado, é claro, entre um núcleo de etnocentristas incondicionais, a hipótese do Gardel uruguaio. [...] Por sua vez, e também brandindo ‘provas irrefutáveis’, certos argentinos, ao mesmo tempo chauvinistas e mal informados, afirmam o portenhismo absoluto de ‘Morocho del Abasto’. Por fim, há quem afirme como endosso de esquivos registros paroquiais que o tordo Crioulo era uma ave de outro ninho, ou seja, um rouxinol francês de Toulouse [...] (VIDART, 2014. p. 17-18).15
Vidart, tal qual o autor desse artigo, afirma não se interessar pelo verdadeiro local de nascimento de Gardel, mas pela importância dessa questão entre uruguaios e argentinos por sua associação com essas identidades nacionais. Esse livro de 2014 é composto de diversos estudos acadêmicos sobre o tango no Uruguai. Contudo, não há um objetivo específico de comprovar a nacionalidade uruguaia de Gardel, como no livro de 2012.
O Museo Carlos Gardel parece possuir o mesmo objetivo do livro Gardel es uruguayo. O museu foi criado por decreto da Junta Departamental de Tacuarembó em 1985. Contudo, os esforços para sua constituição foram verificados especialmente na primeira década do século XX, tendo sido inaugurado apenas no dia 11 de dezembro (dia do aniversário de Gardel) do ano de 2009.
O museu não está localizado na casa na qual teria vivido Gardel (diferentemente do Museo Casa Carlos Gardel, em Buenos Aires, construído justamente na casa que foi sua residência naquela cidade, no bairro do Abasto), mas no prédio no qual esteve situada a primeira emissora de rádio de Tacuarembó. Ele expõe de forma permanente documentos que comprovariam a nacionalidade uruguaia de Gardel. A versão sobre a nacionalidade de Gardel apresentada pelo Museo afirma que ele era filho de um rico fazendeiro de Tacuarembó chamado Carlos Escayola em uma relação adúltera com sua cunhada menor de idade chamada María Lelia. Teria sido por esse “escândalo” que a gravidez foi mantida em sigilo e, após o nascimento, o filho foi entregue a uma criada de origem francesa chamada Maria Berthe Gardes, que o adotou e migrou para a Argentina.
A documentação exposta nesse museu é composta por cópias de documentos oficiais e matérias publicadas em jornais, algumas das quais reproduzem falas de Gardel em entrevistas nas quais ele afirma ser uruguaio. Os críticos a essa documentação oficial como prova da nacionalidade uruguaia de Gardel afirmam que eles podem ter sido emitidos para evitar problemas legais como o serviço militar obrigatório na Argentina, por exemplo.
De qualquer forma, o governo uruguaio parece corroborar essa versão de Gardel nascido em Tacuarembó. Em site do governo uruguaio voltado para o turismo16, por exemplo, afirma-se que “Documento clave revela que Carlos Gardel nació en Tacuarembó”:
Sua existência era conhecida, mas permaneceu oculta por mais de 75 anos e até agora seu fac-símile nunca foi publicado. É um documento que apoia a teoria do Gardel uruguaio, e que a pesquisadora argentina Martina Íñiguez levará ao Museu Gardel em Tacuarembó.
Talvez sirva para resolver a longa polêmica sobre a nacionalidade de Gardel, a verdade é que a carteira de identidade legal argentina que Carlos Gardel tramitou em 4 de novembro de 1920, um mês depois de ter solicitado o Registro de Nacionalidade do Uruguai, e onde aparece como nascido em 11 de dezembro de 1887 em Tacuarembó, Uruguai, como explicou a pesquisadora Martina Íñiguez ao jornal El País.
O documento faz parte do acervo de mais de 40 mil peças que a Fundação das Indústrias Culturais da Argentina (FICA) mantém sobre o tango. Uma cópia será levada ao Museu Gardel em Tacuarembó para a sua exposição.
Para Íñiguez, este documento é importante “porque a Argentina, tendo-o concedido, reconhece implicitamente a validade jurídica do Registro de Nacionalidade, embora aqueles que sustentam que ele era francês tentem qualificá-lo como um simples salvo-conduto.
Essa foi uma declaração voluntária na qual afirma que seus pais eram Maria e Carlos Gardes e foi feita antes de ele se tornar nacional argentino, mas esse número de documento é o que o acompanhará ao longo de sua carreira artística, seu fac-símile nunca foi publicado antes e ficou escondido por mais de 75 anos”, disse Íñiguez sobre a declaração assinada com sua própria letra na qual se autodenomina um “uruguaio” e também um “artista”. 17
Sendo uma exposição um discurso construído em relação a determinado (s) assunto (s) com o objetivo de atribuir significado a ele (s), pode-se concluir que a exposição permanente do Museo Carlos Gardel tem basicamente esse objetivo, o de convencer sobre a nacionalidade uruguaia do artista, o de torná-lo patrimônio cultural dessa nação associando-o a essa identidade nacional.
O museu de Buenos Aires, como se poderia imaginar, possui um acervo maior e mais complexo em termos de objetos que pertenceram a Gardel, já que se trata justamente do lugar no qual ele residiu. Não possuindo um acervo assim, o museu de Tacuarembó utiliza-se de documentos que comprovariam o nascimento de Gardel naquela cidade como uma forma de reivindicar para a cidade e para a nação uruguaia parte do significado desse patrimônio.
Considerações finais
Após o tango ter se tornado fenômeno de sucesso na Europa no início do século XX, essa manifestação cultural passou a ser mais aceita e valorizada pelas elites e segmentos médios argentinos e uruguaios e passou inclusive a ser motivo de orgulho e apresentada como representativa dessas identidades nacionais. O cantor máximo do tango, Carlos Gardel, foi especificamente ainda mais disputado entre esses dois nacionalismos.
A Argentina, em 1938, e o Uruguai, em 1971, criaram instituições para proteção do patrimônio que focalizaram especificamente o material18. O tango, contudo, apesar de sua grande importância em ambos os países, esteve à margem da legislação e das práticas de proteção como patrimônio realizadas por esses governos praticamente até a última década do século XX. As discussões sobre patrimônio imaterial possibilitaram com que o tango ocupasse lugar nesse campo do patrimônio, sendo criadas instituições, legislação e práticas de preservação para ele em ambos os países.
Em relação a Gardel, essa institucionalização manifestou-se, entre outras formas, por meio da criação dos dois museus analisados neste artigo. Verificou-se que as disputas pela identidade nacional de Gardel travadas entre uruguaios e argentinos no decorrer do século XX continuaram no XXI e encontraram, no campo do patrimônio, um novo espaço. As ativações patrimoniais realizadas nos dois países em relação a Gardel buscaram e reutilizaram discursos construídos desde a época da trajetória do cantor acerca de sua nacionalidade, dando continuidade e reforçando disputas travadas anteriormente.
Em níveis diferentes, as fontes utilizadas nesta pesquisa apresentam indícios da presença dos nacionalismos nessas ativações patrimoniais. Contudo, as fontes nas quais se expressam mais intensamente esses nacionalismos são as produzidas por grupos de estudiosos e interessados no tango e em Gardel que não realizaram essa produção patrocinadas por universidades e pelos governos nacionais, entre as quais destaquei, na Argentina, o Centro de Estudos Gardelianos e, no Uruguai, o grupo de autores que publicou na coletânea Gardel es uruguayo. Em relação aos museus, percebe-se o nacionalismo influenciando mais fortemente as exposições e outras práticas realizadas pelo museu uruguaio do que o do argentino, apesar desse último também realizar usos nacionalistas do cantor, como tentei demonstrar neste artigo. Essas ativações patrimoniais em ambos os países, mobilizadas por interesses propriamente de valorização das identidades nacionais e também por interesses econômicos relacionados ao turismo, em certa medida ocultam as complexidades do tango e da própria figura de Gardel na atualidade. O tango e o cantor são certamente patrimônio argentino, uruguaio e de várias outras nações nas quais fizeram sucesso, produziram públicos e praticantes e constituíram diversos significados.