Acessibilidade / Reportar erro

Traduzir de ouvido, traduzir para ouvir. O Fausto português de António Feliciano de Castilho

Translate by ear, translate to hear. The Portuguese Faust by António Feliciano de Castilho

Traducir de oído, traducir para escuchar. El Fausto portugués de António Feliciano de Castilho

RESUMO:

No século XIX, a cegueira como marca original dos primórdios da poesia foi louvada ou vituperada, segundo o grau de adesão dos representantes da modernidade literária à sacralidade que até então caracterizava o poeta cego. Este foi o caso da tradução do Fausto de Goethe pelo escritor português António Feliciano de Castilho, em 1872, que deu início à polêmica conhecida como a Questão do Fausto. A contenda produziu uma memória em que estão inscritas as marcas de oralidade que condicionaram a confecção da tradução, considerada, neste texto, a partir de perspectivas que permitem evidenciar o valor do oral na ordem do discurso.

Palavras-chave:
oralidade; tradução; literatura; Fausto; poeta cego

ABSTRACT:

In the 19th century, as the original mark of the beginnings of poetry, blindness was praised or vituperated, depending on the degree of adherence to the sacred character of the blind poet by those who represented literary modernity. This was the case of the translation of Goethe’s Faust by the Portuguese writer António Feliciano de Castilho, in 1872, which started the controversy known as the Question of Faust. The dispute produced a memory in which are inscribed the marks of orality that conditioned the making of the translation, considered in this text from perspectives that allow to evidence the value of oral in the order of discourse.

Keywords:
orality; translation; literature; Faust; blind poet

RESUMEN:

En el siglo XIX, la ceguera como marca original de los inicios de la poesía fue elogiada o vituperada, de acuerdo con el grado de adhesión de los representantes de la modernidad literaria a la sacralidad que hasta ese momento caracterizaba el poeta ciego. Este fue el caso de la traducción de Fausto de Goethe por el escritor portugués António Feliciano de Castilho, en 1872, que dio inicio a la polémica conocida como la Cuestión de Fausto. La disputa produjo una memoria en la que están inscritas las marcas de la oralidad que condicionaron la confección de la traducción, considerada, en este texto, a partir de perspectivas que permitan demostrar el valor de lo oral en el orden del discurso.

Palabras clave:
oralidad; traducción; literatura; Fausto; poeta ciego

A realidade material dos discursos escritos tende a ocupar quase exclusivamente a ordem do discurso. Isso porque ela exibe os próprios princípios de classificação, de ordenação e de distribuição que os qualificam como ordem, relacionando-se muito mais estreitamente com o caráter de composição gráfica, exigido na própria existência física do escrito, do que com a qualidade de acontecimento do oral. A oposição sempre foi clara entre a lei da escrita e a vitalidade efêmera da palavra oral.

A obviedade desses pressupostos certamente recalcou as tentativas de aproximação da oralidade em discursos escritos, à exceção da obra monumental de Paul Zumthor. Trazendo à tona a pergunta fundamental sobre o caráter específico de uma “poeticidade oral”, no período medieval, ela permitiu contornar o preconceito que fazia da escrita, historicamente, a forma hegemônica da linguagem, sustentando a veia monumentalizante das formas escritas em que se fundavam a crítica e a filologia românticas, estendida até o século XX (­ZUMTHOR, 1983ZUMTHOR, Paul. Introduction à la poésie orale. Paris: Seuil, 1983. Tradução brasileira: Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009.; ZUMTHOR, 1987ZUMTHOR, Paul. La lettre et la voix. De la “littérature” médiévale. Paris: Éditions du Seuil, 1987. Tradução brasileira: A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 17).

Por um lado, em “índices de oralidade” depositados no escrito, e, a seguir, em dispositivos materiais, passou-se a buscar as marcas que permitiam incluir a performance oral, em particular a leitura em voz alta, ou, em sentido inverso, a transcrição da palavra oral no texto. Por outro lado, foi possível dar conta também das modalidades orais de transmissão do escrito, a partir de representações de práticas letradas que implicam a oralidade - a recitação, o canto, a pregação, a leitura em voz alta etc. -, em que o trânsito vocal é a condição de “realização” ou de socialização dos textos (ZUMTHOR, 1987ZUMTHOR, Paul. La lettre et la voix. De la “littérature” médiévale. Paris: Éditions du Seuil, 1987. Tradução brasileira: A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 21).

No regime de discursos retoricamente ordenados da época moderna, importava justamente a força sonora (e visual) das matérias lidas, vistas e ouvidas. O auctor de discursos devia investir-se do engenho necessário à invenção, à disposição e à elocução argumentativas, como também da memória na partilha dos lugares comuns mobilizados, prevendo, ainda, na representação, a inclusão do corpo e da voz do orador. A seguir, no século XVIII, sob o regime de discursos que se convencionou chamar “literário”, a naturalidade patrimonial dos modelos “escriturários” e dos objetos letrados instala-se, na base da definição de “literatura”. Os termos realistas e expressivos em que se faz a representação do real, como reflexo do social e expressão da psicologia autoral, instituem-se, a partir de então, no interior de sistemas críticos que só permitirão abstrair o caráter de acontecimento do oral, tornando por vezes invisíveis suas manifestações aos olhos dos leitores do presente.

Observada de um ponto de vista histórico e macroantropológico, a emergência de sociedades escritoras (e leitoras) equivaleu, na época moderna, a um crescente “controle escrito total” sobre o “mundo oral-aural”, a linguagem passando a pertencer essencialmente ao mundo da escrita, segundo Walter Ong. A “modernidade” não deixou de exibir os sinais dessa inaudibilidade que aos poucos se impôs, quando a escrita passou a constituir um modo de produção, de transformação e de estocagem da língua, multiplicando, em diversas modalidades de circulação e de uso, gestos e ações promotores do escrito e excludentes da oralidade (ONG, 2000ONG, Walter. The Presence of the Word. New York: Global Publications, 2000.; DE CERTEAU, 1990DE CERTEAU, Michel. L’invention du quotidien. Tome 1. Arts de faire. Paris: Gallimard, 1990. Tradução brasileira: A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994., p. 195-223).

Nesse mundo sem vozes, a figura do cego, todo ouvidos, preencheu os lugares-comuns da invenção dos discursos, da filosofia à teoria do conhecimento e à literatura.

Para William R. Paulson, a partir do século XVIII, é possível discernir três modalidades de representação discursiva dos cegos: o filosófico, o sentimental e o visionário.1 1 As conclusões de Paulson apoiam-se nos discursos do Iluminismo francês (PAULSON, 1987, p. 199-200).

No Século das Luzes, sabe-se, o cego se tornou objeto da filosofia especulativa. Na sua ausência de percepção visual, ele forneceu a figura central para o exame experimental sobre a origem das ideias, que, a partir de John Locke, em Essay Concerning Humane Understanding, de 1690LOCKE, John. An Essay Concerning Humane Understanding. Londres: Eliz. Holt for Thomas Basset, 1690., deixam de ser tidas por inatas para serem calcadas na experiência sensorial. O famoso “problema de Molyneux” - proposto a Locke por seu amigo William Molyneux, autor de um tratado de dióptrica - promoveu muitas discussões filosóficas subsequentes em torno do problema das faculdades mentais e perceptivas dos cegos, logo assim que recobrassem a visão: seria possível distinguirem a forma de um cubo ou de uma esfera que conheciam apenas pelo toque?

Frente à centralidade conceitual dada à visão entre os outros sentidos e à concepção da linguagem como sistema formal que relaciona as sensações e os conceitos, o cego não tardaria a ser caracterizado pela sua falta de referencial linguístico. Na Lettre aux aveugles [Carta aos cegos] de Diderot, publicada em 1749DIDEROT. Lettre sur les aveugles à l’usage de ceux qui voyent. Londres: [s.n.], 1749., um homem cego - “o cego de Puiseaux” - responde ao problema, tornando evidentes as propriedades autorreferenciais e contextuais da linguagem de que lança mão para nomear as coisas que não vê (PAULSON, 1987PAULSON, W. R. Enlightment, Romanticism, and the Blind in France. Princeton: Princeton University Press, 1987., p. 10-13; CHOTTIN, 2009CHOTTIN, Marion (org.). L’aveugle et le philosophe. Paris: Publications de la Sorbonne, 2009., p. 7-13).

A representação sentimental é inevitavelmente derivada da figura do cego suposto nesses discursos filosóficos, sendo também produto do interesse “moderno” pela experiência daqueles que veem pela primeira vez. O investimento imaginativo deixava então de se voltar para os processos psicológicos da experiência da cegueira para recair sobre questionamentos de ordem moral e emocional. Idealizada no século XVIII, a cura do cego que alimenta a ficção fornece uma imagem de superação, com o triunfo de um primeiro estado de simplicidade inocente sobre uma injustiça da natureza, pela via da ciência.

A terceira modalidade, visionária e romântica, é resultante do valor deliberadamente atribuído, a partir do final do século XVIII, à tradição que exalta a dimensão simbólica da cegueira. Sem deixar de ser tributária dos postulados extraídos dos tratados sobre a percepção, a figura do cego incarna agora, por excelência, a ideia de que a ausência da visão pode ser contrabalançada por faculdades compensatórias. O topos do poeta cego vem então sustentar o argumento das origens da literatura, sumariamente expresso por Madame de Staël: “Existem, ao que me parece, duas literaturas bem distintas, aquela da qual Homero é a primeira fonte, aquela da qual Ossian é a origem”2 2 No original: “Il existe, il me semble, deux littératures tout-à-fait distinctes, celle dont Homère est la première source, celle dont Ossian est l’origine” (apud PAULSON, 1987, p. 121). . Sempre relacionado ao problema das origens, o bardo antigo torna-se, privilegiadamente, um modelo social para o escritor moderno. A representação literária da cegueira, na França, por exemplo, de Chateaubriand a Victor Hugo, abandona as pretensões psicológicas ou epistemológicas de compreensão da percepção para se concentrar na capacidade de criação poética.

É assim que, no século XIX, a cegueira como marca original da poesia deverá ser louvada ou vituperada, apreciada ou ridicularizada, dependendo da adesão ou do descrédito dos escritores, representantes da modernidade literária, ao caráter sacralizado do poeta cego.

A voz e a pena

O escritor português António Feliciano de Castilho ficou cego por volta dos 7 anos de idade, vítima de sarampo. Por mais que já soubesse ler e escrever a essa altura, para o resto da vida passou a ouvir o que desejasse ler e a ditar o que desejasse escrever. Esta foi a forma, a única possível, pela qual se deu a sua sólida formação - a começar pelos estudos de latim, de retórica e de filosofia racional e moral - e a confecção de uma extensíssima obra literária, particularmente voltada para a poesia.3 3 Ele também ficou muito conhecido por seu Método Castilho para o ensino rapido e aprasivel do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever, de 1846, contra o qual se levantaram muitas críticas. As obras de António Feliciano de Castilho citadas ao longo do texto encontram-se todas nas Referências finais.

Acompanhou-se sempre de Augusto Frederico de Castilho, seu irmão e ledor, chegando a ingressar com ele, aos 17 anos, na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra. Como estudante cego, usufruiu benesses régias e pôde assim participar de récitas públicas, de sociedades literárias e se entregar a uma intensa produção poética, de forte teor romântico, ditada ao irmão.4 4 Seu filho, Júlio de Castilho, em suas Memórias, exalta os talentos de latinista do pai, quando ainda era estudante: “Correram, como era de prever, rapidissimos os progressos do alumno, que só pelos ouvidos, e com os milagres da attenção e da perseverança, absorvia as doutrinas do mestre. [...] era muito para notar, e para admirar dos que de proposito iam á aula ouvir o estudantinho cego, a maneira como traduzia expedito e em bellissima linguagem (phrase textual do professor nos seus curiosos attestados)” (CASTILHO, 1881, p. 119).

Desde muito cedo, António Feliciano de Castilho já encarnava a excelência do engenho do poeta cego: em 1816, publicara umEpicédio na morte da augustíssima senhora D. Maria I, rainha fidelíssima; dois anos depois, surgiu mais um pequeno poema consagrado Á faustissima acclamação de S. M. o S. D. João VI ao throno. A sua “aura” logo correu, nos termos das memórias de seu filho: “a fama segredou talvez o nome do moço poeta no Rio de Janeiro, então metrópole portugueza; [...] quiz el-rei D. João VI animar aquelle precoce engenho, cujos versos primeiros, o epicedio, e o poema á acclamação, tinham merecido do monarcha algumas palavras de agrado” (CASTILHO, 1881CASTILHO, Júlio de. Memórias de Castilho. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1881, tomo I., tomo I, p. 162).

Além das palavras, os encômios renderam-lhe uma mercê, o “officio honroso” de escrivão chanceler e promotor na corregedoria de Coimbra. Não podendo exercê-lo, de fato, foi nomeado um serventuário, “regalia do antigo regimen”, como diria o filho. A cegueira o impediu de exercer o posto de escrivão, mas não foi obstáculo ao recebimento de grandes honrarias por sua pena de poeta, entre elas a outorga do título de Primeiro Visconde de Castilho.

Decerto, por conta do laço muito estreito estabelecido na delegação da leitura e da escrita, pela voz e pela pena de Augusto, António se instalou, entre 1826 e 1834, em São ­Mamede de Castanheira do Vouga, onde o irmão se tornou pároco. Anos depois, em 1840, seguiu mais uma vez o irmão à ilha da Madeira em busca de tratamento para a tuberculose, de que este acabou morrendo no mesmo ano.

A falta do irmão e ledor foi suprida pela presença e pela voz de Ana Carlota Xavier Vidal, sua segunda mulher, com quem se casou, ainda em 1840, e teve sete filhos, o primeiro deles, Júlio de Castilho, literato como o pai. Foi ela, portanto, que assumiu o papel de secretária do marido, ao longo de três décadas, até 1871, quando morreu. Quatro anos depois, em 1875, morreria António Feliciano de Castilho, deixando uma vastíssima obra.

Assim começa e termina o elogio fúnebre que lhe é então endereçado por Machado de Assis, no ano de sua morte:5 5 Publicado originalmente na Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, 4 de julho de 1875 (­MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 1.216).

Não, não está de luto a língua portuguesa; a poesia não chora a morte do Visconde de Castilho. O golpe foi, sem dúvida, imenso; mas a dor não pôde resistir à glória; e ao ver resvalar no túmulo o poeta egrégio, o mestre da língua, o príncipe da forma, após meio século de produção variada e rica, há um como deslumbramento que faria secar todas as lágrimas.

[...]

A língua e a poesia cobrem-lhe a campa de flores e sorriem orgulhosas do lustre que ele lhes dera. É assim que desaparecem da terra os homens imortais.

Bom gosto e bom senso literários

Imortal, nos termos de Machado de Assis e nos de tantos outros literatos, o Visconde de Castilho surge, nesses encômios, como poeta, “o mestre da língua, o príncipe da forma” portuguesas. A veia poética que o marcara desde muito cedo confirmou-se no projeto literário encampado desde os anos 1840, em prol da diferenciação do verso frente ao avanço libertário da prosa, expresso em diversos discursos preceptivos, representado, em particular, por seu Tratado de metrificação portugueza (CASTILHO, 1867CASTILHO, António Feliciano de. Tratado de metrificação portugueza para em pouco tempo e até sem mestre se aprenderem a fazer versos de todas as medidas e composições seguido de considerações sobre a declamação e poetica [...]. Porto: Em Casa de Viuva Moré Editora, 1867.).

Em 1865, uma carta de Castilho, endereçada ao editor e anexada ao livro de Pinheiro Chagas, Poema da Mocidade, inaugura uma polêmica literária. Sempre imbuído da missão salvífica do verso, o elogio ao poema converte-se na chance de criticar os jovens poetas da Escola de Coimbra: “[Este] livro veiu ajudar com o exemplo a causa da emancipação poética [...] com prejuiso de todas as outras contexturas metricas, offensa da razão, e perda grave para o bom gosto” (CASTILHO, 1865CASTILHO, António Feliciano de. Carta do Illm. e Exmo. sr. Antonio Feliciano de Castilho ao Editor. In: PINHEIRO CHAGAS. Poema da Mocidade seguido do Anjo do lar por M. Pinheiro Chagas. Lisboa: Livraria de A. M. Pereira, 1865., p. 233).

“Bom-senso e bom-gosto”: este foi precisamente o título da carta-resposta publicada por Anthero de Quental em defesa dos poetas de Coimbra. Na defesa à modernidade literária, estará a denúncia das “ridiculas chufas que entre si trocam uns tristes literatos”, que representam a má-fé de Castilho, metaforizada na sua cegueira: “Eu não sei se V. Exa. tem olhos para ver tudo isto. Cuido que não: porque a intelligencia dos habeis, dos prudentes, dos espertissimos é muitas vezes cega em lhe faltando uma cousa bem pequena, que se encontra nos simples e nos humildes - a boa-fé”6 6 Mais uma referência à cegueira encontra-se na carta-resposta de Quental, em nome da modernidade literária, no ataque ao ideal anacrônico de Castilho: “O ideal! palavra mystica; de gothica configuração; quasi impalpavel; espiritualista; impopular; [...] immensa aos olhos dos que a vêem com os olhos fechados e que nunca viram os que os trazem sempre arregalados; [...]” (QUENTAL, 1865, p. 13). (QUENTAL, 1865QUENTAL, Anthero. Bom-senso e bom-gosto. Carta ao excelentissimo senhor Antonio Feliciano de Castilho por Anthero do Quental. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1865., p. 5).

Abre-se, dessa forma, a chamada Questão Coimbrã, polêmica que define a topologia do campo literário português oitocentista e que alimentará a teleologia modernizante das histórias literárias portuguesas. Na virulência da resposta de Quental, a figura do “metrificador” opõe-se claramente à modernidade dos poetas de Coimbra, a partir do mesmo topos da cegueira: “Os grandes genios modernos são grotescos e despreziveis aos olhos baços do banal metrificador portuguez” (QUENTAL, 1865QUENTAL, Anthero. Bom-senso e bom-gosto. Carta ao excelentissimo senhor Antonio Feliciano de Castilho por Anthero do Quental. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1865., p. 12). Inverte-se, assim, na polêmica, o valor simbólico da figura do poeta cego: ela incarna, na pena de Anthero de Quental, o escritor servil, em oposição ao poeta moderno, espírito livre de todo e qualquer jugo. No dispositivo antitético das figuras descritas no seu opúsculo, os “espantos cegos” qualificam a dita servilidade:

Se o obrigassem a respeitos convencionaes, a terrores supersticiosos diante de certos homens, a espantos cegos diante de certas cousas; se o fizessem baixar a cabeça e as costas para entrar a porta do pantheon litterario; elle, o pobre, ficaria sempre curvo e submisso, humilde e sem força propria, servo de alheias idêas e apostolo apenas de palavras decoradas e vazias d’alma (QUENTAL, 1865QUENTAL, Anthero. Bom-senso e bom-gosto. Carta ao excelentissimo senhor Antonio Feliciano de Castilho por Anthero do Quental. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1865., p. 7).

O argumento da miséria e da submissão do escritor institui-se para Anthero de Quental como “escola do elogio mútuo”, denúncia propriamente dita da perpetuação do costume das trocas encomiásticas de um antigo regime letrado por escritores de um ultrarromantismo. Nesse sentido, o apoio à carta-resposta de Quental e aos escritores de Coimbra que ela representava não tardaria a se ampliar, ainda em 1865, na pena de Theophilo Braga, ao defender a verdadeira “república das letras” contra o antigo regime poético-teocrático:

Esta phrase usual de “republica das letras” significa mais do que se pensa; a intelligencia não reconhece magestades, nem hierarchias, vive da igualdade plena, e tanto, que é este o dom maravilhoso da razão, a uniformidade de processos para uma egualdade de resultados - a verdade. A Carta do sr. Anthero do Quental colloca na sua verdadeira altura o que significam estas insinuações perfidas contra a eschola de Coimbra, as atenções equivocas, e a animação clandestina aos adeptos que lhe vão na pista apodando com insolencias e banalidades todo o impulso dado para sahirmos das superfetações mesquinhas a que entre nós se chama arte. A carta versa sobre o bom senso e o bom gosto, e é pela carencia d’estes dons que se adquire o principado da lyra (BRAGA, 1865BRAGA, Theophilo. As theocracias litterarias. Relance sobre o estado actual da litteratura portuguesa. Lisboa: Typographia Universal, 1865., p. 7).

O golpe desferido por Theophilo Braga contra as “teocracias literárias” é publicado sete anos antes de se ter conhecimento da tradução do Fausto por Castilho, que levaria a república das letras portuguesa a uma segunda polêmica. E é justamente na comparação com Goethe, poeta maior, que é exercida a contundência do argumento vituperante de Braga:

Que differença entre Goëthe e o sr. Castilho? a mesma que dá um zero por denominador. Comtudo, entre nós, como se vê pelas suas obras, ou talvez por esta infancia perpetua que lhe encontram os seus admiradores, que é essencialmente imitadora, procura tambem no ultimo quartel da vida acclamar-se o arbitro supremo da litteratura, e cobrir com os retalhos da sua purpura as chagas e aleijões dos aulicos, decretando-lhes a admiração publica, e impondo-os á posteridade (BRAGA, 1865BRAGA, Theophilo. As theocracias litterarias. Relance sobre o estado actual da litteratura portuguesa. Lisboa: Typographia Universal, 1865., p. 6).

Eis desvelada a economia dos encômios e dos favores literários, que adiava a chegada de uma modernidade então anunciada em Portugal. Talvez seja de Theophilo Braga, nesse sentido, a melhor definição da dita “escola do elogio mútuo” representada, por excelência, pela figura de Castilho: “O apparecimento de um livro é uma das melhores tertulias para o sr. Castilho; apparece logo como estes homens que vão a todos os enterros” (BRAGA, 1865BRAGA, Theophilo. As theocracias litterarias. Relance sobre o estado actual da litteratura portuguesa. Lisboa: Typographia Universal, 1865., p. 6). É também na sua pena que surge uma das poucas menções explícitas à cegueira do Visconde, superados o pudor e o servilismo que impedem a exposição da “verdade crua”:

[...] uns diante dos outros não se atrevem, talvez por servilismo, a proclamar a verdade crua. O sr. Castilho assiste de dia para dia ao esphacelamento do seu caracter; índole viperina, reservado, como o rancor de cego, bifronte como o deus antigo cujos fastos ainda commemora, não tem, não tem direito a esta sagração que vae sanctificando a edade e o trabalho (BRAGA, 1865BRAGA, Theophilo. As theocracias litterarias. Relance sobre o estado actual da litteratura portuguesa. Lisboa: Typographia Universal, 1865., p. 9).

Esta pretende ser, pelo visto, a pintura verdadeira do poeta cego: exíguo, encerrado na velhice e no trabalho que o consagram injustamente. E o que seria do tradutor?

Traduzir a tradução, de ouvido

A tradução do Fausto de Goethe por António Feliciano de Castilho surge em 1872, dando início a uma segunda polêmica, a Questão do Fausto, em que se envolveram mui-tos dos literatos do século XIX português.7 7 José Gomes Monteiro abre a defesa de António Feliciano de Castilho, seguido de Germano Meireles, o Conde de Samodães, Camillo C. Branco, Pinheiro Chagas e outros. Entre os detratores estão Joaquim de Vasconcellos, Adolfo Coelho e Graça Barreto. O golpe final desferido contra Castilho, no calor da contenda, é dado, em 1873, num balanço crítico feito por seu maior detrator (e, aliás, iniciador da querela), Joaquim de Vasconcellos, que elenca as matérias publicadas sobre o Fausto português no interior da “escola do elogio-mútuo” para criticá-las em notas de tom jocoso. Ele as classifica da seguinte forma:

Entre estas criticas ha a distinguir duas especies, uma que elogia absolutamente a traducção de Castilho, e a julga em alguns pontos quasi superior ao de Goethe, e a outra que faz elogios com restricções. A primeira pertencem Camillo C. Branco, Pinheiro Chagas; á segunda Anthero de Quental e Germano de Meirelles8 8 Carlos de Castilho Pais, numa monografia dedicada à tradução do Fausto, procura demonstrar que as bases fundamentais das críticas evocadas na Questão do Fausto, a saber, a fidelidade ao texto de Goethe e a linguagem do texto traduzido, são aspectos essenciais das próprias teses defendidas numa suposta ­“teoria da tradução” de António Feliciano de Castilho. Disponível em: https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/2588/1/Ant%C3%B3nio%20Feliciano%20de%20Castilho,%20tradutor%20do%20FAUSTO.pdf. (VASCONCELLOS, 1873VASCONCELLOS, Joaquim de. O Fausto de Castilho julgado pelo Elogio-mútuo. Artigos colleccionados por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portugueza, 1873., p. VI).

Nesse livro, intitulado O Fausto de Castilho julgado pelo elogio-mútuo. Artigos colleccionados e glosados por Joaquim de Vasconcellos, a página-título que abre a primeira leva de artigos, extraídos de periódicos da época, traz a seguinte menção: “JUIZOS SOBRE A VERSÃO DO VISCONDE DE CASTILHO / Não sabe uma palavra de allemão (Confissão propria, Fausto, advertencia, passim)”. O procedimento ridicularizante segue em páginas-título sucessivas, que anunciam, nome por nome, os autores das matérias elogiosas, somando-lhes a “confissão” ou a simples evidência comprovada da incompetência linguística de cada um: “PINHEIRO CHAGAS / ‘Não sei allemão’ (DIARIO ILLUSTRADO, no 10, folhetim de 10 de julho de 1872)”; “GERMANO DE MEIRELLES / Ignora o allemão, facto publico”; “CONDE DE SAMODÃES / É duvidoso que saiba alemão” etc. (VASCONCELLOS, 1873VASCONCELLOS, Joaquim de. O Fausto de Castilho julgado pelo Elogio-mútuo. Artigos colleccionados por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portugueza, 1873., p. 25, 51 e 69).

Assim como a coimbrã, a Questão do Fausto deverá ocupar, a partir de 1872, as páginas da crítica e a da história literária portuguesas. Uma vez que as querelas letradas encenam pontos de vista opostos e permitem, com isso, organizar posições antitéticas, representar superações e fazer avançar a sucessão histórica das escolas, esses discursos histórico-críticos ulteriores, academicamente formulados, carregam legitimamente muito do teor dos argumentos de fundo da própria querela. Isso porque a querela costuma preencher uma função memorialística, como arquivamento das tópicas que organizam as concorrências, tal como pretendia Vasconcellos com a sua compilação: “Os documentos para a futura historia litteraria devem ser desde já archivados, sobretudo aquelles, que assignados pelos primeiros vultos da nossa litteratura commercial, se referem a factos de importancia - e que marcam por isso época”9 9 Sobre a produção de memória pelas controvérsias letradas, ver De Sá (2017). (VASCONCELLOS, 1873VASCONCELLOS, Joaquim de. O Fausto de Castilho julgado pelo Elogio-mútuo. Artigos colleccionados por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portugueza, 1873., p. V).

A memória proposta à posteridade pelas concorrências letradas se conserva, assim, a despeito da impotência dos seus lugares-comuns - sobretudo os vituperantes - quando recebidos a posteriori, eufemizando-se, nas sucessivas apropriações, e seguindo esvaziada do caráter próprio das disputas em que funcionavam no seu tempo, frequentemente em regime oral.10 10 Sinal disso está no próprio livro de Joaquim de Vasconcellos que abre a polêmica, ao narrar as circunstâncias de seu primeiro contato com a tradução de Castilho, “n’uma reunião dada pelo diplomata espanhol em que reunia a sociedade litteraria ali redidente, [quando] tivemos a ocasião de avaliar, em março de 1871 pela primeira vez a tradução [...]” (VASCONCELLOS, 1872, p. VIII).

E, nos textos polêmicos da Questão do Fausto, as marcas de oralidade não estão somente aí. Elas surgem também na referência à operação oral da atividade poética e tradutora de Castilho. São raras as menções, no corpus polêmico-crítico, à sua cegueira, e é muitas vezes de afronta moral, no ataque à figura universal do poeta cego, que se trata. É assim que José Gomes Monteiro entende defendê-lo, em meio aos mais gloriosos poetas cegos, atacando as invectivas de Joaquim de Vasconcellos:

Ha mais de tres mil annos que, desde Homero até Milton, e desde Milton até Castilho, a humanidade se curva reverente e compungida diante do infortunio a que se allude; infortunio sagrado que centuplica a nossa admiração por estes genios que a Providencia parece ter escolhido para mais claramente patentear a natureza espiritual e divina da alma humana. E o snr. Vasconcellos, o despresador de todas as conveniencias, degrada-se a ponto de insultar esta augusta calamidade! É baixo! é vil! é ignobil! (GOMES MONTEIRO, 1873GOMES MONTEIRO, José. Os criticos do Fausto snr. Visconde de Castilho por José Gomes Monteiro. Porto: Viuva Moré Editora, 1873., p. 58).

O ataque à “villanía do insultador da cegueira de Castilho” é estendido, no mesmo tom essencialista, por Camillo Castello Branco:

Aquella escuridão exterior que nos internece a lagrimas, e nos dobra o joelho respeitoso deante da brilhante alma que lá se está abrindo em torrentes de luz, foi, no discorrer de setenta e tres annos, duas vezes improperada como um delicto: uma vez por Theophilo Braga, outra por Joaquim de Vasconcellos; e por mais ninguem; diga molo em desafronta d’este paiz e da humanidade (VASCONCELLOS, 1873VASCONCELLOS, Joaquim de. O Fausto de Castilho julgado pelo Elogio-mútuo. Artigos colleccionados por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portugueza, 1873., p. 36).

Em todo caso, entre detratores e defensores, a consideração das condições de uma tradução literária “de ouvido” por um tradutor cego ocupa um lugar muito tímido, em meio ao fulcro do argumento conservado para a posteridade e que melhor autoriza a superação do nacionalismo ultrarromântico pela modernidade literária: Castilho ignora o alemão. No tempo da querela, mais precisamente, de um lado e de outro, afirmam-se argumentos que não se sobrepõem: para seus detratores, o da ignorância do alemão, “língua de saída”; para seus defensores, o da vocação nacionalizante da tradução em português, “língua de chegada”. Mantinham-se todos, com isso, nos limites do que então entendiam, diversamente, por “bom senso e bom gosto”.

Com efeito, em 1865, António Feliciano de Castilho já havia publicado outras traduções, especialmente do francês, que não foram postas sob suspeição como a do Fausto, por não corresponderem ao argumento acusatório da ignorância da língua.11 11 As Memórias de Júlio de Castilho vêm confirmar o apurado “ouvido francês” e a competência linguística do pai: “A essa iniciação no francez por um purista francez deveu sem duvida Antonio Feliciano de Castilho a pronuncia e entoação perfeitamente pura, com que fallava a lingua de Boileau. Quanta vez passou por um nacional, e até serviu de juiz em discussões phylologicas (porque, além da pronuncia, possuía conhecimento profundo e scientifico da grammatica e dos segredos da lingua)! Que o diga um bom numero de cartas em francez, que ficaram, assignadas pelo poeta” (CASTILHO, 1881, p. 66). As referências das traduções de Molière por Castilho encontram-se nas Referências finais. Entretanto, as ­condições particulares em que o seu Fausto foi confeccionado sustentam-se num “privilégio de ouvido” - como dito, o privilégio de poeta, no português de chegada, mais do que de tradutor, no alemão de saída.

As condições do trabalho foram expostas na “Advertência” apresentada por António Feliciano de Castilho no volume do Fausto.

Foi seu irmão, José Feliciano de Castilho, que confeccionou uma primeira camada da tradução. Dadas a “adoração pânica do nome de Goethe” e a repercussão maior de sua tragédia a ser descoberta - como “região nova da arte” - pelos portugueses, António Feliciano explica nos seguintes termos as várias etapas da empreitada:

O primeiro português que se determinou em empreender o descobrimento desta região nova da arte foi, não me consta de outro, meu irmão José Feliciano de Castilho durante a sua estada em Hamburgo, há hoje o melhor de trinta anos. Versado já, como quer que fosse, na língua alemã pelo trato com os da terra, entendeu que bom serviço faria aos da nossa, passando-lhes para vulgar o que por lá se lhe deparava de mais afamado e esplêndido, de mais convidativo e fecundo por entre as produções ubérrimas da caudalosa veia dos Germanos (CASTILHO, 1872[CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez. Porto: Viuva Moré Editora, 1872., p. 2).

Foram muitas as dificuldades do trabalho de tradução do Fausto por José Feliciano de Castilho, apesar da sua auctoritas, comprovada por “seu alemão laboriosamente granjeado” em traduções precedentes, resultando numa segunda camada de texto:

[...] não bastava para autor tão abstruso no pensamento, tão fora do comum no estilo, e tão cheio de nós górdios na linguagem; e que não havia remédio senão socorrer-se a algum valente e zeloso auxiliar. Deparou-lho a sua boa estrela na pessoa de um amigo, o Sr. Eduardo Laemmert, alemão residente como ele e já de muito no Rio de Janeiro, erudito notável, e hoje sabedor por igual das duas línguas (CASTILHO, 1872[CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez. Porto: Viuva Moré Editora, 1872., p. 2).

O efeito de presença, marca de veridicção do discurso, se acelera então na descrição vívida de António Feliciano de Castilho, posicionado frente ao texto sobre a sua mesa: “Aqui sobre a minha mesa tenho eu o autógrafo precioso da tradução interlinear e fidelíssima que o Sr. Laemmert fez”. A narrativa se completa com a menção ao traço de zelo patriótico do gesto que origina o manuscrito, composto “não só em obséquio à amizade, mas também em razão do afecto que lhe merecem os créditos da terra em que nasceu, e os da que hoje ama como segunda pátria” (CASTILHO, 1872[CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez. Porto: Viuva Moré Editora, 1872., p. 2).

A tradução de José Feliciano, ao ser revista por Eduardo Laemmert, pôde então render a “confusa ordem das [palavras] alemãs” ao costume poético português.

O como ele depois de colocar as palavras portuguesas na confusa ordem das alemãs as concerta fora do hipérbato segundo a nossa ordem usual! O como procura e acha as frases, os modismos quando os há, que melhor se correspondem com os do idioma que transplanta! A sinonímia com que os termos embaraçosos do original vêm com ilustrada crítica trocados em miúdos! E sobretudo a franqueza de verdadeiro sabedor, com que às vezes declara que não aventa o senso ou a intenção do seu poeta, senso e intenção que os mais finos alemães não dissimulam escapar-lhes a miúdo (CASTILHO, 1872[CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez. Porto: Viuva Moré Editora, 1872., p. 2-3).

Depois de fornecer, na “Advertência” as razões da eleição do Fausto - que já conhecia algumas traduções em Portugal, especialmente a de Agostinho d’Ornellas, publicada poucos anos antes, em 1867 -, o próprio António Feliciano é introduzido na narrativa, na forma, digamos, do “ouvido do tradutor”, ativo na camada textual subsequente:

A primeira leitura que meu irmão me fez do seu Fausto, com aquele fogo e intimativa que lhe anima a declamação, e que nem na prática mais correntia e doméstica o desacompanha, maravilhou-me, absorveu-me, aturdiu-me; nada mais vi que excelências e formosuras! Como porém somos conhecidos de largos anos, e sei que a qualificação de grand dupeur d’oreilles que a si mesmo dava Andrieux, em ninguém acertou nunca mais à própria que em meu irmão, requeri logo segunda leitura, feita por outrem, despida de prestígios e pausada (CASTILHO, 1872[CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez. Porto: Viuva Moré Editora, 1872., p. 4).

Grand dupeur d’oreilles”: eis assim sugerido, no talento da recitação enganosa do irmão - capaz de transformar, pela mídia da voz, os versos mais medíocres em boa lírica -, o risco de infidelidade, porém não ao texto original, e sim ao costume poético. A tarefa soa, portanto, inacabada, nesse mesmo ponto em que se concentra o risco. Mais uma vez, a resposta está no ouvido, estendido agora a todos os ouvidos portugueses, à segunda leitura da tradução: “[...] muita coisa me ocorria naquele escrito, que, sem me provocar censura nem merecer tacha de menos boa, desdizia do que eu tivera preferido por mais fluente, mais expressivo, ou por qualquer outra razão mais aceitável aos ouvidos do nosso povo” (CASTILHO, 1872[CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez. Porto: Viuva Moré Editora, 1872., p. 4).

Na descrição das etapas do trabalho, em que se avança primordialmente “ouvindo”, chega-se ao ponto-chave da “Advertência”: “comecei traduzindo a sua tradução [de José Feliciano] mais achegada e conchegadamente à índole portuguesa” (CASTILHO, 1872[CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez. Porto: Viuva Moré Editora, 1872., p. 4). Este é o argumento primordial, que legitima toda a empreitada, sustentada numa auctoritas particular, composta na “luta fraternal entre o Fausto português improvisado e o Fausto português reconsiderado e reconstruído de frase a frase e de palavra a palavra”. A advertência fecha-se no legalismo crítico, ao serem “chamados a depor” e “acariados” todos os intérpretes do Fausto em português.

Estava aberta a querela. Foi o mesmo Joaquim de Vasconcellos, autor do balanço final, o seu iniciador, com a publicação, no mesmo ano de 1872VASCONCELLOS, Joaquim de. O Faust de Goethe. Analyse critica da traducção de Castilho por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portuguesa, 1872., de O Faust de Goethe. Analyse critica da tradução de Castilho. Colocando-se acima “da hipocrisia social”, por dever de consciência em relação “a nós mesmos, ao paiz e a dignidade das letras”, Vasconcellos indica, no Prólogo de seu livro, a falta de fidelidade da tradução de Castilho ao texto alemão e o dever de pôr fim à “mentira literária”. Apela, ainda, para o “rigor de exame para todos [...] mestres e modelos rachiticos, de fórma velha, carunchosa e podres na medula e vida interior.” Autorizado pelo “amor filial” que nutria pela Alemanha, sua pátria adotiva, na defesa de Goethe, não tarda nem mesmo a se referir à cegueira de Castilho:

[...] não podíamos ver [um] gênio, em Zeus no Olympo da Poesia, coberto com os andrajos de um espírito pequeno e mesquinho, feito imperador-pontífice de toda a mediocridade. Ainda que esses andrajos não deixassem sombra [...], tentamos o seguinte paralello para mostrar a quem não vê, o que é a vista” (VASCONCELLOS, 1872VASCONCELLOS, Joaquim de. O Faust de Goethe. Analyse critica da traducção de Castilho por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portuguesa, 1872., p. IX).

Ao longo de aproximadamente 600 páginas, a análise crítica de cada uma das partes da tradução do Fausto, tal como anunciada, deverá avançar oito afirmações, a serem provadas “em absoluto”, segundo o rol de assertivas, exposto desde as primeiras páginas do livro, das quais se destaca a terceira, crivada de ironia: “Que Castilho ignora a existência dos comentadores e que entrou no Faust ás cegas, intelectualmente falando” (VASCONCELLOS, 1872VASCONCELLOS, Joaquim de. O Faust de Goethe. Analyse critica da traducção de Castilho por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portuguesa, 1872., p. XI).

O Prólogo de Vasconcellos encerra-se, significativamente, com um protesto contra a profanação da obra-prima de um gênio que veio compor, como quarto elemento, a imortal trilogia, “Homero - Dante - Shakespeare - Goethe”. Até mesmo na pena do detrator, nas origens, estava, silencioso, o poeta cego (VASCONCELLOS, 1872VASCONCELLOS, Joaquim de. O Faust de Goethe. Analyse critica da traducção de Castilho por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portuguesa, 1872., p. XII).

Duas impressionantes “Tabellas Synopticas” constam, ao final do volume, impressas numa única folha desdobrável, em que se podem ler, na primeira, “neologismos / arcaísmos / hespanholismos / galicismos / italianismos”; e na segunda, “latinismos pedantescos e logares comuns / puerilidades / termos chulos e de gíria baixa / fantasias”, todos extraídos da tradução. Acompanham os elencos algumas notas ridicularizantes, como esta: “Todos os palavrões que seguem são exclusivamente da fábrica de Castilho, que apimentou com eles o original de Goethe!”

No ano seguinte, 1873, Joaquim Antonio de Souza Teles de Matos veio socorrer o ­Visconde, acusando A imparcialidade critica do Sr. Joaquim de Vasconcellos. Apesar de reconhecer “certa falta de connexão na homogeneidade do original” do Fausto, considera a dita versão “um magnifico specimen da riqueza da lingua portuguesa” e “um mosaico sobre motivos do Fausto”. O ataque dirige-se mais diretamente à crítica feroz de Vasconcellos, na sua Analyse critica, aos neologismos e aos “ismos” imputados ao Visconde. A resposta vai na mesmíssima moeda:

[...] lembraremos só que o Sr. Vasconcellos descubrio aquelles ismos nas 128 laudas da versão do Sr. Visconde de Castilho - nós appresentaremos os seguintes que encontrámos nas 400 paginas da Analyse [...] em que achamos os seguintes Vasconcellismos, que bem pode ser pertençam á classe dos pedantes e pueris (SOUZA TELLES DE MATTOS, 1873SOUZA TELLES DE MATTOS, Joaquim Antonio de. A imparcialidade critica do Sr. Joaquim de Vasconcellos avaliada por Joaquim Antonio de Souza Telles de Mattos. Évora: Typographia do Governo Civil, 1873., p. 28).

Graça Barreto, autor de um opúsculo em 1874, A Questão do Fausto pela última vez, acusa os irmãos Castilho de tentar erigir uma “eschola litteraria”, cujos cargos, nessa república familiar, seriam o de poeta, de António, e o de crítico, de José. Parodiando Shlegel, seria possível ainda, diz, “trocarem entre si os papeis que primeiro concertaram”. O ataque à atividade crítica dos irmãos é frontal, por ela ser calcada “em parcos fundamentos dogmáticos”; e, em particular, à de António Feliciano, pois, segundo Barreto, “todas as suas críticas” aos poetas baseavam-se nas mesmas virtudes que ele próprio supunha ter: “o poeta necessita pelo menos cinco requisitos, 1º, faculdade inventiva; 2°, faculdade sensitiva; 3°, sciencia; 4°, lingua; 5°, ouvido [...]” (GRAÇA BARRETO, 1874GRAÇA BARRETO, J. A. A questão do Fausto pela ultima vez. Observações a alguns contendores e desengano aos litteratos. Porto: Imprensa Portugueza, 1874., p. 82).

A infidelidade do ouvido

A partir da segunda metade do século XVII, na França, os letrados começaram a extrair seu conhecimento dos clássicos gregos e latinos vertidos em francês. O “ouvido do público”, na expressão de Fumaroli, passa a filtrá-los não apenas no sentido do privilégio do vernáculo, mas também dos gêneros mais adequados, diferenciados do abusivo pedantismo dos Antigos. As traduções assim depuradas ganharam centralidade ao longo da controvérsia francesa das Lettres, quando a Antiguidade passou a ser “revista, corrigida e reformada para divertir a razão superior dos Modernos”.12 12 Os trechos citados neste artigo foram todos traduzidos por mim. No original: “revue, corrigée et reformée pour amuser la raison supérieure des Modernes” (FUMAROLI, 2001, p. 17). Belles infidèles: “com esse nome galante nomeiam-se então as traduções na língua da Academia onde Tucídides, Luciano, Cícero, Tácito assumem uma voz e uma feição contemporâneas para serem habilitados por um público assim disposto a sustentar o ponto de vista dos ‘Antigos’”.13 13 No original: “On appelle alors de ce nom galant des traductions dans la langue de l’Académie où Thucydide, Lucien, Cicéron, Tacite prennent une voix et un visage contemporains pour les faire agréer par un public ainsi disposé à soutenir le point de vue des ‘Anciens’” (FUMAROLI, 2001, p. 17).

No interior do que começava a ser chamado de Belas Letras, com a longa persistência do topos que opõe fidelidade e traição, a modernidade das traduções parece estar expressa tanto na exigência de deleite, quanto no abandono da obrigação de fidelidade, em nome do que se convencionou chamar a posteriori o “gosto clássico”. O que estava em jogo, com efeito, era a conformidade das traduções ao critério social distintivo da discrição honesta, a bienséance, que sobreviveu até o século XIX nas concorrências letradas que caracterizavam então a república das letras (MOUNIN, 1994MOUNIN, Georges. Les belles infidèles. Paris: Presses Universitaires de Lille, 1994., p. 65).

É assim que o parecer que José Mendes Leal publicou ao final da edição de Tartufo, traduzido por Castilho, foi até o século XVIII buscar “competentes sentenças” que o sustentassem: “Para traduzir um grande poeta só outro grande poeta!” (CASTILHO, 1870[CASTILHO, António Feliciano de]. Theatro de Molière. Primeira tentativa. Tartufo. Comedia vertida livremente e accommodada ao portuguez. Seguida de um parecer pelo Illm. e Exmo Sr. José da Silva Mendes Leal. Lisboa: por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1870., p. 216). Em Madame Dacier - que incrimina o francês do seu tempo pela impossibilidade de traduzir Homero -, o parecerista encontra também “o feliz conceito caracteristico da traducção desafogada”, reproduzido em francês no texto: “Par ses traits hardis, mais toujours vrais, elle devient non seulement la fidèle copie de son original, mais un second original même, ce qui ne peut être exécuté que par un génie solide, noble et fécond!”14 14 “Pelas suas características ousadas, mas sempre verdadeiras, torna-se não só a cópia fiel do seu original, mas um segundo original, que só pode ser realizado por um génio sólido, nobre e fecundo!” (CASTILHO, 1870, p. 218).

A exigência de fidelidade estava inevitavelmente presente também na “Advertência” do Fausto. António Feliciano de Castilho destacava a “tradução interlinear e fidelíssima” correspondente à segunda camada tradutória, a de Eduardo Laemmert, que foi a base legítima da acomodação subsequente ao “bom português”, realizada na versão última e definitiva, merecedora da glória autoral. Legitimada no gênio poético que a totaliza, essa naturalização final permite transitar na superfície das línguas, sendo ditada, por excelência, pelo ouvido: António Feliciano concebe a tradução como “fazer falar” o autor na língua do tradutor, explicitando a marca de oralidade implicada, sem abrir mão da exigência particular da “boa fala portuguesa”.

Os argumentos sobre a naturalização - tida por nacionalização - nas traduções - tidas por traslado, como no título do Fausto - de Castilho, coabitam seguramente com o topos da fidelidade. Eles surgem estritamente associados em mais um parecer emitido por Mendes Leal para a tradução de O avarento, de Molière, em que a “nacionalização feliz” equivale à “versão fiel” da peça:

Apreciado o Avarento de Molière, melhor se poderá apreciar o Avarento de Castilho. [...] Pode a modestia do poeta contentar-se com chamar-lhe versão, imitação, ou ainda nacionalisação. A critica imparcial, que para o ser tanto ha de censurar o erro como louvar o acerto, á critica sinceramente imparcial corre o dever de demonstrar o que da obra portugueza ha além de versão fiel, de imitação judiciosa, e de nacionalisação feliz (CASTILHO, 1871[CASTILHO, António Feliciano de] Theatro de Molière. Quarta tentativa. O avarento. Comedia em 5 actos. Versão libérrima. Seguida de um parecer pelo Illm. e Exmo Sr. José da Silva Mendes Leal. Lisboa: por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa , 1871., p. 418).

A discussão “moderna” em torno da tradução livre em que o tradutor ainda se estima, em algum nível, fiel ao original, guarda resíduos dos preceitos setecentistas, tal como enunciados por Madame Dacier. Isso porque tratava-se, no século XVIII, de “dar uma voz e uma feição contemporâneas” aos autores Antigos, sem com isso agravar a infidelidade da tradução. O que muda, um século depois, é que as obras de Molière ou de Goethe traduzidas por ­Castilho não se prestavam a serem “revistas, corrigidas e reformadas” em nome da contemporaneidade, embora pudesse caber ao tradutor o desejo de acomodá-las, como visto, nacionalizando-as.

Em todo caso, o voto de fidelidade de Castilho parece se endereçar ao autor, na qualidade de cânone, e não exatamente ao texto (ou à língua de saída). Do outro lado do binômio, a traição jamais poderia recair sobre o leitor (ou, menos ainda, sobre a língua de chegada, o português), sacralizado na relação.15 15 Nesse sentido, esta é a palavra final de Castilho, na “Advertência” do Fausto: “Por aqui me cerro, ponderando só que me parece questão ociosa esta de se perquirir se um tradutor sabe ou não a língua do seu original; o que importa, e muito, é se expressou bem na sua, isto é, com vernaculidade, clareza, acerto e a elegância possível, as ideias e afectos do seu autor”. “Traduzir é servir a dois senhores”, diz a máxima: ao autor, à distância, e ao leitor na proximidade. Deste pode ser até mesmo requisitada um tipo de fidelidade, na forma de uma aceitação do caráter “acomodado” do texto oferecido. Em 1870, uma “Advertência indispensável” de Castilho ao Tartufo (cujo subtítulo é Comédia vertida livremente e acomodada ao português) evocava a necessária fidelidade da tradução, mas não exatamente a do tradutor, e sim a dos leitores que deviam ser levados a crer no texto traduzido:

Tivéramos e ainda agora temos por axioma que uma comédia de todo independente de circunstâncias históricas ou pessoais peculiares da nação onde originariamente apareceu, não só é lícito, senão louvável (e quiséramos até dizer obrigatório), afeiçoá-la o tradutor, quanto a sua habilidade o permitir, aos usos e costumes da gente para onde traslada, em cuja língua escreve, e com cujo pensar e sentir deve procurar que ela se conforme o mais escrupulosamente que ser possa, para que mais e melhor lhe creiam nela [...] (CASTILHO, 1870[CASTILHO, António Feliciano de]. Theatro de Molière. Primeira tentativa. Tartufo. Comedia vertida livremente e accommodada ao portuguez. Seguida de um parecer pelo Illm. e Exmo Sr. José da Silva Mendes Leal. Lisboa: por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1870., p. IX-X).

É de conformidade escrupulosa aos “usos e costumes” portugueses que se trata. A dupla resistência que define, assim, a tarefa tradutora, do lado da língua de saída e do lado da língua de chegada - ou do desejo do tradutor e do desejo do leitor (RICOEUR, 2004RICOEUR, Paul. Sur la traduction. Paris: Bayard, 2004. Tradução brasileira: Sobre a tradução. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011., p. 38-41) -, no caso de Castilho, parece ter sido vencida pelo segundo termo, na forma do “ouvido do povo português”, que nada mais é do que ouvido do próprio tradutor, única via pela qual o texto lhe chega.

Autoridades sobrepostas

As condições da tradução do Fausto e a repercussão da polêmica permitem discernir algumas modalidades da auctoritas literária, no século XIX português.

A primeira delas é, digamos, a própria designação da autoria. Se, por um lado, as traduções confirmam a consagração do autor do texto, na língua de saída, provocando a circulação de inúmeras edições de obras do patrimônio literário universal, marcadas pela força canônica de Shakespeare, Dante, Molière, Cervantes, Goethe e de tantos mais, por outro, a “língua de chegada”, muitas vezes, faz concorrer a auctoritas do tradutor e a do autor.

No caso da tradução do Fausto, isso é ainda redobrado, sob a forma de uma dupla função, afirmada na figura do tradutor-poeta (considerada a versão final que supera suas camadas preparatórias). Nessa operação, o caráter mais imediatamente subjetivado da autoria se reforça com a duplicidade da função - o poeta que traduz o poeta -, exigindo menor “efeito de fidelidade” no texto traduzido.

Curiosamente, a autoria da primeira camada textual do Fausto por José Feliciano (e Eduardo Laemmert) foi dada por António Feliciano, na sua “Advertência” ao Fausto, como “franqueza de verdadeiro sabedor”. Nessa acepção, a dupla função autoral da versão final, a do tradutor-poeta, acaba por se desmembrar numa ambivalência deontológica: a “franqueza” da fidelidade da primeira versão deve compor, na última, com o gênio universal do poeta, de modo a suplantar a “falta de franqueza” da ignorância da língua deste último. Em suma, a “tradução franca” da primeira camada é superada pelo mérito maior do escritor nacional, o grande ouvido português “afinador de versos” que foi António Feliciano de Castilho.16 16 Segundo o próprio Castilho: “[...] centenares de versos houve (não me corro de confessá-lo) centenares de versos, a fio, que fiz e refiz uma e muitas vezes; com que suei e perdi noites (bem perdidas e reperdidas) antes que acertasse em os afinar pela melodia do texto latino” (CASTILHO, 1841, p. XXIV). O triunfo, neste caso, seria todo seu, mas sem que chegasse a equivaler à glória unânime da posteridade, que Machado de Assis lhe atribuíra à distância das polêmicas.

No interior da contenda, foi frequentemente evocada a tradução francesa do Fausto por Gérard de Nerval, tal como faz o defensor de Castilho, Pinheiro Chagas, numa exposição de autoridades em meio ao elogio da língua portuguesa:

No Fausto portuguez ha de o futuro ler sempre ao lado da assignatura de Goethe a assignatura de Castilho. Estou convencido, porém, que o grande poeta allemão, se sabia o portuguez, como dizem, gostaria de se reler na obra do seu interprete. Dizia elle a Eckermann, para o fim da vida, que já não lhe aprazia ler o Fausto senão na traducção franceza de Gerard de Nerval, porque gostava de ver os seus pensamentos como que esclarecidos (!!) pela viva luz da lingua franceza. Em portuguez teria elle o gosto de os ver formulados na mais rica e melodiosa poesia, que nunca murmuraram labios de homem, porque em lingua nenhuma conheço poeta que melhor saiba do que o visconde de Castilho, todos os segredos da musica da palavra. (VASCONCELLOS, 1873VASCONCELLOS, Joaquim de. O Fausto de Castilho julgado pelo Elogio-mútuo. Artigos colleccionados por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portugueza, 1873., p. 17).

Essa distribuição de papéis, entre Goethe, Gérard de Nerval e António Feliciano de Castilho, se deu no próprio interior do sistema de celebridade literária oitocentista, que os detratores da tradução não deixaram de acusar. Foi assim que, ao reproduzir mais um artigo encomiástico sobre o Fausto, de Camillo Castelo Branco - em que se encontra representada figura do tradutor português socorrido pelo francês (“Eil-o a peito com Goethe, com o mais profundo e abstruso livro do mundo no dizer de Gerard de Nerval”) -, Joaquim de Vasconcellos fulminou, em nota: “Estes senhores ainda andam pela mão de G. de Nerval!” (VASCONCELLOS, 1873VASCONCELLOS, Joaquim de. O Fausto de Castilho julgado pelo Elogio-mútuo. Artigos colleccionados por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portugueza, 1873., p. 7).

Uma segunda modalidade de auctoritas encontra-se nos paratextos que compõem as edições das traduções de Castilho, na forma de dedicatórias, advertências, prólogos e pareceres. Para além das grandes autoridades evocadas junto à autoria assumida pelo Visconde, esses textos preenchem uma função autorizadora da empreitada tradutora.

Como visto, José da Silva Mendes Leal forneceu pareceres encomiásticos às traduções de Castilho das obras dramáticas de Molière, anexados ao final dos volumes. Na edição do Tartufo, a informação, estampada desde a página de rosto, é reforçada pela dedicatória do tradutor endereçada ao próprio parecerista: “A José da Silva Mendes Leal / Especialmente como dramaturgo e estadista filosofo / por cima de todas as outras suas coroas moraes e litterarias / Tributo respeitoso do seu confrade e obrigado amigo / A. F. de Castilho”. A autolegitimação é, de fato, o fundamento da dita “escola do elogio-mútuo”.

Presentes também na edição de 1869 de O medico á força / Comedia á antiga trasladada liberrimamente da prosa original a redondilhas portuguesas; e na de 1871, de O avarento / Comedia em cinco atos / Versão libérrima,17 17 Neste livro, a dedicatória, fundamental no sistema de favores que ainda comanda as práticas letradas, apesar das acusações de elogio-mútuo crescentes, é a seguinte: “Ao seu querido e bom amigo / D. Antonio da Costa de Sousa de Macedo / Auctor do drama Molière / como homenagem ao mais prestante promotor da Instrucção Popular em Portugal offerece / Castilho” (CASTILHO, 1871). os pareceres de Mendes Leal autorizavam justamente o caráter “libérrimo” das traduções, exposto desde os títulos, reforçando a sua marca plenamente autoral.

Na disposição gráfica das páginas de rosto e das dedicatórias dos volumes, o nome do tradutor concorre, aliás com alguma vantagem, em relação ao nome do autor francês, que aparece apenas na menção genérica à coleção “Theatro de Molière” que precede o título. O mesmo se dá com o Fausto: o nome do tradutor, “Castilho”, encabeça a página de rosto do “Theatro de Goethe”, seguido da menção “Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez”.

E sem um parecer que a corroborasse, foi justamente a edição do Fausto que colocou, de vez, a autoridade de Castilho sob julgamento, sustentada unicamente nos termos justificativos da “Advertência”. São eles que veiculam uma terceira modalidade de auctoritas, expressa no problema da “vida do autor”, através da descrição das condições de confecção da tradução, que implicam, por um lado, o ouvido do tradutor cego e, por outro, a voz e a mão do seu secretário.18 18 Evidentemente, a relação com a oralidade, na perspectiva biográfica, não se restringe às circunstâncias do secretariado. São inúmeras as referências feitas por Júlio de Castilho à “atividade oral” do pai, em Memórias de Castilho. Elas não deixarão de coroar romanticamente a figura do bardo cego, à semelhança de Homero e Ossian, ou ainda, de evocar a prática da recitação, como na seguinte passagem: “A rogos e instancias [...] começa o joven bardo cego, recitando o seu poemeto, impresso depois, O dia de primavera [...]” (CASTILHO, 1881, p. 260).

É claro que, sob a auctoritas de António Feliciano, o trabalho em camadas não foi exclusivo às traduções. O irmão Augusto, seu primeiro ledor, era alguém que estava “a serviço das Letras”, como confessa o próprio António Feliciano: “Para mim, [Augusto] só me deixava o mister, tão fácil e agradável, de edificar com os materiais já prontos, e já todos à mão, aformosear, lustrar, polir, sobredoirar, o edifício, ficar dentro e chamar-me dono” (CASTILHO, 1838CASTILHO, Antonio Feliciano de. Quadros históricos de Portugal por António Feliciano de Castilho. Lisboa: Na Typographia da Sociedade Propagadora dos conhecimentos úteis, 1838., p. 58).

Os primeiros jatos da tradução do Fausto, sabe-se, foram confeccionados e lidos pelo irmão José Feliciano. Mas grande parte da atividade tradutora do Visconde de Castilho, desde os anos 1840, passara pela voz e pela pena de sua mulher Ana Carolina Xavier, que não era uma mera ledora, como testemunha, anos mais tarde, o seu filho, Júlio de Castilho:

São deste tempo [1840] algumas versões suas portuguesas de poetas dinamarqueses, que ele muito desejava aclimar em Portugal. Podem reputar-se fiéis essas traduções, atendendo à maneira como eram executadas, com o auxílio da inteligente e instruída secretária. Traduzia ela cada período, palavra por palavra, com toda a minúcia, e com o profundo conhecimento que tinha das línguas escandinavas; a esse primeiro processo chamava o poeta língua de preto. Depois apresentava os mesmos períodos já animados e coloridos do sentido e pensamento poético; e ele hauria deste modo as intenções todas do original, e senhoreava-as. Assim colhidas, tomadas de relance, aquelas flores norueguesas e suecas, conservavam a cor, o brilho, e o aroma (CASTILHO, 1929CASTILHO, Júlio de. Memórias de Castilho. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929, 2 ed., tomo III., p. 402).

Como tradutor, António Feliciano de Castilho era, no seu jargão próprio, um “aclimatador” de “línguas de preto” ao ouvido português. As discussões em torno desse trabalho de naturalização (ou nacionalização), na querela literária do Fausto, acaloradas como foram, tiveram como efeito o apagamento definitivo - como era de se esperar - da centralidade do trabalho de secretariado que produziu as primeiras camadas da tradução. E, em contrapartida, elas também acabaram por reificar - pelo louvor ou pelo vitupério - a universalidade da figura do poeta, em geral, e do poeta cego, em particular (escrupulosamente reconhecido, embora pouco evocado).

Nesse jogo de posições que são as querelas letradas - que repercutem, sabe-se, no interior das academias e dos círculos intelectuais e políticos - chama a atenção, lado a lado com o necessário apagamento do secretariado, o abandono do próprio texto em prol da concentração no valor “biográfico” da autoria. O exemplo por excelência na história literária é, como se sabe, o de Shakespeare, com uma primeira biografia publicada em 1709, seguida da ereção de sua estátua em Westminster, em 1741, culminando com as festividades de celebração do seu Jubileu de nascimento, em 1769, quando nenhuma peça sua foi encenada ou lida.

Com Castilho, afirma-se este funcionamento paradigmático do sistema literário, reforçado pela hipérbole romântica produtora de celebridade. Ela é questão na acusação de ­Theophilo Braga à ilegitimidade do Visconde como literato, prescindindo da consideração dos textos para posicionar-se na verdade: “Digamos a verdade toda. O sr. Castilho deve a sua celebridade á infelicidade de ser cego. O que se espera de um cego? Apenas habilidade. É uma celebridade triste porque tem origem na compaixão, e a compaixão fatiga-se” (­BRAGA, 1865BRAGA, Theophilo. As theocracias litterarias. Relance sobre o estado actual da litteratura portuguesa. Lisboa: Typographia Universal, 1865., p. 12).

A virulência do ataque estende-se adiante, até ser incorporada à crítica ao sistema de consagração literária que acolhera sua obra. Os termos de Theophilo Braga se opõem diametralmente ao elogio fúnebre de Machado de Assis, condenando Castilho ao esquecimento:

O publico tem direito a que lhe respeitem uma celebridade que fez. É de razão. Mas como se fez esta celebridade? Do mesmo modo que os insectos formaram a enorme cordilheira dos Andes, como a defecação dos passaros, que emigram, forma ilhas no meio do mar. Com o tempo. A primeira impressão que as obras d’este auctor causaram, quando appareceram, foi boa; era preciso animar a formação da litteratura. [...] Esta impressão tem-se transmittido tradicionalmente, porque a raridade das edições, que ha um anno se reproduzem, não deixou assignar-lhe ainda o seu valor actual. A reputação do sr. Castilho acaba com a sua vida; é a luz que se apaga comsigo; nenhum dos seus livros vae á posteridade, porque a posteridade, sempre impassivel, aceita sómente o que exerceu uma influencia sobre uma epoca (BRAGA, 1865BRAGA, Theophilo. As theocracias litterarias. Relance sobre o estado actual da litteratura portuguesa. Lisboa: Typographia Universal, 1865., p. 13).

Como afirma Antoine Lilti para o Século das Luzes, se o escritor carregava então a glória dos grandes homens, era porque associava a autoridade moral do filósofo à capacidade sensível do poeta. A glória se distinguia, assim, da celebridade pela concertação unânime e rigorosa que exigia, sem que deixasse de se relacionar com ela (LILTI, 2018LILTI, Antoine. Figures publiques. L’invention de la célébrité (1750-1850). Paris: Fayard, 2014. Tradução brasileira: A invenção da celebridade (1750-1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 146).

Em Theophilo Braga, era a “celebridade triste” do Visconde de Castilho que merecia os ataques, por ser fruto da compaixão pelo homem cego, equivalente à curiosidade da multidão e ao caráter vago de seus critérios. Cabia ao crítico a custosa tarefa de “arcar com preconceitos e superstições do publico”, tal como afirmava: “É um phenomeno curioso, mas que se dá frequentes vezes, quando o autor gosa de uma aura acima do que merece”. E arrematava, na conclusão de seu panfleto, em tom de vitória sobre o arcaísmo das tradições inquestionadas: “É em nome da verdade e da justiça que levanto por um instante a mão da consciencia, para assignar-me contra as theocracias litterarias” (BRAGA, 1865BRAGA, Theophilo. As theocracias litterarias. Relance sobre o estado actual da litteratura portuguesa. Lisboa: Typographia Universal, 1865., p. 13-14). Era em nome, nos termos de hoje, de um regime moderno de autoria literária que já se anunciava.

Sobre o valor do oral, à guisa de conclusão

Fora das contendas literárias que expuseram, no seu tempo, os problemas suscitados pela tradução do Fausto, a questão da oralidade na operação tradutora de António Feliciano de Castilho pode ser indagada a partir de perspectivas que evidenciam hoje a sua particularidade, das quais destacam-se três.

Primeiro, a escolha da tradução de textos do gênero dramático por Castilho não é irrisória, pois a encenação é uma forma de fazer ver. Para ele, tratava-se de fazer ver pela precisão do que era ouvido - sendo esta a forma como o teatro lhe chegava. Em todo caso, no que concerne à cena, era exigido que o texto veiculasse a visibilidade do jogo dramático, sempre associada à sua audibilidade. No Portugal do século XIX, no interior de um sistema de celebridades artísticas e num horizonte de expectativa de obras teatrais, especialmente no caso das peças de Molière, já se podia imaginar até mesmo a voz que entoaria as falas, como a do aclamado Actor Taborda.

Na “Advertência” de As sabichonas (tradução de Les femmes savantes, de Molière), Castilho evocava abertamente a cena portuguesa de seu tempo: “Adverte desde já o traductor [...] que a sua intenção n’este ligeiro passatempo não foi verdadeiramente a que o titulo da comedia pareceria indicar. Que theatro nosso poderia encarregar-se hoje de uma peça que requer e não dispensa cinco actrizes todas de talento e forças não vulgares?” (CASTILHO, 1872b[CASTILHO, António Feliciano de]. Theatro de Molière. Terceira tentativa. As sabichonas. Comedia em 5 actos. Versão libérrima. Lisboa: por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa , 1872b.). O título completo da tradução de Le médecin malgré lui, de Molière, faz igualmente referência à encenação: O medico á força. Comedia á antiga trasladada liberrimamente da prosa original a redondilhas portuguezas representada pela primeira vez em Lisboa no Theatro da Trindade aos 2 de janeiro de1869[CASTILHO, António Feliciano de]. Theatro de Molière. Terceira tentativa. O medico á força. Comedia á antiga trasladada liberrimamente da prosa original a redondilhas portuguezas representada pela primeira vez em Lisboa no Theatro da Trindade aos 2 de janeiro de 1869 e seguida de um parecer pelo Illm. Exmo. Sr. José da Silva Mendes Leal. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1869. [...].

Como tradutor, Castilho tratou, nesse sentido, de “mexer” em aspectos da disposição dramatúrgica dos originais, justificando o seu gesto, como sempre, pela necessidade de “acomodação” ao público contemporâneo. Foi assim com o Fausto: “A divisão e subdivisões do poema, como neste livro aparecem, não pertencem ao original, nem também o descritivo do cenário e outras particularidades da execução teatral” (CASTILHO, 1872[CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez. Porto: Viuva Moré Editora, 1872., p. 7).

Nos “grandiosos poemas” de Molière e Goethe estariam ausentes as “circunstâncias” passíveis de dirimir, segundo Castilho, “muitas perplexidades, muitas dúvidas, muitos perigos de desacerto, em que forçosamente laborariam empresários e actores quando pretendessem expor tais dramas aos seus públicos” (CASTILHO, 1872[CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez. Porto: Viuva Moré Editora, 1872., p. 7-8). Preenchendo essas “lacunas”, o tradutor podia oferecer, portanto, a um novo público, uma nova configuração dramática, tornada claramente audível e visível.

O segundo aspecto relacionado à oralidade encontra-se na delegação da leitura e da escrita, cujos detalhes aparecem nas Memórias de Castilho, de seu filho Júlio. Assim define ele, conclusivamente, a educação do pai: “[...] os estudos, até os que mais dependem da vista, fel-os cego” (CASTILHO, 1881CASTILHO, Júlio de. Memórias de Castilho. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1881, tomo I., tomo 1, p. 52). Foi a partir dessa assertiva que, ao longo de inúmeras páginas, Júlio pôde fazer com que António Feliciano ascendesse, ardorosamente, da escuridão em que se deram os primórdios da sua formação intelectual até a luz da glória poética. Com efeito, naqueles primeiros anos, provavelmente muito difíceis, o irmão Augusto fora mais que um simples secretário: “[...] é cego, mas possue os olhos do seu irmão inseparável; por elles relanceou o mundo litterario antigo, e acompanha o movimento moderno” (CASTILHO, 1881, tomo 1, p. 281).

Junto a António Feliciano, sempre houve alguém, em particular mulheres, para exercer o secretariado. Nas Memórias de Castilho, elas estão presentes desde muito cedo:

Faço idéa dos serões estudiosos na livraria dos limoeiros [...]. O poeta ditando as suas obras, no meio do silencio da casa e do campo, e ali, junto d’elle, agremiadas ao mesmo grande candieiro de latão, a mãe e a irmã, concentradas n’algum lavor feminino, e alternando-se com o prior na tarefa assidua de secretárias (CASTILHO, 1881CASTILHO, Júlio de. Memórias de Castilho. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1881, tomo I., tomo 1, p. 290).

Surge ainda aquela a quem Castilho teria ditado o poema Os ciúmes do bardo, publicado em 1836CASTILHO, António Feliciano de. A noite do Castello e Os ciumes do bardo. Poemas seguidos da Confissão de Amelia. Traduzida de Melle. Delfine Gay por A. Feliciano de Castilho [...] Lisboa: na Typ. Lisbonense A. C. Dias, 1836.: “Servia de secretária a sua futura cunhada. A mão d’esta intelligente senhora teve a honra de dar fórma escripta aos devaneios do poeta” (CASTILHO, 1881CASTILHO, Júlio de. Memórias de Castilho. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1881, tomo I., tomo 1, p. 194). A partir de 1840, a mãe de Júlio, que assumira o papel de secretária do marido, faria, como visto, as primeiras versões portuguesas das poesias dinamarquesas que António Feliciano pretendia acomodar à melodia portuguesa. Exatamente como se deu com o Fausto, traduzido em camadas sucessivas, entre várias vozes e várias mãos.

A espera eventual pelo ledor, dramatizada na memória do filho - “quantas [horas] á espera de secretario! quantos seculos de insomnia! quantos de solidão forçada!” (CASTILHO, 1881CASTILHO, Júlio de. Memórias de Castilho. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1881, tomo I., tomo 1, p. 53) -, foi esmorecendo, sem dúvida, com a glória literária atingida por António Feliciano de Castilho. Nesse mesmo sentido, a evidência da sua imensa obra impressa é equivalente à naturalização da delegação da leitura e da escrita que é o seu próprio fundamento. Jamais abertamente declarada, a presença meramente indiciária da oralidade em seus livros - em especial nas traduções, em que o exercício do gênio poético se encontra condicionado às condições oralizadas da tarefa tradutora - consiste, no entanto, na garantia subentendida da necessária univocidade da autoria, toda ela concentrada na autoridade maior do poeta cego.

Enfim, resta o problema da relação entre intradutibilidade e oralidade. A aclimatação do texto ao português, na operação tradutora de Castilho, é muito mais do que um trabalho de equivalência. Ele próprio havia definido que todo tradutor deveria sempre se perguntar, antes de pegar na pena: “‘Conheço o meu autor; estou inteirado do que pretende e compenetrado da sua índole; resta-me fazê-lo falar, como de próprio falaria, se escrevesse na minha língua’” (CASTILHO, 1854CASTILHO, António Feliciano de. Prólogo. In: SAINT-GERMAIN-LEDUC. O novo amigo dos meninos. Lisboa: Tipografia Universal, 1854., p. XXIX).

Ao que parece, está colocada, nesse ponto, toda a ambiguidade da prática de tradução: traduzir o sentido ou as palavras? No monólogo interior do tradutor, segundo Castilho, o sentido estaria alocado “na índole do autor”. As palavras, por sua vez, seriam aquelas que “ele falaria [...] na minha língua”. O preceito enunciado na fórmula é o da necessária clareza da língua de chegada, aquela que o tradutor deve imaginar ouvir, plena de sentido, na voz do “seu autor”.

A ameaça à clareza e à verossimilhança foi firmemente levantada na “Advertência” do Fausto, quando Castilho se justifica por não ter traduzido a segunda parte da tragédia:

Na segunda parte, dizem alemães, é que o autor mais se despendeu em gentilezas e esmeros líricos. Pode ser; contemplado nos reflectores não o parece; e depois quando essas excelências acidentais e de mera forma, rara vez traduzíveis, sejam tais como no-las querem encarecer, tantos e tão crespos são no último Fausto os enigmas filosóficos, tão abstruso o senso das ficções, e as ficções mesmas tão desnaturais, tão inverosímeis, tão impossíveis, (ia-me quase escapando tão absurdas) que o bom gosto e o bom senso, que tão benévolos perdoaram e receberam a lenda velha do Dr. Fausto, não sei como se haveriam com o Fausto último. O primeiro, o nosso, foi um gigante; o último figura-se ao espírito da nossa consciência o homúnculo, um produto abusivo das forças da arte (CASTILHO, 1872[CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez. Porto: Viuva Moré Editora, 1872., p. 8).

O intradutível, portanto, não são as palavras, porém mais precisamente o sentido - enigmático, abstruso, desnatural, inverossímil, absurdo etc. -, expresso em “excelências acidentais e de mera forma”, que são impossíveis - inaudíveis -, desafiando, assim, “o bom gosto e o bom senso”.

E quando a disposição parece ser a de tornar um texto plenamente audível, o que falar quer dizer na escrita? A indagação, que parafraseia o título do livro de Pierre Bourdieu, toma de empréstimo mais do que a precisão da fórmula, mas sobretudo o desvio contundente que ela provoca, na ordem do discurso: da pergunta sobre o sentido da oralidade para a do valor da oralidade na escrita.19 19 Trata-se do livro de Pierre Bourdieu, Ce que parler veut dire. L’économie des échanges linguistiques. A tradução brasileira altera o título original (O que falar quer dizer), assumindo o subtítulo como principal: A economia das trocas linguísticas (BOURDIEU, 1992). Cf. também a apresentação de Daher (2016, p. 18).

O valor do oral na tradução do Fausto de Castilho está no que devia ser necessário ao tradutor. Mais do que traduzir de ouvido, é traduzir para ouvir: para que pudesse e para que fizesse ouvir.

Referências - Obras antigas

  • BRAGA, Theophilo. As theocracias litterarias Relance sobre o estado actual da litteratura portuguesa. Lisboa: Typographia Universal, 1865.
  • CASTILHO, António Feliciano de. A noite do Castello e Os ciumes do bardo. Poemas seguidos da Confissão de Amelia. Traduzida de Melle. Delfine Gay por A. Feliciano de Castilho [...] Lisboa: na Typ. Lisbonense A. C. Dias, 1836.
  • CASTILHO, Antonio Feliciano de. Quadros históricos de Portugal por António Feliciano de Castilho Lisboa: Na Typographia da Sociedade Propagadora dos conhecimentos úteis, 1838.
  • CASTILHO, António Feliciano de. Prólogo. In: As metamorfoses de Purlio Ovído Nasão. Poema em quinze livros vertido em português por Antonio Feliciano de Castilho Lisboa: Imprensa Nacional, tomo I, 1841.
  • CASTILHO, António Feliciano de. Método Castilho para o ensino rapido e aprasivel do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. Segunda edição inteiramente refundida, aumentada, e ornada de um grande numero de vinhetas Lisboa: Imprensa Nacional, 1853.
  • CASTILHO, António Feliciano de. Prólogo. In: SAINT-GERMAIN-LEDUC. O novo amigo dos meninos Lisboa: Tipografia Universal, 1854.
  • CASTILHO, António Feliciano de. Carta do Illm. e Exmo. sr. Antonio Feliciano de Castilho ao Editor. In: PINHEIRO CHAGAS. Poema da Mocidade seguido do Anjo do lar por M. Pinheiro Chagas Lisboa: Livraria de A. M. Pereira, 1865.
  • CASTILHO, António Feliciano de. Tratado de metrificação portugueza para em pouco tempo e até sem mestre se aprenderem a fazer versos de todas as medidas e composições seguido de considerações sobre a declamação e poetica [...]. Porto: Em Casa de Viuva Moré Editora, 1867.
  • [CASTILHO, António Feliciano de]. Theatro de Molière. Terceira tentativa. O medico á força. Comedia á antiga trasladada liberrimamente da prosa original a redondilhas portuguezas representada pela primeira vez em Lisboa no Theatro da Trindade aos 2 de janeiro de 1869 e seguida de um parecer pelo Illm. Exmo. Sr. José da Silva Mendes Leal Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1869.
  • [CASTILHO, António Feliciano de]. Theatro de Molière. Primeira tentativa. Tartufo. Comedia vertida livremente e accommodada ao portuguez. Seguida de um parecer pelo Illm. e Exmo Sr. José da Silva Mendes Leal Lisboa: por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1870.
  • [CASTILHO, António Feliciano de] Theatro de Molière. Quarta tentativa. O avarento. Comedia em 5 actos. Versão libérrima. Seguida de um parecer pelo Illm. e Exmo Sr. José da Silva Mendes Leal Lisboa: por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa , 1871.
  • [CASTILHO António Feliciano de]. Theatro de Goethe. Tentativa única. Fausto. Poema dramático trasladado a portuguez Porto: Viuva Moré Editora, 1872.
  • [CASTILHO, António Feliciano de]. Theatro de Molière. Terceira tentativa. As sabichonas. Comedia em 5 actos. Versão libérrima Lisboa: por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa , 1872b.
  • [CASTILHO, António Feliciano de]. Theatro de Molière. Quinta tentativa. O misanthropo. Comedia em 5 actos. Versão liberrima Lisboa: por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa , 1874.
  • CASTILHO, Júlio de. Memórias de Castilho Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1881, tomo I.
  • CASTILHO, Júlio de. Memórias de Castilho Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929, 2 ed., tomo III.
  • DIDEROT. Lettre sur les aveugles à l’usage de ceux qui voyent Londres: [s.n.], 1749.
  • GOMES MONTEIRO, José. Os criticos do Fausto snr. Visconde de Castilho por José Gomes Monteiro Porto: Viuva Moré Editora, 1873.
  • GRAÇA BARRETO, J. A. A questão do Fausto pela ultima vez Observações a alguns contendores e desengano aos litteratos. Porto: Imprensa Portugueza, 1874.
  • LOCKE, John. An Essay Concerning Humane Understanding Londres: Eliz. Holt for Thomas Basset, 1690.
  • MACHADO DE ASSIS. Obra completa , v. III Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
  • QUENTAL, Anthero. Bom-senso e bom-gosto Carta ao excelentissimo senhor Antonio Feliciano de Castilho por Anthero do Quental. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1865.
  • SOUZA TELLES DE MATTOS, Joaquim Antonio de. A imparcialidade critica do Sr. Joaquim de Vasconcellos avaliada por Joaquim Antonio de Souza Telles de Mattos Évora: Typographia do Governo Civil, 1873.
  • VASCONCELLOS, Joaquim de. O Fausto de Castilho julgado pelo Elogio-mútuo Artigos colleccionados por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portugueza, 1873.
  • VASCONCELLOS, Joaquim de. O Faust de Goethe Analyse critica da traducção de Castilho por Joaquim de Vasconcellos. Porto: Imprensa Portuguesa, 1872.

Obras críticas

  • BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire. L’économie des échanges linguistiques Paris: Fayard, 1992. Tradução brasileira: A economia das trocas linguísticas São Paulo: Edusp, 1996.
  • CHARTIER, Roger. L’ordre des livres Lecteurs, auteurs, bibliothèques en europe entre le XIV et le XIII siècle Aix-en-Provence: Alinéa, 1992. Tradução brasileira: A ordem dos livros Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII Brasília: Editora da UnB, 1994.
  • CHOTTIN, Marion (org.). L’aveugle et le philosophe Paris: Publications de la Sorbonne, 2009.
  • DAHER, Andrea (org.). Oral por escrito A oralidade na ordem da escrita, da retórica à literatura. Chapecó/Florianópolis: Argos/Editora UFSC, 2018.
  • DE CERTEAU, Michel. L’invention du quotidien Tome 1. Arts de faire. Paris: Gallimard, 1990. Tradução brasileira: A invenção do cotidiano Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
  • DE SÁ, Luiz César.Auctoritas e controvérsia nas práticas letradas francesas (1540-1630) Tese (Doutorado em História Social) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
  • FOUCAULT, Michel. L’ordre du discours Paris: Gallimard, 1971. Tradução brasileira: A ordem do discurso São Paulo: Edições Loyola, 1996.
  • FUMAROLI, Marc. Les abeilles et les araignées. In: La querelle des Anciens et des Modernes Paris: Gallimard, 2001.
  • LILTI, Antoine. Figures publiques. L’invention de la célébrité (1750-1850) Paris: Fayard, 2014. Tradução brasileira: A invenção da celebridade (1750-1850) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
  • MOUNIN, Georges. Les belles infidèles Paris: Presses Universitaires de Lille, 1994.
  • ONG, Walter. Orality and Literacy The technologizing of the world. Londres/Nova York: Routledge, 1982. Tradução brasileira: Oralidade e cultura escrita São Paulo: Papirus, 1998.
  • ONG, Walter. The Presence of the Word New York: Global Publications, 2000.
  • PAULSON, W. R. Enlightment, Romanticism, and the Blind in France Princeton: Princeton University Press, 1987.
  • RICOEUR, Paul. Sur la traduction Paris: Bayard, 2004. Tradução brasileira: Sobre a tradução Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
  • ZUBER, Roger. Les belles infidèles et la formation du goût classique Paris: Armand Colin, 1968.
  • ZUMTHOR, Paul. Introduction à la poésie orale Paris: Seuil, 1983. Tradução brasileira: Introdução à poesia oral Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009.
  • ZUMTHOR, Paul. La lettre et la voix De lalittératuremédiévale Paris: Éditions du Seuil, 1987. Tradução brasileira: A letra e a voz São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • 1
    As conclusões de Paulson apoiam-se nos discursos do Iluminismo francês (PAULSON, 1987, p. 199-200).
  • 2
    No original: “Il existe, il me semble, deux littératures tout-à-fait distinctes, celle dont Homère est la première source, celle dont Ossian est l’origine” (apud PAULSON, 1987, p. 121).
  • 3
    Ele também ficou muito conhecido por seu Método Castilho para o ensino rapido e aprasivel do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever, de 1846, contra o qual se levantaram muitas críticas. As obras de António Feliciano de Castilho citadas ao longo do texto encontram-se todas nas Referências finais.
  • 4
    Seu filho, Júlio de Castilho, em suas Memórias, exalta os talentos de latinista do pai, quando ainda era estudante: “Correram, como era de prever, rapidissimos os progressos do alumno, que só pelos ouvidos, e com os milagres da attenção e da perseverança, absorvia as doutrinas do mestre. [...] era muito para notar, e para admirar dos que de proposito iam á aula ouvir o estudantinho cego, a maneira como traduzia expedito e em bellissima linguagem (phrase textual do professor nos seus curiosos attestados)” (CASTILHO, 1881, p. 119).
  • 5
    Publicado originalmente na Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, 4 de julho de 1875 (­MACHADO DE ASSIS, 1994MACHADO DE ASSIS. Obra completa , v. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994., p. 1.216).
  • 6
    Mais uma referência à cegueira encontra-se na carta-resposta de Quental, em nome da modernidade literária, no ataque ao ideal anacrônico de Castilho: “O ideal! palavra mystica; de gothica configuração; quasi impalpavel; espiritualista; impopular; [...] immensa aos olhos dos que a vêem com os olhos fechados e que nunca viram os que os trazem sempre arregalados; [...]” (QUENTAL, 1865, p. 13).
  • 7
    José Gomes Monteiro abre a defesa de António Feliciano de Castilho, seguido de Germano Meireles, o Conde de Samodães, Camillo C. Branco, Pinheiro Chagas e outros. Entre os detratores estão Joaquim de Vasconcellos, Adolfo Coelho e Graça Barreto.
  • 8
    Carlos de Castilho Pais, numa monografia dedicada à tradução do Fausto, procura demonstrar que as bases fundamentais das críticas evocadas na Questão do Fausto, a saber, a fidelidade ao texto de Goethe e a linguagem do texto traduzido, são aspectos essenciais das próprias teses defendidas numa suposta ­“teoria da tradução” de António Feliciano de Castilho. Disponível em: https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/2588/1/Ant%C3%B3nio%20Feliciano%20de%20Castilho,%20tradutor%20do%20FAUSTO.pdf.
  • 9
    Sobre a produção de memória pelas controvérsias letradas, ver De Sá (2017)DE SÁ, Luiz César.Auctoritas e controvérsia nas práticas letradas francesas (1540-1630). Tese (Doutorado em História Social) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017..
  • 10
    Sinal disso está no próprio livro de Joaquim de Vasconcellos que abre a polêmica, ao narrar as circunstâncias de seu primeiro contato com a tradução de Castilho, “n’uma reunião dada pelo diplomata espanhol em que reunia a sociedade litteraria ali redidente, [quando] tivemos a ocasião de avaliar, em março de 1871 pela primeira vez a tradução [...]” (VASCONCELLOS, 1872, p. VIII).
  • 11
    As Memórias de Júlio de Castilho vêm confirmar o apurado “ouvido francês” e a competência linguística do pai: “A essa iniciação no francez por um purista francez deveu sem duvida Antonio Feliciano de Castilho a pronuncia e entoação perfeitamente pura, com que fallava a lingua de Boileau. Quanta vez passou por um nacional, e até serviu de juiz em discussões phylologicas (porque, além da pronuncia, possuía conhecimento profundo e scientifico da grammatica e dos segredos da lingua)! Que o diga um bom numero de cartas em francez, que ficaram, assignadas pelo poeta” (CASTILHO, 1881, p. 66). As referências das traduções de Molière por Castilho encontram-se nas Referências finais.
  • 12
    Os trechos citados neste artigo foram todos traduzidos por mim. No original: “revue, corrigée et reformée pour amuser la raison supérieure des Modernes” (FUMAROLI, 2001, p. 17).
  • 13
    No original: “On appelle alors de ce nom galant des traductions dans la langue de l’Académie où Thucydide, Lucien, Cicéron, Tacite prennent une voix et un visage contemporains pour les faire agréer par un public ainsi disposé à soutenir le point de vue des ‘Anciens’” (FUMAROLI, 2001FUMAROLI, Marc. Les abeilles et les araignées. In: La querelle des Anciens et des Modernes. Paris: Gallimard, 2001., p. 17).
  • 14
    “Pelas suas características ousadas, mas sempre verdadeiras, torna-se não só a cópia fiel do seu original, mas um segundo original, que só pode ser realizado por um génio sólido, nobre e fecundo!” (CASTILHO, 1870, p. 218).
  • 15
    Nesse sentido, esta é a palavra final de Castilho, na “Advertência” do Fausto: “Por aqui me cerro, ponderando só que me parece questão ociosa esta de se perquirir se um tradutor sabe ou não a língua do seu original; o que importa, e muito, é se expressou bem na sua, isto é, com vernaculidade, clareza, acerto e a elegância possível, as ideias e afectos do seu autor”.
  • 16
    Segundo o próprio Castilho: “[...] centenares de versos houve (não me corro de confessá-lo) centenares de versos, a fio, que fiz e refiz uma e muitas vezes; com que suei e perdi noites (bem perdidas e reperdidas) antes que acertasse em os afinar pela melodia do texto latino” (CASTILHO, 1841CASTILHO, António Feliciano de. Prólogo. In: As metamorfoses de Purlio Ovído Nasão. Poema em quinze livros vertido em português por Antonio Feliciano de Castilho. Lisboa: Imprensa Nacional, tomo I, 1841., p. XXIV).
  • 17
    Neste livro, a dedicatória, fundamental no sistema de favores que ainda comanda as práticas letradas, apesar das acusações de elogio-mútuo crescentes, é a seguinte: “Ao seu querido e bom amigo / D. Antonio da Costa de Sousa de Macedo / Auctor do drama Molière / como homenagem ao mais prestante promotor da Instrucção Popular em Portugal offerece / Castilho” (CASTILHO, 1871).
  • 18
    Evidentemente, a relação com a oralidade, na perspectiva biográfica, não se restringe às circunstâncias do secretariado. São inúmeras as referências feitas por Júlio de Castilho à “atividade oral” do pai, em Memórias de Castilho. Elas não deixarão de coroar romanticamente a figura do bardo cego, à semelhança de Homero e Ossian, ou ainda, de evocar a prática da recitação, como na seguinte passagem: “A rogos e instancias [...] começa o joven bardo cego, recitando o seu poemeto, impresso depois, O dia de primavera [...]” (CASTILHO, 1881, p. 260).
  • 19
    Trata-se do livro de Pierre Bourdieu, Ce que parler veut dire. L’économie des échanges linguistiques. A tradução brasileira altera o título original (O que falar quer dizer), assumindo o subtítulo como principal: A economia das trocas linguísticas (BOURDIEU, 1992CHARTIER, Roger. L’ordre des livres. Lecteurs, auteurs, bibliothèques en europe entre le XIV et le XIII siècle. Aix-en-Provence: Alinéa, 1992. Tradução brasileira: A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora da UnB, 1994.). Cf. também a apresentação de Daher (2016DAHER, Andrea (org.). Oral por escrito. A oralidade na ordem da escrita, da retórica à literatura. Chapecó/Florianópolis: Argos/Editora UFSC, 2018., p. 18).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2021
  • Aceito
    22 Abr 2021
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, n. 1., CEP 20051-070, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, Tel.: (55 21) 2252-8033 R.202, Fax: (55 21) 2221-0341 R.202 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: topoi@revistatopoi.org