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Primo Levi e os limites da representação

Primo Levi and the limits of representation

Primo Levi y los límites de la representación

RESUMO

Este artigo1 1 Agradeço a Jean Pierre Chauvin, Pedro Caldas e Lainister Esteves pela leitura do trabalho e comentários. discute o topos do limite da representação, que não surgiu no século XX, mas foi utilizado por muitos sobreviventes da Shoah para sugerir que os eventos ocorridos nos campos de concentração não poderiam ser convertidos em narrativa verossímil. Embora Primo Levi tenha recorrido a esse lugar-comum, nem por isso furtou-se de refletir sobre os horizontes e possibilidades da representação. Pretende-se analisar de que maneira o autor mobilizou diferentes expedientes para figurar o inaudito da experiência no Lager.

Palavras-chave:
Primo Levi; representação; literatura de testemunho

ABSTRACT

This article discusses the topos about the limit of representation, which did not emerge in the 20th century, but was used by many survivors to suggest that events in concentration camps could not be converted into credible narratives. Although Primo Levi used this commonplace, he did not for that reason refrain from reflecting on the horizons and possibilities of representation. It is intended to analyze how the author mobilized different devices to figure the unprecedented experience at Lager.

Keywords:
Primo Levi; representation; testimony literature

RESUMEN

Este artículo aborda el topos del límite de la representación, que no surgió en el siglo XX, pero que fue utilizado por muchos sobrevivientes de la Shoah para sugerir que los hechos ocurridos en los campos de concentración no podían convertirse en una narrativa creíble. Si bien Primo Levi recurrió a este lugar común, no rehuyó reflexionar sobre los horizontes y posibilidades de la representación. Se pretende analizar cómo el autor movilizó diferentes expedientes para representar la experiencia inédita en Lager.

Palabras clave:
Primo Levi; representación; literatura testigo

Há lugares-comuns sobre a Shoah (catástrofe perpetrada pelo regime nazista) que, de tão recorrentes, deixaram de ser objeto de suspeita. Um deles foi retomado em Diante do extremo (1991), de Tzvetan Todorov: trata-se da ideia de que, em condições limítrofes, os traços da vida moral seriam suplantados e os indivíduos protagonizariam o estado de natureza hobbesiano, ou seja, a guerra de todos contra todos. Presente na concepção popular e nos relatos dos sobreviventes, essa tópica, segundo o autor, não é absoluta e a própria narrativa de testemunho seria capaz de comprová-lo. Com isso, Todorov não buscou atenuar os horrores do Lager (termo que designa os campos de concentração/extermínio), mas reforçar que a diferença entre a rotina imposta nos seus limites e a vida comum não reside na ausência de moral, mas na maneira como a primeira exacerba/amplifica situações que a segunda costuma disfarçar/atenuar. Em outras palavras, a condição dos prisioneiros “projeta em tamanho grande e torna eloquente aquilo que, na rotina cotidiana, poderia facilmente escapar à percepção” (TODOROV, 2017TODOROV, Tzvetan. Diante do extremo. Tradução de Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Editora Unesp , 2017., p. 66).

Além de evidenciar os esforços dos sobreviventes no sentido de assegurar a manutenção de traços humanos e solidários, a hipótese de Todorov sobre a existência de valores morais em situações dramáticas obriga-nos a recuar diante de certezas consolidadas. Sobre seu trabalho, interessa-nos não tanto a reflexão sobre a (in)existência de comportamentos virtuosos, mas a ideia segundo a qual os acontecimentos que culminaram no genocídio não são passíveis de representação, ou melhor, que faltam palavras para figurá-los. Os alemães foram capazes de organizar, racional e institucionalmente, um extermínio em massa. Não há como negar suas dimensões, desdobramentos e impacto. Entretanto, assumir que seu potencial de destruição é inaudito, do ponto de vista histórico, não legitima qualquer negligência quanto à linguagem empregada, como se fosse válido assumir o testemunho como relato autêntico e desprovido de artifícios, de convenções, de expedientes mobilizados com um intuito particular. Não somente as experiências, mas também a escrita é amparada pela história, pela técnica, pela cultura.

O químico turinense Primo Levi, número de matrícula 174517, sobrevivente de ­Monowitz-Buna, registrou seu testemunho e manifestou esforços no sentido de evitar narrativas simplistas na descrição da “máquina de morte” nazista, compromisso que assumiu com o leitor e a posteridade. No último livro que escreveu, Levi (2016b, p. 55) afirmou existir um “quadro estereotipado”, persistente na literatura, na poesia e no cinema: ao fim da tempestade, sobrevém a quietude. O autor descreve algumas variantes: “Sair da aflição nos traz prazer”; “Após a doença retorna a saúde”; “o soldado volta a reencontrar a família e a paz”. Uma das máximas, “quietude após a tormenta”, é uma alusão ao poema La quiete dopo la tempesta (1831), de Giacomo Leopardi (1974LEOPARDI, Giacomo. Canti. Introduzione e note di Franco Brioschi. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 1974., p. 109-111). Levi acusa a insuficiência da tópica ao assegurar que a libertação de prisioneiros dos campos de concentração “não foi nem alegre nem despreocupada: soava em geral num contexto trágico de destruição, massacre e sofrimento” (LEVI, 2016bLEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b. , p. 55). Livrar-se do tormento, segundo o autor, “foi um prazer somente para uns poucos afortunados, ou somente por poucos instantes, ou para almas simples; quase sempre coincidiu com uma fase de angústia” (LEVI, 2016bLEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b. , p. 55). A dor persistiria, seja por meio da vergonha, seja pela incapacidade de relatar o horror em sua plenitude, uma vez que os sobreviventes não “tocaram o fundo” e “quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo” (LEVI, 2016bLEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b. , p. 65).

Em outro momento, Levi (2016bLEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b. , p. 121) reproduziu o provérbio ídiche “é bom narrar as desgraças passadas” e mencionou dois episódios, extraídos da Divina comédia e da Odisseia, para reforçar seu argumento:

Francesca diz a Dante não haver nenhuma dor maior do que lembrar na miséria o tempo feliz, mas é verdade também o inverso, como sabe qualquer sobrevivente: é bom sentar-se no aconchego, diante do alimento e do vinho, e recordar para si e os outros o cansaço, o frio e a fome: é assim que Ulisses, na corte do rei dos feácios, logo cede à urgência de narrar diante da mesa posta (LEVI, 2016bLEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b. , p. 121).

A princípio, o autor afirma que poucos obtiveram prazer com o fim do cativeiro, pois o cessar do exílio não suprimiu os tormentos. Em seguida, ele assegura ser aprazível narrar o cansaço, o frio e a fome. Haveria um desajuste entre os dois argumentos?

O primeiro deles (manutenção da dor mesmo após o fim do cárcere) foi proposto num capítulo sobre a vergonha e os incômodos provenientes do ato de sobreviver aos campos de concentração. Já o segundo (prazer decorrente da narrativa dos infortúnios) é referido num tópico sobre estereótipos, que atenta para os riscos da simplificação e de uma estilização demasiada do relato. Se é preciso reconhecer certa ambivalência, ela reside no intervalo entre a vergonha/angústia que acompanha os sobreviventes e a necessidade de fazer dessa vergonha/angústia um objeto de reflexão a ser comunicado.2 2 Sobre a angústia em Primo Levi, ver: Caldas (2019a, p. 24-46). Sobre a vergonha, ver: Agamben (2008). Sendo assim, quando a testemunha afirma não dispor de palavras capazes de precisar a experiência horrenda e, em seguida, procede à narração, ela intensifica o terror experimentado e, simultaneamente, adverte sobre o hiato que distancia as palavras do narrador e o repertório/entendimento do leitor. O contraste entre o drama vivido e o conforto do lar é indicativo do “veneno” de Auschwitz, uma vez que os antídotos disponíveis no mundo ordinário não suprimem, em definitivo, os efeitos da moléstia.

Se a concepção de trauma3 3 Para um balanço sobre o conceito de trauma seguido de uma reflexão sobre sua relação com a literatura, ver: Seligmann-Silva (2005, p. 63-80). pode ajudar a compreender melhor a narrativa, nem por isso outros caminhos, como a análise literária, devem ser menosprezados. Muito pelo contrário: a ideia de que uma experiência não pode ser representada é um argumento convencional, detectável em escritos sobre metafísica e pressuposto na concepção moderna do sublime. Sendo assim, as testemunhas do século XX não inventaram o expediente, mas revitalizaram a tópica. Na sequência, faremos uma breve arqueologia desse procedimento para, em seguida, analisar os artifícios que Primo Levi empregou para representar os campos de concentração e formular seu testemunho.

Lugar-comum

No canto XXVI do Inferno, Dante Alighieri e Virgílio encontraram Ulisses e Diomedes no oitavo círculo, na fossa dos conselheiros pérfidos. Ao ser interrogado, o protagonista da Odisseia admite que a saudade da família não pôde superar seu desejo de conhecer novas terras e povos. Para isso, ele capitaneou uma nau e dobrou as colunas de Hércules. Para convencer os nautas, Ulisses, com ironia, aludiu à condição humana e nobre de todos: “Relembrai vossa origem, vossa essência: criados não fostes como os animais, mas donos de vontade e consciência” (ALIGHIERI, 2019ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Tradução de Cristiano Martins. Belo Horizonte: Garnier, 2019., p. 271). Cinco meses depois da partida, avistaram um grande promontório coberto de escuridão. Um turbilhão adveio dessas paragens e chocou-se com a proa do navio. Prefácio da história trágico-marítima, a tempestade causou seu naufrágio e perdição. De acordo com Lucchesi (2006LUCCHESI, Marco. A memória de Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006., p. 272), na condição de pagão, o herói seria incapaz de “elidir o hiato entre a ordem natural e a sobrenatural”. Por isso, a viagem alcança seu término em uma paisagem desolada e noturna. Desprovido do amparo sagrado, o herói industrioso foi tragicamente fulminado pelas escolhas temerárias que realizou.

Ulisses foi incapaz de atribuir sentido e, portanto, de representar a experiência que protagonizou. Dante também presencia o sublime quando, nos cantos finais do Paraíso, depara-se com a luz de Deus, que é “invisível, escuríssima; e toda luz visível, por mais intensa que seja, ainda é somente sombra ou prefácio dela, que a antecipa absolutamente” (HANSEN, 2010HANSEN, João Adolfo. Notas de leitura. In: ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Tradução e notas de João Trentino Ziller. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2010.). Por se encontrar fora do tempo e no tempo, a ideia de Deus “é irrepresentável ou só se presenta em figurações alusivas que o profetizam e confirmam como substância espiritual atravessando os objetos representados sem confundir-se com eles” (HANSEN, 2019HANSEN, João Adolfo. Agudezas seiscentistas e outros ensaios. Organização de Cilaine Alves Cunha e Mayra Laudanna. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019., p. 34-35). A afirmação de João Adolfo Hansen sobre a representação seiscentista da natureza divina também se aplica ao século de Dante Alighieri, caracterizado por uma concepção escolástica e providencialista de tempo.

Autores ingleses do século XVIII acabaram deslocando o irrepresentável da teologia para as artes, colocando o expediente a serviço da estética. O sublime passou a decorrer de fenômenos naturais capazes de proporcionar prazer. Com Edmund Burke, a noção ganhou ampla repercussão nos círculos letrados e passou a ser entendida como algo “capaz de incitar as ideias de dor e de perigo” (BURKE, 1993BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Campinas, SP: Editora da Universidade de Campinas, 1993., p. 48). Quando tais ideias se apresentam como “uma ameaça decididamente iminente”, elas não são capazes de proporcionar deleite, mas somente terror. O deleite corresponde à “sensação que acompanha a eliminação da dor ou do perigo” e está ligado à noção de sublime, que pode ser figurado por meio de elementos desarmônicos e discordes, variações bruscas, cores fortes, dimensões físicas desproporcionais (BURKE, 1993BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Campinas, SP: Editora da Universidade de Campinas, 1993., p. 46).

Traços desse expediente podem ser vislumbrados em Moby Dick, romance no qual Primo Levi afirmou encontrar tudo o que esperava de um livro. Herman Melville retratou inúmeras cenas supostamente inenarráveis: “os mares remotos e selvagens onde se movia a sua massa insular, os perigos indescritíveis e inomináveis da baleia” (capítulo 1); “Voltei-me para admirar o mar magnânimo, que não permite registros” (capítulo 13); “As coisas mais maravilhosas são sempre as indizíveis” (capítulo 23); “havia [...] um horror impreciso e inominável a seu respeito que, às vezes, superava todo o resto por sua intensidade; e tão místico e alheio à expressão, como era, que chego a desesperar de tentar colocá-lo em forma compreensível” (capítulo 42); “o grande Leviatã é a única criatura do mundo que deverá permanecer para sempre inexprimível” (capítulo 55).4 4 Gianluca Cinelli afirma que Primo Levi e o narrador/protagonista de Moby Dick, Ishmael, assumiram o papel de sobreviventes e testemunhas. Além disso, o autor sugere que o ponto de contato mais profundo entre eles não é o interesse que nutrem pelo saber ou pelos objetos sobre os quais falam (o Lager e a baleia branca), mas pelo homem. Ver: Cinelli (2020, p. 345-360).

Tais fragmentos aproximam-se do chamado “realismo formal” que, segundo Ian Watt (2010WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 9-36), remete à maneira como o romance se comprometeu com a correspondência entre obra literária e realidade imitada. Inspirados em autores como Descartes e Locke, os chamados realistas, dentre eles Defoe e Fieldings, partiram do pressuposto de que o indivíduo poderia alcançar a verdade por meio dos sentidos. O apelo à originalidade e à novidade conferia importância à experiência particular, com grande investimento na caracterização dos cenários e ambientes. O realismo deve ser pensado como uma convenção que proporciona a impressão de autenticidade ao destacar traços supostamente fidedignos.

Os romances, em geral, aderiram ao pressuposto, ou seja, conceberam a perspectiva particular como meio de se registrar a natureza com precisão e verossimilhança. Para não ficar apenas na literatura de língua inglesa, convém lembrar de uma polêmica ocorrida em terras brasileiras: Franklin Távora (1872TÁVORA, Franklin. Cartas a Cincinato. Estudos críticos de Semprônio. Pernambuco: J. W. Medeiros, 1872., p. 218) acusou José de Alencar de ter plagiado Atala, romance de Chateaubriand, e sugeriu que, ao invés de imitar matérias sublimes presentes em obras estrangeiras, ele deveria tê-las buscado “dentro das soturnas cavernas, do seio dos vales intermináveis, de cima dos rios oceânicos, dos recessos da mansão opaca das selvas”. Tal recomendação baseou-se em tratados que circulavam entre os letrados brasileiros, como o Lectures on rhetoric and belles letres (1783), de Hugh Blair, e Lições elementares de poética nacional (1840), de Francisco Freire de Carvalho. Disso presume-se, com Benjamin (2012BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 55), que a “matriz do romance é o indivíduo em sua solidão”.

Recorrente na literatura de testemunho5 5 Sobre sua presença nos testemunhos dos campos de concentração, ver: De Angelis (2009, p. 73-108). , a tópica do irrepresentável indica que um autor é incapaz de reproduzir o vivido por meio de uma narrativa, pois precisa traduzir sentimentos dolorosos com técnicas convencionais de escrita. Ao representar o horror e/ou o sublime, a recepção constitui novo obstáculo, já que os leitores, por meio da imaginação, abstraem as informações e buscam equivalências a partir de suas experiências particulares. Ciente dessa carência, Levi recorreu a comparações e analogias para produzir um entendimento aproximado, mas receava o estereótipo e a simplificação. Há, portanto, uma tensão entre o narrar e o silenciar, entre a verdade e a verossimilhança, entre representação e recepção.

Os intelectuais, segundo Primo Levi, sofreram nos campos porque desperdiçavam suas energias buscando uma razão para o cárcere. Indivíduos que seguiam alguma crença, por outro lado, viviam melhor: “Sua fome era diferente da nossa; era uma punição divina, ou uma expiação, ou uma oferta votiva, ou o fruto da podridão capitalista. A dor, neles e ao redor deles, era decifrável e, por isto, não desaguava no desespero” (LEVI, 2016aLEVI, Primo. O ofício alheio: com um ensaio de Ítalo Calvino. Tradução de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Editora Unesp, 2016a., p. 119). O terror, nesse caso, é concebido como parte de um universo mais amplo, com sentido e possibilidade de redenção metafísica. Levi, por outro lado, olhava ao redor e vislumbrava algo fugidio: “O mundo no qual se precipitava era decerto terrível, mas também indecifrável: não era conforme a nenhum modelo [...]” (LEVI, 2016aLEVI, Primo. O ofício alheio: com um ensaio de Ítalo Calvino. Tradução de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Editora Unesp, 2016a., p. 28). Esse é o mundo indecifrável que ele retrata em seu primeiro livro, especialmente no capítulo que homenageia o herói ardiloso da Odisseia.

É isto um homem?

Publicado em 1947, Se questo è um uomo destaca-se pelo seu valor literário e pela maneira como elabora questões complexas sobre a vida no Lager. A obra ampara-se na necessidade de narrar a experiência e na percepção da insuficiência da linguagem. No prólogo, Levi (1988LEVI, Primo. É isto um homem?Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 8) afirma que não pretendia contribuir com os debates historiográficos sobre o nazismo, mas “fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana”. Tal relato, lembra Seligmann-Silva (2008SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Ed. 34, 2005., p. 105), adquiriu um papel de atitude elementar, como resposta à carência absoluta de narrar. O grande obstáculo a ser superado seria o de conciliar as regras de verossimilhança do universo concentracionário com as do “nosso mundo”.

À confusão babélica dos campos somou-se a ineficácia das palavras capazes para retratar o tratamento desumano que receberam os prisioneiros:

Pela primeira vez, então, nos demos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem. Num instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível. Condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão - e, se nos escutarem, não nos compreenderão. Roubarão também o nosso nome, e, se quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, do que éramos (LEVI, 1988LEVI, Primo. É isto um homem?Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 32).

À dificuldade de dizer o ocorrido juntava-se o receio de não ser ouvido. O temor ganhou projeção onírica, pois os sonhos, estimulados pelo tormento diário, manifestavam a cena “sempre repetida da narração que os outros não escutam” (LEVI, 1988LEVI, Primo. É isto um homem?Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 86):

Aqui está a minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pessoas. Todos me escutam, enquanto conto do apito em três notas, da cama dura, do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo de acordá-lo porque é mais forte do que eu. Conto também a história da nossa fome, e do controle de piolhos, e do kapo que me deu um soco no nariz e logo mandou que me levasse porque sangrava. É uma felicidade interna, física, inefável, estar em minha casa, entre pessoas amigas, e ter tanta coisa para contar, mas bem me apercebo de que eles não me escutam. Parecem indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse. Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em silêncio” (LEVI, 1988LEVI, Primo. É isto um homem?Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 85).

No que diz respeito à urgência da narrativa e da interlocução, o capítulo “O canto de Ulisses” é paradigmático. Nele, Levi conversa com o jovem Jean Samuel, que falava bem alemão, francês e demonstrou grande interesse pelo italiano. Levi encarregou-se de apresentar-lhe a língua e recapitulou parcela do canto XXVI da Commedia. Durante uma longa caminhada em busca de provisões, tiveram a oportunidade para a primeira (e última) lição. Levi discorreu sobre a audácia de Ulisses ao penetrar o mar aberto (mare tenebrarum) e se deteve no discurso que o herói grego teria proferido diante de sua tripulação, recomendando que todos se recordassem de suas origens e não vivessem como brutos que negligenciavam a virtude e o conhecimento.

A personagem homérica foi desenhada sob o signo da ambivalência, apresentando traços positivos, como expressão da liberdade e do conhecimento, e negativos, muitos deles pautados no individualismo e na soberba. Logo, a dimensão dantesca da intertextualidade parece se encontrar, consciente ou inconscientemente, entre reconhecer a degradação infernal da qual os seres humanos são capazes e o ímpeto para a sociabilidade e o conhecimento, que pode se afirmar em contraposição à degradação do indivíduo em sociedade (­MONTEMAGGI, 2020MONTEMAGGI, Vittorio. Primo Levi e Dante. In: CINELLI, Gianluca; GORDON, Robert (eds.) Innesti. Primo Levi e i libri altrui. Oxford: Peter Lang, 2020. p. 127-142., p. 127-142).

De acordo com Vincenzo Mengaldo (2019MENGALDO, Pier Vincenzo. Il Canto di Ulisse. In: MENGALDO, Pier Vicenzo. Per Primo Levi. Turim: Einaudi, 2019.), o episódio em questão encena uma situação em que a própria memória de Levi assume protagonismo, ou seja, o objeto da narrativa é sua vontade de recordar expedientes de seu patrimônio cultural e humano, edificados nos anos de liberdade. Para Mengaldo, além de justapor poesia e prosa, a disposição não linear do testemunho permite retratar o cotidiano do Lager, a fadiga do ato de recordar, as reações de Pikolo (alcunha de Jean Samuel), as imprecisões do lembrar. Sendo assim, o episódio pode ser lido sob o signo da ambivalência: evasão mental dos confins do campo, vitória da memória sobre o esquecimento, sobreposição dos versos dantescos à confusão babélica e, ainda assim, como consciência amarga do cárcere e da provável “submersão” dos prisioneiros.

Levi, transitando entre o italiano e o francês, destrinchou alguns versos da Divina comédia. O ato de traduzir envolve empatia, implica trazer o outro para um entendimento comum. Tal prática é central porque segue na contramão da lógica dos campos de concentração, onde o desconhecimento do alemão proporcionava inúmeras dificuldades. A tradução também significa assumir uma postura solidária, inclusiva, que admite a diversidade de idiomas e, simultaneamente, a possibilidade do diálogo. A narrativa só se completa quando é ouvida, quando o ouvinte recepciona e traduz as palavras de seu interlocutor, criando condições para superar o silêncio. No entanto, superá-lo nem sempre pressupõe um relato eficaz, pois também os conceitos são imprecisos:

Assim como nossa fome não é apenas a sensação de quem deixou de almoçar, nossa maneira de termos frio mereceria uma denominação específica. Dizemos “fome”, dizemos “cansaço”, “medo” e “dor”, dizemos “inverno”, mas trata-se de outras coisas. Aquelas são palavras livres, criadas, usadas por homens livres que viviam, entre alegrias e tristezas, em suas casas. Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e ela nos faz falta agora para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, vestindo apenas camisa, cuecas, casaco e calças de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega (LEVI, 1988LEVI, Primo. É isto um homem?Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 125-126).

A tomar pela ineficácia das categorias convencionais utilizadas para caracterizar as experiências no Lager, como seria possível representá-las perante “homens livres”?

As (im)possibilidades da representação6 6 Para uma análise teórica sobre as representações de eventos limite, ver: Caldas (2019b, p. 737-757).

Joseph Conrad também afirmou que a fome, entre os escravos do Congo e arredores, não tinha equivalência:

Vocês têm ideia do que seja o suplício de uma fome prolongada, conhecem seu exasperado tormento, os negros pensamentos e a terrível ferocidade que ela inspira constantemente? Bem, eu conheço. Um homem necessita de toda sua força inata para combater a fome de forma apropriada. É realmente mais fácil enfrentar a desgraça, a desonra e a perdição da própria alma - do que a fome permanente (CONRAD, 2011CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Tradução de Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 58).

A novela Coração das trevas (Heart of darkness), publicada em 1902, retrata a violência engendrada pelo colonialismo europeu na África, mas também as inquietações de indivíduos que protagonizam situações extremas. As intenções anticolonialistas da novela são interpretadas ora como ataque dirigido à política belga no Congo, administrada pelo então rei Leopoldo II, ora como uma ofensiva contra o imperialismo em geral. Antes da Shoah, a escravidão colonial “apresentava-se como a situação mais extrema da violência social” (ALENCASTRO, 2008ALENCASTRO, Luiz Felipe. Posfácio: Persistência de trevas. In: CONRAD, Joseph. Coração das trevas. Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 153-179., p. 167). A despeito das intenções de Conrad, seu livro contribuiu com a fragilização política do rei belga.

As descrições do “coração das trevas”, verdadeiro locus horrendus, buscam amplificar o terror e a grande desmoralização que reinava no local:

O cheiro de lodo, de lodo primordial, por Júpiter!, penetrava em minhas narinas, o grande silêncio primordial da floresta estava diante de meus olhos; havia manchas de luz nas águas escuras. A lua tinha espalhado sobre tudo uma fina camada de prata - sobre a mata cerrada, sobre o lodo, sobre a parede de vegetação emaranhada, que chegava a ser mais alta que a parede de um templo, sobre o grande rio que eu via cintilar através de uma brecha escura - fluindo vastamente, sem murmúrio. Tudo isso era grandioso, promissor, silente [...]. Eu me perguntava se a quietude na face da imensidão que olhava para nós dois significava um pedido ou uma ameaça. Quem éramos nós que nos havíamos perdido naquelas plagas? Seríamos capazes de dominar aquela coisa muda, ou ela é que nos dominaria? Percebi como era grande, tremendamente grande, aquela coisa que não podia falar, e que talvez fosse surda também. O que havia no seu interior? [...] Contudo, parecia não haver nenhuma imagem associada a ela - não mais do que se me houvessem contado que havia um anjo ou um demônio lá dentro (CONRAD, 2011CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Tradução de Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 35-36).

Como o leitor poderia imaginar/compreender cenas, sentimentos e paixões que a narrativa não conseguiria formular?

Podem ver alguma coisa? Tenho a impressão de que estou tentando contar um sonho - uma tentativa vã, porque nenhum relato é capaz de transmitir a sensação onírica, onde aflora essa mistura de absurdo, surpresa e encantamento, num frêmito de emoção e revolta, essa impressão de ser capturado pelo inacreditável em que consiste a própria essência dos sonhos... (CONRAD, 2011CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Tradução de Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 37).

A associação entre a memória e o sonho indica os limites de um relato amparado em referências tradicionais, como atestam os fragmentos abaixo:

Fôramos apartados da compreensão de nossas referências; deslizávamos por ali como fantasmas, perplexos e intimamente horrorizados, como homens normais estariam diante de uma explosão de entusiasmo num hospício (CONRAD, 2011CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Tradução de Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 49).

Era impossível - de nada adiantava, também - tentar imaginar. [...] Vocês não podem compreender. Como poderiam? Tendo o chão firme sob os pés, cercados do apoio ou da crítica de vizinhos gentis, andando delicadamente entre o açougueiro e o policial, no santo terror de escândalos, prisões e hospícios, como poderiam vocês imaginar a que particular região de primitivas eras os pés desimpedidos de um homem seriam capazes de conduzi-lo, por força da solidão - uma solidão absoluta, sem nenhum policial - ao caminho do silêncio - um silêncio absoluto, onde nenhuma voz de advertência de um vizinho amável pode ser ouvida sussurrando a opinião pública? (CONRAD, 2011CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Tradução de Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 68).

Os trechos em questão reproduzem o lugar-comum analisado no início deste artigo e permitem estabelecer um elo entre Conrad e Primo Levi. Vários autores já demonstraram afinidade entre seus trabalhos. Debra Baldwin (2005BALDWIN, Debra Romanick. The Horror and the Human: The Politics of Dehumanization in Heart of Darkness and Primo Levi’s Se questo è un uomo. Conradiana, Baltimore, v. 37, n. 3, p. 185-204, 2005.), por exemplo, estudou as “políticas de desumanização” em Heart of darkness e em Se questo è un uomo, avaliando de que maneira ambos escreveram sobre atrocidades e evocaram a imagem do “vazio” para transmitir a destruição da humanidade que vitimou muçulmanos (Lager) e africanos (vítimas do imperialismo) (BALDWIN, 2005BALDWIN, Debra Romanick. The Horror and the Human: The Politics of Dehumanization in Heart of Darkness and Primo Levi’s Se questo è un uomo. Conradiana, Baltimore, v. 37, n. 3, p. 185-204, 2005., p. 185-204).

Joseph Conrad e Primo Levi “desceram” a um mundo que buscava negar a humanidade dos homens. De acordo com Lillian Feder (1955FEDER, Lillian. Marlow’s Descent Into Hell. Nineteenth-Century Fiction, Berkeley, v. 9, n. 4, p. 280-292, 1955., p. 280-292), Conrad acessa o submundo ao investigar as profundezas de sua consciência e emprega descrições realistas provenientes de sua experiência no Congo. O Inferno residiria no terror, na violência perpetrada pela colonização. O autor teria recorrido ao simbolismo do Hades para inventar uma região na qual todo homem deveria descer para entender a si mesmo. Interessa-nos não tanto os conflitos de ordem psicológica, mas a construção ficcional de Conrad, que encena o “círculo sombrio de algum inferno” (CONRAD, 2011CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Tradução de Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 21).

A insuficiência das categorias convencionais, os problemas decorrentes do testemunho e a ideia de uma vivência infernal são temas que também foram abordados por Primo Levi. No que diz respeito à eficácia da narrativa, o químico de Turim afirmou que os leitores e ouvintes geralmente partem de referências literárias e cinematográficas para questionar a ausência de fuga de Auschwitz, ou seja, eles costumam figurar um prisioneiro típico, “íntegro, em plena posse de seu vigor físico e moral, que, com a força nascida do desespero e com o engenho estimulado pela necessidade, arremete contra as barreiras, saltando-as ou transgredindo-as” (LEVI, 2016bLEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b. , p. 124). Nos campos, por outro lado, os prisioneiros encontravam-se extenuados, desprezados, subalimentados, malcuidados, desmoralizados, enfraquecidos. Segundo Levi (2016b, p. 128), há uma discrepância

que se amplia de ano para ano, entre as coisas como eram ‘lá embaixo’ e as coisas como são representadas pela imaginação corrente, alimentada por livros, filmes e mitos aproximativos. Essa imaginação, fatalmente, desliza para a simplificação e o estereótipo.

Seria ingênuo de nossa parte supor que, na condição de desdobramento de uma experiência radical, seus escritos prescindissem de elementos retóricos. Franco Baldasso (2013BALDASSO, Franco Baldasso. The Other as the Judge: Testimony and Rhetoric in Primo Levi’s Se questo è un uomo. MLN, v. 128, n. 1, p. 166-184, 2013., p. 166-184) afirmou que Levi empregou uma linguagem tênue, amena, para torná-la credível e transferir ao leitor a responsabilidade pelas interpretações e juízos. Em vez de retratar a estranheza proveniente da vivência nos campos de concentração, ele priorizou uma linguagem sóbria, talvez calculando a eficácia do discurso. Haveria, portanto, um esforço retórico, uma tentativa de organizar o relato tendo em vista sua audiência.

Para exprimir uma experiência difícil, segundo Primo Levi, é preciso levar em consideração alguns pressupostos incontornáveis. O primeiro diz respeito à figura do escritor:

É evidente que um texto perfeitamente claro pressupõe um escritor totalmente consciente, o que não corresponde à realidade. Somos feitos de Ego e de Id, de espírito e de carne, e também de ácidos nucleicos, de tradições, de hormônios, de experiências e traumas antigos e atuais; por isso somos condenados a arrastar conosco, do berço ao túmulo, um Dopelgänger, um irmão mudo e sem sombra, que também é corresponsável por nossas ações, e portanto também pelas nossas páginas. Como se sabe, nenhum autor entende a fundo aquilo que escreveu, e todos os escritores tiveram oportunidade de se surpreender com as coisas belas e feias que os críticos encontraram em sua obra e que eles não sabiam que tinham escrito (LEVI, 2016aLEVI, Primo. O ofício alheio: com um ensaio de Ítalo Calvino. Tradução de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Editora Unesp, 2016a., p. 56).

A escrita não manifesta a integralidade do vivido e o narrador não é transparente ao proferir sentenças, especialmente porque carrega consigo esse “irmão mudo e sem sombra”. A narrativa, em outras palavras, situa-se num terreno movediço, pois o narrador é continuamente afetado por compostos químicos, psíquicos, físicos e metafísicos, evocados de forma consciente ou por efeito do hábito. Segundo Levi (2016aLEVI, Primo. O ofício alheio: com um ensaio de Ítalo Calvino. Tradução de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Editora Unesp, 2016a., p. 56-57), é preciso reconhecer a existência de uma “fonte de desconhecimento e de irracionalidade que cada um de nós carrega deve ser aceita, até mesmo autorizada a se exprimir em sua (necessariamente obscura) linguagem, mas não pode ser considerada ótima ou a única fonte de expressão”. Entretanto, não se deve incorrer no equívoco de imaginar que esse traço obscuro se manifeste, exclusivamente, de forma hermética:

[...] não é verdade que só através da obscuridade verbal se possa exprimir aquela outra obscuridade da qual somos filhos e que repousa em nosso íntimo. Não é verdade que a desordem seja necessária para descrever a desordem; não é verdade que o caos da página escrita seja o melhor símbolo do caos derradeiro ao qual nos devotamos: acreditar nisso é típico do nosso século inseguro (LEVI, 2016aLEVI, Primo. O ofício alheio: com um ensaio de Ítalo Calvino. Tradução de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Editora Unesp, 2016a., p. 60).

Primo Levi descreveu os horrores do Lager recorrendo a uma escrita límpida, amena, com inegável qualidade literária. Ainda assim, não deixou de reconhecer as dificuldades implicadas no ato de representar a experiência:

Realmente nossa capacidade de representação é escassa, e quem deseje ou queira demonstrar quão grandes são as coisas muito grandes e quão pequenas são as pequenas se depara com uma antiga surdez nossa, além da insuficiência da linguagem comum. Perceberam isso desde o início os precursores de ciências como a Astronomia e a Física Nuclear, e procuraram compensar essa insuficiência recorrendo ao paradoxo e à proporção [...]. O valor didático desses artifícios pode variar entre limites muito amplos e depende sobretudo de sua elegância: se esta falta, renasce no leitor o mesmo sentimento de frustração que tinha experimentado ao ler os dados reais (LEVI, 2016aLEVI, Primo. O ofício alheio: com um ensaio de Ítalo Calvino. Tradução de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Editora Unesp, 2016a., p. 109).

O uso do paradoxo e da proporção não convém apenas em situações particulares e dependentes de um conhecimento especializado, como na Astronomia e Física Nuclear, mas também em casos envolvendo episódios dramáticos. É fundamental a importância conferida ao artifício, meio de suprir a “insuficiência da linguagem comum”. Para Levi (2016aLEVI, Primo. O ofício alheio: com um ensaio de Ítalo Calvino. Tradução de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Editora Unesp, 2016a., p. 113), a “nossa imaginação tem nossas dimensões, e não podemos pretender que ela as supere”.

Dizer que a narrativa de Primo Levi se caracteriza pela clareza não significa atribuir-lhe falta de complexidade. Luca de Angelis (2009DE ANGELIS, Luca. Nell’oscurità le parole pesano il doppio. Note a Primo Levi. In: NEIGER, Ada. Mémoire oblige Riflessioni sull’opera di Primo Levi. Trento: Università degli Studi di Trento, 2009. p. 73-108., p. 73-108) afirma que o propósito do escritor é tornar a escuridão visível e nítida. Para tanto, ele empregou antinomias, contradições, digressões, metáforas. A clareza de Levi, segundo o autor, tem um “coração das trevas”, ou seja, a escrita é iluminada por uma luz infernal, pois descreve a obscuridade para atuar contra ela, para evitar sua reincidência. O paradoxo, nesse caso, reside na necessidade de usar palavras compreensíveis para referir eventos que incentivam o silêncio.

Há uma passagem em que Primo Levi recorre à mitologia para contrapor a fome insaciável, experimentada durante a vigília, e os banquetes oníricos (LEVI, 1988LEVI, Primo. É isto um homem?Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 61). Para amplificar os tormentos provenientes da fome, Levi utilizou uma figura mitológica confinada no Hades e condenada a sentir fome e sede incessantes. Embora houvesse, ao seu redor, alimentos e água em fartura, as provisões deslocavam-se, incessantemente, quando Tântalo buscava tomá-las para si. O pesadelo relatado por Primo Levi projeta as mesmas carências ao assinalar o caráter fugidio dos víveres. A diferença é que o prisioneiro dos campos de concentração não cometeu hýbris para merecer destino tão fatídico.

Em outra passagem, Levi (2016bLEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b. , p. 66) afirma que as verdadeiras testemunhas do Lager são aquelas que fitaram a Górgona e que, por causa disso, não voltaram ou ficaram mudas. Jean-Pierre Vernant (1988VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos - figurações do outro na Grécia antiga: Ártemis, Gorgó. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988., p. 61) afirmou que esse monstro “exprime e preserva a alteridade radical do mundo dos mortos, do qual nenhum vivo pode aproximar-se”. Encará-lo significa testemunhar o terror, ver-se face a face com o além. É daí que provém seu aspecto inaudito, indecifrável. Como afirmou Levi (2016bLEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016b. , p. 28), em seu famoso capítulo sobre a zona cinzenta, o mundo dos campos de concentração era

[...] decerto terrível, mas também indecifrável: não era conforme a nenhum modelo, o inimigo estava ao redor, mas também dentro, o ‘nós’ perdia seus limites, os contendores não eram dois, não se distinguia uma fronteira, mas muitas e confusas, talvez inúmeras, separando cada um do outro.

Embora figuras como Tântalo e a Górgona possam representar o terrível, algo continua em suspenso, afrontando limites, categorias, linguagens. Este confronto, no entanto, parece desdobrar-se de uma lógica mais antiga. Luiz Marques (2017MARQUES, Luiz. Vasari e a superação da Antiguidade: do Nec Plus Ultra ao Plus Ultra. In: RAGAZZI, Alexandre et al. (orgs.). Interdisciplinaridade sobre o Renascimento Italiano. São Paulo: Editora Unifesp, 2017.) propôs o século XVI como momento em que houve a superação do Nec Plus Ultra (não mais além) pelo Plus Ultra (mais além). Para o autor, existia um comedimento ou uma tendência, ao menos no mundo ocidental, de respeitar certos limites para não incorrer em hýbris (ação descomedida que ofenderia os deuses e, por isso mesmo, seria passível de punição). As colunas que Hércules havia erigido sobre os rochedos de Gibraltar e Ceuta simbolizam, no caso grego, essa limitação, que é de natureza geográfica, filosófica e moral. A partir da expansão marítima, no entanto, tal lógica teria sido subvertida, de modo que ultrapassar os mesmos limites configuraria uma ação virtuosa.

Há uma escalada sistemática de forças centrípetas situadas entre a postura soberba do Ulisses dantesco e o genocídio nazista, que pode ser vislumbrada, por exemplo, em Moby Dick e em Coração das trevas. Depois de cartografar mares e perscrutar continentes e ilhas, buscou-se confrontar os limites do humano. Se a sombra de Ulisses, como sugeriu Boitani, cobriu a ficção ocidental, o nazismo velou a história com trevas. O encontro do herói homérico com os campos de concentração só poderia acontecer, portanto, na penumbra, o que torna indistintos os caminhos que conduzem às ilhas da salvação/perdição.

Auschwitz e os “restos”

Se o muçulmano, nas palavras de Agamben (2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 76), seria o “guardião do umbral de uma ética, de uma forma de vida, que começa onde acaba a dignidade”, Levi seria o cartógrafo dessa “nova terra ethica”, pois sulcou, assim como Ulisses, mares tempestuosos. As testemunhas “não são nem os mortos, nem os sobreviventes, nem os submersos, nem os salvos, mas o que resta entre eles” (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 162). O “resto” de Auschwitz, portanto, reside nesse “entre”. É nele que a poética pode significar a experiência, afirmar o não dito, trabalhar o recalcado. O lugar do testemunho situa-se entre o humano e o inumano, cujas fronteiras são tênues e estão sempre em construção. A literatura de testemunho, portanto, é um locus de encontro entre passado e presente, destruição e criação, testemunha e leitor. Ela é um “entre”, um hiato, um intervalo, uma descontinuidade, o “outro” do negacionismo, a (re)formulação da dor, o choque entre a enunciação e o irrepresentável, o particular e o absoluto, o sublime e o ordinário.

Fred Alford (2009ALFORD, C. Fred. After the Holocaust: the Book of Job, Primo Levi and the Path to Affliction. New York: Cambridge University Press, 2009.) comparou os escritos de Primo Levi e o Livro de Jó. No texto bíblico, Jó encontra algo semelhante à paz quando, depois de ser vitimado por uma série de infortúnios, descobre que não existem respostas satisfatórias para suas indagações, especialmente para aquelas que pressupõem a necessidade de uma equivalência entre culpa/pecado e castigo. A única atitude adequada, quando somos confrontados com o inexplicável, o moralmente ultrajante, o insuportavelmente triste, seria a aceitação.7 7 Sobre o Livro de Jó, ver: Bottéro (2011, p. 255-283) e Líndez (2014, p. 137-165). O curioso é que Levi, em La ricerca delle radici (1981LEVI, Primo. La ricerca delle radici. Torino: Einaudi, 1981.), principia uma seleção de textos que marcaram sua formação com um fragmento desse texto bíblico. Para Alford, uma maneira possível de refletir sobre o assunto seria distinguir os conceitos de aflição e abjeção: o primeiro remete ao sofrimento que ocorre dentro de um universo maior de significados. A abjeção, por sua vez, indica a irrupção de uma realidade insuportável, opressora e aterrorizante. Jó e Levi estariam sujeitos a ela, afinal, nenhum deles se recupera. O “justo sofredor” foi o único a encontrar purificação no final. O químico de Turim, por sua vez, não teria encontrado redenção devido à maneira como testemunhou a corrupção dos corpos e o fio tênue que separa a vida da morte. Sua experiência suplantaria a de Jó, pois teria abalado, em definitivo, a verossimilhança da transcendência. Auschwitz tornou o mundo social menos racional por amplificar o absurdo.

O Lager, ainda segundo Alford (2009ALFORD, C. Fred. After the Holocaust: the Book of Job, Primo Levi and the Path to Affliction. New York: Cambridge University Press, 2009.), subverte a noção de sublime ao transgredir a esperança, a fé na razão e no progresso, a crença em Deus. Não se trata do absurdo natural, mas de excesso de absurdo provocado pelo homem. Considerá-lo um evento sublime implicaria, segundo o autor, conceder a Auschwitz um estatuto transcendente. Se Jó desconhece a razão de seu sofrimento e, ao final, descobre que a questão permanecerá incógnita, nem por isso teve sua fé abalada: ele percebe que existe uma ordem no universo, detentora de uma beleza sublime da qual podemos participar. Seu sofrimento, portanto, admite a transcendência, que é responsável por apaziguar sua tristeza e reforçar sua fé. Com a Shoah, a esfera social torna-se mais “absurda” do que o sublime natural, e essa sobreposição culmina no empobrecimento dos dois mundos. A natureza perde, então, sua capacidade de proporcionar experiências grandiosas ou de retirar dela traços transcendentais. A amplificação do absurdo, decorrente do mundo social, teria ocasionado a racionalização do mundo natural a ponto de atenuar seus efeitos sobre a imaginação.

Admitindo ou não a pertinência da categoria do sublime, a ideia do irrepresentável se ajusta a ela, pois supõe algo capaz de sobrepujar a imaginação, de acentuar traços obscuros, ainda que às custas de uma prática dolorosa. Por outro lado, a possibilidade de produzir um relato deleitável reduz-se drasticamente devido ao “excesso de absurdo” que Alford mencionou. É preciso reconhecer que a narrativa não atinge plenamente o efeito que se espera do sublime, ainda que recorra às suas tópicas para representar, metonimicamente, os horrores perpetrados pelos nazistas. Não poderíamos falar de uma modalidade decadente do sublime, como sugeriu Jeanne Marie Gagnebin (2006GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006., p. 105-106)?

[As] descrições da impossibilidade da descrição remetem-nos à tradição da teologia negativa e da estética do sublime. Aliás, toda discussão de uma estética do irrepresentável, do indizível ou do sublime, está muito presente nas pesquisas atuais sobre a literatura dos campos de concentração. Mas o sublime não designa mais o élan para o inefável que ultrapassa nossa compreensão humana. Ele aponta para cinzas, cabelos, cabeça, dentes arrancados, sangue e excrementos. Agora, ele não mora só num além do homem, mas também habita um território indefinível e movediço que pertence ao humano, sim, pois homens sofreram o mal que outros homens lhes impuseram, mas que, simultaneamente, delineia uma outra região, escura e ameaçadora, que gangrena o belo país da liberdade e da dignidade humanas. Um “sublime” de lama e de cuspe, um sublime por baixo, sem elevo nem gozo.

Pensando na “poética da incompletude”, no sublime “sem elevo nem gozo”, talvez o relato do sofrimento fique sempre aquém de sua dimensão experienciada (FARGE, 2011FARGE, Arlette. Lugares para a história. Minas Gerais: Autêntica, 2011., p. 13-24). As palavras desfilam imagens e episódios cênicos com eficácia, tornando o leitor uma “testemunha ocular” do horror, mas é provável que não atinjam a vivacidade dos pesadelos, como sugeriu Joseph Conrad, mas também Primo Levi no desfecho de A trégua:

É um sonho dentro de outro sonho, plural nos particulares, único na substância. Estou à mesa com a família, ou com amigos, ou no trabalho, ou no campo verdejante: um ambiente, afinal, plácido e livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento; mas, mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando o sonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas as vezes de forma diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-se caos: estou só no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa, e sei também que sempre soube disso: estou de novo no Lager, e nada era verdadeiro fora do Lager. De resto, eram férias breves, o engano dos sentidos, um sonho: a família, a natureza em flor, a casa. Agora esse sonho interno, o sonho de paz, terminou, e no sonho externo, que prossegue gélido, ouço ressoar uma voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve e obediente. É o comando do amanhecer em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada: levantem, “Wstavach” (LEVI, 2010LEVI, Primo. A trégua. Tradução de Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010., p. 212-213).

Um lugar ameno e familiar se desfaz em meio a um locus horrendus turvo, caótico, gélido. O verbo “desmoronar” é sugestivo. Para Jean-François Lyotard, Auschwitz foi um sismo que, além de destruir vidas e deixar cidades em ruínas, também arruinou o sismógrafo, ou seja, o mecanismo capaz de conferir-lhe dimensões (apudCALDAS, 2020CALDAS, Pedro S. P. O evento limite em Primo Levi: uma leitura de Os afogados e os sobreviventes. Literatura e Sociedade, v. 25, 2020., p. 53). Tal cataclismo, ainda que coloque em xeque a eficácia das construções convencionais, não as torna inoperantes. O estudioso, ao lidar com os testemunhos, não deve negligenciá-las, mas, ao contrário, indagar sobre as formulações que comparecem e atribuem sentido à experiência. Afinal, do genocídio restam as testemunhas e suas palavras. Primo Levi, como se sabe, as empregou assiduamente. Mesmo sem dispor de um sismógrafo operante, sentiu o chão vacilar sob os pés e empregou a técnica da escrita para refazer as medidas e transmitir um “desmoronar”, assim como Ulisses informou as circunstâncias do seu naufrágio no mare tenebrarum.

O “irrepresentável” pode ser concebido não apenas como uma falta, lacuna ou ausência, mas também como um lugar-comum empregado para gerir afetos e proporcionar irrupções do “real” em doses mais ou menos calculadas. Karl Erik Schøllhammer (2012SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Realismo afetivo: evocar realismo além da representação. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 39, p. 129-148, jan./jun. 2012.) lembra que é possível localizar, no século XX, um esforço no território das artes e, em particular, na literatura, de superar os limites do “Realismo histórico” e, portanto, da representação mimética. Em seu lugar, buscaram-se, a princípio, mecanismos performáticos desprovidos de mediações e com potencial para transmitir aspectos da realidade crua. Nesse caso, a “distorção” do uso discursivo convencional e a aplicação do traço transgressivo seriam capazes de proporcionar essa aproximação com a realidade. O “Realismo traumático” foi incumbido de manifestar elementos cruéis, violentos e abomináveis ligados a eventos radicais com a menor mediação simbólica possível, para provocar efeitos de repulsa, desgosto, horror. O “real” da arte, no caso, não se encontraria em sua referencialidade, mas na maneira como provoca efeitos sensuais e afetivos. Por outras palavras, ele se concretiza na interlocução.

A estética negativa, segundo Schøllhammer (2012SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Realismo afetivo: evocar realismo além da representação. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 39, p. 129-148, jan./jun. 2012., p. 134), compreendida como uma “estética de choque”, parece paradoxal ao tentar expressar o inexprimível, manifestar o irrepresentável. Tomando como referência as análises do filósofo italiano Perniola, o autor julga insuficiente interpretar o “Realismo extremo” em termos de choque, desgosto e abjeção, sugestão da qual parece compartilhar Primo Levi. Ele sugere explorar uma experiência estética positiva capaz de suspender as fronteiras entre o interior e o exterior, o eu e o outro. Uma “estética afetiva” que intercala arte e realidade, ética e estética, autor e leitor, tornando possível uma unidade “entre beleza sem paz contemplativa, por um lado, e por outro, sublimidade sem transcendência, expondo a comunidade participativa de autores e receptores para um outro tipo de engajamento ético na realidade” (SCHØLLHAMMER, 2012SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Realismo afetivo: evocar realismo além da representação. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 39, p. 129-148, jan./jun. 2012., p. 139). O texto representa e, simultaneamente, atua, ou seja, ele possibilita uma gestão da representação ao produzir efeitos de realidade e suscitar afetos.

Levi, ao refletir sobre os campos de concentração, discerniu três traumas, decorrentes da ausência de solidariedade, do isolamento linguístico (ocasionado pela multiplicidade de idiomas e pela consequente falta de comunicação) e da maneira como vítimas e algozes se comunicavam aos gritos e com vasto uso da violência (CALDAS, 2016CALDAS, Pedro Spinola Pereira. O espelho deformante: um estudo sobre “É isto um homem?”, de Primo Levi. In: CHARBEL, Felipe; GUSMÃO, Henrique Buarque de; MELLO, Luiza Larangeira da Silva (orgs.). As formas do romance: estudos sobre a historicidade da literatura. Rio de Janeiro: Ponteio, 2016., p. 178). Se a concepção de trauma ajuda a compreender as consequências do evento catastrófico e as motivações da testemunha, que recorre ora ao silêncio, ora à narrativa, ela também pode ser encarada como efeito pretendido pelo relato, ou seja, como componente da “estética afetiva”, como porta de acesso à realidade transbordante, que irrompe sob o signo do irrepresentável. Há uma zona de litígio que tensiona o sublime e o abjeto, o estupor e a repulsa, e que formula o trauma em sua natureza lacunar. Entretanto, o fundamento dessa tensão tem desdobramentos retóricos, persuasivos, com finalidade ética, pois a figuração hiperbólica do efeito traumático pressupõe a expectativa de um mundo esperado, supostamente capaz de suplantar a possibilidade de repetição da experiência que nega os horizontes da representação.

Considerações finais

Contornando a afirmação de Adorno de que seria impossível fazer poesia após o nazismo, Levi alegou: “depois de Auschwitz não se pode mais fazer poesia, a não ser sobre Auschwitz” (apudFERRERO, 2016FERRERO, Ernesto. Nota biográfica e fortuna crítica. In: LEVI, Primo. O ofício alheio. Tradução de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Editora Unesp, 2016., p. 284). Tal assertiva vai ao encontro das hipóteses levantadas neste artigo: (1) a percepção da literatura de testemunho como desdobramento de situações extremas e traumáticas não invalida a possibilidade de representar a experiência por meio da linguagem; (2) eventos traumáticos não demandam, necessariamente, uma linguagem desordenada, obscura ou hermética; (3) os horrores do Lager não são atenuados pelo uso de convenções, ainda que negá-las em prol de uma narrativa verossímil amplifique os horrores experienciados; (4) o trauma, categoria que pode ser utilizada para referir um evento catastrófico ou a figura do sobrevivente, também deve ser encarado como efeito e, portanto, como um constructo elaborado com vistas a uma “estética afetiva”; (5) o irrepresentável, comumente pensado como lacuna, falha ou fruto de uma tensão entre catástrofe e representação, pode ser encarado como expediente retórico que, longe de negligenciar o caráter destrutivo do evento, amplifica os horrores experienciados e estabelece um vínculo entre literatura e mal; (6) os relatos de Primo Levi não apenas figuram a experiência, no sentido de relatar memórias, mas também estabelecem uma teoria sobre o próprio ato de representar, dirigido ao leitor e respaldado por um projeto que visa, antes de tudo, impedir a repetição do mal, que é objeto e efeito de sua narrativa.

Um cachalote, quando visto de perto, não apresenta nada como “um rosto”, devido às suas dimensões (MELVILLE, 2019MELVILLE, Herman. Moby Dick, ou A baleia. Tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo: Editora 34, 2019., p. 356). Levi (1988LEVI, Primo. É isto um homem?Tradução de Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 91) também retratou os muçulmanos “sem rosto” que não cessaram de povoar sua memória, assim como Conrad (2011CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Tradução de Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 2011., p. 21) discorreu sobre escravos que “não passavam de escuras sombras, doentes e famintas, amontoadas confusamente na penumbra esverdeada”. As cenas são desconcertantes, especialmente as últimas, pois nelas os sobreviventes, versões em carne e osso de Ulisses, testemunham os “afogados” e, portanto, o próprio Inferno com seus mortos. No caso de Levi, trata-se de uma nékya por meio da qual ele se depara com os “restos” de Auschwitz.8 8 Sobre a associação entre o topos da catábase e a literatura de testemunho, ver: Basevi (2017, p. 57-77).

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz São Paulo: Boitempo, 2008.
  • ALENCASTRO, Luiz Felipe. Posfácio: Persistência de trevas. In: CONRAD, Joseph. Coração das trevas Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 153-179.
  • ALFORD, C. Fred. After the Holocaust: the Book of Job, Primo Levi and the Path to Affliction. New York: Cambridge University Press, 2009.
  • ALIGHIERI, Dante. A divina comédia Tradução de Cristiano Martins. Belo Horizonte: Garnier, 2019.
  • BALDASSO, Franco Baldasso. The Other as the Judge: Testimony and Rhetoric in Primo Levi’s Se questo è un uomo. MLN, v. 128, n. 1, p. 166-184, 2013.
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  • 2
    Sobre a angústia em Primo Levi, ver: Caldas (2019a, p. 24-46). Sobre a vergonha, ver: Agamben (2008).
  • 3
    Para um balanço sobre o conceito de trauma seguido de uma reflexão sobre sua relação com a literatura, ver: Seligmann-Silva (2005, p. 63-80).
  • 4
    Gianluca Cinelli afirma que Primo Levi e o narrador/protagonista de Moby Dick, Ishmael, assumiram o papel de sobreviventes e testemunhas. Além disso, o autor sugere que o ponto de contato mais profundo entre eles não é o interesse que nutrem pelo saber ou pelos objetos sobre os quais falam (o Lager e a baleia branca), mas pelo homem. Ver: Cinelli (2020, p. 345-360).
  • 5
    Sobre sua presença nos testemunhos dos campos de concentração, ver: De Angelis (2009, p. 73-108).
  • 6
    Para uma análise teórica sobre as representações de eventos limite, ver: Caldas (2019b, p. 737-757).
  • 7
    Sobre o Livro de Jó, ver: Bottéro (2011, p. 255-283) e Líndez (2014, p. 137-165).
  • 8
    Sobre a associação entre o topos da catábase e a literatura de testemunho, ver: Basevi (2017, p. 57-77).
  • 1
    Agradeço a Jean Pierre Chauvin, Pedro Caldas e Lainister Esteves pela leitura do trabalho e comentários.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2021
  • Aceito
    22 Jun 2021
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