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Qual Brasil? Projetos de nação em debate no contexto da Independência brasileira

Which Brazil? Debating projects for nationhood in the context of Brazil’s Independence

¿Qué Brasil? Debatiendo proyectos de nación en el contexto de la Independencia de Brasil

Qual Brasil? Quando lançamos a proposta convocando para este dossiê tínhamos em mente reunir um conjunto de artigos que apresentassem a forma como, a partir da análise de seus escritos e ações, algumas das principais pessoas que atuaram no cenário da Independência do Brasil responderam a essa pergunta. Quais foram as ideias, paixões e interesses que orientarem as suas ações e qual o papel estratégico que essas pessoas tiveram naquele contexto. Ao recolhermos a rede, no entanto, fomos surpreendidas por temas e abordagens que se associam à proposta original, mas que a ultrapassam pelas inúmeras possiblidades de caminhos que revelaram.

Nosso autor convidado, José Luís Cardoso, sintetiza em seu artigo o ponto sem retorno, digamos assim, que detonou o processo da Independência do Brasil. A seu ver a resposta à invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas foi a transferência da Corte e essa teve como consequência o fim do exclusivo colonial. A transição para o sistema de livre comércio desarticulou a economia do império português e, a partir daí, a união entre os dois reinos seria mantida artificialmente até 1822. Como diz o autor: “o ‘pecado original’ da abertura dos portos e dos tratados de amizade e comércio com a Grã-Bretanha tornava impossível o regresso a um pacto colonial de feição mercantilista”. Mesmo a principal liderança do vintismo, Manuel Fernandes Tomas, reconheceria a inevitabilidade da Independência, mas também do respeito constitucional ao desejo de separação dos brasileiros. Cardoso vê nas acusações que os brasileiros fizeram às Cortes de trabalharem pela recolonização do Brasil, uma estratégia que teria funcionado como combustível necessário para impulsionar o movimento pela Independência. Foi o estresse causado pela evolução dos acontecimentos que não permitiu que ambos os lados se conciliassem em torno do projeto proposto pelas Cortes de organização das relações econômicas entre os dois reinos. Projeto que não seria muito diferente do que a proposta redigida por José Bonifácio.

Vários dos artigos aqui reunidos oferecem perspectivas de como aqueles que viveram o momento buscaram negociar a ruptura política e conciliar o novo status político do Brasil com seus interesses. O artigo de Tâmis Parron analisa e discute as teses sobre a suposta contradição que haveria entre o franco liberalismo expresso na Carta de 1824 e a ausência ali de qualquer referência à escravidão. Atendendo à cronologia e à geografia da revolução e do constitucionalismo no mundo atlântico, Parron oferece uma nova leitura em que a solução brasileira para o problema seria uma espécie de “síntese do mundo”, forjada à medida em que as elites despolitizaram conceitos que mobilizaram os revolucionários do século XVIII, principalmente o conceito de representação. A Carta de 1824, escrita a portas fechadas como a Constituição dos Estados Unidos, atendeu, com seu silêncio, às expectativas dos escravocratas.

Em seu artigo, Jeffrey Silva desvenda como, nos anos críticos de 1821 e 1822, o projeto de um tribunal da relação em Pernambuco tornou-se “campo de disputa política” entre D. Pedro, ainda regente e as Cortes portuguesas. No contexto da implementação e reorganização dos tribunais e da magistratura a partir da nova ordem constitucionalista, o tribunal pernambucano foi alvo de discussão nas cortes de Lisboa que confrontaram interesses de grupos brasileiros aos de alguns deputados portugueses. Marcelo Galves e Yuri Costa, analisando questões envolvendo navios e mercadorias apreendidos pelos dois lados durante as guerras da Independência, revelam como, dentro daquele contexto de conflito e ruptura, o direito de propriedade permaneceu como sendo base crucial da ordem política. Lembram ainda que o direito de propriedade foi o principal critério previsto na Carta para distinção entre cidadãos ativos e passivos do Império e que, diante das incertezas sobre o futuro, foi tratado como um bem inegociável.

Isabel Correa apresenta uma análise do processo que levou José Bonifácio a tendo “nascido português numa monarquia absoluta, morrer como brasileiro num império constitucional”. Ela o inclui no grupo de reformistas ilustrados que se formou em torno de D. Rodrigo de Sousa Coutinho e o identifica como um conservador “regalista”, empenhado em transformar a sociedade, preservando e aprimorando as instituições. José Bonifácio desejava o engrandecimento e a modernização do império português, cujo sustentáculo era o Brasil. Ele não aceitava a ideia de um Brasil separado de Portugal e, menos ainda, a desintegração do Reino americano. Foi isto que fez com que o “português castiço” como se identificava, viesse a liderar a rebelião contra as Cortes de Lisboa.

Ricardo Ferreira e Jean Marcel de Carvalho França analisam a trajetória do Marquês de Maricá, suas leituras e suas Máximas, obra de enorme sucesso na primeira metade do século XIX, para demonstrar como as elites brasileiras que emergiram no contexto da Independência mantiveram o compromisso com as ideias europeizantes sobre família, moralidade e patriarcado. Ana Delmas analisa a correspondência das irmãs de D. Pedro I que se fixaram na Espanha após o casamento com os tios, irmãos de Carlota Joaquina. Totalmente distantes do espírito liberal e constitucionalista do tempo, suas observações e reprovações aos atos do irmão no Brasil são marcadas pelo espírito do absolutismo e da contrarrevolução.

O artigo de Alexandre Figueiredo e o de Amaury Gremaud e Miqueias Mugge, por sua vez, mostram que os compromissos das elites com as continuidades político-econômicas e político-culturais não impediram a consideração de projetos transformadores informados tanto pelo reformismo lusófono no que dizia respeito a uma possível opção pela industrialização em detrimento do agrarismo quanto pelos relatos relativos ao modelo de colônias implementadas pelo império russo que interessaram a José Bonifácio. Figueiredo e Gremaud revelam que a identidade “naturalmente” agrária, definida pelo livre-mercado ou a perspectiva de um futuro econômico com uma estrutura diversificada, a partir da ação estatal, foram opções discutidas na Constituinte de 1823. Miqueias Mugge mostra como o bávaro Georg von Schaeffer e José Bonifácio compartilharam um projeto de colonização nas fronteiras do Império inspirado em projetos similares implementados na Rússia. Organizadas a partir de um conjunto de instituições que serviriam de ponte entre centro e periferia, essas colônias espalhariam pelos pontos mais distantes do Brasil uma cultura comum orientada pelo centro de poder estabelecido na Corte do Rio de Janeiro.

Três artigos contemplam as manifestações da imprensa portuguesa diante do processo da Independência do Brasil. Adelaide Vieira Machado analisa textos do jornalista Liberato Freire de Carvalho publicados no O Campeão Português em Lisboa. Apesar de achar que o Brasil precisava construir sua independência, Liberato acreditava que esse movimento poderia se dar de forma gradual sob a proteção da Constituição liberal portuguesa de 1822. O Brasil deveria ter esperado mais uns anos de convívio constitucional para assumir de forma amadurecida a sua independência. No entanto, Liberato considerava um desatino o envio de tropas para combater a Independência do Brasil: “não havia justiça no recurso à força para obrigar a uma união não desejada”. A seu ver, aquele seria o momento de negociar tratados em benefício de Portugal e não de fazer a guerra a um reino que podia vir a ser importante aliado.

Os artigos de Marcelo Basile e João Pedro Ferreira analisam textos humorísticos e críticos que foram publicados pela imprensa portuguesa ao longo dos debates travados nas Cortes Constituintes de Lisboa entre 1821 e 1822 e em sua sequência. Ferreira analisa um conjunto de periódicos liberais e absolutistas e nos apresenta uma galeria de jornalistas e panfletários portugueses que, de forma humorística se referiram ao Brasil, aos brasileiros e às suas pretensões, em textos em que predominam as referências depreciativas à forte presença africana. Marcelo Basile analisa um conjunto de 18 panfletos publicados em Portugal que têm por objeto a crítica à própria imprensa e à excessiva multiplicação de panfletos e periódicos sob os títulos: Mestre Periodiqueiro, Braz Corcunda, Exorcismos e Cordão da Peste. Dizendo que “a sátira, a maledicência, a calúnia são para um Periódico, o que o sal, a pimenta, e cravo é [sic] para a comida”, o Mestre Periodiqueiro satiriza também a linha argumentativa de que deveria se valer quem quiser ser periodista: o redator deve confessar não ter “luzes, e talentos”, sendo impelido apenas pelo “amor da Nação”.

A este dossiê também se associam as resenhas assinadas por Neuma Brilhante, Carlos Gabriel Guimarães, Lidiane Vieira e Valter Lenine Fernandes, contemplando obras relativas ao tema da Independência que foram lançadas recentemente. Fecha o volume a entrevista concedida a Kirsten Schultz por Cecilia Salles de Oliveira e João Paulo Garrido Pimenta, editores do Dicionário da Independência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022
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