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Da liberdade econômica à independência política do Brasil (1808-1822)

From economic freedom to the political independence of Brazil (1808-1822)

De la libertad económica a la independencia política de Brasil (1808-1822)

RESUMO

Este artigo discute as condições econômicas que ditaram o fim do regime de exclusivo colonial que caracterizou o relacionamento entre Portugal e o Brasil até 1808, ano em que foi decretada a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional. Tais condições ajudam a compreender a impossibilidade de reconstrução do Império após a Revolução Liberal de 1820, conforme claramente intuíram alguns deputados às Cortes Constituintes. A miragem de uma recolonização impraticável constituiu, no entanto, importante estímulo para a construção da independência política da nação brasileira.

Palavras-chave:
pacto colonial; liberdade econômica; Revolução Liberal; recolonização; independência política

ABSTRACT

This article discusses the economic conditions that dictated the end of the exclusive colonial regime that characterized the relationship between Portugal and Brazil until 1808, the year in which the opening of Brazilian ports to international trade was decreed. Such conditions help to understand the impossibility of rebuilding the empire after the liberal revolution of 1820, as clearly perceived by some deputies to the Constituent Courts. The mirage of an impractical recolonization represented, however, an important stimulus for the construction of the political independence of the Brazilian nation.

Keywords:
colonial pact; economic freedom; liberal revolution; recolonization; political independence

RESUMEN

Este artículo discute las condiciones económicas que dictaron el fin del régimen exclusivo colonial que caracterizó la relación entre Portugal y Brasil hasta 1808, año en que fue decretada la abertura de los puertos brasileños al comercio internacional. Tales condiciones ayudan a comprender la posibilidad de reconstrucción del imperio después de la revolución liberal de 1820, conforme claramente intuirían algunos diputados a las Cortes Constituyentes. La mirada hacia una recolonización impracticable constituyó, sin embargo, un importante estímulo para la construcción de la independencia política de la nación brasileña.

Palabras clave:
pacto colonial; libertad económica; revolución liberal; recolonización; independencia política

Introdução

A pergunta Qual Brasil? sugere duas adicionais interrogações prévias: o Brasil antes do grito de 7 de setembro? Ou o Brasil que a partir de então inicia o seu trajeto como nação independente?

O título deste artigo contém a resposta à pergunta acima desdobrada. Trata-se, por conseguinte, de analisar as condições e os contextos econômicos que ajudam a explicar a inevitabilidade de um processo de independência política que foi ganhando progressivo terreno a partir de 1808. A construção da nação brasileira ficou muito a dever à erosão de um pacto colonial de caráter mercantilista que foi gradualmente perdendo justificação para se manter em vigor. Ou seja, o processo de independência política foi antecedido de mudanças significativas no relacionamento comercial e econômico entre Portugal e a joia da sua coroa imperial. Quando alguns dos protagonistas da Revolução Liberal de 1820 se queixavam, com razão ou com falta dela, que Portugal se tinha tornado uma colônia do Brasil, abriam caminhos interpretativos sobre as razões de descontentamento latente que envolvia atores políticos e agentes econômicos em territórios separados pelo Atlântico, com as Ilhas Britânicas de permeio.

O objetivo central deste artigo é, pois, o de revisitar incursões historiográficas sobre temas importantes para a compreensão dos fatores econômicos da Independência brasileira. Porque o tema já foi anteriormente trabalhado noutros lugares, e para evitar repetições de argumentos fundamentados na análise de fontes documentais, optarei por uma abordagem sintética que convida o leitor a dialogar com apreciações certificadas pelo amplo legado historiográfico já existente.1 1 Sobre os temas em análise neste artigo, retomo e desenvolvo argumentos inicialmente apresentados em Cardoso (2008) e Cardoso (2022). Para uma visão de conjunto sobre a historiografia da Independência brasileira, cf. Pimenta (2009).

Na primeira seção do artigo recordo o momento crucial da abertura dos portos do Brasil em 1808 e a forma como um novo sistema de maior liberdade econômica foi justificado nos planos político e ideológico. A segunda seção detém-se na atitude dos liberais regeneradores portugueses antes e durante a reunião das Cortes Constituintes, identificando posicionamentos sobre a gradual tomada de consciência da inevitabilidade da independência política brasileira. Neste mesmo sentido, a seção 3 discute o modo como alguns protagonistas defensores de uma trajetória autônoma do Brasil foram fazendo convergir os seus argumentos em favor de uma nação independente, ainda que sob a égide política de um representante da Casa de Bragança. Na seção 4, procuro caracterizar o debate sobre a suposta tentativa de recolonização do Brasil pelas Cortes instaladas em Lisboa, explicando a vertente retórica e a impossibilidade histórica de tal miragem. No final, apresento breves notas conclusivas.

1. A abertura dos portos e os tratados de amizade e comércio entre Portugal e a Grã-Bretanha

O tema tem sido amplamente debatido pela historiografia portuguesa e brasileira e não carece de aprofundamento ou revisão. O primeiro ato político que marca a chegada da Corte do Príncipe Regente D. João a território brasileiro, mal aporta na Bahia, foi a Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, que estabeleceu a abertura dos portos brasileiros às nações amigas - ou seja, aos navios da poderosa marinha mercante britânica -, fixando condições preferenciais para quem ajudava Portugal a libertar-se do invasor francês no seu território europeu. Subitamente, coloca-se um termo à situação de exclusivo comercial que a metrópole detinha sobre a colônia, passando a permitir-se o acesso de navios estrangeiros ao poderoso mercado brasileiro.

Recorde-se que foi graças ao privilégio do exclusivo comercial e ao saldo excedentário da balança de comércio com o Brasil que Portugal manteve, até 1804, um superávit na sua balança comercial externa. O início da contração em 1805 e a quebra acentuada em 1806 e 1807 foram os primeiros sinais dos efeitos da situação de beligerância comercial decorrente das guerras napoleônicas, inevitavelmente agravada a partir de 1808.2 2 Esta é uma matéria de recorrente apreciação pela historiografia brasileira e portuguesa. Para registro dos principais argumentos, cf. Novais (1979), Arruda (1980), Alexandre (1993) e Pedreira (2000).

Independentemente das nuances interpretativas sobre a natureza das trocas entre Portugal e o Brasil, é ponto adquirido e bem fundamentado que se assistiu a um acentuado declínio do movimento dos principais portos portugueses (Lisboa e Porto) como resultado direto da conjuntura diplomática, política e comercial decorrente das tensões entre a França e a Grã-Bretanha. Na verdade, o Bloqueio Continental decretado por Napoleão em 21 de novembro de 1806 constitui a chave interpretativa fundamental para a compreensão do movimento deficitário que a balança comercial portuguesa então começa a conhecer (CAETANO, 2004CAETANO, António Alves. O Porto de Lisboa e o bloqueio continental (1806-1812). Ensaio de História Económica. Lisboa: Academia da Marinha, 2004.). Esta nova situação era uma inevitabilidade que resultava da dificuldade crescente de exportação de produtos do reino e de reexportação de produtos do comércio colonial brasileiro para os principais parceiros comerciais europeus, entre os quais se contava a Inglaterra, ainda que de forma tendencialmente menos relevante.

A abertura dos portos tem que ser vista, nesse contexto, não como um remédio passageiro para a crise ou colapso da balança de comércio portuguesa, mas sim como uma solução de mais largo alcance que procura ir ao encontro dos interesses de agentes econômicos que atuavam em território brasileiro, ou que ambicionavam tomar posição nesse importante mercado, com especial destaque para produtores e comerciantes ingleses. Ou seja, ao impor uma quebra na situação de exclusivo e, por conseguinte, das vantagens que a metrópole detinha na balança comercial com a sua mais importante colônia, a abertura dos portos brasileiros aos navios e negociantes britânicos, eufemisticamente tratados na Carta Régia como “potências, que se conservam em paz, e harmonia com a minha Real Coroa” - consolida um movimento irreversível de transição de um sistema de comércio internacional protegido pelo regime de exclusivo colonial para um sistema de comércio livre sem exclusivos de qualquer espécie.

Em causa estava, não tanto a recuperação de uma balança de comércio perdida, mas sim a construção das novas bases econômicas e políticas em que o Império luso-brasileiro, agora com a sua capital deslocada para o outro lado do Atlântico, se deveria sustentar. A transferência da Corte poderia, no plano abstrato dos princípios, servir perfeitamente o programa mais ou menos ilustrado de reformas com vista à salvaguarda e manutenção do Império. No entanto, na conjuntura complicada em que a Corte se transfere, já não era possível manter os pressupostos do exclusivo colonial ainda em vigor.3 3 Sobre esta matéria, cf. Lyra (1994), Schultz (2001) e Malerba (2020). A transferência opera-se num mundo em mudança que assiste à demonstração de crescente empenho no estabelecimento de relações econômicas abertas à escala internacional.

A perspectiva de análise centrada nos interesses em presença, tendo em vista a explicação das alterações na ordem institucional estabelecida, não impede a valorização de uma outra componente essencial à compreensão das mudanças em curso. Refiro-me ao papel das ideias que inspiram e que conferem legitimidade e coerência doutrinal às reformas postas em prática. Neste caso específico da abertura dos portos, as ideias de liberalismo econômico assumidas e divulgadas por José da Silva Lisboa tiveram um papel preponderante.

É bem conhecida e está bem documentada a contribuição ativa dada por José da Silva Lisboa para a redação e promulgação da Carta Régia de 28 de janeiro de 1808. Mas a melhor demonstração do seu envolvimento pessoal e doutrinal foi dada pelo livro de sua autoria, Observações sobre o comércio franco do Brasil, que marca o arranque da atividade da Impressão Régia no Rio de Janeiro e que constitui um testemunho exemplar de defesa das doutrinas em favor da liberdade de comércio, com base na ideia de que “a franqueza do comércio, regulada pela moral retidão, e bem comum, é o princípio vivificante da ordem social, e o mais natural, e seguro meio da prosperidade das nações” (LISBOA, 1808PIMENTA, João Paulo. The Independence of Brazil: a review of the recent historiographic production. E-journal of Portuguese History, v. 7, n. 1, 2009.-1809, p. 188). A aplicação de tal princípio era inevitável no contexto da transferência da Corte, pois só dessa forma o mercado poderia ser abastecido e animado. Na sua argumentação, Silva Lisboa revela o domínio que tinha da ciência da economia política, enquanto discurso organizado de interpretação do funcionamento da vida econômica, com destaque para o conhecimento que revela e o elogio que permanentemente dedica a Adam Smith. E refuta todas as possíveis interpretações duvidosas ou objeções sobre o verdadeiro alcance da abertura dos portos, que não representava uma cedência aos interesses ingleses mas que, pelo contrário, deveria ser vista como instrumento da afirmação da liberdade de comércio enquanto fundamento da prosperidade das nações.

A posição privilegiada que a Inglaterra conseguiu obter nos anos que imediatamente se seguiram à abertura dos portos foi prosseguida e consolidada com a assinatura dos Tratados de Amizade, Comércio e Navegação de 1810, cujas cláusulas estabeleceram um regime preferencial e protegido aos produtores e comerciantes britânicos.4 4 O assunto foi pioneiramente analisado por Manchester (1933). Analisei em detalhe o assunto em Cardoso (2009). A redação desses tratados foi acompanhada de perto por D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o mais influente ministro do gabinete do Príncipe Regente D. João no Rio de Janeiro, que não hesitou em invocar os princípios liberais da economia política para justificar a bondade dos tratados.

Os benefícios legais, diretamente resultantes dos tratados, que favoreciam os agentes comerciais britânicos, a que se juntavam práticas abusivas e irregularidades que não eram objeto de fiscalização, foram objeto de alguma contestação. Elucidativo e pioneiro exemplo foi dado pelo folheto publicado pelo negociante português Manuel Luís da Veiga (1808). Outras demonstrações de descontentamento de setores mercantis foram ganhando eco favorável na imprensa portuguesa publicada em Londres, nomeadamente no Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa,5 5 Sobre a importância do Correio Braziliense neste processo, cf. Lustosa (2019, cap. 2). no Português, editado por João Bernardo da Rocha Loureiro e no Investigador Português em Inglaterra, dirigido por José Liberato Freire de Carvalho a partir de 1814.

Ao perder o vínculo exclusivo com Portugal, no quadro do pacto colonial que vigorou até 1808, a economia brasileira foi ficando gradual e inevitavelmente mais ligada e dependente do império britânico. Tal circunstância correspondeu, afinal, à criação de uma nova oportunidade para que o Brasil desse um passo decisivo na construção da sua soberania econômica, à semelhança do exemplo seguido noutros espaços coloniais americanos, ainda que num horizonte longínquo da obtenção de independência política.

José da Silva Lisboa e D. Rodrigo de Sousa Coutinho foram protagonistas centrais do processo de reconversão económica de um império que, subitamente, deixava de ter os suportes fundamentais para a sua manutenção. E quando, em 1815, se tenta reinventar o império com a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a possibilidade de restabelecimento dos antigos laços imperiais era pura quimera. Com efeito, a perda do exclusivo colonial de caráter mercantilista, consagrada na abertura dos portos de 1808 e nos Tratados de Amizade e Comércio de 1810, retirou a Portugal o controle efetivo da pujante e promissora economia brasileira.

A criação formal do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, por meio da Carta de Lei publicada em 16 de dezembro de 1815, assinalou o fim do estatuto colonial do território brasileiro que tinha sido substancialmente alterado com a instalação da Corte no Rio de Janeiro. A colônia sul-americana deixara de ser apenas a joia da coroa portuguesa para passar a assumir o estatuto de sede de um proclamado Reino Unido. A unificação simbólica de Portugal e Brasil num único reino imperial contribuía para alimentar a ilusão de que permanecia uma unidade política coesa que, entretanto, deixara de ter sustentação econômica assente no antigo pacto colonial. Ou seja, o Reino Unido limitava-se a fazer renascer uma utopia imperial que não tinha condições políticas nem econômicas para vingar.

2. Expectativas da regeneração liberal em relação ao Brasil

A interpretação mais comum sobre a reação das Cortes Constituintes - reunidas na sequência da Revolução de 1820 que pôs fim à monarquia absoluta e ditou o início do regime de constitucionalismo em Portugal - em relação à Independência do Brasil, é a de que foram confrontadas com uma situação de fato que globalmente não desejavam, mas perante a qual nada podiam fazer. A circunstância de a aprovação da Constituição portuguesa de 1822 ter ocorrido após o 7 de setembro, não se repercutiu no conteúdo do texto publicado que manteve em capítulo autônomo os preceitos político-constitucionais aplicáveis ao Brasil que, entretanto, declarara o seu grito de “independência ou morte”. O eventual desconhecimento do que passava quase em simultâneo nos dois territórios não serve de atenuante à distração dos deputados constituintes que, ao aprovarem uma Constituição que continuava a tratar o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves como realidade territorial imperial, revelavam a vontade de manter tudo como dantes, como se nada de diferente e desafiante se estivesse a passar.

No entanto, existem indícios de que, para alguns deputados vintistas, seria possível entender a regeneração portuguesa com o Brasil independente. Manuel Fernandes Tomás foi, apesar de uma certa ambiguidade que a análise dos seus discursos não deixa ignorar, um desses deputados que olhou para o Brasil com uma perspicácia política digna de registro. Por isso seguiremos o seu percurso como testemunho exemplar de uma atitude política de compreensão e aceitação da inevitabilidade cessionária que não tem sido suficientemente valorizada pela historiografia do movimento regenerador.6 6 Sobre os debates da questão brasileira nas Cotes Constituintes, cf. Alexandre (1981) e Castro (2002). O indiscutível prestígio e a elevada estima que granjeou junto da esfera pública da época conferem às suas palavras um peso político insofismável.

No último trimestre de 1820, no âmbito das suas funções ministeriais na Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, Manuel Fernandes Tomás preparou o famoso Relatório sobre o estado e administração do reino que viria a ser apresentado no arranque dos trabalhos das Cortes Constituintes em fevereiro de 1821. Escreveu então que:

É necessário dar uma particular atenção aos nossos estabelecimentos de África e das ilhas adjacentes a Portugal. Quem sabe quais serão um dia nossos recursos e nossos meios? Quem pode conhecer, qual será em toda a sua extensão nosso estado futuro, e futura situação de nossas relações comerciais com os portos do Brasil, e da Ásia? (TOMÁS [1820-1822], 2020TOMÁS, Manuel Fernandes [1820-1822]. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822). (Ed. José Luís Cardoso). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2020., p. 125).

A interrogação sobre o futuro dos domínios coloniais deixa antever a intuição de uma perda do mercado brasileiro e de uma inevitável reconversão de rotas comerciais dirigidas aos estabelecimentos de África.

Em julho de 1821, poucos dias após a desejada chegada de D. João VI a Lisboa, Fernandes Tomás foi mandatado pelas Cortes para escrever uma proclamação aos brasileiros. O texto foi pronunciado numa altura em que ainda se não faziam sentir as pressões políticas que a breve trecho ditariam a Independência brasileira. O próprio Manuel Fernandes Tomás, como veremos mais adiante, teria ensejo de pronunciar vibrantes e decisivos discursos parlamentares sobre a matéria, bem distintos do tom que empregou na saudação aqui em apreço. Com efeito, essa proclamação teve intuito congregador e pedagógico, explicando o sentido das mudanças introduzidas e procedendo a um balanço de providências tomadas, quer no plano executivo como no plano legislativo, com implicações para o reforço do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, agora sob a égide de um novo poder soberano. Não se notou qualquer sinal de ruptura anunciada. Fernandes Tomás foi pródigo nos elogios aos representantes brasileiros e caloroso no acolhimento fraterno que as Cortes Constituintes lhes faziam.

Brasileiros! O congresso não duvidava de vossos sentimentos patrióticos e liberais; mas ele respeitava o direito que só a vós pertencia de manifestar competentemente os vossos desejos. Decretou por isso que vós faríeis parte da grande família portuguesa, logo que tivésseis declarado vossa adesão ao novo pacto social que ela acabava de fazer (TOMÁS [1820-1822], 2020TOMÁS, Manuel Fernandes [1820-1822]. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822). (Ed. José Luís Cardoso). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2020., p. 105).

As suas palavras abonam em favor dos seus princípios: ao povo brasileiro concedia Fernandes Tomás o direito de escolher o seu destino. Porém, no momento em que foram proferidas, revelam também uma certa satisfação por esse destino parecer estar em conformidade com os desejos portugueses:

Os sentimentos fraternais que a natureza nos inspira, a consoladora ideia de que temos todos a mesma origem, e a lembrança até de que têm pesado sobre nós as mesmas desgraças, nos persuade de que devemos ter todos a mesma fortuna (TOMÁS [1820-1822],

2020

, p. 107).

Esta ambiguidade era própria de um tempo de mudança, com sinais contraditórios vindos do Brasil e, no caso de Fernandes Tomás, com intenção deliberada de centrar a discussão política nas questões essenciais da definição das bases do edifício constitucional e da abolição das estruturas caducas da ordem social e econômica do antigo regime.

Todavia, no decurso do ano seguinte, a questão brasileira adquiria aos olhos de Fernandes Tomás uma tonalidade diferente. Ficaram célebres as palavras com que no calor dos debates das Cortes, em março de 1822, se referiu ao problema da separação do Brasil:

Se o Brasil com efeito não quer unir-se a Portugal, como tem estado sempre, acabemos de uma vez com isto: passe o sr. Brasil muito bem, que nós cuidaremos da nossa vida. [...] Se realmente os povos do Brasil desejam verdadeiramente desunir-se de Portugal, eu declaro altamente que a minha opinião é que se desunam [...]. Ou o Brasil quer estar ligado a Portugal ou não quer. Se quer, há-de estar sujeito às leis que as Cortes fizerem, se não, desligue-se. Eu quero declarar assim francamente meus princípios para mostrar que eles não são princípios de opressão; para que não se me venha argumentar que aqueles homens têm uma força muito grande. Se essa força é para sustentar as suas ideias, então é porque não querem estar unidos com Portugal; e se não querem desliguem-se; este é o direito de todos os brasileiros e de todas as nações (TOMÁS [1820-1822], 2020TOMÁS, Manuel Fernandes [1820-1822]. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822). (Ed. José Luís Cardoso). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2020., p. 450).

O impacto da expressão “passe o sr. Brasil muito bem” não resultou de mero artifício de retórica parlamentar. Fernandes Tomás tornava clara uma posição de inequívoca coragem política ao admitir que o Brasil tinha o direito a ser uma nação livre. Dois meses mais tarde, em maio de 1822, num escrito publicado anonimamente, no qual polemizou com a opinião do P.e José Agostinho de Macedo sobre matérias de política interna e externa, (Lutero, o P. e José Agostinho de Macedo e a Gazeta Universal) Fernandes Tomás voltava a enunciar de forma clara o seu pensamento sobre a questão brasileira:

A sorte do Brasil não se decidiu depois da revolução de Portugal; antes disso já o golpe estava dado. El-rei cercado de homens ineptos, e que queriam aproveitar-se das circunstâncias, aconselhado por um ministério corrompido, e falto de luzes, foi plantar no Brasil o mesmo sistema de administração, que fizera sempre a nossa desgraça na Europa [...]. Deu-se logo Portugal por perdido, e por única pátria o Brasil. Foi consequência disso o decreto que abriu sem limitações os portos aos estrangeiros, e que cortou os laços coloniais que prendiam aquele continente à Europa. Não digo isto porque sinta que o Brasil se aproveitasse das circunstâncias; explico os factos e procuro indagar as causas deles - os Brasileiros têm tanto direito a serem livres como nós (TOMÁS [1820-1822], 2020TOMÁS, Manuel Fernandes [1820-1822]. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822). (Ed. José Luís Cardoso). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2020., p. 190-191).

Além da reafirmação do direito dos brasileiros a serem livres, o excerto anterior revela com clareza aquela que era a origem das circunstâncias que assim o anunciavam, ou seja, o corte dos laços coloniais provocado pela abertura dos portos do Brasil.

De forma ainda mais contundente, e fazendo uso de uma linguagem vernácula tão característica dos debates políticos refletidos na imprensa, Fernandes Tomás remata nos seguintes e bem sugestivos termos:

Para ele [José Agostinho de Macedo], acabar o sistema colonial é secar-se uma das fontes mais abundantes da sua fortuna. Estes governos, que se davam aos senhores de casas arruinadas para irem lá desempenhar-se, governando como Verres: estes lugares, em que eram providos os que davam mais dinheiro: estas administrações, que eram confiadas só a quem fazia uma obrigação de entregar metade do rendimento ao padrinho, que o despachava; tudo isto acabou, e é por isso que custa muito acostumar à ideia de que os brasileiros hão de ser livres. Tenham paciência: mamem agora na outra teta! (TOMÁS [1820-1822], 2020TOMÁS, Manuel Fernandes [1820-1822]. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822). (Ed. José Luís Cardoso). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2020., p. 192-193).

Duas preocupações fundamentais se revelam neste seu panfleto de polemista ativo: por um lado, a de criticar os vícios e defeitos da administração portuguesa no Brasil, não se furtando Fernandes Tomás a responsabilizar a Corte aí estabelecida; por outro lado, a de reafirmar o direito do povo brasileiro a escolher o seu destino de liberdade e de independência. Se com a primeira Fernandes Tomás pretendia moralizar e reformar a administração no território longín-quo, com a segunda acaba por considerar que a verdadeira reforma passava pela Independência.

Os discursos que Fernandes Tomás proferiu sobre a questão brasileira são dos mais longos da sua vasta produção parlamentar. Muito claramente denotam as preocupações com a aplicação da lei e da ordem constitucional num território que Fernandes Tomás formalmente assumia como parte integrante do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, instituído em 1815, mas agora reabilitado como símbolo de uma unidade nacional representada pelas Cortes. No entanto, essa posição não impedia que também atribuísse aos brasileiros a legitimidade de declararem a sua própria soberania.

A propósito do auxílio financeiro ao Banco do Brasil ou do envio de tropas para o Rio de Janeiro, numa conjuntura que ainda não fazia pressentir a ocorrência de tensões independentistas, a preocupação fundamental de Fernandes Tomás foi a de fazer perceber aos brasileiros que as Cortes e o novo Governo por elas legitimado não poderiam dar ao Brasil tratamento diferente daquele que era dado a todas as outras partes do reino. Nas suas palavras “a soberania é igual para todos” (TOMÁS [1820-1822], 2020TOMÁS, Manuel Fernandes [1820-1822]. Escritos políticos e discursos parlamentares (1820-1822). (Ed. José Luís Cardoso). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2020., p. 438).

Porém, após o regresso de D. João VI a Lisboa e das notícias ou sinais sobre sublevações ou demonstrações de desobediência à legitimidade constitucional, Fernandes Tomás tornou o tom das suas intervenções mais ameaçador, em relação ao cumprimento da legalidade estabelecida, que não deixava de ser contemplada no funcionamento do sistema judicial. Ao mesmo tempo, deixou transparecer, nas entrelinhas dos discursos parlamentares, o que já havia transmitido noutros textos públicos, ou seja, a convicção de que o Brasil, mais tarde ou mais cedo, seria uma nação independente.

Fernandes Tomás não podia oficialmente admitir que os sinais de desobediência civil e desunião política fossem reconhecidos pelo regime constitucional. Por isso, não é de estranhar a dureza do tom que em diversos discursos aplicou contra a Junta de São Paulo e seus seguidores. Nas vésperas da declaração de Independência, os deputados às Cortes Constituintes discutiram e aprovaram os artigos adicionais da Constituição de 1822 referentes ao território brasileiro. Fernandes Tomás sabia que era uma discussão ultrapassada pelo recente desenrolar dos acontecimentos no Brasil, não obstante ser essa a única alternativa ditada pelo cumprimento da legalidade estabelecida.

3. Os manifestos do Príncipe Regente D. Pedro

O mesmo sentimento de inevitabilidade histórica relativo à Independência do Brasil era partilhado e proclamado, porventura em tom mais assertivo, pelos protagonistas e conselheiros políticos que em torno de D. Pedro urdiam argumentos justificativos da divisão do Reino Unido. Os manifestos tornados públicos a 1º de agosto e a 6 de agosto de 1822, em nome do Príncipe Regente D. Pedro7 7 COLEÇÃO das Leis do Brasil, ano de 1822. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, parte 2 (Proclamações e Manifestos), 1889, p. 125-142. , comprovam a mobilização em marcha no Brasil, à revelia dos propósitos integracionistas que nas Cortes se exibiam por ocasião da discussão do projeto de legislação sobre as relações comerciais entre as duas partes do sobrevivente Império.

Apesar de alguma ambiguidade inicial, em que os seguidores de D. Pedro reclamam “cimentar a independência política deste reino, sem romper contudo os vínculos da fraternidade portuguesa”8 8 Ibidem, p. 125. , torna-se bem patente neste primeiro manifesto o descontentamento perante os sinais de hostilidade dados pelos poderes estabelecidos em Lisboa:

[O Congresso de Lisboa] apresentou um projeto de relações comerciais, que, sob falsas aparências de quimérica reciprocidade, e igualdade, monopolizava vossas riquezas, fechava vossos portos aos estrangeiros, e assim destruía a vossa agricultura, e indústria, e reduzia os habitantes do Brasil outra vez ao estado de pupilos e colonos.9 9 Ibidem, p. 128.

E dessa hostilidade se faz pretexto para uma mobilização da população desejosa de independência política:

Acordemos pois, generosos habitantes deste vasto, e poderoso Império, está dado o grande passo da vossa independência, e felicidade há tantos tempos preconizadas pelos grandes políticos da Europa […]. A honra, a dignidade nacional, os desejos de ser venturosos, a voz da mesma natureza manda que as colónias deixem de ser colónias.10 10 Ibidem, p. 128-129.

No manifesto de 6 de agosto de 1822 é feito um balanço muito negativo dos atos da administração colonial desde a chegada dos portugueses ao Brasil, usando palavras fortes como tirania, cobiça, prepotência, ambição desmesurada de poder, a fim de se pintar de negras cores o ambiente de miséria e escravidão a que a população brasileira tinha sido submetida.

Perante tal quadro de violência, e não obstante a generosidade com que as gentes do Brasil acolheram D. João e a família Real em 1808, lamenta-se que as Cortes Constituintes tivessem “atraiçoado as esperanças e interesses da nação brasileira” e que tivessem procurado “restabelecer astutamente o velho sistema colonial”.11 11 Ibidem, p. 134.

O tom geral desses dois manifestos é, claramente, de afirmação de vontade de independência política, perante as demonstrações de subalternização do espaço econômico e político brasileiro por parte dos mais influentes deputados ao Soberano Congresso. Daí a legitimidade da convocação de uma Assembleia Constituinte e Legislativa no Brasil, que chamava a si a iniciativa de orientação dos destinos de uma nação independente. Desse modo, e por meio da prosa influente dos seus mais diretos mentores, D. Pedro assumia a liderança tacitamente outorgada da soberania brasileira, admitindo mesmo a possibilidade de conquista sangrenta, à semelhança do que se tinha passado noutros horizontes não muito distantes.

À vista de tudo isto, já não é mais possível que o Brasil lance um véu de eterno esquecimento sobre tantos insultos e atrocidades; nem é igualmente possível que ele possa jamais ter confiança nas Cortes de Lisboa, vendo-se a cada passo ludibriado, já dilacerado por uma guerra civil começada por essa iníqua gente, e até ameaçado com as cenas horrorosas de Haiti, que nossos furiosos inimigos muito desejam reviver.12 12 Ibidem, p. 138.

Apesar dessas proclamações, que sugerem a existência de conflitos latentes à escala local,13 13 Sobre a interpretação da Independência como “guerra de independência”, cf. Franchini (2022). convirá ter presente que na imprensa periódica e nos espaços de sociabilidade política das diversas províncias do Brasil não foi tão óbvia e imediata a adesão a programas de inequívoca afirmação independentista. Exemplo dessa contenção de propósitos foi dado por Joaquim José da Silva Maia no periódico Semanário Cívico, que redigiu na Bahia entre 1821SILVA, José Bonifácio de Andrade e. Lembranças e apontamentos do Governo Provisório da Província de S. Paulo para os seus deputados; mandada publicar por Sua Alteza Real o Príncipe Regente do Brasil; a instâncias dos mesmos senhores deputados. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1821.-1823 (ALVES, 2022), no qual dá expressão a um posicionamento político que privilegia a defesa de interesses econômicos e comerciais para os quais seria benéfica a centralidade das instituições preexistentes e herdadas do antigo sistema colonial.

Assim, as opções políticas não poderiam fazer ignorar as vantagens de um mercado protegido da concorrência externa e da possibilidade de negociação da revisão dos tratados de 1810, facilitadas pela manutenção dos laços com a velha metrópole imperial. Essa era uma exigência imposta pela defesa dos interesses dos negociantes que mais diretamente participavam no tráfego mercantil entre o Brasil, Portugal e outros destinos de reexportação.

A presença de uma multiplicidade de perspectivas de entendimento do processo de Independência brasileira torna difícil a adoção de uma posição simplista e unilateral de aceitação ou rejeição dos contornos desse mesmo processo (OLIVEIRA, 2022). Entre os manifestos de D. Pedro e os testemunhos de interesses econômicos veiculados pela imprensa brasileira definem-se tensões e posições antagônicas que desaconselham a aceitação de posições definitivas sobre o tema. O debate em torno da questão da recolonização é disso prova evidente.

4. A retórica de recolonização14 14 Esta seção 4 é baseada em texto anteriormente publicado em Cardoso (2022).

A gradual emancipação econômica do Brasil, fruto da abertura dos portos de 1808 e dos Tratados de Amizade e Comércio de 1810, não deixava qualquer esperança de reabilitação do antigo pacto colonial mercantilista ou de qualquer situação de sujeição ou subjugação do território brasileiro ao poder político metropolitano. A prolongada permanência do príncipe e rei D. João VI no Brasil criou até pretexto para alguns desabafos de insatisfação pelo fato de Portugal parecer, afinal, representar o estatuto de colônia brasileira. Nesse sentido, a normalização das relações comerciais entre os membros do Reino Unido separados pelo Atlântico era matéria merecedora da melhor atenção dos deputados às Cortes Constituintes.

Um primeiro projeto para “estreitar a união dos portugueses de ambos os hemisférios” foi apresentado pelo deputado Alves do Rio na sessão parlamentar de 25 de abril de 1821. No entanto, a discussão ficou adiada, invocando-se motivos de respeito pelos deputados brasileiros que ainda não tinham confirmado a sua presença nas Cortes.15 15 DIÁRIO das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, n. 63, 25 abr. 1821, p. 679-680. Disponível em: http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821. O assunto só viria a ser retomado em janeiro de 1822, com a aprovação da Constituição de uma comissão especial encarregada de apresentar um projeto de resolução sobre a regulação das relações comerciais entre Portugal e o Brasil, ao mesmo tempo em que a Comissão dos Negociantes da praça de Lisboa elaborava o seu parecer sobre o assunto. Os dois textos apresentam muitas semelhanças de conteúdo e forma podendo considerar-se que a base da proposta de resolução que começou a ser discutida a 15 de março de 1822 foi a que preparou a Comissão dos Negociantes da praça de Lisboa. O debate parlamentar arrastou-se por diversas sessões entre abril e setembro de 1822, já na fase derradeira das Cortes Constituintes. Na última sessão parlamentar em que o assunto esteve em agenda (a 26 de setembro de 1822)16 16 DIÁRIO das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, n. 47, 26 set. 1822, p. 568-574. Disponível em: http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821. , a versão final da Constituição já tinha sido aprovada e a Independência do Brasil já tinha sido declarada. Assim, o projeto de decreto sobre as relações comerciais com o Brasil ficou adiado para sempre, reduzindo à insignificância a retórica intensa dos debates que suscitou. Apesar de ter merecido ampla discussão e aprovação preliminar dos artigos principais, faltou a sua aprovação na totalidade e a correspondente entrada em vigor. O curso dos acontecimentos políticos em Portugal e no Brasil só viria a tornar oportuna a celebração de relações políticas e comerciais estabilizadas por mútuo acordo a partir de 1825.

O debate inflamado não passou despercebido e contribuiu para acicatar os ânimos mais exaltados de quem nas Cortes pugnava pelo reconhecimento da autonomia brasileira em matérias econômicas e políticas, mas também daqueles que viam nessas pretensões um sinal anunciador do fim do Reino Unido. O manifesto/proclamação em que o infante D. Pedro pronunciou o célebre “Fico”, a 9 de janeiro de 1822, pairava na sombra dos debates, provocando inevitáveis dissensões.

Do lado brasileiro, as despesas de argumentação foram sobretudo feitas pelos deputados paulistas capitaneados por António Carlos Ribeiro de Andrada, irmão de José Bonifácio e fiel intérprete do programa de afirmação da autonomia político-administrativa do Brasil. Recorde-se que tais linhas programáticas, elaboradas por José Bonifácio de Andrade e Silva (1821SILVA, José Bonifácio de Andrade e. Lembranças e apontamentos do Governo Provisório da Província de S. Paulo para os seus deputados; mandada publicar por Sua Alteza Real o Príncipe Regente do Brasil; a instâncias dos mesmos senhores deputados. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1821.), tinham fixado um guião orientador da representação dos deputados paulistas nas Cortes em Lisboa, incluindo uma prerrogativa “sobre o comércio tanto externo como interno que sem tolher a liberdade de ambos os reinos, possa conciliar, quanto possível for, os seus recíprocos interesses”.17 17 SILVA, José Bonifácio de Andrade e. Lembranças e apontamentos do Governo Provisório da Província de S. Paulo para os seus deputados; mandada publicar por Sua Alteza Real o Príncipe Regente do Brasil; a instâncias dos mesmos senhores deputados. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1821, p. 6. No ambiente das Cortes, a defesa desses princípios também passava pelo enquadramento das vantagens do comércio livre à luz dos ensinamentos da economia política.

Do lado português, o combate pela manutenção do Brasil dentro de um quadro político constitucional que não se tornasse disruptivo do Reino Unido foi travado sobretudo por Manuel Borges Carneiro, principal defensor de limitações à liberdade de transações e à reciprocidade de interesses que os deputados brasileiros pretendiam obter. O tom de ataque resvalou não raras vezes para uma retórica ofensiva que mostrava como a preservação do Reino Unido exigia a colaboração e boa-vontade do Brasil, eufemismo que não escondia propósitos de submissão da economia brasileira ao controle de Portugal. O debate foi de certa forma curto-circuitado pela discussão de âmbito mais lato sobre as ameaças de rompimento político que se foram tornando cada vez mais flagrantes ao longo do ano de 1822.

O debate em torno do projeto de decreto sobre as relações comerciais estava, por conseguinte, destinado a instigar os campos em contenda. Para quem seguia à letra o tom exaltado das intervenções parlamentares, poderia ficar a ideia de que alguns deputados portugueses pretendiam recolonizar o Brasil à moda antiga. E tal ideia acabou por ser alimentada por uma tradição historiográfica pouco rigorosa e muito ávida em ensaiar hipóteses conspirativas para sustentar que a Independência do Brasil era uma consequência e uma resposta à pretensão colonialista das Cortes.18 18 Para a formação dessa tradição historiográfica contribuiu decisivamente a análise politicamente inflamada de José da Silva Lisboa (1826), que dedicou expressamente o cap. XXX desta obra ao “Desenvolvimento do plano das Cortes para a recolonização do Brasil”.

Já sabemos que o projeto de decreto se tornou letra morta e não teve seguimento imediato. Mas o curioso é que, se o tivesse tido, permitiria extrair a conclusão de que, afinal, não era a recolonização do Brasil o seu intuito, mas sim o estabelecimento de relações comerciais à luz de princípios de reciprocidade de interesses, direitos e garantias (como pretendia José Bonifácio), ainda que sob a tutela dos órgãos de poder instituídos pelo regime político liberal em construção.19 19 A desmontagem da suposta tentativa de restauração do domínio colonial através do projeto de relações comerciais entre Portugal e o Brasil de 1822 foi brilhantemente realizada por António Penalves Rocha (2008), que demonstrou que o conceito de recolonização foi manipulado com fins políticos, de forma a agregar posições independentistas de quem pretendia questionar e denunciar o excesso de intervenção das Cortes em matérias que diziam respeito ao Brasil. Cf. também Neves (1995) e Berbel (2005).

O que dizia então o projeto de decreto e o parecer preparatório da comissão de negociantes da praça de Lisboa?20 20 Os textos do projeto de decreto discutido nas Cortes e do parecer da Comissão de Negociantes da praça de Lisboa estão reproduzidos em Rocha (2008, p. 127-134). Na esclarecedora síntese de António Penalves Rocha:

Conforme o que havia sido estipulado pelos comerciantes de Lisboa, o projeto daria a seguinte configuração ao comércio do Reino Unido: todas as relações mercantis entre Brasil e Portugal passavam a ser as de uma mesma nação de um mesmo continente (art.º 1º), ficando reservado somente aos navios portugueses (art.º 2º) e um tributo de 1% de direito de saída incidiria sobre as mercadorias que circulariam dentro do Reino Unido (art.º 3º) (ROCHA, 2008ROCHA, António Penalves. A recolonização do Brasil pelas Cortes. História de uma invenção historiográfica. São Paulo: Editora UNESP, 2008., p. 72).

O projeto previa ainda que todos os produtos da indústria estrangeira admitidos no Brasil e em Portugal pagariam direitos de entrada de 30% ad valorem, numa clara intenção de cariz protecionista. É evidente que nas entrelinhas do projeto se perfila o articulado do Tratado de Comércio e Navegação de 1810 com a Grã-Bretanha, do qual se diz no art.º 7º que deverá ser respeitado “enquanto durar”, e a cujo conteúdo vinculativo se respondia de forma astuciosa e pragmática. Considerando as relações comerciais entre Portugal e Brasil como comércio de cabotagem entre províncias de um mesmo Reino Unido, procuravam-se estabelecer condições propícias a uma circulação comercial mais eficaz com favorecimento tributário mútuo e vantagens recíprocas para os agentes mercantis portugueses e brasileiros. Não se tratava - porque a isso se opunha flagrantemente o compromisso luso-britânico expresso nos tratados de 1810 - de restabelecer o sistema de exclusivo do pacto colonial que vigorou até 1808. Mas sim de inscrever as virtudes do comércio livre no relacionamento econômico entre “províncias do mesmo continente”.21 21 MEMÓRIA dos Trabalhos da Comissão para o Melhoramento do Comércio nesta Cidade de Lisboa, criada por determinação das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa. Lisboa: Ti-pografia Rollandiana, 1822, p. 147.

Nas vésperas da Independência brasileira, era ainda o enquadramento internacional, que tinha ditado a evolução da economia do império luso-brasileiro na fase de oclusão iniciada no período das guerras napoleônicas, que continuava a orientar as relações comerciais entre dois reinos cuja união passara a ser pura quimera. As tentativas de reabilitação do império luso-brasileiro através da criação do Reino Unido em 1815, assim como os debates nas Cortes Constituintes de 1821-1822 sobre o revigoramento das relações comerciais entre Portugal e Brasil, foram sinais da inevitável perda de fôlego de um projeto (e de uma ideia) de nação imperial repartida por dois continentes que já não tinha possibilidade de ser sustentada. O comércio atlântico unira Portugal e Brasil mediante um pacto de sujeição colonial que chegara ao seu termo, sem condições de sobrevivência. Restavam as oportunidades para o restabelecimento, a partir de 1825, de relações duradouras entre duas nações irmãs, empenhadas em “conciliar, quanto possível for, os seus recíprocos interesses”.

5. Notas conclusivas

Independentemente da vontade expressa por alguns deputados mais inflamados, a recolonização do Brasil pelas Cortes era uma intenção sem possibilidade de ser concretizada. O “pecado original” da abertura dos portos e dos tratados de amizade e comércio com a Grã-Bretanha tornava impossível o regresso a um pacto colonial de feição mercantilista. Além das condicionantes impostas por uma nova realidade econômica em presença, viviam-se novos tempos políticos marcados pela marcha imparável da Independência do Brasil, relativamente à qual alguns dos mais influentes deputados constituintes (nomeadamente Manuel Fernandes Tomás) se mostravam plenamente conscientes. A suposta recolonização revestiu a natureza de um mito e serviu sobretudo para criar um fato político que polarizasse o azedume de deputados brasileiros (sobretudo paulistas) nas Cortes de Lisboa.

A retórica argumentativa também revelava a dificuldade de resolução de tensões e paradoxos na esfera pública em que estes problemas eram discutidos. Para os brasileiros desejosos de independência, a Revolução Liberal portuguesa de 1820 era acontecimento inspirador que criava uma expetativa de fim da antiga ordem colonial. Porém, a natural inclinação de suporte ao movimento regenerador constitucional tinha como limite inultrapassável a manutenção de um vínculo insustentável entre o reino e a colônia nos moldes do pacto de antigo regime que era acalentado por alguns deputados. Ou seja, não obstante a modernidade revolucionária do movimento constitucional, que poderia ser fonte inspiradora de uma revolução pela Independência do Brasil, os brasileiros desejosos de mudança não podiam apoiar as Cortes de Lisboa se estas quisessem manter intactos os laços de opressão característicos da condição colonial.

Em contrapartida, o apoio declarado a D. Pedro, contra as Cortes Constituintes, satisfazia propósitos de autonomia e independência em relação ao poder político regenerador e liberal estabelecido em Lisboa. No entanto, amarrava os brasileiros aos desígnios conservadores da Casa de Bragança e da ordem social e política que ela simbolizava. Talvez por isso se tenha atribuído aos protagonistas da Independência brasileira a participação ativa em movimentos de rebelião provincial, criando-se uma narrativa historiográfica em que o povo surge investido com o propósito e o ímpeto fundador do Brasil como uma nação independente. Qual Brasil? Essa já seria a outra pergunta a que este texto não responde, ainda que tenha permitido alinhar algumas hipóteses contextuais.

Fontes documentais

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  • DIÁRIO das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, 1821-1822. Disponível em:http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821
    » http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821
  • MEMÓRIA dos Trabalhos da Comissão para o Melhoramento do Comércio nesta Cidade de Lisboa, criada por determinação das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa. Lisboa: Tipografia Rollandiana, 1822.
  • SILVA, José Bonifácio de Andrade e. Lembranças e apontamentos do Governo Provisório da Província de S. Paulo para os seus deputados; mandada publicar por Sua Alteza Real o Príncipe Regente do Brasil; a instâncias dos mesmos senhores deputados Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1821.

Referências

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  • VEIGA, Manuel Luís da. Análise dos factos praticados em Inglaterra, relativamente às propriedades portuguesas de negociantes, residentes em Portugal e no Brasil Londres: Imp. W. Glendinning, 1808.
  • 1
    Sobre os temas em análise neste artigo, retomo e desenvolvo argumentos inicialmente apresentados em Cardoso (2008) e Cardoso (2022). Para uma visão de conjunto sobre a historiografia da Independência brasileira, cf. Pimenta (2009).
  • 2
    Esta é uma matéria de recorrente apreciação pela historiografia brasileira e portuguesa. Para registro dos principais argumentos, cf. Novais (1979), Arruda (1980), Alexandre (1993) e Pedreira (2000).
  • 3
    Sobre esta matéria, cf. Lyra (1994), Schultz (2001) e Malerba (2020).
  • 4
    O assunto foi pioneiramente analisado por Manchester (1933). Analisei em detalhe o assunto em Cardoso (2009).
  • 5
    Sobre a importância do Correio Braziliense neste processo, cf. Lustosa (2019, cap. 2).
  • 6
    Sobre os debates da questão brasileira nas Cotes Constituintes, cf. Alexandre (1981) e Castro (2002).
  • 7
    COLEÇÃO das Leis do Brasil, ano de 1822. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, parte 2 (Proclamações e Manifestos), 1889, p. 125-142.
  • 8
    Ibidem, p. 125.
  • 9
    Ibidem, p. 128.
  • 10
    Ibidem, p. 128-129.
  • 11
    Ibidem, p. 134.
  • 12
    Ibidem, p. 138.
  • 13
    Sobre a interpretação da Independência como “guerra de independência”, cf. Franchini (2022).
  • 14
    Esta seção 4 é baseada em texto anteriormente publicado em Cardoso (2022).
  • 15
    DIÁRIO das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, n. 63, 25 abr. 1821, p. 679-680. Disponível em: http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821.
  • 16
    DIÁRIO das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, n. 47, 26 set. 1822, p. 568-574. Disponível em: http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821.
  • 17
    SILVA, José Bonifácio de Andrade e. Lembranças e apontamentos do Governo Provisório da Província de S. Paulo para os seus deputados; mandada publicar por Sua Alteza Real o Príncipe Regente do Brasil; a instâncias dos mesmos senhores deputados. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1821, p. 6.
  • 18
    Para a formação dessa tradição historiográfica contribuiu decisivamente a análise politicamente inflamada de José da Silva Lisboa (1826), que dedicou expressamente o cap. XXX desta obra ao “Desenvolvimento do plano das Cortes para a recolonização do Brasil”.
  • 19
    A desmontagem da suposta tentativa de restauração do domínio colonial através do projeto de relações comerciais entre Portugal e o Brasil de 1822 foi brilhantemente realizada por António Penalves Rocha (2008), que demonstrou que o conceito de recolonização foi manipulado com fins políticos, de forma a agregar posições independentistas de quem pretendia questionar e denunciar o excesso de intervenção das Cortes em matérias que diziam respeito ao Brasil. Cf. também Neves (1995) e Berbel (2005).
  • 20
    Os textos do projeto de decreto discutido nas Cortes e do parecer da Comissão de Negociantes da praça de Lisboa estão reproduzidos em Rocha (2008, p. 127-134).
  • 21
    MEMÓRIA dos Trabalhos da Comissão para o Melhoramento do Comércio nesta Cidade de Lisboa, criada por determinação das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa. Lisboa: Ti-pografia Rollandiana, 1822, p. 147.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2022
  • Aceito
    12 Ago 2022
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