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Como contar uma nova história de um velho tema: a guerra na Independência do Brasil

New Takes on Old Themes: The War of Independence in Brazil

Nuevas tomas de viejos temas: la guerra de Independencia en Brasil

Franchini, Hélio. Neto. . Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823).Rio de Janeiro, Topbooks, 2019, 671 p.

Este ano comemora-se o bicentenário da Independência do Brasil. Em meio à profunda crise em que nos encontramos, pensar esta efeméride tornou-se fundamental na definição do campo dos historiadores e para o país como um todo. Penso que, se buscarmos sintetizar o espírito da comunidade dos historiadores neste exercício, a valorização da pluralidade de sujeitos e projetos políticos em disputa naquele início dos oitocentos ganha evidência. Ou seja, ao acompanharmos as publicações e eventos acadêmicos sobre o tema, destaca-se o esforço em demonstrar a Independência do Brasil como acontecimento complexo, cuja cronologia extrapola o próprio ano de 1822, e que envolveu diferentes sujeitos históricos, com suas respectivas interpretações do passado e projetos de futuro. Tal visão muito se orienta pela eclosão de pautas identitárias nas últimas décadas e se opõe à manutenção da matriz explicativa da Independência como algo natural, sem rupturas, decorrente do consenso pacífico das elites lideradas pelo jovem príncipe e que se viam como herdeiras da experiência portuguesa, em uma narrativa sistematizada pelo influente visconde de Cairu, ainda nas primeiras décadas do século XIX.

O livro Independência e morte: a política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823FRANCHINI Neto, Hélio. Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823). Rio de Janeiro, Topbooks, 2019.), de Hélio Franchini Neto, apresenta-se como importante contribuição para esta reflexão. Fruto de sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília em 2015, e publicado em 2019 pela Topbooks, o livro nos apresenta rica e detalhada análise do papel do conflito armado no processo de independência do Brasil. Sua perspectiva reforça interpretações historiográficas que consideram o caráter violento e belicoso daquele acontecimento histórico, mas traz a inovação de considerar os já conhecidos embates militares, ocorridos entre 1822 e 1824, como eventos de um só conflito e o caracterizar como guerra. Desse modo, Hélio Franchini Neto nos apresenta a guerra da Independência, no singular. Em suas mais de 600 páginas, o livro expõe os esforços de mobilização, os diferentes teatros da guerra e as tessituras políticas que tiveram nos confrontos armados um de seus desdobramentos.

A escrita fluida do texto, a riqueza de informações e de interpretações sutis tornam toda a obra muito interessante, mesmo os capítulos que tratam de situações bastante discutidas pela historiografia, a exemplo do cenário político da eclosão do Vintismo, de sua recepção neste lado do Atlântico, dos conflitos entre o regente D. Pedro e as Cortes em Lisboa, com ênfase no Fico, até os embates ocorridos na Assembleia Constituinte de 1823 e as negociações pelo reconhecimento da Independência do Brasil por Portugal e Grã-Bretanha. Em meio a isso, nos são apresentadas as já mencionadas particularidades dos diferentes teatros da guerra.

Antes de apresentar a estrutura do livro, gostaria ainda de comentar sobre uma marca do trabalho de Hélio Franchini Neto: a predileção por fontes primárias em relação à historiografia mais recente como suporte de seu texto. A vasta bibliografia apresentada ao final do livro, com presença de trabalhos publicados nos últimos anos e que, certamente, foram fundamentais à interpretação das fontes, não está refletida de modo sistemático nas notas de rodapé, dominadas por referências a fontes. Aqui abundam os relatórios diplomáticos e militares, correspondências oficiais, textos de periódicos. Também há espaço para trabalhos clássicos da historiografia.

Falemos agora do livro de modo mais pormenorizado. As duas primeiras partes apresentam a tessitura das disputas políticas entre Rio de Janeiro e Lisboa e as recepções e reações em diferentes províncias naqueles frenéticos anos de 1821 e 1822. No intitulado “O Brasil de 1822”, são enfatizadas as diferenças no modo como as províncias do Reino do Brasil experimentaram as mudanças políticas e econômicas que marcaram o final dos setecentos e aquelas primeiras décadas oitocentistas no mundo luso-brasileiro. Nessa passagem, o autor discute com a historiografia e se distancia das explicações da Independência como resultado de disputas identitárias “nativistas”. Considera, contudo, ter sido essencial o modo como agentes históricos das diferentes regiões articularam as três camadas de identidade - portuguesa, americana e local, forjadas pela experiência colonial - para a definição da construção dos diferentes posicionamentos das províncias frente à possibilidade de independência. Nesse sentido, destaca as particularidades das experiências políticas, econômicas e sociais do atual Norte/Nordeste e seus desdobramentos no momento da adesão à Independência, e as tensões ampliadas com a atuação do Rio de Janeiro como sede do Império entre 1808 e 1821, sem desconsiderar o processo de articulação do Centro-Sul com o Príncipe Regente. Essa distinção será um dos pontos de sustentação de todo o livro.

Em “A Constituinte ‘luso-brasileira’”, o autor discorre sobre a disputa entre Lisboa e Rio de Janeiro pela hegemonia do Império, em meio às discussões político-filosóficas daquela que foi a primeira experiência constitucionalista luso-brasileira. O capítulo é bem estruturado e nos apresenta o contexto ibérico e a influência direta das Cortes de Cádiz, e o caráter experimental das soluções dadas naquele mundo marcado pelas tensões advindas dos esforços de manutenção de antigas certezas, da atualização de tradições e da adesão de grandes novidades. O cenário apresentado por ele é bastante conhecido pela historiografia, o que faz deste capítulo o menos inovador do livro. Breves apontamentos, contudo, refrescam o texto, como quando nos lembra que a Constituição Portuguesa, promulgada em novembro de 1824, incluía o Reino do Brasil como uma de suas partes, e que, efetivamente, as Juntas Provisórias de Governo do Pará, Maranhão e Bahia reconheceram naquele texto sua primeira Constituição. Também nos apresenta o curioso dado de que 25% das assinaturas daquela carta magna eram de representantes de províncias do Brasil.

No início da terceira parte, “Uma rebelião armada”, por sua vez, Helio Franchini Neto consegue nos apresentar novas perspectivas sobre outro tema já muito abordado: o Fico. Aqui, somos conduzidos aos primórdios do conflito armado, e a tese do autor é efetivamente apresentada. Ele discorre sobre os desdobramentos políticos da decisão de D. Pedro permanecer no Brasil à revelia das ordens das Cortes, com destaque para o início da mobilização de guerra. O livro é bastante feliz na representação da tensão que tomou conta do Rio de Janeiro naquela virada de ano, no modo como D. Pedro é convencido a ficar e nos desdobramentos políticos decorrentes, entre eles, a possiblidade de eclosão da guerra. O texto então ganha dinamismo e joga luz na violência nas ruas da Corte e na mobilização de tropas por ambos os lados, além da presença de civis armados, o que teria somado, naquelas noites que se seguiram ao Fico, algo em torno de 6 mil pessoas.

Das tensões nas ruas do Rio de Janeiro, o livro nos leva às duras negociações com as elites provinciais e que resultaram na organização das “Províncias Coligadas”. Segundo Franchini Neto, das 18 províncias participantes desse grupo em meados de 1822, apenas em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul o futuro imperador conseguiu apoio imediato. O livro se esforça em mostrar como as negociações e disputas políticas eram acompanhadas por iniciativas militares. É-nos, então, apresentado o quadro da composição e distribuição das tropas brasileiras e portuguesas pelo então Reino do Brasil. Aqui percebemos a forte presença lusitana em províncias que viriam a ser palco da guerra. Tal dado explicita o papel da violência na discussão de projetos possíveis em 1822.

Os detalhes da mobilização militar geral nos são dados na parte 4 do livro. Aqui encontramos números de soldados e regimentos, dados sobre a Marinha, com suas principais embarcações, os debates que envolviam o quantitativo das forças e os custos de sua manutenção. A tensão da situação levou a tomada de duras medidas que visavam ao controle da população portuguesa que vivia e tinha negócios no Brasil, que passaram a ser vistos como potenciais inimigos e sofreu com a decretação do confisco de bens. Pelo lado português, os esforços de guerra sofreram significativa guinada com o fechamento das Cortes e a revogação da Constituição. Conflitos internos e o perigo de conflito com Espanha exigiram a concentração de energia no território europeu. Além disso, a insistência de D. Pedro I em apresentar as Cortes como as verdadeiras inimigas do Brasil, e não a Coroa, permitiu que ao final do conflito muitos soldados e oficiais portugueses fossem incorporados às armas brasileiras.

A grande contribuição do livro de Hélio Franchini Neto encontra-se nas partes “Guerra no Centro estratégico: Bahia”, “O teatro de operações norte” e “Cisplatina”, respectivamente, as partes V, VI e VII da obra. Esta é a seção mais descritiva do livro e a que traz detalhes dos principais acontecimentos, personagens e movimentações militares. A despeito de lidar com as particularidades locais que influenciaram a não adesão imediata à causa do Brasil, os esforços de mobilização locais e as movimentações miliares de cada uma destas localidades, essas operações são apresentadas como resultado de um único esforço de guerra. Como dito anteriormente, Hélio Franchini defende a tese de se tratar de uma só guerra, a guerra de Independência, no singular. Conhecer como se deu a adesão dessas provinciais ao Brasil nos diz muito sobre aqueles conturbados anos de 1821 a 1823, mas torna mais compreensíveis as contestações à política imperial nas décadas que se seguiram.

A consolidação formal da Independência é objeto da última parte do livro, “O pós-guerra e o reconhecimento da Independência”. O peso dado a este momento nos leva a questionar o corte cronológico apresentado em sua capa: 1821-1823. A primeira data se explica pela importância dos decretos promulgados pelas Corte de Lisboa em outubro de 1821, que tiveram como um de seus desdobramentos o dia do Fico. Lembremos que Franchini considera a declaração de desobediência de D. Pedro o início formal das disputas com as Cortes e da mobilização militar. Contudo, facilmente o autor poderia apresentar o ano de 1825 como fechamento de seu corte cronológico, uma vez que, segundo suas palavras, as hostilidades apenas se encerrariam com a assinatura do Tratado entre Brasil e Portugal naquele ano. Há grande esforço em se discutir os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1823, bem como do seu fechamento, a Confederação do Equador, e além de se alongar nas tratativas diplomáticas para o reconhecimento da Independência por Portugal e Grã-Bretanha. A indicação de 1823 como limite cronológico, assim, não é evidente.

As primeiras páginas desta parte analisam os embates que se deram no interior da Assembleia Constituinte, apresentada como lócus de reativação de debates sobre a configuração política do novo Estado e que, com o acirramento dos conflitos com as Cortes e a guerra de Independência, haviam sido momentaneamente silenciados. O capítulo é muito instrutivo e prima pela articulação dos projetos de nação e de Estado formalizados a partir de 1820, e a eclosão da luta armada no período regencial. Mostra a fragilidade dos acordos e a instabilidade das alianças nos primeiros anos da independência, algumas delas decorrentes da falta de ações governamentais efetivas nas províncias do Norte, importante teatro da guerra da Independência. A situação também era agravada pelo ressurgimento das demandas descentralizadoras.

É importante pontuar, contudo, que algumas afirmações do autor nessa passagem demonstram falta de familiaridade com alguns trabalhos recentes sobre aquela Assembleia. Ao apontar uma suposta falta de objetividade dos parlamentares ao se envolverem em atividades outras que não a elaboração da Constituição, ele parece desconsiderar o fato da Assembleia de 1823 não ter sido exclusiva, cabendo-lhe, também, a discussão de legislação infraconstitucional. Por outo lado, demonstra estranhamento com a atuação do parlamento como instância distribuidora de justiça, não reconhecendo ali atualização da tradição peticionária no mundo português.

Se a Constituinte brasileira acabou se tornando ponto de instabilidade, o golpe que resultou no fechamento de sua congênere portuguesa deu luz à possiblidade de manutenção da ligação entre Brasil e Portugal no início das negociações pelo reconhecimento da Independência. Os defensores de tal ideia se agarravam ao fato de as Cortes serem recorrentemente apontadas como verdadeiras inimigas do Brasil, e não a Coroa. Nesse sentido, o autor alinhava de modo muito convincente a capacidade desestabilizadora das ações portuguesas a partir de 1824, principalmente nas regiões que viveram a guerra. Esse fator teria pesado na mudança de postura do Brasil no processo de negociação do reconhecimento por parte de Portugal e a entrada do Reino Unido como intermediário. Nesta parte do livro, o autor elucida a desconsideração da guerra nas explicações do processo de emancipação do Brasil como reflexo das alianças estabelecidas entre D. Pedro I e as elites que estavam anteriormente envolvidas na guerra e com os portugueses que se concentraram na Corte, a partir de 1824. O autor trata então longamente do processo de reconhecimento da Independência. Tal ênfase se explica, contudo, com o fato de Helio Franchini considerar a assinatura do tratado de 1825 como o marco do fim das hostilidades entre Brasil e Portugal. A documentação diplomática presente ao longo de todo o livro é manejada com bastante familiaridade nessa passagem. O quadro apresentado é rico e detalhado, sem trazer, contudo, maiores novidades.

A “Conclusão” do livro é outro de seus pontos altos. Os muitos dados trazidos ao longo da pesquisa são usados para reforçar o caráter incerto dos acontecimentos daquela década de 1820, quando a Independência do Brasil - da maneira que foi construída, centrada na figura de D. Pedro - era apenas um dos diversos futuros possíveis. Como dito pelo autor, o livro buscou desvendar o papel do conflito armado na consolidação de certa proposta de Independência e na manutenção da unidade do Império, acompanhando o “conflito político, que se transformou em guerra civil, e, depois da Independência, em guerra no sentido tradicional” (p. 628). A capacidade de síntese do autor na conclusão é notável, aliás. De modo conciso e com muitas informações, ele nos traz os principais tópicos de toda a obra e explicita seu grande objetivo: mostrar a artificialidade do Brasil em oposição a certa vertente explicativa do processo de independência que o vê como natural, fruto do amadurecimento da nação e do Estado.

Independência e morte se apresenta, portanto, como importante contribuição para o debate atual sobre pluralidade de projetos e perspectivas presentes em 1822, e na conscientização de que o presente e o futuro de nosso país devem ser compreendidos como resultado de escolhas e não como heranças. O Brasil do ano 2022 é apenas um dos infindáveis futuros presentes em 1822. Também é a prova de que, a partir de novos olhares, é possível se inovar na escrita da história mesmo tendo por fonte documentação amplamente reconhecida.

Referência

  • FRANCHINI Neto, Hélio. Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823). Rio de Janeiro, Topbooks, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2022
  • Aceito
    10 Ago 2022
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