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A paixão da história nas biografias de Paulo Leminski

The passion of history in the biographies written by Paulo Leminski

La pasión de la historia en las biografías de Paulo Leminski

RESUMO

O objetivo deste artigo é pensar os experimentos biográfico-poéticos de Paulo Leminski como narrativas históricas e a agência do e sobre o passado que eles articulam. O argumento central é o de que os modos de relação com o tempo que ali aparecem escapam àqueles que predominam na chamada cultura histórica, dialogando com as temporalidades da poesia e do mito. Trata-se, mais especificamente, de pensar como o poeta-biógrafo busca articular uma relação com o passado atravessada por aquilo que ele chamou de paixão, que implica levar em conta não apenas as presenças do outrora no interior do agora, mas também seus modos de participação nas dinâmicas temporais, isto é, nos movimentos de atualização e desatualização.

Palavras-chave:
paixão; história; biografia; Paulo Leminski

ABSTRACT

The purpose of this article is to think of Paulo Leminski’s biographical-poetic experiments as historical narratives and the agency of and about the past that they articulate. The main argument is that the concept of time that emerges in his writings escapes from those that predominate in the so-called historical culture, dialoguing with the temporalities of poetry and myth. More specifically, it is about how the poet-biographer articulate the relationship with the past crossed by what he called “passion”, which implies taking into account not only the presence of the past within the present, but also its modes of participation in the temporal dynamics, that is, in the movements of updating and outdating.

Keywords:
passion; history; biography; Paulo Leminski

RESUMEN

El objetivo de este artículo es pensar los experimentos biográfico-poéticos de Paulo Leminski como narrativas históricas y la agencia de y sobre el pasado que ellos articulan. El argumento central es que las formas de relacionarse con el tiempo que allí aparecen escapan a las que predominan en la llamada cultura histórica, dialogando con las temporalidades de la poesía y el mito. Se trata, más concretamente, de pensar cómo el poeta-biógrafo busca articular una relación con el pasado atravesada por lo que él llamó pasión, que implica tener en cuenta no sólo la presencia del pasado en el ahora, sino también sus modos de participación en las dinámicas temporales, es decir, en la actualización y desactualización de los movimientos.

Palabras clave:
pasión; historia; biografía; Paulo Leminski

Introdução

Recentemente, com a republicação da coletânea Vida, tornaram-se mais amplamente conhecidos os trabalhos biográficos de Paulo Leminski.1 1 Paulo Leminski, poeta curitibano, é também conhecido por seus romances experimentais, sua produção crítica e ensaística, bem como por outras experimentações artísticas. Trata-se de um volume que reúne quatro biografias, inicialmente publicadas entre 1983 e 1986, de personagens históricos cujas existências o poeta-biógrafo considera relevantes para si e para sua atualidade: Cruz e Sousa, Matsuó Bashô, Jesus Cristo e Leon Trótski. Parte-se aqui da ideia de que esses textos trazem à tona a relação de Leminski com certos passados e mostram como ele busca se conectar e fazer alianças com algumas vidas de outros tempos. Interessa analisar como o autointitulado “pensamento selvagem” leminskiano procura criar formas de tensionar aquilo que convencionamos chamar de “cultura histórica” e seus modos de relação com o passado, apostando em modos de conexão com a poesia e com o mito e com o que se poderia nomear, a partir de apropriações do vocabulário do próprio Leminski, de paixão do tempo.

Leminski publica essas biografias em um momento de transição em sua obra em que começa a se atenuar o desejo vanguardista por “informação nova”, que orientou a escrita de um livro radicalmente inovador como Catatau (1975) ou dos poemas de inspiração concretista do início dos anos 1970, e ganha corpo a apologia da paixão e da afecção, ligada a uma produção poética que busca dosar experimentalismo e comunicação, como percebe-se em seus poemas a partir da década de 1980, em romances como Agora é que são elas e no ensaio Metaformose. As biografias, portanto, fazem parte deste deslocamento estético que não é apenas leminskiano, mas geracional, no qual parte significativa dos artistas brasileiros questionam as estéticas marcadas por uma vontade revolucionária de “orientação única em direção ao futuro” (MORAES, 2019MORAES, Everton. “Plano Pirata” do poema possesso: tempo e humor na poesia brasileira dos anos 1970. Revista Brasileira de História, v. 39, n. 82, p. 265-286, 2019., p. 272) e reivindicam uma reconexão com a multiplicidade de tempos e sua alteridade. Se até o início dos anos 1970 predominavam os artistas engajados na transformação da arte e da realidade social, a partir de finais dessa mesma década as soluções poéticas se dispersam em uma infinidade de variações, mais abertas aos afetos da realidade do que preocupadas em transformá-la. Podemos detectar esse deslocamento no interior da própria obra leminskiana: Catatau busca criar uma linguagem do futuro, radicalmente experimental, que torna o texto difícil, inacessível à imensa maioria do público leitor; as biografias, por outro lado, são marcadas por um outro tipo de experimento, que tenta criar novas formas de relação com o passado por meio da linguagem, seja emulando a poética do biografado, seja trazendo uma infinidade de poemas de época ou articulando uma escrita que se constitui a partir da figura de linguagem que Leminski utiliza para caracterizar a vida do biografado.

Estes textos não são, a rigor, biografias no sentido estrito do termo, uma vez que não se trata ali de descrever uma trajetória ou acumular eventos da vida particular dos personagens a partir de registros e relatos, mas sim de uma espécie de ensaio histórico-literário que mobiliza recursos tanto do pensamento histórico moderno como de um “pensamento selvagem” do mito e da poesia, vazado em uma escrita que passeia entre a descrição historiográfica, a literatura em prosa e a poesia. Apesar de se referirem insistentemente à história, de fazerem da análise da historicidade das vidas que narram um de seus pontos centrais e de evocarem atmosferas de época, estes textos também não são historiográficos, ao menos não em sua forma disciplinar, uma vez que não existe ali pesquisa acurada em fontes primárias, descrições densas dos eventos ou análise crítica e objetiva do passado, tampouco uma escrita disciplinada ou o embasamento em uma bibliografia autorizada. Esses textos podem ser caracterizados como narrativas históricas que buscam dar conta de uma relação simultaneamente devedora e criativa com relação a certos passados, uma vez que Leminski considera que “não só a História traz a marca dos indivíduos que a fazem”, mas “também é interiorizada pelos indivíduos que a vivem” (LEMINSKI, 1986LEMINSKI, Paulo. Trótski: a paixão segundo a revolução. São Paulo: Brasiliense, 1986., p. 10). Assim, não se trata ali de uma abordagem distanciada e objetivista dos tempos pretéritos, mas de uma tentativa de criar com eles modos outros de conexão tanto quanto de interpretá-los criticamente.

No interior das biografias ou em declarações a respeito delas, Leminski afirma que se sente impelido a rememorar as vidas ali presentes, pois, ainda que aparentemente confinadas em um passado distante, elas, na realidade, habitariam ainda as entranhas de seu presente. Nesse sentido, tais existências funcionariam como “parâmetro de uma outra vida”, “exemplos de radicalidade” capazes de inspirar o presente, para falar como Alice Ruiz (LEMINSKI, 1998bLEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski. Porto Alegre: Sulina, 1998b., p. 9). Argumento aqui que, para Leminski, a exemplaridade dessas existências reside no fato de que cada um de seus quatro biografados viveu sob o signo da paixão, entendida como condição daquele que sofre uma ação ou acontecimento e faz deste sofrer o impulso para um gesto inventivo. Seria possível afirmar, desse modo, que as biografias abordam vidas que “sofrem”, que são afetadas por suas temporalidades, mas que também agem sobre esse afeto para produzir seus próprios tempos.

O objetivo deste artigo é pensar o experimento biográfico-poético de Leminski como narrativa histórica que busca escapar aos modos de lidar com o tempo predominantes na cultura histórica, sobretudo no que diz respeito à agência do e sobre o passado. Trata-se de analisar como o poeta procura articular uma experiência do tempo atravessada por aquilo que ele chamou de paixão, que não passa pela objetificação do passado, mas que se pauta por uma tentativa de cartografar não apenas as presenças dele nas entranhas do presente, mas seus modos de participação nas dinâmicas temporais, isto é, nos movimentos de atualização e desatualização (PEREIRA; ARAUJO, 2019PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. Vitória: Editora Milfontes/ Mariana: Editora da SBTHH, 2019.). Interessa também mostrar que, nesse modo de relação com o outrora, a literatura/poesia e o mito ocupam um papel central.

Paixão e história

Em uma conferência proferida em 1986, Leminski descreve a sua atualidade como uma época em que a paixão estaria em falta, em que o uso recorrente da palavra “paixão” encobria, na verdade, um déficit desta enquanto modo de sentir. “Por que a palavra paixão está na moda?”, pergunta ele, para logo em seguida responder que “não é a paixão que está na moda, é a palavra paixão. [...] Não é que a nossa época seja muito apaixonada. Se a gente está valorizando tanto isso aí, é porque está faltando” (LEMINSKI, 2009LEMINSKI, Paulo. Poesia: paixão da linguagem. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 322). Essa falta decorreria do fato de que, de acordo com o poeta, “o momento em que a gente está vivendo [...] (é) uma época da sensação, não da paixão. A paixão me parece incompatível com o tempo urbano-industrial” (LEMINSKI, 2009LEMINSKI, Paulo. Poesia: paixão da linguagem. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 322-323). Mas o que afinal Leminski está chamando de paixão em seu diagnóstico da atualidade?

A palavra paixão em português vem do latim, mas existe uma palavra indo-europeia, nas línguas indo-europeias, que significaria uma espécie de você ser objeto de uma ação, e esse verbo, essa palavra, não teria passado propriamente pro português, não do jeito como eu estou pensando. Em grego, por exemplo, existe um verbo que é o verbo “PASKHO”, na primeira pessoa do presente do indicativo, “ego paskho”, quer dizer, “sofro uma determinada ação”, o infinitivo seria “PASKHEIN”. Desse verbo vem a palavra “patético”. A palavra “patético” é do grego, não do latim, mas ela é, num estágio histórico anterior, aparentada. A gente diz que isso é “patético”, ele tentou ser patético. Patético significa tentar sensibilizar alguém (LEMINSKI, 2009LEMINSKI, Paulo. Poesia: paixão da linguagem. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 325).

É, portanto, da paixão como o “sofrer uma ação”, ser objeto de um acontecimento ou força, que ele fala. O ser patético do qual Leminski fala, nesse sentido, é aquele caracterizado por sua abertura, sendo fundamentalmente definido por sua condição de afetado. Não se trata, no entanto, de um sofrer ligado à ideia de dor ou padecimento, mas de algo próximo à “voz ativa” [“eu corto”, “eu queimo” em vez da voz passiva, “eu sou cortado”, “eu sou queimado”] (DIDI-HUBERMAN, 2016DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção?São Paulo: Editora 34, 2016., p. 20). A partir de Aristóteles, o historiador da arte Georges Didi-Huberman elabora uma definição de paixão próxima à de Leminski, ao afirmar que ela é sempre o produto de um acontecimento que vem do “fora”, atravessa o sujeito, mas que não concerne necessariamente a um “eu”, constituindo-se como movimento do sujeito para fora de si (DIDI-HUBERMAN, 2016DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção?São Paulo: Editora 34, 2016., p. 20-21). Trata-se, no argumento leminskiano, de pensar a suscetibilidade como uma condição fundamental para a criação poética. O poeta é, antes de tudo, “um sofredor da linguagem”, tem com ela inicialmente uma relação masoquista, que implica em aceitar as regras e participar de seus jogos, mergulhando nas suas tramas para, só depois de muito trabalho, passar ao momento sádico, que consiste em “devolver aqueles golpes que tinha sofrido no início, no qual era uma vítima da língua” (LEMINSKI, 2009LEMINSKI, Paulo. Poesia: paixão da linguagem. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 329).

A paixão, entretanto, estaria em crise no contexto contemporâneo. No ensaio “Inutensílio”, Leminski afirma que o princípio capitalista “da utilidade corrompe [também] todos os setores da vida, nos fazendo crer que a própria vida tem que dar lucro”. É como se, ao transformar “tudo” em mercadoria, o capitalismo tivesse se apropriado da própria dimensão do desejo. Não ficariam de fora nem mesmo “o amor, a amizade. O convívio. O Júbilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia. A rebeldia. Os estados de graça. A plenitude da carne. O orgasmo” (LEMINSKI, 2012LEMINSKI, Paulo. Poesia: paixão da linguagem. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 86). Tudo o que não corresponde à utilidade, que não contribui para o crescimento e o progresso, seria “incompatível com o tempo urbano-industrial”, precisaria ser convertido em objeto de consumo e se adaptar a esse movimento constante em busca da novidade e da sensação. Sua atualidade, assim, aparece como época que incita as pessoas à atividade constante, à incessante superação do passado. Nessa racionalidade, qualquer coisa torna-se matéria passível de ser apropriada e ter sua forma atual superada pela sua transformação em mercadoria:

O capitalismo tem dentro de si, em sua essência, uma espécie de “amorfia”. É sua grande força. Institucionaliza a lei do salve-se quem puder e a corrida de ratos em direção ao ouro da Califórnia, [...] libera direções e rumos para os arbítrios do egoísmo individual. Uma única lei suprema rege esse universo: tudo é válido, se puder se transformar em mercadoria, vale dizer, em lucro. Esta transformação da obra de arte em mercadoria faz de cada artista burguês um cúmplice beneficiário da ordem capitalista como um todo (LEMINSKI, 2012LEMINSKI, Paulo. Poesia: paixão da linguagem. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 53).

Nessa sociedade não haveria espaço para os ritmos e temporalidades próprios à paixão. Para Leminski, seu tempo seria a época da “sensação” que, diferentemente da paixão, se adequa bem aos fluxos do trabalho e da mercadoria:

A paixão me parece incompatível com o tempo urbano-industrial. A nível de performance profissional, imaginem, por exemplo, um programador de computadores apaixonado. Isso só pode conduzir a erros incríveis. Já se o sujeito trabalhar na construção civil e estiver apaixonado, arrisca-se a cair do oitavo andar. É bem mais grave do que um erro contábil. Enfim, erros contábeis e cair do oitavo andar são coisas que podem acontecer a um trabalhador apaixonado dentro da sociedade urbano-industrial (LEMINSKI, 2009LEMINSKI, Paulo. Poesia: paixão da linguagem. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 322-323).

Mas, para além do subtítulo do livro sobre Trótski (Trótski: a paixão segundo a revolução), o que a paixão tem a ver com as biografias de Leminski? Se o poeta dá por acabada a época da paixão, ao falar de seus biografados ele parece fazer dela um fio narrativo por meio do qual conta estas vidas e os conflitos nos quais elas estiveram envolvidas. Para além disso, como veremos, a paixão é também o tipo de relação que o biógrafo estabelece com seus biografados e suas respectivas temporalidades. Por isso afirmei acima que Leminski propõe uma forma de conhecimento do passado distinta daquela que impera na cultura histórica, que se pauta pelas ideias de distanciamento, crítica, corte e apropriação do passado em função das demandas do presente.

O historiador indiano Sanjay Seth afirma que a cultura histórica moderna funciona de acordo com o que ele chama de “código da história”, um dispositivo que permite que os historiadores abordem o passado de maneira nomeadamente científica. Ele consiste em uma série de procedimentos que visam a tornar os relatos historiográficos mais objetivos e disciplinados. No interior deste código o passado é tratado, via de regra, como um tempo outro, separado do presente, e a memória, como um resíduo emocional e involuntário a ser apropriado por um saber histórico crítico. O que chamamos de cultura histórica, este dispositivo de pensamento forjado no século XVIII para dar conta das experiências revolucionárias burguesas e europeias, está fundada sobre um desejo “ligado a certas pessoas (classes, sociedades) e não outras” (SETH, 2010SETH, Sanjay. Historiography and non-western pasts. Historein, v. 10, p. 71-81, maio 2010., p. 71) e a fenômenos como a emergência do Estado moderno, da racionalidade científica e da ideia de progresso, bem como a um discurso “qualitativamente diferente da epopeia, da lenda e do mito” (SETH, 2010SETH, Sanjay. Historiography and non-western pasts. Historein, v. 10, p. 71-81, maio 2010., p. 71). Ela se constitui por oposição ao que se poderia chamar de pensamento tradicional, mais ligado a explicações que demandam a presença de seres mágicos e deuses e a um tipo de conhecimento que se pauta mais pela transmissão da memória do que por uma vontade de superação do passado (fundamento da ideia de progresso).

A historiografia disciplinada dos séculos XIX e XX, versão científica e institucionalizada da cultura histórica, tomou para si a missão de domesticar o tempo por meio de um procedimento de escrita capaz de objetivar a si mesmo e a seu mundo, desencantando-o. Isto significa que, mesmo os historiadores tendo operado uma dúzia de reformas epistemológicas em sua disciplina, ela segue sendo um modo de pensar a história como um processo que tende a uma contínua racionalização e desencantamento do mundo. A partir do momento em que a história foi alçada à condição de discurso autorizado sobre o passado, os deuses, o mito, a magia e a memória deixam de ser uma “fonte de realidade” e passam a ser objetos de um determinado conhecimento, que produziria explicações a partir dos significados atribuídos a eles por coletivos humanos vivendo no tempo. A paixão seria um destes elementos que o pensamento moderno confina em suas margens, como incapaz de fornecer orientação legítima e adequada a uma atuação na realidade.

A cultura histórica assume, assim, nas sociedades modernas, um papel colonizador de outras experiências do tempo. Tudo se passa como se a memória, o mito e a tradição fossem formas de lidar com o tempo dos mundos pré-modernos, restos de passado que, quando emergem no presente, representam um obstáculo a ser superado pela razão crítica. Podemos dizer, desse modo, que o discurso moderno da história estabelece um tipo de relação predominantemente atualizadora com o tempo, isto é, busca produzir uma forma de compreensão do pretérito que deve servir a um presente que seria a medida que permite separar entre contemporâneo e ultrapassado, atual e inatual, passado real e passado fictício, memória e história etc. Afinal, é o gesto sistematizador da razão crítica que separa o histórico do mítico ou do memorioso, que demarca as continuidades e descontinuidades, que opera o corte entre o sujeito e o objeto de conhecimento. Trata-se, enfim, do gesto de desatualizar o passado por meio da afirmação de um modo de conhecimento que precisa se atualizar constantemente.

Na palestra supracitada Leminski fala da poesia como lugar em que a experiência da paixão ainda resiste à morte. É possível, no entanto, dizer que não apenas a poesia, mas também as artes/ficções modernas, de modo mais amplo, possuem uma posição ambígua frente à cultura histórica moderna. Pelo menos desde o primeiro modernismo (meados do século XIX), elas tomaram para si o projeto de reformular a linguagem para dar conta de uma realidade cada vez mais acelerada, produzindo incessantemente novas e experimentais formas de linguagem que partiam da ideia de que a obra de arte seria “a voz que absorve uma inumerável multiplicidade de vozes e formas de experiência”, tornando-se capaz “de expressar todas as intensidades da vida moderna” (RANCIÈRE, 2010RANCIÈRE, Jacques. O efeito de realidade e a política da ficção. Novos estudos CEBRAP, n. 86, p. 75-90, 2010., p. 90). Assim, pode-se dizer que o modo predominante de agência da arte moderna consiste em partir da posição masoquista (afetada pela realidade) da paixão para atingir uma posição sádica (conformar a realidade). Os projetos modernistas e vanguardistas via de regra estiveram tensionados entre esse movimento de desatualização (questionamento das tendências de sua atualidade) e o gesto atualizador (recuperação do passado em favor do aquecimento e da aceleração da história), bem como entre uma abertura para mundos outros e uma objetivação do real em função de suas demandas transformadoras. Assim, o artista moderno foi alçado a um lugar de soberania da linguagem, na posição de criador ex nihilo de formas de expressão, mas também foi definido como sujeito altamente suscetível aos afetos da realidade (LUCAS, 2020LUCAS, Fábio Roberto. Termodinâmicas do ato poético: modulações do (fim do) poema na década perdida. Crítica Cultural-Critic, Palhoça, SC, v. 15, n. 1, p. 167-190, jan./jun. 2020. p. 184-188., p. 184-188).

Ao reivindicar tanto a poesia e o vanguardismo quanto o pensamento selvagem como elementos fundamentais de seu fazer artístico, ao trazer a paixão para o centro de sua reflexão sobre a poesia, Leminski se coloca como alguém que não deseja apenas reiterar o caráter sádico e artificioso da arte, mas valorizar também sua dimensão masoquista. Isso ocorre em um momento em que se experimenta, no mundo ocidental, uma crise do pensamento artístico moderno. Me refiro aqui ao que foi nomeado “fim da era dos manifestos” ou “Fim da História da Arte” (BELTING, 2006BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006.), situação na qual as artes têm sua historicidade modernizante fortemente questionada, tanto pelas limitações internas de seus projetos como em decorrência da crise mais ampla do pensamento moderno em geral. Nesse contexto, a arte abre-se, entre outras coisas, para os mundos extramodernos, para o pensamento selvagem, inclusive para o mito, como testemunha a obra e a reflexão crítica do próprio Leminski (MORAES, 2018MORAES, Everton. Da solidão do deserto ao caos das trevas exteriores: ascese e invenção em Paulo Leminski. Alea: Estudos Neolatinos, v. 20, n. 2, p. 74-91, 2018.). No mito, o gesto que atualiza um passado imemorial devolve a desordem do acontecimento atual à ordem cosmológica (SAHLINS, 1997SAHLINS, Marshal. Outras épocas, outros costumes: a antropologia da história. In: SAHLINS, Marshal. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011.) e, desse modo, pode se apresentar como uma reemergência do outrora que desestrutura o agora. O movimento temporal é duplo: atualização do passado e desatualização do presente.

A postura de Leminski diante dessa cultura histórica é, portanto, ambígua: considera-se um artista de vanguarda e, dessa forma, manifesta inúmeras vezes o desejo de mobilizar o passado (atualizá-lo) em favor de seu presente, de fazer a “seleção crítica” de seus predecessores, como sugeriam os poetas concretos, com os quais mantém estreita ligação; por outro lado, enquanto pensador selvagem, isto é, afetado por uma paixão do tempo, se mostra afeito aos anacronismos do “pensamento mágico” e ao mito como modo de conhecimento. Podemos ver essa ambiguidade na sua obra mais célebre, o Catatau (LEMINSKI, 2010LEMINSKI, Paulo. Poesia: paixão da linguagem. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Nela, Renatus Cartesius, nome latinizado de René Descartes, é transformado em membro da comitiva de Maurício de Nassau e acaba por desembarcar em Pernambuco onde, em meio ao caos da realidade menos definida dos “seres tortos” da floresta, transforma sua razão no encontro com a realidade selvagem, articulando um pensamento que, sem abandonar totalmente suas bases, é convertido em outra coisa por meio de um devir selvagem. A literatura leminskiana de vanguarda, desse modo, pode ser lida também como pensamento selvagem, como dispositivo capaz de recuperar a potência da racionalidade analógica e mitológica e fazê-la deformar a “razão histórica”. No início da biografia de Trótski, ao escrever contra os “fanáticos da objetividade”, Leminski reivindica um pensamento histórico indisciplinado e pautado pela “indecência” de imaginar que se possa pensar a história a partir de um ponto de vista ficcional e anacrônico (LEMINSKI, 1986LEMINSKI, Paulo. Poesia: paixão da linguagem. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 10). Vejamos agora como esse pensamento se apresenta nas biografias.

Histórias da paixão

O diagnóstico leminskiano segundo o qual vivemos em uma época da sensação pode ser entendido como produto da compreensão de que os sujeitos contemporâneos têm seus modos de vida baseados no consumo de situações imediatas e fugazes, estando separados de sua capacidade de se engajar em uma experiência densa de paixão. Todos os biografados, por outro lado, transformaram profundamente suas existências em função da percepção de que algo em seu tempo estava profundamente errado e os afetava de modo decisivo. Para modificar essa realidade seria preciso aderir a certos preceitos, mergulhar em certas experiências ou se engajar em alguma tarefa. Seguindo a dialética da paixão descrita por Leminski, podemos perceber que eles sofreram uma determinada realidade (momento masoquista da paixão) e se engajaram em uma tarefa para criar algo a partir disso (momento sádico da paixão).

Na biografia Cruz e Sousa: o negro branco, Leminski chega a usar a mesma terminologia do texto sobre a poesia como paixão da linguagem: o poeta catarinense é descrito como alguém cujo “tom” é “todo carregado de um sadomasoquismo” (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 1983b., p. 70), cujo estatuto era explicado pela experiência de, na condição de poeta negro, viver “no Brasil do século XIX” (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Metaformose: uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo: Iluminuras, 1998a., p. 71), marcado pela escravidão e pela mentalidade escravista. Cruz e Sousa aparece quase sempre como sujeito afetado, marcado pelos estigmas raciais de sua época, pelas aflições do cotidiano burocrático de um emprego público ao qual se sentia preso, pelos restritivos parâmetros literários de seu tempo etc. Se na conferência supracitada Leminski faz questão de distinguir entre o sofrer implicado na ideia de paixão e a experiência da dor, aqui as duas coisas aparecem profundamente relacionadas. Cruz e Sousa é descrito como uma espécie de “acrobata da dor”, isto é, alguém que, tendo enfrentado uma série de obstáculos sociais, culturais e políticos, assume a tarefa de dar forma poética à própria vida, transformar “sofrimento e carência” em “beleza e significado” (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Metaformose: uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo: Iluminuras, 1998a., p. 10). E por aí já começamos a ver como Leminski sugere que o seu biografado “devolve os golpes” que sofreu da história:

O poeta como assinalado. O marcado (Caim?) por um sinal.

Sinal para ver mais longe. Mas para sofrer mais fundo.

A negritude como sinal total: visibilidade integral (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 1983b., p. 71).

A condição de assinalado, de marcado pela dor, é a mesma que permitiria ao poeta experimentar mais a fundo as contradições de seu tempo e transformá-las em poesia, forjando para si mesmo não apenas uma visão irônica do mundo, mas uma vida regida pela “figura da ironia” (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 1983b., p. 9). Não é à toa que Leminski termina seu capítulo sobre a dor de Cruz e Sousa com um comentário a respeito do poema intitulado “Rir”, no qual o riso se irradia “por dentro dos versos” (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 1983b., p. 74-75): Leminski ressalta que o riso poético não equivale à sensação de alegria, mas a uma criação estética. A poesia, desse modo, teria sido a forma como o biografado buscou traduzir sua dor e inventar para si uma vida outra.

A segunda vida narrada por Leminski, a de Matsuó Bashô (Bashô: a lágrima do peixe), é lida por ele como uma existência sob o signo do zen, do silêncio, do “resgate da dor” (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 1983b., p. 67). Sendo assim, ela seria marcada não por grandes feitos, por ações destinadas a interferir nas “exterioridades solares da história” (LEMINSKI, 1986LEMINSKI, Paulo. Trótski: a paixão segundo a revolução. São Paulo: Brasiliense, 1986., p. 10), mas por uma busca de apagamento de si, integração à natureza, leveza e sutileza dos gestos, um minimalismo existencial ora aproximado aos Padres do Deserto, “loucos de Deus” do cristianismo que abandonavam a opulência da vida eclesiástica nos centros urbanos para se dedicar à pregação e à autoflagelação nas comunidades campesinas ou nos desertos, ora comparado à atitude estética dos artistas vanguardistas do século XX, caracterizada pela recusa radical do ornamento e pelo ascetismo poético.

Esse apagamento de si, típico do zen-budismo do qual Bashô era adepto, não é um mero “se deixar levar” pelo curso dos acontecimentos, mas da compreensão de que, se não se pode mudá-los com o “querer”, uma certa “imobilidade”, aqui entendida como estado de atenção, concentração e ausência de excitação, pode se apresentar como uma forma de permanecer voluntariamente no estado de passividade propiciado pela paixão. No início da biografia de Cruz e Sousa, em um trecho que bem poderia estar no texto sobre Bashô, Leminski fala do sabisha, um estado de imobilidade que funciona como uma maneira de captar as forças cósmicas:

Sabisha é, também, um estado de interpenetração com todas as outras coisas. Uki-ga, “o eu-fluente”, essa sensação mais constante do pai do haikai japonês, Bashô, o seu “estado comum de tristeza solitária” (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 1983b., p. 13).

Era preciso, para Bashô, ficar em silêncio, parado e, ao sentir o fluir dessas forças, aproveitá-lo serenamente e transformá-lo em uma ação sutil e eficaz, como a do samurai que ele era antes de aderir à vida contemplativa do haikai. Este último aparece não apenas como forma poética, mas como engajamento em um modo de vida de silêncio e entrega, necessário para o trabalho de escrita. É isto, de acordo com Leminski, que dá a tonalidade própria e revela a potência da vida de Bashô. Foi nesta vivência zen que o poeta-samurai deu consistência a sua própria existência, e foi a partir dela que pôde converter o haikai de prática poética menor, gesto frívolo ligado ao burlesco, em “caminho espiritual” (LEMINSKI, 1983aLEMINSKI, Paulo. Bashô: a lágrima do peixe. São Paulo: Brasiliense, 1983a., p. 81). Ao transformar o haikai em , uma via de acesso a experiências transcendentes, Bashô teria feito do haikai uma prática ascética de apagamento de si e integração do ser com a “sequência do existente”, com o fluxo do mundo.

A figura do santo/profeta é um personagem conceitual que perpassa a interpretação que Leminski faz tanto da biografia de Jesus Cristo (Jesus a.C.) como da de Bashô. Este personagem conceitual é descrito como aquele que joga sua vida na adesão a um princípio. Tal imagem, afinal, seria condizente não apenas com a vida de Cristo, mas também com a do samurai, sujeito capaz de dedicar sem reservas sua existência a um dever, a uma missão. Não é à toa que o primeiro exemplo utilizado por Leminski para falar deste personagem da história do Japão é a lenda de um grupo de quarenta samurais que, tendo seu mestre assassinado por um emissário do imperador, arquitetam um minucioso plano de vingança no qual engajam a totalidade de suas forças vitais: para não levantar suspeitas e ter o plano frustrado, combinam a data de realização para um ano depois do ocorrido. A partir daí fogem, se dispersam e se disfarçam (o que inclui, para cada um deles, a adoção de identidades que lhes permitam permanecer incógnitos). Ao final deste ano de espera se reúnem e executam o plano com sucesso, cientes da condenação (a morte nobre reservada aos samurais - haraquiri) que receberiam (LEMINSKI, 1983aLEMINSKI, Paulo. Bashô: a lágrima do peixe. São Paulo: Brasiliense, 1983a., p. 16-18). Com essa imagem, Leminski sugere que a santidade do poeta-samurai Bashô residia em sua capacidade de articular cada gesto como se fosse o derradeiro, trabalhando com o mínimo possível (adotava uma vida ascética e utilizava o mínimo de material verbal) e levando sua existência até o máximo de intensidade.

Parece consistir a santidade em certa entrega a um princípio. O santo, uma das possibilidades humanas: o herói do espírito, da Ideia, do signo. Um exagero, portanto.

Como essa concisa extravagância que se chamou Matsuó Bashô, santidade e sentido, guerreiro de nascença e de formação, monge por escolha, poeta por fatalidade (LEMINSKI, 1983aLEMINSKI, Paulo. Bashô: a lágrima do peixe. São Paulo: Brasiliense, 1983a., p. 24).

O santo aparece como figura do excesso e da radicalidade, do exagero na dedicação a um princípio. Bashô é associado por Leminski a esta imagem da santidade na medida em que é lido como alguém que faz de cada momento uma oportunidade de reafirmar/retrabalhar seus princípios, mas também, eventualmente, de transformá-los, colocá-los à prova. Tais transformações ocorrem no encontro com certos sujeitos, na percepção de pequenos acontecimentos naturais reveladores, no transcorrer de uma viagem, entre outros momentos singulares.

A existência do santo seria, desse modo, caracterizada por uma paixão do real, por um afeto provocado pelo mundo, pelo sofrimento diante de um determinado estado de coisas que, por sua vez, provoca um desejo irrecusável de mobilização de todas as suas forças em prol de uma atuação sobre esse mundo. Mas a força aqui não implica em violência revolucionária e sim em gestos simples, enigmáticos e exemplares, da escrita dos haikais até as formas mais singelas de se dirigir a seus discípulos. Para Bashô, tratava-se antes de atuar por meio do exemplo sobre esses discípulos e de desenvolver uma atuação precisa, pontual, que consistia mais em um deixar-se levar do que em um ativismo. A ação, ainda que não pudesse ser eliminada por completo, deveria estar impregnada de paixão.

Jesus Cristo também surge em sua biografia na condição de profeta e quase-poeta. Profeta, nabi, nesse caso, porque encarnava uma verdade, uma fé, que era anterior a sua existência física, mas a qual deveria experienciar, sem reservas e da maneira mais radical possível, no próprio corpo. Para Jesus, era preciso viver a Lei, a palavra, de modo exagerado e até escandaloso, se preciso. Isso implicava, muitas vezes, gestos aparentemente contraditórios: dar a outra face ou usar a violência para expulsar os vendilhões do Templo. Ambos, por mais diferentes que possam parecer, estavam implicados na exigência de viver a Lei no próprio corpo:

Jesus não está negando Moisés. Está, apenas, conduzindo a crueza da lei mosaica a extremos de interiorização e sutileza, exigidos por uma época mais sofisticada, de maior concentração interna do repertório espiritual e ético próprio do povo hebreu, de maior troca de informações com outros universos culturais de grande riqueza sígnica (gregos, romanos) (LEMINSKI, 1984LEMINSKI, Paulo. Jesus a.C. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 32-33).

Quase-poeta porque, mesmo sem se utilizar da palavra escrita, a fala parabólica de Jesus, segundo Leminski, produzia um efeito análogo ao da poesia. Por não empregar a fala clara e direta, fazendo uso de construções misteriosas e metáforas, Jesus como que retira a palavra de sua função comunicativa imediata e coloca, também ela, a serviço da Lei. Assim, o falar era parte inseparável deste modo de vida inteiramente impregnado pela verdade e pela paixão, pela paixão da verdade. Essa constante restauração da Lei, entretanto, não diria respeito a algum tipo de pensamento reacionário. Ao contrário, naquele contexto a atitude crística era criativa, imaginativa e portadora de um forte caráter estético:

Ninguém, porém, que conheça os evangelhos, pode deixar de ver o caráter violentamente utópico, negador (utopias são negações da ordem vigente: o imaginário é subversivo), prospectivo, des-regrado da pregação de Jesus. [...] Apokatástasis pánteon, locução grega, registrada nos Atos dos Apóstolos, expressa a esperança de Jesus e da Igreja (das Igrejas) primitiva. “Restauração de todas as coisas”, mas também “integral subversão de tudo: apocatástase” (LEMINSKI, 1984LEMINSKI, Paulo. Jesus a.C. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 90).

Assim, Leminski integra Jesus ao conjunto das vidas conduzidas por uma paixão, que neste caso aparecia como simultaneamente restauradora e revolucionária. E é por aí que a vida deste biografado se aproxima de outra: a de Trótski, também imbuída de um forte desejo de transformação da realidade por meio da transformação da própria vida. É desse modo que o líder revolucionário é apresentado pelo biógrafo como aquele para quem a revolução era uma “paixão intelectual”. Diferentemente de Lenin ou Stalin, que possuíam um pensamento mais prático, estratégico, uma grande habilidade de articulação política, uma postura mais firme e centrada, donos de decisões soberanas e contundentes, Trótski é descrito como um sujeito vacilante, errático, às vezes indeciso, sempre tentando se adaptar às demandas políticas urgentes do processo revolucionário, mais movido pela paixão da revolução do que propriamente um líder desejoso de participar das escolhas e decisões pragmáticas envolvidas na conquista, manutenção e mobilização do poder político.

Por seu desejo apaixonado pela transformação, sua paixão revolucionária, Trótski teria vivenciado intensamente, mais que os outros líderes da Revolução Russa, as contradições e paradoxos deste múltiplo e complexo acontecimento. Se Lenin e Stalin tendiam a pensar a ação revolucionária em função de seus fins, o que os levava a uma tendência mais pragmática e agressiva, Trótski, por outro lado, tinha sua atitude sempre tensionada entre o pragmatismo da política do Partido e sua formação intelectual mais sofisticada e aberta; entre a arte libertária de vanguarda e as demandas políticas da cultura revolucionária; entre a disciplina abnegada e homogeneizante da organização partidária e a liberdade de pensamento que amplia os horizontes de possibilidade; entre a revolução permanente e a necessidade de tomar decisões drásticas e definitivas.

Trótski era o único dos três mais célebres líderes da Revolução Russa profundamente atento à dimensão estética do processo revolucionário, tanto no que diz respeito ao campo das artes propriamente dito quanto à necessidade de transformação estética da vida social, e nisso se aproxima dos outros três biografados. Leminski termina a biografia com uma longa citação de Literatura e Revolução, da qual transcrevo aqui apenas uma pequena parte em que Trótski mostra como a transformação da vida social é também um processo estético ao qual seria preciso se entregar apaixonadamente:

O homem, enfim, começará seriamente a harmonizar seu próprio ser. Tentará obter maior precisão, discernimento, economia e, por conseguinte, beleza nos movimentos de seu próprio corpo, no trabalho, no andar, no divertimento. Tentará dominar os processos semiconscientes e inconscientes de seu próprio organismo: a respiração, a circulação do sangue, a digestão, a reprodução. E, nos limites inevitáveis, desejará subordiná-los à razão e à vontade (TRÓTSKI apudLEMINSKI, 1986LEMINSKI, Paulo. Trótski: a paixão segundo a revolução. São Paulo: Brasiliense, 1986., p. 134).

A paixão do real, a energia desordenada mobilizada pelos trabalhadores na Revolução, deveria, pelo trabalho militante, ser convertida em poder da razão. Nesse processo, o trabalhador passava do momento masoquista ao momento sádico, em que seria capaz de controlar a si mesmo e à sociedade. O líder político, desse modo, é descrito como a figura, dentre os quatro biografados, que mais sintetiza a tensão entre a demanda moderna por uma ação fáustica, criadora e destruidora de mundos, e uma atitude cautelosa e aberta ao outro. As revoluções modernas, ao mesmo tempo em que são acontecimentos que mobilizam paixões, também são responsáveis por instaurar uma dinâmica e uma demanda por ação ininterrupta que levaria a paixão à ruína, pois esta demandaria algo de pré-moderno ou extramoderno, algo de selvagem, que remete a um tempo intervalar, a um entretempo que é cada vez mais suprimido nas sociedades contemporâneas pelo desejo de produção incessante.

Paixão da história

O que lemos nas biografias de Leminski não é um trabalho de historiador; tampouco se trata de um texto memorialista. O poeta-biógrafo conhece bem o discurso histórico e usa recorrentemente o repertório terminológico da cultura histórica. A leitura das biografias certamente traz ao historiador algo de muito familiar: a densa descrição das atmosferas de época, o encadeamento entre eventos sociais de grande escala e existências particulares, a descrição de processos históricos etc. No entanto, não há como não perceber que muito também soa profundamente estranho aos ouvidos do historiador: a ausência de pesquisa exaustiva em fontes primárias, a evocação constante de analogias pouco justificadas em termos de continuidade histórica, o uso de uma linguagem francamente literária, carregada de metáforas e que sugere inclusive certa mistificação da realidade analisada etc. O que Leminski parece propor nesses textos é a confecção de uma espécie de narrativa histórico-literária atravessada pela presença do mito. Desse modo, as biografias contestam a rígida dicotomia que o pensamento histórico do século XX estabeleceu entre a história e as outras formas de lidar com o tempo. Opera-se um gesto crítico de recorte e seleção ético-política do passado em função das demandas do presente, mas também uma escrita profundamente afetada pelo passado de que trata, remetendo constantemente à presença da vida de seus biografados, não apenas em seu presente histórico, mas em sua própria existência e trabalho poético. Não se pode, portanto, atribuir as características poéticas ou míticas de seus textos a um déficit de historicidade, mas antes a uma operação de transformação mútua entre texto historiográfico e relato mítico-poético.

O procedimento biográfico de Leminski articula uma relação com o passado que parte de uma tensão entre paixão e história, entre escuta e escrita, entre transmissão mítico-poética e escritura crítica. Em declaração posterior à publicação de três de seus textos biográficos, Leminski esclarece esta relação com o passado:

Com os três livros que publiquei, Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e o que agora estou escrevendo sobre Trótski, quero fazer um ciclo de biografias que, um dia, pretendo publicar num só volume, chamado Vida. São quatro modos de como a vida pode se manifestar: a vida de um grande poeta negro de Santa Catarina, simbolista, que se chamou Cruz e Sousa; Bashô, um japonês que abandonou a classe samurai para se dedicar apenas à poesia e é considerado o pai do haikai; Jesus, profeta judeu que propôs uma mensagem que está viva dois mil anos depois; Trótski, o político, o militar, o ideólogo, que ao lado de Lênin realizou a grande Revolução Russa, a maior de todas as revoluções, porque transformou profundamente a sociedade dos homens. Transformou de tal maneira que a sociedade hoje está dividida em dois blocos: o ocidental e o oriental. A vida se manifesta, de repente, sob a forma de Trótski, ou de Bashô, ou de Cruz e Sousa, ou de Jesus. Quero homenagear a grandeza da vida em todos esses momentos (LEMINSKI, 1998bLEMINSKI, Paulo. Vida: Cruz e Sousa, Bashô, Jesus e Trótski. Porto Alegre: Sulina, 1998b., p. 7).

Com essa declaração, Leminski de saída descarta qualquer pretensão de objetividade, uma vez que é de homenagem que se trata. O poeta reconhece naquelas existências a manifestação de modos de vida que não apenas sobreviveram ao tempo, cada um ao seu modo, mas também carregam a possibilidade de contestar e relativizar - desatualizar - os mundos atuais. Elas não são meros objetos de estudo, mas mundos outros, possibilidades outras de existência. Para acessar seus biografados não bastaria estudá-los criticamente, seria preciso realizar um exercício de escuta, tarefa para a qual a paixão seria fundamental.

Não é a toa que, já na primeira biografia que escreve, a de Cruz e Sousa, Leminski começa por responder anacronicamente ao relatório de um funcionário da empresa pública (Estrada de Ferro Central do Brasil) em que o poeta catarinense trabalhava como arquivista, que pedia providências em relação a Cruz e Sousa, flagrado em posse de um poema durante o expediente, com a frase: “este livro é uma providência” (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 1983b., p. 8). O contato com um registro do passado é colocado como o ponto de partida da escrita. O encontro do poeta-biógrafo com os poemas e os registros fragmentários da vida de seu biografado é o acontecimento que o incita a escrever. A partir disso Leminski passa a escutar o passado e narrar a existência de Cruz e Sousa.

Como afirma Eduardo Sterzi (2018), Leminski pensa a história, em suas biografias, a partir de uma “imaginação histórico-analógica”, buscando abarcar as longas durações e construindo “analogias imprevistas, quase sempre de base mítica”, se colocando ao lado de uma tradição de pensamento que abarca nomes como Nietzsche, Warburg, Walter Benjamin, Oswald de Andrade, Vilém Flusser, Flávio de Carvalho, Eduardo Viveiros de Castro, entre outros. Essa imaginação histórico-analógica parece ser compatível com a definição que Marshall Sahlins dá ao conceito do pensamento mítico como fórmula que se destina a dar conta da agência do passado sobre o presente enquanto “o eterno retorno ou manifestação recorrente da mesma experiência” (SAHLINS, 2011SAHLINS, Marshal. Outras épocas, outros costumes: a antropologia da história. In: SAHLINS, Marshal. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011., p. 85), em um movimento no qual cada novo evento é imediatamente percebido como pertencente à estrutura, de modo que os “habitantes desse mundo são instâncias dos seres [...] que os precederam” (SAHLINS, 2011SAHLINS, Marshal. Outras épocas, outros costumes: a antropologia da história. In: SAHLINS, Marshal. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011., p. 85). Porém, como afirma Viveiros de Castro (2013, p. 69), “o mito não é apenas o repositório de eventos originários que se perderam na aurora dos tempos; ele orienta [...] constantemente o presente”. O tempo mítico é uma referência “acima de tudo, conceitual”, na qual os seres estão sempre virtualmente presentes, “semidesencarnados, tornados categorias” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Esboço de cosmologia yawalapíyi. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 27-85. p. 69) capazes de reconfigurar o tempo atual. Ao fazer articulações temporais insólitas tanto de diferentes passados entre si como entre experiências do passado e a sua própria, Leminski evoca uma espécie de pensamento mítico, selvagem, como ele mesmo define. É o próprio poeta, aliás, que fala do mito como “quase-ser” (LEMINSKI, 1998aLEMINSKI, Paulo. Metaformose: uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo: Iluminuras, 1998a., p. 57-63) que não cessa de se atualizar e, ao fazê-lo, desatualizar o presente. Assim se explica, por exemplo, que ele dedique um capítulo inteiro da biografia de Bashô a tecer uma analogia entre o modo de vida ascético e provocativo de Diógenes de Sinope e a simplicidade elegante do biografado, que aborde Jesus e os profetas antigos como precursores do pensamento utópico ou que recorra constantemente a poetas contemporâneos para explicar as posteridades do pensamento poético de Cruz e Sousa.

Para Leminski, leitor de Benjamin, essa articulação temporal precisa encontrar uma expressão artística e é na montagem que isso ocorre (MORAES, 2015MORAES, Everton. Um corte radical no tecido da História: o livre uso do passado na narrativa biográfica de Paulo Leminski. História da Historiografia, v. 8, n. 17, 29 abr. 2015., p. 202). As biografias são compostas por uma série de articulações insólitas de temporalidades distintas que caracterizam esse procedimento. A estrutura dos textos se configura, desse modo, como uma rearticulação proposta por Leminski, muito mais do que como uma ordenação previamente convencionada para o gênero biográfico. Veja-se, por exemplo, a já mencionada articulação entre Diógenes de Sinope e o zen-budismo que orienta a existência de Bashô, ambos descritos a partir da ideia de silêncio, de recolhimento, de ascese e de exemplo, de uma prática não fundamentada no discurso e no modelo:

Matsuó Bashô foi monge budista. Um padre, como Góngora. Ou Donne. Todos grandes poetas.

Monge zen, nascido samurai, Bashô botou em prática, no haikai, a fé que alimentou sua alma, durante cinquenta vagabundos anos, com signos substanciais (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 1983b., p. 65).

[...]

Houve na Antiguidade, porém, um paralelo ocidental à experiência do zen: o “cinismo” grego.

Os cínicos (sígnicos) expressavam sua recusa e repulsa pelo estado presente de sua civilização, até mesmo na sua aparência pessoal (LEMINSKI, 1983bLEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 1983b., p. 68-70).

A figura de Diógenes combina com certo tipo de santo popular, o beato, “o louco de Deus”, o peregrino, os portadores de utopias, cuja vida ensina outra vida, proposta alternativa de existência, o modelo de um possível, um dos possíveis do tesouro de possibilidades humanas (LEMINSKI, 1983aLEMINSKI, Paulo. Bashô: a lágrima do peixe. São Paulo: Brasiliense, 1983a., p. 69-70).

A estética de ambas as existências aparecia, na biografia, inteiramente implicada em cada mínimo gesto. O simples ato de se alimentar no momento em que se tem fome constituía um gesto decisivo para Diógenes, a ponto de levá-lo a cabo mesmo estando no fórum, local de solenidades onde tal ato era proibido; mas também a afirmação de Bashô segundo a qual “nos últimos vinte anos, todos os seus haikais tinham sido escritos como se fosse o seu ‘poema de morte’” (LEMINSKI, 1983aLEMINSKI, Paulo. Bashô: a lágrima do peixe. São Paulo: Brasiliense, 1983a., p. 29). Por mais intensos e afirmativos que esses gestos sejam, eles são permeados por uma paixão, são produtos de afetos e se explicam por eles. Diógenes não toma a palavra no fórum, não levanta a voz contra os costumes da cidade, realiza um simples gesto de alimentar-se, de suprir uma necessidade básica e nisso rompe, no próprio corpo, com a normatividade da polis. Bashô não realiza um trabalho ativo de doutrinação, deixa que seus discípulos se aproximem, aprendam pelo exemplo, pelo enigma de seus gestos e palavras.

Mas para que servem essas articulações? Como elas se relacionam com esse contexto de crise da paixão? Leminski tem consciência de que entre Cruz e Sousa e os poetas concretos, Diógenes e Bashô, Jesus e os utópicos modernos, não existe uma continuidade histórica direta. Ao juntar estes personagens históricos tão diferentes entre si e pertencentes a espaços e tempos tão distintos, o biógrafo pretende aproximá-los pela relação que articulam entre paixão e radicalidade como uma das possibilidades no repertório estocástico das virtualidades históricas. Em um momento de crise da paixão e enorme investimento social em aceleração e atualização, o passado, mobilizado para o uso imediato no cotidiano urbano moderno ou arquivado em gigantescos bancos de dados virtuais, parece reduzir-se, ele também, a pouco mais que uma mercadoria disponível para consumo. A montagem, então, pode atuar como invenção de uma relação com o tempo voltada menos para a produção de sensações e mais atenta às suas infinitas possibilidades criativas. Isso porque se, por um lado, ela funciona como articulação temporal de um presente que lança um olhar sobre o passado, também opera como forma de traduzir para o texto a paixão do tempo, o afeto de um outrora sobre o agora.

Assim, a pretensão de Leminski não é objetivar os passados que aborda nas biografias, mas fazer alianças com eles, criar novas formas de conexão, para além de uma relação meramente epistemológica. Essas conexões podem ser colocadas sob o signo da paixão. Não que se trate de voltar ao passado por meio daquelas narrativas ou de retornar a um tempo anterior à queda de cotação da paixão. Se o passado é visto como mundo possível, não é porque ele poderia ser pura e simplesmente retomado no presente, mas porque os mundos passados, suas formas de experiência e pensamento, não foram simplesmente superados, como a racionalidade moderna faz crer. Antes, eles foram recalcados, soterrados por camadas de história, se convertendo no magma que se agita sob o solo aparentemente liso do presente, o alimentando secretamente. O passado com o qual Leminski se relaciona nas biografias é, portanto, antepassado, constitutivo do atual, agente histórico. Se o gesto que retoma a escuta e a conexão com esse passado instaura um mundo possível é porque compreende que aquilo com que se reconectou é uma “‘origem’ (passado) que podia dar origem (futuro), transformar o presente: meios de acesso à cena originária, que permitiam encená-la, pôr em cena essa cena” (NODARI, 2021PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. Vitória: Editora Milfontes/ Mariana: Editora da SBTHH, 2019.).

Leminski vê em Cruz e Sousa e Trótski existências com as quais poderia articular uma aliança mais profunda. Segundo Alice Ruiz, apesar de compartilhar com o primeiro o ofício do fazer poético, é pelo segundo que ele é afetado e com o qual busca articular uma conexão mais densa. Isso, porém, não porque o poeta gostaria de retomar em sua vida a ideologia e o trabalho militante do revolucionário soviético, mas porque vê nele uma figura marcada por um comprometimento ético-político muito próximo àquele que considera que seu tempo [o de Leminski] exigia. Se Bashô e Jesus são interpretados como figuras que reivindicavam certa pureza, Trótski e Cruz e Sousa são lidos como sujeitos que se vêem forçados a abrir mão desta pureza em função da paixão do real, de uma realidade que se transformava brutalmente diante de seus olhos. O revolucionário se torna exemplar e pode ser recuperado precisamente por isto: porque Leminski enxerga nele alguém que também experimenta uma época de transformações brutais que se convertem em vetores de incerteza e não permitem que os sujeitos se mantenham íntegros em suas condutas temporais. Talvez o poeta-biógrafo considere a experiência de seu tempo algo análoga à de Trótski. Pois se este teve que se haver com o pragmatismo da política e da guerra em um contexto de revolução social, Leminski, como foi dito acima, precisou lidar com as demandas de um tempo dominado pela lógica da mercadoria, em que a atitude ascética de Bashô ou de Jesus pareciam cada vez mais bloqueadas. Ele, que além de poeta é publicitário, vive a ambiguidade de trabalhar para o mercado e para o espetáculo ao mesmo tempo em que se considera um poeta da vanguarda contracultural, que tinha no anticapitalismo um de seus princípios. Ainda que experimente certa angústia e reticência com essa dupla atuação, não a enxerga como algo contraditório ou inerentemente desqualificante. Antes, teoriza sobre a importância de atuar nos meios de comunicação de massa e diluir entre o grande público as sofisticadas invenções poéticas que buscava produzir. Assim como Trótski titubeia entre o sonho e o pragmatismo político-revolucionário, Leminski vacila entre a tarefa radicalmente inventiva do artista e a urgência, que se coloca para os artistas de sua geração, de diluição das formas entre as massas, de contato com as pessoas em sua vida cotidiana (MORAES, 2019MORAES, Everton. “Plano Pirata” do poema possesso: tempo e humor na poesia brasileira dos anos 1970. Revista Brasileira de História, v. 39, n. 82, p. 265-286, 2019.).

Leminski termina esta última biografia com o relato sobre o encontro de Trótski, então exilado no México, com o surrealista André Breton. Ali, depois de muito vacilar, ele reconhece que é por meio da arte e de sua conexão com a vida que seu sonho do comunismo poderia se realizar no futuro. O biógrafo sugere que Trótski, que por tantas vezes havia aberto mão de seu sonhar em função do pragmatismo que se exige de um líder revolucionário, naquele momento, quando já não estava mais implicado no comando do exército ou da Revolução, pôde finalmente se reconciliar com a atividade do sonho, núcleo da arte surrealista de Breton. Na sua “história indecente” e indisciplinada Leminski busca recuperar esta dimensão onírica e apaixonada de sua relação com o tempo, muito embora não tenha ali se permitido abrir mão por completo dos dispositivos conceituais do pensamento histórico. Trata-se de transmitir um afeto do passado, sofrido pelo biógrafo e, para isso, é preciso produzir uma narrativa histórica experimental, pautada tanto por uma crítica histórica como pelo mito e pela poesia.

Considerações finais

Em suas biografias Leminski aborda experiências do passado a partir de uma narrativa histórica que transita entre o mito e a literatura e, desse modo, realiza um experimento poético que tem por objetivo pensar a paixão do tempo, isto é, a agência do passado sobre o presente, ao mesmo tempo em que, como poeta que se queria vanguardista, busca mobilizar uma ação transformadora em direção ao futuro. Por meio do recurso à paixão, esses textos articulam repetições, reconexões, sobrevivências, irrupções do originário e do inconsciente do tempo, evocam, enfim, um afeto do outrora sobre o agora. Mas o fazem, paradoxalmente, a partir de uma linguagem poética de matriz modernista que é eminentemente atualizadora e trabalha para recuperar o passado em favor do presente.

O que essa aparente contradição revela é que ressuscitar o tempo da paixão, como Leminski reconhece, é tarefa impossível, e que a paixão leminskiana do tempo implica em uma dialética entre mito e poesia. O que está em jogo nas biografias, desse modo, é a possibilidade de criar novas formas de conexão e aliança com o passado que não fiquem restritas à busca por reconhecimento identitário nem à redução historicizante do passado à condição de mero objeto do conhecimento. O poeta-biógrafo propõe uma atenção ao outrora que habita virtualmente os subterrâneos do atual e que pode ressurgir, sair de seu estado de latência, emergindo como atualização capaz de desatualizar este atual. Se isso é verdade, é possível pensar, como afirma Jacy Seixas (2004SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de memória em terras de história: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia(orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, 2004., p. 55), que a transformação da atualidade não precisa ficar limitada à projeção de futuros, mas pode se pautar também pela criação de modos de conexão com o passado.

Para a cultura histórica, abordar o passado significa inseri-lo no “seu tempo”, contextualizá-lo, reduzir sua presença no presente, evitar o anacronismo e desmistificá-lo. A paixão do tempo que orienta a narrativa histórico-biográfica leminskiana, por outro lado, consiste em uma tentativa de “desmistificar a desmistificação” (NODARI, 2020NODARI, Alexandre. A metamorfologia de Macunaíma: notas iniciais. Crítica Cultural - Critic, Palhoça, SC, v. 15, n. 1, p. 41-67, jan./jun. 2020., p. 65) do passado, restabelecer relações míticas e analógicas, para além daquelas críticas e sintéticas. Nesse sentido, poderíamos dizer que os personagens biografados simbolizam figuras míticas que nos auxiliam a pensar, adaptando os termos de Lévi-Strauss, o jogo entre resfriamento e aquecimento da história (GOLDMAN, 1999GOLDMAN, Marcio. Lévi-Strauss e os sentidos da História. Revista de Antropologia, v. 42, n. 1-2, p. 223-238, 1999., p. 231-234), isto é, entre uma historicidade pautada pelo signo do cuidado e da cautela em relação ao futuro e outra que o vê como temporalidade a ser antecipada por meio da aceleração constante. Tendo isso em consideração, podemos tomar o Jesus e o Bashô de Leminski como figuras do resfriamento temporal: ambos pensam o futuro como determinado por outras instâncias temporais: num caso, o passado no qual a Verdade foi revelada, noutro, o instante que se conecta com a totalidade do cosmos. Cruz e Sousa e Trótski, por outro lado, são personagens contraditórios: plenamente ambientados aos ritmos e à aceleração moderna, transgressores e vanguardistas, suas ações transformadoras são orientadas, no entanto, por uma paixão do tempo e da história.

Podemos considerar o experimento biográfico-literário de Leminski como uma forma de narrativa histórica vanguardista e moderna, mas também atravessada e profundamente marcada pela poesia e pelo mito, como um modo de articular paixão e história. Se a conduta temporal mobilizada pelo mito consiste em submeter os acontecimentos novos a formas narrativas muito antigas e estabelecidas (SAHLINS, 2011SAHLINS, Marshal. Outras épocas, outros costumes: a antropologia da história. In: SAHLINS, Marshal. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011.), o “formalismo” das vanguardas busca criar novas formas de linguagem a partir de um afeto da realidade. Ao colocar em cena uma narrativa histórico-poética de base mítica em que a paixão é mobilizada tanto pelo passado como pelo futuro, Leminski se utiliza dodiscursohistórico para tensioná-lo por meio da poesia e do mito. Desse modo, o passado é ali entendido como agente temporal e não apenas como objeto de conhecimento ou de um desejo de atualização e consumo, formas de relação com o tempo que participam do aquecimento e da aceleração da história. Se concordarmos com Dipesh Chakrabarty (2013CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Sopro: panfleto político-cultural, n. 91, p. 2-22. Florianópolis, Cultura e Barbárie, 2013. Disponível em: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n91s.pdf. Acesso em:25 maio 2021.
http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n9...
, p. 20), podemos afirmar que a crise climática que vivemos “questiona os limites da compreensão histórica”, então pensar a paixão do passado e a sua capacidade de desatualização do presente pode ajudar a imaginar modos de historicidade outros.

Referências

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    Paulo Leminski, poeta curitibano, é também conhecido por seus romances experimentais, sua produção crítica e ensaística, bem como por outras experimentações artísticas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2021
  • Aceito
    30 Nov 2021
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