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Passeios de bicicleta, corridas esportivas: novos divertimentos na cidade de São Paulo (1896-1925)

Bike rides, sporting races: new amusements in the city of São Paulo (1896-1925)

Paseos en bicicleta, carreras deportivas: nuevos entretenimientos en la ciudad de São Paulo (1896-1925)

RESUMO

O presente artigo pretende investigar a inserção da bicicleta na cidade de São Paulo para compreender como os singelos passeios foram, aos poucos, tendo a companhia das primeiras corridas esportivas. Para tanto foram utilizados como fontes jornais da época e memorialistas, no período delimitado entre os anos de 1895 a 1925. A análise das fontes constituídas indicou uma relação da bicicleta com o ideário urbano emergente na capital do estado de São Paulo, a mobilidade e liberdade inédita que o artefato possibilitou ao sexo feminino, o papel da vestimenta numa cultura relativa à bicicleta, bem como uma crescente esportivização do andar de bicicleta em virtude do crescimento da cidade. A título de conclusão, o artigo aponta que a presença do artefato de duas rodas e das corridas em São Paulo, na virada do século XIX para o XX, contribuiu significativamente na formação de gestualidades atléticas e performáticas nos indivíduos que interagiram com as bicicletas.

Palavras-chave:
São Paulo; bicicletas; ciclismo; esporte moderno; divertimentos

ABSTRACT

This paper investigates the introduction of bicycles in the city of São Paulo, aiming to comprehend how the first sporting races gradually accompanied simple rides. The selected sources for this research were newspapers and memoirs published between 1895 and 1925. The analysis of these documents indicated a relation between bicycles and the urban ideation emerging in the city of São Paulo during the selected timeframe, the unprecedented mobility and freedom this artefact provided for women, the role of clothing in a culture related to the bicycle, and a growing sportization of the act of riding bicycles in urban spaces. In conclusion, the presence of bicycles and races in São Paulo at the turn of the nineteenth century contributed substantially to creating athletic gestures and performances in individuals who interacted with bicycles.

Keywords:
São Paulo; bicycles; cycling; modern sport; amusements

RESUMEN

El presente artículo pretende investigar la inserción de la bicicleta en la ciudad de São Paulo para comprender cómo los paseos simples fueron, poco a poco, acompañados de las primeras carreras deportivas. Para eso, se utilizaron como fuentes, periódicos de la época y memorias, en el período comprendido entre los años 1895 a 1925. El análisis de las fuentes constituidas indicó una relación entre la bicicleta y los ideales urbanos emergentes en la capital del Estado de São Paulo, la movilidad y la libertad sin precedentes que el artefacto permitió al género femenino, el papel del vestuario en una cultura relacionada con la bicicleta, así como una creciente deportividad de andar en bicicleta debido al crecimiento de la ciudad. Como conclusión, el artículo apunta que la presencia del artefacto de dos ruedas y de las carreras en São Paulo, en el paso del siglo XIX al XX, contribuyó significativamente para la formación de gestos atléticos y performativos en individuos que interactuaron con las bicicletas.

Palabras clave:
São Paulo; bicicletas; ciclismo; deporte moderno; diversiones

Introdução

A cidade de São Paulo, no final do século XIX, passava por profundas transformações. O progresso recém-chegado oferecia aos seus habitantes novos olhares e outros comportamentos podiam ser vislumbrados. Pelo funcionar constante das chaminés na transição do século XIX para o XX, Prado Júnior (1998PRADO JUNIOR, Caio. A cidade de São Paulo: geografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1998., p. 55) observa como a cidade havia se tornado o centro principal da região mais próspera do país - pela indústria - e assim, “não poderia deixar de ser, portanto, a grande cidade que é”.

As novidades puderam ser vistas por todos os cantos; indivíduos e grupos incorporavam novos hábitos, como aqueles de praticar exercícios físicos ao ar livre, em que jogos e esportes passavam a ser percebidos e vividos como os divertimentos da e na cidade. Sevcenko (1992SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.), ao tomar a sociedade e a cultura da São Paulo dos anos de 1920 como objeto de estudo, não hesita em destacar o lugar que os esportes tinham na vida da cidade. Braglia (2010)BRAGLIA, Nádia Christina. Pauliceia de ontem: o viver urbano na Belle Époque paulistana.Projeto História, v. 40, p. 523-531, 2010., Góis Júnior (2013GÓIS JÚNIOR, Edivaldo. O esporte e a modernidade em São Paulo: práticas corporais no fim do século XIX e início do XX.Movimento, v. 19, n. 4, p. 95-117, 2013.) e Medeiros (2021MEDEIROS, Daniele Cristina Carqueijeiro. Entre esportes, divertimentos e competições: a cultura física nos rios Tietê e Pinheiros (São Paulo, 1899-1949). Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, 2021.) corroboram com as afirmações do autor acerca desse lugar das práticas esportivas que ali tiveram lugar. Soares e Santos Neto (2018SOARES, Carmen Lúcia; SANTOS NETO, Samuel Ribeiro. À sombra das árvores... respirando ar puro: educação e divertimentos junto à natureza na São Paulo dos anos 1920, Educação em Revista, v. 34, e193539, 2018.) salientam que um ideário de vida ao ar livre, em que esportes e exercícios físicos se faziam presentes, começava timidamente a se impor, e ideais de saúde e beleza que tomavam a ação e não a imobilidade pareciam expressar, com mais nitidez, a vida urbana.

A cidade também se transformara nesse período e os projetos pioneiros de urbanização e embelezamento idealizados pelo Conselheiro Antônio Prado, primeiro prefeito da cidade, fizeram soar os inaugurais acordes de vida paulistana. Novos calçamentos, áreas arborizadas e alargamento de ruas transformaram alguns redutos da cidade em espelhos dos tempos de riqueza vindouros (PRADO JÚNIOR, 1998PRADO JUNIOR, Caio. A cidade de São Paulo: geografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1998.; RAGO, 2004RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In: PORTA, Paula. (org). História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 1.890-1.954.; BRAGLIA, 2010BRAGLIA, Nádia Christina. Pauliceia de ontem: o viver urbano na Belle Époque paulistana.Projeto História, v. 40, p. 523-531, 2010.; TOLEDO, 2015TOLEDO, Roberto Pompeu. A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.).

Inclinar-se a um comportamento esportivo pelos exercícios físicos ao ar livre, em áreas arborizadas, expressava novas atitudes ligadas a valores como saúde, beleza, cuidados pessoais e higiene, bem como a novas formas de divertimentos e convívio social. Parte da sociedade paulistana firmava, então, novas relações com a natureza, fazendo surgir praticas inéditas que estimulavam a exposição do corpo ao sol e a busca pelo ar fresco e puro de bosques, praças e ruas arborizadas. Uma nova atitude de valorização da natureza e de seus elementos se fortalecia tanto no âmbito dos divertimentos, quanto naqueles da cura e da regeneração (SOARES; SANTOS NETO, 2018SOARES, Carmen Lúcia; SANTOS NETO, Samuel Ribeiro. À sombra das árvores... respirando ar puro: educação e divertimentos junto à natureza na São Paulo dos anos 1920, Educação em Revista, v. 34, e193539, 2018.).

Na cidade de São Paulo, entre fins do século XIX e início do século XX, andar de bicicleta pode ser aqui tomado como um novo comportamento que teve naquele momento, um significativo crescimento. O artefato de duas rodas chegou à cidade pelas mãos das elites viajadas, inspiradas pelo exemplo europeu. Entretanto, adquiriram, de certa forma, significados próprios no contexto paulistano, imprimindo novos usos dos espaços urbanos (RAGO, 2004RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In: PORTA, Paula. (org). História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 1.890-1.954.; GAMBETA, 2013GAMBETA, Wilson Roberto. A bola rolou. O velódromo paulista e os espetáculos de futebol (1895-1916). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2013.; GÓIS JÚNIOR, 2013GÓIS JÚNIOR, Edivaldo. O esporte e a modernidade em São Paulo: práticas corporais no fim do século XIX e início do XX.Movimento, v. 19, n. 4, p. 95-117, 2013.; SOUZA, 2016SOUZA, Yuri Vasquez. Quando as rodas conquistam a cidade: cultura, tensões, conflitos e ações na prática do ciclismo em São Paulo. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.; BROWN, 2021BROWN, Matthew. Cycling in South America, 1880-1920. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, v. 48, n. 1, p. 287-325, 2021.). As bicicletas logo se tornaram um símbolo da vida citadina e juvenil, decorando as ruas, despertando curiosidade e encantamento, a exemplo do que já acontecia em cidades europeias (WEBER, 1988WEBER, Eugen. França fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.; GABORIAU, 1991GABORIAU Philippe. Les trois âges du vélo en France. Vingtième Siècle, Revue d’Histoire, n. 29, p. 17-33, 1991.; POYER, 2003POYER, Alex. Les premiers temps des véloce-clubs: apparition et diffusion du cyclisme associatif français entre 1870 et 1914. Paris: L’Harmattan, 2003.; RENAUD, 2016RENAUD, Jean-Nicolas. Du vélocipède à la bicyclette: le nouvelliste du Morbihan sur le fil du rasoir (1887-1904).Movement & Sport Sciences-Science & Motricité, n. 91, p. 5-20, 2016.; CHEBRE; RENAUD, 2020CHEBRE, Aurélien; RENAUD, Jean-Nicolas. Le vêtement sportif féminin durant l’entre-deux-guerres: la révolution de velours du magazine Vogue Paris.Modern & Contemporary France, p. 1-15, 2020.). Gaboriau (1991) salienta que, em contato com a natureza e com vento no rosto, aqueles que andavam de bicicleta nas ruas parisienses alimentavam no seu imaginário a inusitada experiência de parecer ter asas. Contudo, é adequado assinalar que, naquele momento, a bicicleta não estava ao alcance da maioria da população, sendo, portanto, um artefato e um hábito restrito às elites paulistanas.

Nesse sentido, é possível inferir que andar de bicicleta foi, de certa maneira, um divertimento partilhado pelas elites locais, percebido como moda. Se neste primeiro momento ele era um passatempo, uma moda, pouco a pouco se aproxima e incorpora lógicas do esporte moderno. Ao longo desse período aqui recortado, o singelo ato de andar de bicicleta continuará existindo, mas, paralelamente a ele consolida-se outro modo de utilizar o artefato que esboça um novo esporte - o ciclismo -, em que as dimensões da regra e da competição passam a imperar. Essa passagem de simples prática de divertimento para o que se denomina de esporte moderno é largamente analisada por autores como Vigarello (1988VIGARELLO, Georges. Techniques d’hier... et d’aujourd’hui: une histoire culturelle du sport. Paris: Ed. Robert Laffont, 1988. p. 253-290.; 1995VIGARELLO, Georges. Le temps du sport. In: CORBIN, Alain.L’avènement des loisirs (1850-1960). Paris, Aubier, 1995.), Elias e Dunning (1992ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca pela excitação. Lisboa: Difel, 1992.), Guttmann (2004GUTTMANN, Allen. From ritual to record. New York: Columbia University Press, 2004.) e Loudcher (2008LOUDCHER, Jean-François. À propos de la traduction française du livre de Allen Guttmann, From Ritual to Record: the Nature of Modern Sports. Staps, n. 2, p. 39-51, 2008.; 2020LOUDCHER, Jean-François. Processo civilizador e transformações sociais: uma análise das teorias elisianas em relação às ciências sociais do esporte. História, Questões & Debates, v. 68, n. 2, p. 14-36, 2020.), entre outros. O caso da transformação do andar de bicicleta para uma modalidade como o ciclismo, com seu universo de regras, calendários e competições é bastante elucidativo dessa passagem.

Na cidade de São Paulo, o hábito de andar de bicicleta como simples passatempo, divertimento, bem como aquele de competir em provas de ciclismo, apresenta singularidades sobre as quais este artigo se debruça. Nossa argumentação se constrói pela constatação de que o andar de bicicleta na cidade, no alvorecer do século XX, concretizou-se como parte da cultura urbana que também incorporou elementos relativos à esportivização desse novo hábito.

Assim, este artigo busca responder à seguinte problemática de investigação: como foi possível que singelos e divertidos passeios de bicicleta passassem por processos de esportivização tendo sido transformados em uma modalidade - o ciclismo - e suas primeiras competições? Teriam os passeios de bicicleta desaparecido da cidade com o advento do esporte, ou teriam permanecido nas franjas da cidade e se estendido para outros grupos sociais?

O desenvolvimento do artigo estabelece como recorte temporal os anos de 1896 a 1925. É em 1895 que se inicia a construção do Velódromo Paulista, símbolo esportivo da cidade (GAMBETA, 2013GAMBETA, Wilson Roberto. A bola rolou. O velódromo paulista e os espetáculos de futebol (1895-1916). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2013.; BROWN, 2021BROWN, Matthew. Cycling in South America, 1880-1920. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, v. 48, n. 1, p. 287-325, 2021.) e em 1925 é fundada a Federação Paulista de Ciclismo. Foi essa instituição que organizou e realizou as primeiras corridas oficiais de bicicleta e os primeiros campeonatos, imprimindo-lhes o caráter oficial e regrado próprio do esporte moderno nas competições de ciclismo na cidade de São Paulo.

De artefato do mundo dos divertimentos de uma elite viajada, a bicicleta passa a ser incorporada ao mundo esportivo com suas regras, calendários, competições. Parece ser evidente que o singelo hábito de andar de bicicleta não desapareceu com o advento do ciclismo, ou seja, de sua incorporação ao esporte moderno, razão pela qual capturar essa transição indica sua importância no âmbito de um conjunto de hábitos tipicamente urbanos que podem contar trechos das muitas histórias das cidades.

Nesse sentido, as fontes selecionadas para a este artigo repousam em dois grupos. O primeiro foi constituído pela imprensa escrita paulistana (jornais e revistas de variedades) do período e o segundo, por memorialistas que tomaram a cidade de São Paulo em suas singularidades.

As fontes constituídas pela imprensa paulistana foram localizadas por meio de consulta aos arquivos digitais da Fundação Biblioteca Nacional. Para a seleção considerou-se sua importância no período delimitado (1895-1925), tomando como quesitos a frequência de circulação ao longo desse período e o escopo das temáticas presentes nas publicações ao alcance dos leitores. Assim, trabalhamos com o jornal Correio Paulistano, o Semanário Cyclistico Illustrado A Bicycleta e a revista A Vida Moderna.

O jornal Correio Paulistano apresenta circulação das mais antigas de São Paulo e, talvez, fosse aquele que, desde 1890, mais expressasse aspirações em torno da vida urbana, dos novos hábitos entre os quais emerge a bicicleta e o ciclismo (THALASSA, 2007THALASSA, Ângela. Correio Paulistano: o primeiro diário de São Paulo e a cobertura da Semana de Arte Moderna. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007.). Assim, encontros sociais e/ou de associações esportivas, jogos e espetáculos estavam contemplados nas páginas do jornal.

O Semanário Cyclístico Illustrado A Bicycleta conta apenas com três exemplares disponíveis tanto na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional como no Repositório digital do Arquivo Público de São Paulo, datados de 1896. Essa publicação mostrou-se plena de informações para o estudo, uma vez que se dedicava a noticiar, exclusivamente, assuntos sobre o andar de bicicleta e sobre o ciclismo nacional e internacional. Em suas páginas encontramos dados das corridas oficiais de bicicleta no período, anedotas, anúncios de importação, de compra e venda de bicicletas, colunas de orientação esportiva para iniciantes e, mais amplamente, notícias corriqueiras do cotidiano de uma cidade que passava a se interessar pelas atividades corporais e pelos exercícios sobre os pedais.

Para compor o conjunto de materiais impressos da época destacamos o único exemplar disponível da revista Sportman e os números da sua subsequente A Vida Moderna, considerada uma das principais revistas de entretenimento da época, conforme aponta Cruz (2000CRUZ, Heloisa de Faria.São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890-1915. São Paulo, SP: Imprensa Oficial, 2000.). De leitura leve e muito ilustrada, caracterizou-se por seus conteúdos “frívolos” e por sua grande capacidade de formar conceitos, estabelecer padrões e suscitar comportamentos convenientes, somando-se ao projeto urbano da sua época1 1 Para um estudo mais amplo acerca do lugar da imprensa na capital paulista do período, ver Martins (2008). .

No que se refere ao segundo grupo de fontes, selecionamos os relatos de Heloísa Alves de Lima e Motta (1992), pautados nas suas próprias perspectivas e de um ponto de vista mais relacionado ao universo feminino sobre divertimentos e comportamentos nos círculos das elites paulistanas do final do século XIX. Para Alfredo Moreira Pinto (1900PINTO, Alfredo Moreira. A cidade de São Paulo em 1900: impressões de viagem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900.) as memórias estão concentradas na cidade e na sua transformação ao longo do seu tempo. Seus relatos são um conjunto de descrições detalhadas dos espaços urbanos da São Paulo de 1900, mas que remete à sua origem histórica. Aos olhos do autor nada pareceu escapar, e nas linhas e entrelinhas vemos ruas, monumentos, igrejas, prédios públicos, praças... E, finalmente, em prosa, Jorge Americano (1957AMERICANO, Jorge. São Paulo naquele tempo (1895-1915). São Paulo: Saraiva, 1957.) relembra a sua São Paulo de 1900, os modos de vida em uma cidade em franco processo de urbanização com a transformação da paisagem pelas indústrias e fábricas. Em suas linhas vemos desfilar os bailes galantes, os divertimentos nas pistas de patins, as bicicletas, as rinhas; de sua escrita conseguimos ouvir os ruídos do progresso com os bondes elétricos, as ruas pavimentadas e os viadutos, a valorização das áreas verdes e dos parques. Sua obra é um legado histórico das percepções de um indivíduo sobre si e sua vida, seu espaço e seu próprio tempo.

O andar sobre duas rodas: a construção de um comportamento atlético

Nos anos finais do século XIX, a cidade de São Paulo, timidamente, dava alguns passos em direção a um mundo em transformação, onde tinham lugar inúmeras inovações tecnológicas, como por exemplo, as formas de se locomover. Os bondes elétricos trouxeram uma nova medida sensorial de velocidade, de desempenho e de progresso. Nenhum conceito parecia mais adequado para identificar os novos tempos como o de “vertigem” (BLOM, 2015BLOM, Philipp. Os anos vertiginosos. Rio de Janeiro: Record, 2015.; TOLEDO, 2015TOLEDO, Roberto Pompeu. A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.). Essa vertigem que teve início no último quarto do século XIX foi bem representada nas palavras de Toledo (2015TOLEDO, Roberto Pompeu. A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015., p. 17): “[...] o vilarejo despertava do sono e iniciava uma arrancada [...]”.

As memórias de Alfredo Moreira Pinto (1900PINTO, Alfredo Moreira. A cidade de São Paulo em 1900: impressões de viagem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900., p. 9-10) se configuram em uma declaração de amor a uma cidade, feita por um contemporâneo em encantamento:

S. Paulo, quem te viu e quem te vê! Naquelles tempos usavas calças de brim, paletot sacco e chapéo de palha; hoje envergas casaca, usas collarinho a Luiz XIV, gravata de setim branco, botinas de verniz e tens á cabeça um vistoso castor ou debaixo do braço o aristocratico claque. Não posso mais dar-te o tratamento de tú; fidalga como és, mereces hoje o tratamento de excellencia. Está V. Ex. completamente transformada, com proporções agigantadas, possuindo opulentos e lindíssimos predios, praças vastas e ‘arborisadas, ruas todas calçadas, percorridas por centenares de pessoas, por faustosos e ricos trens tirados por soberbas parelhas de cavallos de raça e cortadas por diversas linhas de bonds ; bellas avenidas, como a denominada Paulista, encantadores arrabaldes como os Campos Elyaios, a Luz, Santa Cecília, Santa Ephigenia, Hygienopolis e Consolação [...] (PINTO, 1900PINTO, Alfredo Moreira. A cidade de São Paulo em 1900: impressões de viagem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900., p. 9-10).

Para Rago (2004RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In: PORTA, Paula. (org). História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 1.890-1.954.), nesse período, novas formas de viver, sentir, pensar e agir se estabeleciam na busca pela construção de uma civilidade. O enaltecimento do progresso e da industrialização, nas palavras de Alfredo Moreira Pinto, aponta para uma demarcação temporal de distinção entre o antes e o agora, entre o passado e o presente, mesmo que omitisse conflitos sustentados numa esfera pública excludente e privada. A cidade fora, então, redefinida nos últimos anos do século XIX em um movimento recorrente de muitas cidades do ocidente. A reordenação urbana proposta pelo conselheiro Antonio Prado convergira para a urbanização, melhoramento e embelezamento da cidade. Dessa forma, a reforma que transformaria a cidade também se entrelaçou às mudanças na vida cotidiana de parte dos paulistanos, fomentou novos hábitos e possibilitou a construção de outros comportamentos acerca da vida citadina (RAGO, 2004RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In: PORTA, Paula. (org). História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 1.890-1.954.; TOLEDO, 2015TOLEDO, Roberto Pompeu. A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.).

O hábito de praticar esportes e, mais amplamente, exercícios físicos e recreação ao ar livre caíram no gosto de parte da população paulistana, especialmente, num primeiro momento, dos mais abastados. Era preciso dispor de certo tempo livre para poder desfrutar esse novo modo de vida, algo possível para estudantes com posses financeiras e indivíduos e grupos que viviam da rentabilidade de propriedades, cafeicultores que, a partir de certo momento, passaram a valorizar a vida urbana em detrimento da rural (TOLEDO, 2015TOLEDO, Roberto Pompeu. A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.). Efetivamente, parece ser esse grupo social que reunia condições objetivas de se lançar em aventuras e divertimentos, boa parte constituída pelos esportes que, de certa forma trazia traços de distinção e contribuía para nutrir padrões de civilidade (RAGO, 2004RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In: PORTA, Paula. (org). História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 1.890-1.954.; TOLEDO, 2015TOLEDO, Roberto Pompeu. A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.).

Dos novos passatempos urbanos que emergiram nos hábitos do fim do século XIX, na Europa, o andar de bicicleta surgia com grande encantamento por seus praticantes (WEBER, 1988WEBER, Eugen. França fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.; GABORIAU, 1991GABORIAU Philippe. Les trois âges du vélo en France. Vingtième Siècle, Revue d’Histoire, n. 29, p. 17-33, 1991.; POYER, 2003POYER, Alex. Les premiers temps des véloce-clubs: apparition et diffusion du cyclisme associatif français entre 1870 et 1914. Paris: L’Harmattan, 2003.; RENAUD, 2016RENAUD, Jean-Nicolas. Du vélocipède à la bicyclette: le nouvelliste du Morbihan sur le fil du rasoir (1887-1904).Movement & Sport Sciences-Science & Motricité, n. 91, p. 5-20, 2016.; CHEBRE; RENAUD, 2020CHEBRE, Aurélien; RENAUD, Jean-Nicolas. Le vêtement sportif féminin durant l’entre-deux-guerres: la révolution de velours du magazine Vogue Paris.Modern & Contemporary France, p. 1-15, 2020.). Sua prática logo se relacionaria aos prazeres do exercitar-se ao ar livre e à emergência do pensamento em torno dos deslocamentos mais ágeis, leves. A bicicleta transformaria a forma de locomoção dos seus usuários, fosse pelas novas práticas de divertimento das elites, fosse pela rapidez já tão exigida nos tempos modernos que surgiam (GABORIAU, 1991GABORIAU Philippe. Les trois âges du vélo en France. Vingtième Siècle, Revue d’Histoire, n. 29, p. 17-33, 1991.; POYER, 2003POYER, Alex. Les premiers temps des véloce-clubs: apparition et diffusion du cyclisme associatif français entre 1870 et 1914. Paris: L’Harmattan, 2003.; RENAUD, 2016RENAUD, Jean-Nicolas. Du vélocipède à la bicyclette: le nouvelliste du Morbihan sur le fil du rasoir (1887-1904).Movement & Sport Sciences-Science & Motricité, n. 91, p. 5-20, 2016.). A ideia de vertigem que ilustra as descrições dos tempos do fim do século XIX e das décadas iniciais do século XX pode representar bem o imaginário em torno das bicicletas nesse contexto europeu. A bicicleta rapidamente também selaria a sua imagem ao conceito de juventude e liberdade e despertava paixões. Com a bicicleta sentíamos que

estávamos empurrando nossas asas [...]. A bicicleta é o objeto da adolescência, primeiros flertes. A reunião de meninas e meninos longe dos pais, é a reunião de amigos, o festival local, os corredores, o campo onde passeamos em grupos de jovens, bons tempos (GABORIAU, 1991GABORIAU Philippe. Les trois âges du vélo en France. Vingtième Siècle, Revue d’Histoire, n. 29, p. 17-33, 1991., p. 22).

Logo, nas últimas décadas do século XIX, as principais cidades do ocidente tinham bicicletas circulando em suas ruas. No Brasil, há traços em nossas fontes de que elas apareceram na cidade de São Paulo na última década deste século. Trazidas da Europa pelos imigrantes e pelas elites viajadas, logo viraram uma grande moda paulistana: “Todo mundo começou a pedalar; até mesmo respeitáveis damas e circunspectos cavalheiros, habituados à cartola e à indispensável sobrecasaca” (TOLEDO, 2015TOLEDO, Roberto Pompeu. A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015., p. 90). A bicicleta incorporava-se ao cotidiano dessa elite que se rendera aos seus prazeres:

Mulher (já há muito deitada):

João, eu hoje te pedi, que não viesse para casa mais tarde do que hontem...

Marido: Mas, queridinha, não vim nem um segundo mais tarde.

Mulher: - O quê! Vieste mais tarde 1’7’’1/5, se é que o chronometro que tens na tua bicycleta regula!...2 2 Semanario Cyclistico Illustado A Bicycleta, 15 nov. 1896, p. 2.

O novo hábito, entretanto, custava caro; as bicicletas eram importadas e poucos tinham acesso ao artefato. Mesmo na Europa, quando as bicicletas ganharam as ruas das principais cidades e se transformaram em divertimento para, em seguida, habitar o mundo esportivo, o custo era alto, conforme indica Weber (1988)WEBER, Eugen. França fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., algo em torno de 500 francos ou mais, o que representava, na França, três meses do salário de um professor.

No Brasil alguns periódicos como A Vida Moderna ou o Correio Paulistano não se furtaram a anunciar as novidades de consumo da nova moda dos pedais. Em suas páginas de propaganda de produtos à venda pelas lojas e magazines da cidade, encontravam-se, invariavelmente, produtos para esse novo mercado. Entretanto, fora de forma notável que o Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta, de propriedade de Otto Huffenbaecher, ciclista, tipógrafo e importador de bicicletas, dedicou grandes espaços de sua edição quinzenal para anúncios exclusivos sobre o universo ciclístico. Assim, figuravam em suas páginas reclames sobre marcas de bicicletas, lojas importadoras e acessórios, roupas e equipamentos para os ciclistas. Até mesmo as crianças já eram contempladas com a novidade: “Velocipedes americanos para crianças [...]”, estavam à disposição no Ao Bazar, na rua Direita, n. 48.3 3 Correio Paulistano, 5 jan. 1905, p. 4.

Havia, também, um discurso acerca dos benefícios dos exercícios físicos ao ar livre que incorporava o andar de bicicleta nos conselhos e prescrições de higienistas que apostavam na valorização atlética. Essa retórica alimentava preocupações das autoridades públicas na redução de impostos e taxas para sua aquisição. O Semanário Ciclystico Illustrado A Bicycleta mantinha-se atento aos acontecimentos em torno desse assunto e manifestava sua opinião sobre taxas alfandegárias, estimulando possibilidades de facilitar financeiramente o acesso ao artefato de duas rodas. O extrato que segue expressa bem sua posição:

Direitos Sobre Velocípedes.

Foi com grande jubilo, que recebemos do Rio de Janeiro, a grata noticia de ter a Camara dos Deputados Federal, estabelecido em 3ª. Discussão que os direitos de alfandega sobre velocípedes pagarão só dez por cento ad volarem, sob proposta do ilustre deputado Dr. Americo de Mattos. Esta patriótica decisão da Camara Federal vae certamente contribuir para o desenvolvimento physico da nossa mocidade, cujos exercicios athleticos são ainda infelizmente muito pouco cultivados, não deixando de notar-se, que com esta diminuição de direitos dentro de pouco tempo augmentará consideravelmente a importação de bicicletas [...].4 4 Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta 15 nov. 1896, p. 4.

O trecho aponta para a preocupação de como as taxas alfandegárias e os custos da importação agregavam um alto valor às bicicletas. Acentuava-se a percepção de que para fomentar seu uso como divertimento que traz saúde e vitalidade e estimular o seu comércio, era necessário amenizar os impactos do seu custo. Entretanto, mesmo sendo adquirida por um elevado preço, a bicicleta cairia no gosto do paulistano abastado desses fins do século XIX. As narrativas sobre seu uso e seus benefícios vinham de longe, como na notícia que segue, sugerindo que o ato de andar de bicicleta era digno das mais altivas personalidades mundiais:

De um periodico allemão extraímos o seguinte artigo, que prova evidentemente o gráo de apreciação em que é tida a bicycleta pelos monarchas europeos. A bicycleta, diz o mesmo jornal, que é hoje sem duvida o verdadeiro “emblema” do nosso século, tem sido aprpoveitada como excellente meio de diversão, por quasi todas as côrtes europeas.5 5 Semanario Illustrado A Bicycleta 12 jul. 1896, p. 3.

O semanário indica ser a bicicleta, efetivamente, um artefato que emprestava ao seu usuá­rio traços modernos, sintonia com o novo e, para além de seus usos pela realeza, seduzia as classes abastadas para essa novidade que, entre tantas qualidades, surgia como expressão de velocidade. A ideia muito disseminada de que A bicicleta, a grande libertadora, dá asas ao homem [...]” (GABORIAU, 1991GABORIAU Philippe. Les trois âges du vélo en France. Vingtième Siècle, Revue d’Histoire, n. 29, p. 17-33, 1991., p. 20) ganha divulgação. Velocidade, conforme sinaliza Vigarello (1995VIGARELLO, Georges. Le temps du sport. In: CORBIN, Alain.L’avènement des loisirs (1850-1960). Paris, Aubier, 1995.; 2018), era de fato um valor desse fim de século XIX e era, também, uma qualidade física muito apreciada.

A bicicleta pareceria fundir o corpo ao artefato e o andar de bicicleta representava uma bela composição entre técnicas corporais, tecnologia e vida ao ar livre. Ao expressar traços muito fortes de influência de comportamentos europeus, parte da elite paulistana exibia nas ruas, parques e avenidas da cidade as suas bicicletas em passeios carregados de novidade. É verdade que no Brasil o artefato chegara mais tardiamente do que em modernas cidades europeias como Paris, quando elas surgiram pelas ruas centrais ainda na primeira metade do século XIX e mais pareciam engenhocas desengonçadas (GABORIAU, 1991GABORIAU Philippe. Les trois âges du vélo en France. Vingtième Siècle, Revue d’Histoire, n. 29, p. 17-33, 1991.; RENAUD, 2016RENAUD, Jean-Nicolas. Du vélocipède à la bicyclette: le nouvelliste du Morbihan sur le fil du rasoir (1887-1904).Movement & Sport Sciences-Science & Motricité, n. 91, p. 5-20, 2016.). A novidade, quando chegou ao Brasil, no final do século XIX, já estava em amplo progresso técnico e representava a imagem da bicicleta moderna.

Considerada inovadora e com forte apelo a ideias de liberdade, a bicicleta teve, na transição entre os séculos XIX e XX, momentos importantes na cidade de São Paulo, que, a largos passos, incorporava novos hábitos. Estamos ainda no território do passatempo, do passeio, algo que pouco a pouco vai incorporando a ideia de desafios, ou, mais amplamente, de um desejo de ir mais longe com essas asas que, simbolicamente, a bicicleta parecia possuir. Esse desejo pelas distâncias mais longas parece também ter vindo da Europa e desempenhado papel relevante na incorporação dessa prática. À medida que bicicletas surgiam nas ruas da cidade, despertavam o desejo da prática e, pouco a pouco, eventos eram organizados em torno dos passeios ciclísticos, jogos e pic-nics, conforme evidenciam Moraes e Silva et al. (2022MORAES E SILVA, Marcelo et al. A emergência das corridas de bicicleta em Curitiba (1895-1913): idealizando pedagogias corporais. Proposições, v. 33, e20190105, 2022.), ao pesquisar o contexto da cidade de Curitiba.

Nesse sentido, histórias sobre a bicicleta tornaram-se mais frequentes na capital paulistana e despertaram atenção da imprensa. Em uma das colunas do periódico A Vida Moderna, em 1917, a aula de geografia transcorreria em torno de uma pergunta do professor ao aluno:

Professor - Como sabe, o desenvolvimento que têm tido, nesses últimos annos, todos os ramos do sport, faz com que de tempos em tempos se realisem arrojados concursos de aviação, de automobilismo, etc., como por exemplo o raind Pekin-Pariz, a travessia do canal da mancha e outros muitos. Assim, imaginemos que se institue um grande prêmio para que fizer a viagem de Roma a Pekin, por um caminho novo, onde não haja estrada de ferro, e v. inscreve-se para tomar parte no concurso; qual seria seu itinerário?

Alunno - Si a viagem deve ser feita por logares onde não haja estrada de ferro, eu terei que fazel-a a pé?

Professor - Não; pode escolher o meio de locomoção que lhe parecer mais comodo.

Alunno - Nesse caso prefiro a Bycicleta... [...].6 6 Revista A Vida Moderna, 25 jan. 1917, p. 20.

Por fim, passeios e eventos que envolviam a bicicleta tornaram-se relativamente frequentes no cotidiano da cidade. Páreos de bicicleta em espaços reduzidos, como nos parques e no velódromo ou desafios em distâncias mais longas eram frequentemente realizados. Era, portanto, um enraizamento de uma cultura física7 7 Cultura física é uma definição trabalhada por Kirk (1999) para referir-se a um conjunto de práticas voltadas à manutenção, representação e regulação do corpo, sendo representadas em três práticas institucionalizadas: o esporte, as recreações (divertimentos) e os exercícios (ginásticas). ligada à bicicleta e que adquiriu nos anos iniciais do século XX elementos que corroboraram para sua maior aproximação com as lógicas do esporte moderno.

Entre passeios e páreos: os novos valores do corpo e a construção do ciclista esportivo

A bicicleta incorporou-se ao cotidiano de uma elite que decidiu exercitar o corpo pelos pedais. Entretanto, o exercício em duas rodas exigia dedicação constante para manter o equilíbrio e aperfeiçoar os movimentos. Formas desajeitadas de andar de bicicleta eram objeto de observação risível pelas ruas da cidade:

Um cyclista, ainda não muito seguro no risco passeando pelas ruas d’esta capital, notou que era constantemente seguido por tres moleques. Já montado por tal perseguição, dirigiu-se aos molecotes, perguntando-lhes o que queriam, ao que um d’elles respondeu: - Fazeis tantos ­ zig-zags, que estamos à espera que deis um tombo, para carregar a bicycleta para vossa casa!8 8 Semanario Illustrado A Bicycleta, 6 set. 1896, p. 2.

Portanto, andar de bicicleta passaria a ser uma rotina dos muitos indivíduos que desejavam aprimorar o novo passatempo, como sugere a anedota do Semanario Cyclístico Illustrado A Bicycleta: “- Como aprendeu você a andar de bicycleta? pergunta-se ao ciclista, que prontamente responde - Em bicycleta”.9 9 Semanario Cyclístico Illustrado A Bicycleta, 12 jul. 1896, p. 3.

A formação de uma cultura física em torno dos divertimentos e a nova dinâmica da vida urbana possibilitou a formação de valores referentes a um modo de vida em que práticas esportivas, jogos e divertimentos junto à natureza expressavam, em certa medida, um ideário de vida ao ar livre em que um corpo ágil e veloz tem lugar (VIGARELLO, 1999VIGARELLO, Georges. Histoire des pratiques de santé: le sain et le malsain depuis le Moyen Age. Paris: Seuil, 1999.; 2018). Essas transformações dos comportamentos e valorização dos passatempos ao ar livre como uma rotina podem ser constatadas nas páginas do Sportman, pela divulgação do programa das festividades, em que o andar de bicicleta se fazia presente:

Está designado o dia 4 de fevereiro próximo para ter lugar, no Velodromo, mais uma esplendida festa organisada pelo “Sport Club Internacional” cujo programa está sendo caprichosamente confeccionado. A festa constará de corridas de cyclistas contra meninos, tandens, em barricas, motocyclos, bicycletas contra pedestres, a pé phnatasia, obstáculos, senhoritas, meninas Team Race entre cinco turmas, regatas em bicycletas e ascensão de um enorme balão tripulado por um arrojado sócio do club. Com um programa assim recheado de surpresas, é de se esperar um êxito completo, e é este o nosso desejo.10 10 Sportman, jan. 1906, p. 5.

O andar de bicicleta ocuparia um espaço nesse processo de transformação do cotidiano das elites paulistanas, entretanto, é importante reforçar o entendimento de que a introdução na rotina da cidade de um ideário de cultura física que influencia modos de vida de muitos indivíduos nas cidades ocidentais não se definiu, em um primeiro momento, como esporte, com suas características regradas instituindo a competição. Bem ao contrário, o andar de bicicleta expressou um novo comportamento que valorizava os exercícios físicos, preferencialmente realizados ao ar livre, em contato com o vento, o sol, com essa natureza física tão enaltecida no período (SOARES; SANTOS NETO, 2018SOARES, Carmen Lúcia; SANTOS NETO, Samuel Ribeiro. À sombra das árvores... respirando ar puro: educação e divertimentos junto à natureza na São Paulo dos anos 1920, Educação em Revista, v. 34, e193539, 2018.; MEDEIROS, 2021MEDEIROS, Daniele Cristina Carqueijeiro. Entre esportes, divertimentos e competições: a cultura física nos rios Tietê e Pinheiros (São Paulo, 1899-1949). Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, 2021.). O lento processo de esportivização dos exercícios físicos, jogos e outros divertimentos do corpo foi gradual e posterior (VIGARELLO, 1988VIGARELLO, Georges. Techniques d’hier... et d’aujourd’hui: une histoire culturelle du sport. Paris: Ed. Robert Laffont, 1988. p. 253-290.; 1995VIGARELLO, Georges. Le temps du sport. In: CORBIN, Alain.L’avènement des loisirs (1850-1960). Paris, Aubier, 1995.; ELIAS; DUNNING, 1992ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca pela excitação. Lisboa: Difel, 1992.; GUTTMANN, 2004GUTTMANN, Allen. From ritual to record. New York: Columbia University Press, 2004.; LOUDCHER, 2008LOUDCHER, Jean-François. À propos de la traduction française du livre de Allen Guttmann, From Ritual to Record: the Nature of Modern Sports. Staps, n. 2, p. 39-51, 2008.; 2020LOUDCHER, Jean-François. Processo civilizador e transformações sociais: uma análise das teorias elisianas em relação às ciências sociais do esporte. História, Questões & Debates, v. 68, n. 2, p. 14-36, 2020.). Em momento algum esse amplo processo de esportivização apagou o singelo ato de cortar o vento sobre as duas rodas na terra e com as asas imaginarias no ar.

Se tomamos aqui o processo de esportivização desse singelo ato podemos identificar um primeiro movimento que evidencia mudanças do comportamento e uma inclinação para o exercício, o cuidado cotidiano do corpo, a busca por uma performance. No início do século XX, Vigarello (2011VIGARELLO, Georges. Treinar. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 197-250.), ao analisar o contexto francês, assinala a grande diversidade de exercícios físicos que passaram a fazer parte do cotidiano urbano, caracterizados como passatempos. Eram “[...] jogos ao ar livre, os esportes pedestres, os exercícios corporais (entre estes, a ginástica), o ciclismo, o automobilismo, a aviação, os esportes náuticos, os esportes hípicos, os esportes de inverno, o turismo e as viagens [...]” (VIGARELLO, 2011VIGARELLO, Georges. Treinar. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 197-250., p. 206). Praticar exercícios físicos sob múltiplas formas como evocadas aqui por Vigarello tornara-se uma porta aberta aos novos tempos.

Podemos inferir aqui que o Correio Paulistano e A Vida Moderna foram importantes veículos de disseminação dos novos ideais em torno da construção de uma cultura física em que tem lugar o andar de bicicleta e, posteriormente, sua esportivização. Os exemplares chegavam ao leitor recheados de anúncios de produtos ligados à beleza física e inúmeros artigos que tomavam o esporte como tema central. Roupas especiais para a nova moda do pedal eram contempladas pelos anúncios como este que se refere às “camisas para velocipedistas”, que poderiam ser encontradas na Camisaria Especial, a preços fixos, segundo o Semanario Cyclistico Illustado A Bicycleta.11 11 Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta, 6 set. 1896, p. 3. Esse novo tipo de consumo, o dos divertimentos ligados aos exercícios que fomentavam a emergência de uma cultura física, seria cada vez mais divulgado: “Lições de velocipédia e patinação. Alugueis de velocípedes e patins. Todos os dias das 7 às 10 horas da manhã, das 12 às 2 da tarde e das 4 ás 6”, anunciava-se orgulhosamente ao leitor” (Semanário Cyclístico Illustrado A Bicycleta, 6/09/1896, p. 7).

Para parte da sociedade paulistana, havia uma busca pela ocupação dos espaços ao ar livre para prática de exercícios físicos na passagem do século XIX para o XX. Nesse contexto, as bicicletas estiveram sempre ligadas a esse emergente modo de vida ao ar livre e já tomavam parte das ruas da cidade de São Paulo no final do século XIX. Ora, ousaram até mesmo reivindicar o status de “iluminadores” das vias públicas. Ao ser questionado por um velocipedista estrangeiro porque as luzes da vila onde estavam não eram acesas à noite, o praticante local responde sem titubear: “Somos tantos velocipedistas a passear de noute de bicycleta com as competentes lanternas, que a câmara achou uma extravagancia mandar acender os lampeões!”.12 12 Idem.

Já nos anos iniciais do século XX, em São Paulo, o desenvolvimento industrial acelerado protagonizou, ao lado das transformações urbanas, uma dinâmica em continuidade ao exortar o uso dos espaços da cidade para a prática de esportes ao ar livre. Entre os passatempos que prestigiavam a vida ao ar livre nos parques da cidade o andar de bicicleta se fazia presente:

Si o tempo permitir, realiza-se hoje a anunciada corrida de bicycletas que deverão fazer o circuito de Itapecerica, cujo ponto de partida e de chegada é o Parque Antartica. Os concorrentes devem achar-se no Parque às 11 horas da manhã. Como se sabe, a corrida de hoje faz parte do programma das festas do Centro Academico Onze de Agosto.13 13 Correio Paulistano, 12 out. 1908, p. 3.

Parte da elite paulistana mais engajada com a vida urbana inclina-se, então, à busca desses espaços e passatempos e sublinha sua importância na regeneração do corpo, na exaltação de suas capacidades físicas e no lugar que a competição passa a ter. Há uma convergência entre historiadores da cidade de São Paulo na afirmação do lugar de importância que assumiram os jogos recreativos, esportes e a miríade de atividades realizadas ao ar livre (SEVCENKO, 1992SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.; RAGO, 2004RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In: PORTA, Paula. (org). História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 1.890-1.954.; GAMBETA, 2013GAMBETA, Wilson Roberto. A bola rolou. O velódromo paulista e os espetáculos de futebol (1895-1916). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2013.; GÓIS JÚNIOR, 2013GÓIS JÚNIOR, Edivaldo. O esporte e a modernidade em São Paulo: práticas corporais no fim do século XIX e início do XX.Movimento, v. 19, n. 4, p. 95-117, 2013.; SOUZA, 2016SOUZA, Yuri Vasquez. Quando as rodas conquistam a cidade: cultura, tensões, conflitos e ações na prática do ciclismo em São Paulo. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.; SOARES; SANTOS NETO, 2018SOARES, Carmen Lúcia; SANTOS NETO, Samuel Ribeiro. À sombra das árvores... respirando ar puro: educação e divertimentos junto à natureza na São Paulo dos anos 1920, Educação em Revista, v. 34, e193539, 2018.; MEDEIROS, 2021MEDEIROS, Daniele Cristina Carqueijeiro. Entre esportes, divertimentos e competições: a cultura física nos rios Tietê e Pinheiros (São Paulo, 1899-1949). Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, 2021.).

Para dedicar-se aos novos passatempos atléticos, que exigiam agilidade, velocidade, disposição e fôlego, seria necessária uma adequação, ou seja, uma ideia ainda tênue de treino corporal que aportasse gradação e aprendizado detalhado começava a se impor. O Semanario Illustrado A Bicycleta não poderia deixar de prestigiar essa discussão acerca dos corpos dos ciclistas e de forma descontraída assim se expressa: “Para um amador tornar-se um bom corredor é necessário ter: 1º., 2 kilos de pelle; 2º., 10 kilos de ossos e 3º., 20 kilos de medalhas. Com vistas ao Fígaro!”.14 14 Semanario Illustrado A Bicycleta, 12 jul. 1896, p. 4.

Das transformações gestuais e das possibilidades de novos comportamentos que a bicicleta despertou, encontram-se formas inéditas de subversão realizadas pelas mulheres (WEBER, 1988WEBER, Eugen. França fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.; GABORIAU, 1991GABORIAU Philippe. Les trois âges du vélo en France. Vingtième Siècle, Revue d’Histoire, n. 29, p. 17-33, 1991.; CHEBRE; RENAUD, 2020CHEBRE, Aurélien; RENAUD, Jean-Nicolas. Le vêtement sportif féminin durant l’entre-deux-guerres: la révolution de velours du magazine Vogue Paris.Modern & Contemporary France, p. 1-15, 2020.). Afinal, tratava-se de um artefato que permitia uma mobilidade e uma liberdade inédita ao sexo feminino. E isso em um tempo em que sair às ruas era uma conquista para elas como ressalta Toledo (2015TOLEDO, Roberto Pompeu. A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015., p. 94): “Não para todas, nem em todas as horas, nem em todos os lugares. E, de preferência, não sozinhas [...]”. O encontro das mulheres com a bicicleta no período aqui delimitado nutriu desejos de subverter a ordem social que lhes era imposta, de romper com as restrições e proibições. Um dos primeiros sinais de subversão veio das roupas. Como se já não fosse o suficiente circularem pelas ruas sobre duas rodas, algumas ousadas moças ainda o faziam vestindo calças; a novidade da vestimenta escandalizou a sociedade paulistana quando as primeiras jovens aderiram a essa moda e desfilaram pelas ruas da cidade.

Essa atitude das jovens da elite paulistana demonstra o lugar certamente privilegiado das roupas na composição da vida urbana que nutre a formação de uma nova sensibilidade em relação ao corpo, sobretudo o corpo feminino. Como escreveu Roche (1989ROCHE, Daniel. Cultures des apparences: une histoire du vêtements XVIIème-XVIIIéme siècle. Paris: Fayard, 1989.), há uma íntima relação das roupas com os costumes de cada época e de cada sociedade; elas de certo modo balizam um percurso do que é útil e do que é inútil do que possui um valor de mercado e do que possui um valor de uso. As roupas são, paradoxalmente, uma maneira de esconder e de exibir o corpo, compondo aquilo que Bologne (1986BOLOGNE, Jean-Claude. Histoire de la pudeur. Paris: Olivier Orban, 1986.) chamou de panóplia da sedução. Afirmação ou negação de lugares sociais são, também, determinados pela vestimenta, esse marcador social que fabrica distinção.15 15 As análises de Bourdieu (2007) são preciosas para pensar nas roupas como elemento constitutivo de amplos processos de distinção social.

O fenômeno moda foi analisado, entre outros, por Simmel (1989SIMMEL, George. Filosofia da moda e outros escritos. Lisboa: Texto & Grafia, 1989.) que assinala a relação entre vida urbana, individualismo e moda nas sociedades industriais. A moda seria, assim, uma manifestação privilegiada da realidade social, algo que afetava os ritmos, que possuía múltiplas variações, ambiguidades, mecanismos que colocavam em movimento distintas esferas da vida.

[...] Encarnação da nervosa vida moderna, vive do transitório, do fugitivo, do contingente; persiste destruindo, mas é simultaneamente recuperação lúdica de formas do passado e invenção de gestos futuros também condenados à evanescência. [...] o modo de andar, a cadência, o ritmo dos gestos são, sem dúvida, essencialmente determinados pelo vestuário; homens vestidos de modo semelhante comportam-se de modo relativamente semelhante (SIMMEL, 1989SIMMEL, George. Filosofia da moda e outros escritos. Lisboa: Texto & Grafia, 1989., p. 29-30 e 16-17).

Há nas ideias do autor uma clara alusão aos comportamentos associados ao modo de vestir-se, e a ideia de pertencimento se faz presente. Estamos diante do fenômeno da imitação que, como importante processo psicológico, aporta ao indivíduo um conforto e faz nascer um sentimento de não estar e agir sozinho; uma vida partilhada por um grupo lhe é mais suave. Como imitação ela empresta ao indivíduo a sensação de apoio coletivo, de pertença; como distinção, ela se nutre da necessidade da separação, da mudança. As roupas esportivas, sem dúvida estão no coração deste debate. Como escreveu Soares, (2011SOARES, Carmen Lúcia. As roupas nas práticas corporais e esportivas: a educação do corpo entre o conforto, a elegância e a eficiência (1920-1940). Campinas: Autores Associados, 2011., p. 29):

Gestos e roupas especiais para a prática de exercícios físicos e esportes oscilam entre uma ideia de eficácia técnica, de moda, de pertencimento de classe, de códigos de gênero, mas, também, de valorização de aparências, ou talvez de fabricação de novas aparências. Esse conjunto composto por gestos e roupas especiais para essas práticas em particular, alimentam todo um imaginário, fazem surgir novos cenários sociais, tornam-se assim, uma necessidade.

Talvez, os relatos nas páginas das revistas e jornais da época que constituem nossas fontes, noticiados com certa indignação e espanto acerca das mulheres andando de bicicleta e, ainda, portando calças ou shorts, demonstre bem o quão central é o modo de vestir-se em uma sociedade, o quanto ele assinala lugares sociais. Os extratos que seguem são elucidativos: “Mulheres querem andar mais a gosto e á frescata. Inventaram umas modas curiosas para conseguirem o que desejam. Sabem? Escutem lá: jupe-cullottes. Nada mais, nada menos, que uns comodos calções”;16 16 A Vida Moderna, 15 mar. 1911, p. 8. ou ainda:

A moda das mulheres deve ser uma constante preocupação esthetica e de gosto para o agrado dos homens [...] Mas, acima de tudo, mesmo do imoral das jupes cullottes [...] a nova moda porá em relevo pés de dimensões avantajadas e pernas em arco. Nada mais feio do que uma moça de pernas tortas em cima de um pé grande”.17 17 A Vida Moderna, 4 abr. 1911, p. 15.

Por meio das roupas é possível fabricar ou valorizar certas aparências e, no caso das mulheres, ressaltar, nessa transição entre os séculos XIX e XX, valores novos postos acerca da aparência, das diferentes e mais esbeltas silhuetas e de fomentar o desejo libertador eminente18 18 Chebre e Renaud (2020), ao pesquisarem o contexto francês no período entreguerras, indicam profundas transformações nas vestimentas esportivas femininas, que contribuíram significativamente com uma maior liberalização dos corpos das mulheres. . Entretanto, os dados acerca do talento, da agilidade, do domínio corporal das mulheres no andar de bicicleta, ou, ainda, sua inclinação para competições mais acirradas e que exigissem força física e destreza mesmo são raros. O mais comum é vê-las nas arquibancadas, embelezando os eventos com suas belas toilettes e sua gestualidade graciosa, comportamento esperado no período (GAMBETA, 2013GAMBETA, Wilson Roberto. A bola rolou. O velódromo paulista e os espetáculos de futebol (1895-1916). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2013.; SOUZA, 2016SOUZA, Yuri Vasquez. Quando as rodas conquistam a cidade: cultura, tensões, conflitos e ações na prática do ciclismo em São Paulo. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.). Aos membros do sexo masculino, sim, a exaltação das qualidades físicas como força, velocidade, agilidade. Assim sugeria a revista Sportman, quando Juvenal, Dr. Armando e Mario Prado posaram para foto de sócios do Sport Club Internacional, como “distintos Sportman.19 19 Sportman, jan. 1906, p. 3.

No novo hábito de andar de bicicleta, a intenção de ressaltar uma superioridade masculina, vigor físico e talento, em detrimento das mulheres parecia se confirmar pelas narrativas construídas em torno da representatividade e do papel de cada um:

A Cyclista romântica

- Ah! Como deve ser delicioso, deixar-se uma pessoa ir deslisando na sua bicycleta, contemplando os myriades de estrelas ao luar...

O veloceman pratico:

- É bello, mas uma distração poderá tambem fazer com que se as veja ao meio dia...20 20 Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta, 12 jul. 1896, p. 4.

Para contemplar a inclinação às competições, a reivindicação por espaços físicos para as práticas de exercícios se tornou uma demanda muito presente. Moraes e Silva et al. (2022MORAES E SILVA, Marcelo et al. A emergência das corridas de bicicleta em Curitiba (1895-1913): idealizando pedagogias corporais. Proposições, v. 33, e20190105, 2022.), ao estudarem o contexto da cidade de Curitiba, lembram como a vulgarização desses divertimentos produziu a necessidade de espaços mais adequados. Se isso ocorreu numa localidade de porte menor como Curitiba, em São Paulo tal processo foi até mais contundente. Tanto que se defendia a construção do Velódromo Paulista, inaugurado oficialmente em 1896 (GAMBETA, 2013GAMBETA, Wilson Roberto. A bola rolou. O velódromo paulista e os espetáculos de futebol (1895-1916). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2013.; BROWN, 2021BROWN, Matthew. Cycling in South America, 1880-1920. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, v. 48, n. 1, p. 287-325, 2021.). Foi nesse novo e moderno projeto arquitetônico que as corridas de bicicleta, nessa transição do século XIX para o XX, encontraram acolhida. O velódromo construído pela família Prado foi o primeiro espaço específico para as disputas em pista fechada do ciclismo paulistano21 21 A Chácara do Carvalho, localizada onde é hoje a Rua da Consolação, era de propriedade de Veridiana Prado, irmã do Conselheiro Antônio Prado, que cedera um considerável espaço no terreno para a construção do Velódromo de São Paulo e para o alojamento da sede do Veloce Club Olympico Paulista, que nascera de uma união entre sócios de clubes pioneiros, porém menores (GAMBETA, 2013). A obra foi idealizada espe­cialmente para atender ao desejo de seu filho Antônio Prado Júnior, que teria se encantado com a bicicleta ainda muito jovem. Mais tarde o palco serviu aos eventos de futebol, segundo indica Nicolini (2001). :

O velódromo começou em 1897 como pista de corrida de bicicletas. Das do tipo de uma roda grande e outra pequena, ambas protegidas por filetes de borracha, só se encontrava nalgum “ferro velho”. As modernas dêsse tempo eram exatamente como as de hoje. Câmaras de ar, manoplas altas em forma de chifres de boi, para as de passeio, e manoplas baixas, retorcidas em forma de chifres de carneiro, para as de corrida. Mas as corridas passaram da moda e o Velódromo foi inteiramente aproveitado para quadra e arquibancada de futebol. A arquibancada comportava talvez oitocentas pessoas. A “geral” era ao redor da cerca da quadra (AMERICANO, 1957AMERICANO, Jorge. São Paulo naquele tempo (1895-1915). São Paulo: Saraiva, 1957., p. 343).

As corridas em duas rodas ganharam logo a admiração dos paulistanos, especialmente aqueles de origem mais abastada. Esses acontecimentos, também chamados de páreos, eram sempre relacionados às calorosas corridas de cavalos. Ora, o turf fora considerado um precursor dos demais esportes; as corridas de cavalo movimentavam especulações e apostas em torno dos favoritos (NICOLINI, 2001NICOLINI, Henrique. Tietê, o rio do esporte. São Paulo: Phorte Editora, 2001.; GAMBETA, 2013GAMBETA, Wilson Roberto. A bola rolou. O velódromo paulista e os espetáculos de futebol (1895-1916). Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2013.).

A influência do turfe recairia sobre o ciclismo, em parte, pela histórica comparação das bicicletas aos cavalos: um artefato moderno como um “cavalo de ferro” incansável, que ao ser montado transformava homem e máquina em um só corpo (GABORIAU, 1991GABORIAU Philippe. Les trois âges du vélo en France. Vingtième Siècle, Revue d’Histoire, n. 29, p. 17-33, 1991.; RENAUD, 2016RENAUD, Jean-Nicolas. Du vélocipède à la bicyclette: le nouvelliste du Morbihan sur le fil du rasoir (1887-1904).Movement & Sport Sciences-Science & Motricité, n. 91, p. 5-20, 2016.; POYER, 2020POYER, Alex. Les premiers temps des véloce-clubs: apparition et diffusion du cyclisme associatif français entre 1870 et 1914. Paris: L’Harmattan, 2003.). Assim, é importante lembrar que, na origem das competições de ciclismo, as corridas eram anunciadas como disputas de páreos e muitos desses eventos ocorreram inicialmente em hipódromos:

Hipodromo Antarctica. Neste prado realiza-se hoje, às 2 horas da tarde, uma interessante festa sportiva, na qual será disputado o brassard de resistência do campeonato cyclista entre bravos cyclemeas (sic) desta capital, Italia e Jacarêhy. Também o andarilho José Ferrari correrá um match contra os cyclistas que tomam parte no campeonato.22 22 Correio Paulistano, 10 dez. 1905, p. 5.

Muitos dos páreos de bicicleta eram movidos por apostas, entretanto, é importante ter em vista que os comportamentos em prol dos divertimentos que envolvessem apostas e especulações seriam superados na medida em que a prática sistematizada dos jogos, a imposição das regras e a contenção da violência e dos exageros coletivos se fizessem presentes (ELIAS; DUNNING, 1992ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca pela excitação. Lisboa: Difel, 1992.; VIGARELO, 1995VIGARELLO, Georges. Le temps du sport. In: CORBIN, Alain.L’avènement des loisirs (1850-1960). Paris, Aubier, 1995.). Portanto, espaços específicos para a prática dos exercícios físicos sobre a bicicleta, no final do século XIX e início do XX, corroboraram para consolidar a introdução de elementos mais esportivizados, que transformariam o andar de bicicleta em um esporte moderno sem que, evidentemente, esse singelo divertimento deixasse de existir.

Os passatempos regrados na bicicleta em espaços específicos e restritos permitiriam o controle dos gestos e as práticas de comportamentos considerados mais adequados. Assim, o andar subversivo do veloceman e a ilimitada sensação e busca de liberdade que a bicicleta insinuava logo de sua aparição poderiam agora, finalmente, ser contidos, regrados e sistematizados, não somente nos espaços restritos das disputas, mas com uma amplitude programada: “Foi multado, pelo 2º Dr. Pedro Alves, 2º delegado. José Petuzzi, por andar de bicicleta com lanterna apagada, na rua Glycerio”.23 23 Correio Paulistano, 17 nov. 1903, p. 2.

Moraes e Silva et. al. (2022), ao analisarem a cidade de Curitiba, também corroboram para a reflexão de que a estruturação de espaços sociais e esportivos contribui para a consolidação de uma cultura física a partir de comportamentos e gestos desejáveis que agregassem novas sociabilidades ao projeto urbano. Isso, não apenas daqueles que se dedicavam a admirar as disputas nos espaços estabelecidos, mas também, e, sobretudo para a aproximação desses divertimentos com as lógicas do esporte moderno.

Nesse contexto, um comportamento mais esportivizado se firmava em torno do andar de bicicleta. Caminhou-se para a estruturação de novos elementos que foram lentamente incorporados em torno dessa rotina. Um conjunto de códigos, normas, regras, parâmetros e comportamentos se impuseram e caracterizaram uma mudança do conceito de andar de bicicleta ou, ainda, da prática informal do ciclismo. Tais elementos se somariam para relacionar o andar de bicicleta a uma construção moderna de esporte, competitivo e organizado em associações e clubes que começavam a surgir. Nesse sentido, Vigarello (1988; 1995), ­Guttmann (2004) e Loudcher (2008; 2020) ressaltam que os exercícios físicos que caminharam no sentido desse tipo de estruturação se aproximavam de forma mais efetiva das lógicas do esporte moderno. Referências sobre resultados e treinamento, por exemplo, passaram a fazer parte das narrativas sobre as disputas ciclísticas, que pareciam entusiasmar os grupos de admiradores paulistanos que cresciam, como se observa, no Semanario Ciclystico Illustrado A Bicycleta:

O que foi a 3. corrida da presente estação, realisada domingo ultimo, senão mais um sucesso para o Veloce Club! Que o digam todos que a ella assistiram se não ficaram plenamente satisfeitos e se não levaram para casa saudosas recordações!... Como de costume todos os pareos foram bem disputados, sobressaindo o 5. Em Bargossi, que hoje anda n’um completo entrainement, bateu os seus competidores brilhantemente, sendo muito aplaudido [...]. A Bargossi, um bravo! Iris ao contrário d’este ultimo, não tem o necessário preparo, e será bom, que continue a s’entrainer, para continuar a fazer a brilhante figura das duas primeiras corridas d’este anno! O Dr. Campos Salles, presidente do Estado acompanhado de sua Exma. Família, dignou-se comparecer a esta corrida, mostrando que se interessa realmente pelo desenvolvimento do cyclismo entre nós [...].24 24 Semanario Ciclystico Illustrado A Bicycleta, 12 jul. 1896, p. 2.

Para a uma boa exibição nos páreos ciclísticos do Velódromo Paulista não bastava mais apenas a paixão pela bicicleta e pedaladas constantes pelas ruas da cidade. Exigia-se uma transformação de atitude e uma inclinação a um novo comportamento esportivo em torno do aprimoramento físico e da busca por vitórias. Emerge, segundo aponta Vigarello (1988VIGARELLO, Georges. Techniques d’hier... et d’aujourd’hui: une histoire culturelle du sport. Paris: Ed. Robert Laffont, 1988. p. 253-290.; 1995VIGARELLO, Georges. Le temps du sport. In: CORBIN, Alain.L’avènement des loisirs (1850-1960). Paris, Aubier, 1995.), ao estudar o contexto francês, um pensamento em torno de programas de treinamento e uma preocupação com as formas e com o entendimento do corpo esportivo.

Nesse sentido, Vigarello (2011VIGARELLO, Georges. Treinar. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 197-250.) aponta uma reflexão em torno da importância do treinamento. Treinar entrava na ordem do dia. Estabeleceu-se uma busca pela transformação do corpo, uma imersão na percepção corporal aliada ao aprimoramento da força que desafiava a resistência e levava o esportista a uma interiorização do seu conhecimento pessoal e um reconhecimento da sua própria identidade. Mesmo que as formas de treinar sejam distintas e sirvam a diferentes objetivos, segundo o autor, tornam-se obrigatórios um método, um programa de treinamento. Não parecia mais possível, nesses tempos que apontavam que o esportista se apresentasse à competição sem a preparação adequada, como no ocorrido naquelas organizadas pelo Veloce Club: quando “Nilo, fez carreira mediocre e não correspondeu a espectativa geral. Gostariamos de vê-lo diariamente em rigoroso entrainement, assim como devia também inscrever-se mais a miudo disputando prêmios”.25 25 Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta, 6 set. 1896, p. 2.

Uma distinção entre o andar de bicicleta e os exercícios que se aprimoraram pelo treinamento e atuações competitivas nas primeiras pistas de corrida se estabelecera na transição dos séculos XIX para o XX. Assim, novas preocupações surgiram em torno do desenvolvimento do ciclismo como uma prática mais racionalizada, que buscava sua sustentação em regramentos e intenção de performance pela valorização dos seus equipamentos e dos treinamentos para o aprimoramento competitivo. Esses elementos, que se aprimorariam nas décadas iniciais do século XX, permeavam o universo sobre duas rodas desde a última década do século XIX, como registra Vigarello (2011VIGARELLO, Georges. Treinar. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 197-250., p. 197):

A revista Vèloce-Sport, apresentando em 1885 “os dez mandamentos do ciclista”, publica a imagem de um corredor pedalando no seu apartamento. A máquina está fixa, suportada por cabos de aço, arrimada a um pranchão. Seu papel é limitado, a roda só faz mover uma engrenagem colocada em uma chaminé. O comentário é sugestivo: “Ao pé do fogo, procurarás utilizar o treinamento”. Ironia, sem dúvida, vago deslocamento também. O treinamento pode continuar sendo uma cultura “curiosa” em 1885, surdamente contestável: iniciativa que desvia do útil, esforço muito egoísta em suma, enquanto se deveriam privilegiar outras eficácias. Daí essa engrenagem lembrando a necessidade do “real”.

A valorização dos equipamentos, mais potentes, mais competitivos ou que pudessem de alguma forma auxiliar o processo de treinamento já eram uma febre também no Brasil, como no vagão que levava ciclistas à corrida de bicicleta que compunha a programação de entretenimentos da inauguração do Novo Hotel e Cassino do Guarujá: “[...] alli fazia-se a chronica do cyclismo e dos cyclistas, discutindo-se a superioridade da machina Cleveland sobre a Brennebor, dessa sobre a Columbia, com o que não concordavam uns que afirmavam categoricamente que a melhor marca era a Deflance, seguindo-se logo a contestação dos enthusiastos da Monarch, etc. etc. [...].26 26 Correio Paulistano, 11 set. 1898, p. 2.

A essa euforia competitiva e tecnológica somou-se a organização dos primeiros clubes de ciclismo em São Paulo. Foram essas associações que estimularam as primeiras disputas calorosas das corridas de bicicleta no Velódromo Paulista. Com certa rapidez eles se transformaram em associações que aglutinavam indivíduos com folego financeiro e que, portanto, podiam pagar para frequentar tais espaços.

Entretanto, tem-se em foco que o surgimento dos clubes voltados às práticas esportivas representou as primeiras aspirações de institucionalização esportiva e no caso do ciclismo possibilitou, gradativamente, o processo de aprimoramento dos corredores de bicicleta. Nos anos pioneiros, a improvisação imperava, afinal os: “[...] ciclistas nem uniforme possuíam” (NICOLINI, 2001NICOLINI, Henrique. Tietê, o rio do esporte. São Paulo: Phorte Editora, 2001., p. 162). Mas, à medida que o andar de bicicleta se aproximava das lógicas do esporte moderno, era criada uma nova realidade para o Velódromo Paulista, que passou a contar, conforme salienta Nicolini (2011NICOLINI, Henrique. Tietê, o rio do esporte. São Paulo: Phorte Editora, 2001.), até mesmo com a presença de ilustres ciclistas estrangeiros. Embora as corridas de bicicleta dentro do velódromo tenham cedido espaço para o futebol, a aproximação com os ditames do esporte moderno seguiu com o fortalecimento gradual de muitos clubes e a transferência da sua prática para outro espaço, o das ruas. Essa forma de encaminhamento do ciclismo definiu o trajeto da sua consolidação a partir da institucionalização da Federação Paulista de Ciclismo, fundada em 1925, e da estruturação de um calendário de provas sistematizadas e ranqueadas pela entidade.

Conclusões

São Paulo, na passagem do século XIX para o XX, se estabelecia como uma cidade voltada ao progresso industrial e ao crescimento da população e dos espaços urbanos. À transformação da cidade somavam-se novas percepções culturais, que permitiram a eclosão de comportamentos ligados a uma atitude esportiva e de hábitos relacionados ao ideal de saúde, higiene e beleza. Uma parcela da população voltava sua atenção aos exercícios físicos, valorizando a vida ao ar livre.

Nesse contexto, o andar de bicicleta surgiu em São Paulo como forma de divertimento nos anos finais do século XIX, por influência das elites viajadas, que trouxeram o artefato de cidade europeias. Logo, esse divertimento, notadamente urbano, caiu no gosto desses indivíduos ávidos pelas novidades modernas. Cabe ainda destacar que o artefato de duas rodas permitiu uma mobilidade e uma liberdade inédita ao sexo feminino. O encontro das mulheres com a bicicleta nutriu desejos de subverter uma ordenação que lhes era imposta e um dos primeiros sinais de insurreição veio por meio das vestimentas. Como se já não fosse o suficiente circularem pelas ruas e avenidas sobre duas rodas, algumas jovens mulheres ainda o faziam vestindo calças. Essa atitude demonstra o lugar de destaque das roupas na composição de uma vida urbana que alimenta a formação de outros valores em relação ao corpo, sobretudo o feminino.

Contudo, para efeito de conclusão, entende-se que o andar de bicicleta como passatempo e divertimento na cidade de São Paulo adquiriu características e simbolismos próprios e trouxe no seu bojo uma intenção de esportivização, que caracterizou a forma como essa prática se consolidaria como esporte moderno. Assim, as primeiras competições de bicicletas foram acolhidas nos velódromos. Na cidade de São Paulo, esses eventos em seus anos iniciais foram realizados no Velódromo Paulista, e mantiveram em si, por um lado, as características de uma forma urbana de divertimento, aglomerando indivíduos nas arquibancadas em torno da pista de corridas, com notável intuito de espetáculo e entretenimento.

Ao mesmo tempo, esses eventos traziam a intenção de vincular-se ao esporte moderno, intenção essa perceptível na tentativa contínua de aprimoramento e atendimento de regras, na distinção do comportamento e dos gestos performáticos e no refino competitivo. A consolidação do andar de bicicleta como um esporte moderno emergirá nos anos iniciais do século XX e se consolidará a partir do surgimento da Federação Paulista de ciclismo e da sua institucionalização em 1925. Todavia, essas são histórias para serem narradas em outra ocasião.

Periódicos

  • Sportman, jan. 1906, p. 3, 5.
  • Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta, 12 jul. 1896, p. 2, 3, 4.
  • Semanario Cyclístico Illustrado A Bicycleta, 6 set. 1896, p. 2, 3, 7.
  • Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta, 15 nov. 1896, p. 2, 4.
  • Correio Paulistano, 11 set. 1898, p. 2.
  • Correio Paulistano, 17 nov. 1903, p. 2.
  • Correio Paulistano, 5 jan. 1905, p. 4.
  • Correio Paulistano, 12 jan. 1908, p. 3.
  • A Vida Moderna, 4 abr. 1911, p. 15.
  • A Vida Moderna, 15 mar. 1911, p. 8.
  • A Vida Moderna, 25 jan. 1917, p. 20.

Referências

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  • WEBER, Eugen. França fin-de-siècle São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
  • 1
    Para um estudo mais amplo acerca do lugar da imprensa na capital paulista do período, ver Martins (2008).
  • 2
    Semanario Cyclistico Illustado A Bicycleta, 15 nov. 1896, p. 2.
  • 3
    Correio Paulistano, 5 jan. 1905, p. 4.
  • 4
    Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta 15 nov. 1896, p. 4.
  • 5
    Semanario Illustrado A Bicycleta 12 jul. 1896, p. 3.
  • 6
    Revista A Vida Moderna, 25 jan. 1917, p. 20.
  • 7
    Cultura física é uma definição trabalhada por Kirk (1999) para referir-se a um conjunto de práticas voltadas à manutenção, representação e regulação do corpo, sendo representadas em três práticas institucionalizadas: o esporte, as recreações (divertimentos) e os exercícios (ginásticas).
  • 8
    Semanario Illustrado A Bicycleta, 6 set. 1896, p. 2.
  • 9
    Semanario Cyclístico Illustrado A Bicycleta, 12 jul. 1896, p. 3.
  • 10
    Sportman, jan. 1906, p. 5.
  • 11
    Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta, 6 set. 1896, p. 3.
  • 12
    Idem.
  • 13
    Correio Paulistano, 12 out. 1908, p. 3.
  • 14
    Semanario Illustrado A Bicycleta, 12 jul. 1896, p. 4.
  • 15
    As análises de Bourdieu (2007) são preciosas para pensar nas roupas como elemento constitutivo de amplos processos de distinção social.
  • 16
    A Vida Moderna, 15 mar. 1911, p. 8.
  • 17
    A Vida Moderna, 4 abr. 1911, p. 15.
  • 18
    Chebre e Renaud (2020), ao pesquisarem o contexto francês no período entreguerras, indicam profundas transformações nas vestimentas esportivas femininas, que contribuíram significativamente com uma maior liberalização dos corpos das mulheres.
  • 19
    Sportman, jan. 1906, p. 3.
  • 20
    Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta, 12 jul. 1896, p. 4.
  • 21
    A Chácara do Carvalho, localizada onde é hoje a Rua da Consolação, era de propriedade de Veridiana Prado, irmã do Conselheiro Antônio Prado, que cedera um considerável espaço no terreno para a construção do Velódromo de São Paulo e para o alojamento da sede do Veloce Club Olympico Paulista, que nascera de uma união entre sócios de clubes pioneiros, porém menores (GAMBETA, 2013). A obra foi idealizada espe­cialmente para atender ao desejo de seu filho Antônio Prado Júnior, que teria se encantado com a bicicleta ainda muito jovem. Mais tarde o palco serviu aos eventos de futebol, segundo indica Nicolini (2001).
  • 22
    Correio Paulistano, 10 dez. 1905, p. 5.
  • 23
    Correio Paulistano, 17 nov. 1903, p. 2.
  • 24
    Semanario Ciclystico Illustrado A Bicycleta, 12 jul. 1896, p. 2.
  • 25
    Semanario Cyclistico Illustrado A Bicycleta, 6 set. 1896, p. 2.
  • 26
    Correio Paulistano, 11 set. 1898, p. 2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2021
  • Aceito
    05 Ago 2021
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