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Sobre as Crônicas de São Denis e o Liber florum, de João de Morigny: algumas possibilidades

On the Chronicles of Saint Denis and Liber florum by John of Morigny: some possibilities

Sobre las Crónicas de Saint Denis y el Liber florum de Juan de Morigny: algunas posibilidades

RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar dois relatos, extraídos das Crônicas de São Denis, sobre um monge anônimo de Morigny que, na primeira metade do século XIV, supostamente praticava magia e cultuava demônios. Serão considerados os relatos das continuações da Cronica latina de Guilherme de Nangis e das Grandes Chroniques de France sobre esse tema. Essas referências são analisadas de forma comparativa em relação a outro texto, da mesma época, escrito em primeira pessoa por João de Morigny e intitulado Liber florum celestis doctrine. Essa pesquisa defende a hipótese de que o anônimo das Crônicas de São Denis é João de Morigny. O estudo comparado aqui apresentado torna possível verificar, ainda, que o que era descrito como demoníaco pelos cronistas de São Denis, segundo João, é exemplo de devoção e ortodoxia, o que remete a um espaço de contradição e disputa a respeito do que era entendido como “magia” no Medievo.

Palavras-chave:
Crônicas; Liber florum; magia; autoria; Idade Média

ABSTRACT

This article analyzes two reports from the Chronicles of Saint Denis about an anonymous monk from Morigny who, in the early fourteenth century, supposedly practiced magic and worshiped demons. On this theme, special consideration is given to reports from the continuation of the Cronica Latina, by William of Nangis, and the Grandes Chroniques de France. This article examines these sources in a comparative manner alongside another text from the same period, written in the first person by John of Morigny and entitled Liber florum celestis doctrine. The evidence suggests that the anonymous author of the Chronicles of Saint Denis is, in fact, John of Morigny. It also verifies that what chroniclers of Saint Denis described as demonic is, according to John, rather an example of devotion and orthodoxy, which opens a space for contradiction and dispute regarding what was understood as “magic” in the Middle Ages.

Keywords:
Chronicles; Liber florum; Magic; Authorship; Middle Ages

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar dos relatos extraídos de las Crónicas de San Denis, sobre un monje anónimo de Morigny, que, en la primera mitad del siglo XIV, supuestamente practicaba magia y cultivaba demonios. Serán considerados los relatos de las continuaciones de la Cronica Latina de Guilherme de Nangis y de las Grandes Chroniques de France sobre este tema. Estas referencias son analizadas de forma comparativa con relación a otro texto de la misma época, escrito en primera persona por Juan de Morigny y titulado Liber florum celestis doctrine. Esta investigación hace posible verificar, que lo que era descrito como demoniaco por los cronistas de San Denis, de acuerdo con Juan, es un ejemplo de devoción y ortodoxia, lo que remite a un espacio de contradicción y debate al respecto de lo que era entendido como “magia” en el Medioevo.

Palabras Clave:
Crónicas; Liber florum; magia; autoría; Edad Media

Apresentação

A continuação da Crônica latina de Guilherme de Nangis e as Grandes crônicas da França, da Abadia de São Denis, são dois relatos que registram, no ano de 1323, a condenação, promovida pela Universidade de Paris, de um livro de magia escrito por um autor definido apenas como “monge de Morigny”. Este ensaio, que é uma primeira aproximação ao tema, pretende demonstrar, a partir de um exercício comparativo entre as informações trazidas pelas crônicas e alguns manuscritos que chegaram até nós de uma obra chamada Liber visionum, ou Livro das visões, escrito em primeira pessoa por um João de Morigny, que este é o livro referenciado anonimamente nas crônicas francesas. A discussão também pretende abordar, a partir deste confronto entre o testemunho dos críticos da magia com um dos seus defensores, alguns aspectos gerais sobre os saberes e as práticas mágicas que circularam em meios eruditos ou letrados no final da Idade Média.

O livro de magia do monge de Morigny segundo as crônicas de São Denis

A Abadia (hoje elevada ao grau de Catedral-Basílica) de São Denis foi fundada na primeira metade do século VI. Seu patrono, Denis, o mártir, teria sido o primeiro bispo de Paris, sendo perseguido e decapitado em meados do século III. Fundada como um mosteiro da ordem de São Bento, a Abadia tornou-se um importante centro de estudos ao longo da Idade Média: dali surgiram diversos esforços, sobretudo a partir do século XII, de escrita da história na forma de crônicas (FONTOURA, 2014FONTOURA, Odir. Sobre o historiar medieval: o lugar das crônicas e dos cronistas na escrita da história. Labirinto(UNIR), Porto Velho, ano XIV, v. 20, 2014. p. 119-137.). Peter Lewis (1995LEWIS, Peter. Some Provisional Remarks upon the Chronicles of Saint-Denis and upon the [Grandes] Chroniques de France in the Fifteenth Century. Nottingham Medieval Studies, v. 39, p. 146-181, 1995., p. 146), por exemplo, fala de duas tradições textuais que coexistiram em São Denis: com base, às vezes, nas mesmas fontes, mas descrevendo os acontecimentos a partir de diferentes enfoques, alguns cronistas beneditinos escreveram em latim, outros em francês. Esses registros são importantes e servem como ponto de partida para a nossa compreensão de diversos eventos históricos do período medieval francês, pois temas que hoje poderíamos enquadrar na categoria da política, da religião, dos costumes ou da cultura aparecem, sempre de forma articulada e imbricada, nessas crônicas (SPIEGEL, 1978SPIEGEL, Gabrielle. The Chronicle Tradition of Saint-Denis: A Survey. Brookline; Leyden: Classical Folio Editions, 1978.). A magia é um deles.

Uma dessas crônicas - a hoje chamada Crônica latina - foi escrita por Guilherme de Nangis e pretendeu dar conta dos mais importantes acontecimentos decorridos entre 1113 e 1300, provável ano da morte de Guilherme. Em outro recorte, escrevendo no estilo das crônicas “universais”, Guilherme tratou de uma história que terminava no ano de 1112 e iniciava na própria criação do mundo. Sua morte não encerrou sua obra: diferentes continua­dores, todos monges de São Denis, como Guilherme, continuaram alargando os registros da Crônica latina até pelo menos o ano de 1368.1 1 A edição de Hercule Géraud deste texto baseia-se em diversos manuscritos franceses, a maioria escritos sem interrupção, da segunda metade do século XIII ao final do século XIV. A fonte aqui utilizada será referenciada da seguinte forma: Chronique latine de Guillaume de Nangis de 1113 a 1300 avec les continuations de cette chronique de 1300 a 1368. Ed. H. Géraud. t. II. Paris: Jules Renouard, 1843. Ver mais em: GÉRAUD, Hercule. De Guillaume de Nangis et de ses continuateurs. Bibliothèque de l’École des Chartres. v. 3, 1841-1842. p. 23.

Interessa-nos em particular alguns dos acontecimentos de 1323. Dentre os principais fatos ocorridos neste ano, os continuadores da Crônica de Guilherme destacam, por exemplo, a condenação à morte de Jordano, dito “da Ilha”, casado com a sobrinha do papa João XXII, por uma série de crimes. Também são mencionados o episódio da coroação da rainha Maria, esposa de Carlos IV, e a canonização de Tomás de Aquino. No que toca a personagens menos conhecidos, é contada a história de um praticante de magia (maleficus, sortilegus) que prometeu riquezas a um abade de um monastério cisterciense da diocese de Sens. Diferentes monges se intrometeram em uma série de rituais macabros que envolveram, por exemplo, a morte de um gato negro, visitas noturnas às encruzilhadas e a invocação de um demônio chamado Berich que respondia perguntas quando requisitado. O episódio chegou aos ouvidos dos inquisidores - o que, segundo a crônica, teria culminado na prisão perpétua dos envolvidos.

Na sequência dos registros do mesmo ano, é apontado outro exemplo de magia praticada no contexto monástico. Agora a acusação é dirigida a um único monge. O texto diz o seguinte:

Neste ano [1323], foi condenado em Paris, pelo seu mérito supersticioso, um livro de um certo monge de Morigny, que fica perto de Étamps. Este livro, que tinha muitas imagens pintadas da bendita Maria, também continha muitos nomes desconhecidos que, de acordo com o que é firmemente dito, acredita-se serem nomes de demônios. Se prometiam prazeres, riquezas, e qualquer coisa que um homem pudesse desejar, se o livro fosse pintado [ou mandado pintar] para si e se o nome próprio [do operador] fosse escrito nele duas vezes. E muitas outras coisas de nulo [valor] e errôneas eram vistas.2 2 Chronique latine... op. cit. p. 50. Trad. livre do autor: “Eodem anno liber quidam cujusdam monachi de Morigniaco juxta Stampas, qui liber habebat beatae Mariae multas depictas imagines, qui etiam cum hoc continebat multa ignota nomina quae, ut firmiter dicebatur, nomina daemonum credebantur, quia delicias et divitias promittebat, quinimo et quidquid homo optaret si librum pro se depingi faceret, et nomen proprium bis in illo inscriberet, et multa alia quae nihil vel error videbantur, merito tamquam superstitiosus Parisius condemnatur”.

Apesar de o autor da crônica apontar o lugar de nascença do monge com certa precisão (Morigniaco juxta Stampas), seu nome não é revelado e tampouco o título do seu manual. O relato evoca algumas acusações bastante conhecidas dos críticos da magia, como o pretenso disfarce das invocações demoníacas com nomes desconhecidos ou estranhos (ignota).3 3 A preocupação aparece, por exemplo, em Agostinho de Hipona que falou dos “ritos fraudulentos dos demônios que se firmam sob os nomes de anjos” (ritibus fallacibus daemonum obstricti sub nominibus angelorum). Séculos depois, no Speculum astronomiae, escrito por um autor anônimo (possivelmente Alberto Magno) que pretendia delimitar as áreas legítimas e ilegítimas da ciência, sobretudo da astronomia, é dito a respeito dos rituais de magia: “É suspeito que, sob os nomes de uma língua desconhecida, possa haver [nesses rituais] alguma coisa escondida e que seja contra a honestidade da fé católica” (suspectus enim est, ne saltem sub ignotae linguae nominibus aliquod lateat, quod sit contra fidei catholicae honestatem). Ver: Sancti Aurelii Augustini Episcopi. De civitate Dei. Ed. B. Dombart. v. 1. Lipsiae: In aedibus B. G. Teubneri, 1908. p. 415 (L. X, c. 9); MAGNUS, Albertus. Speculum Astronomiae. Ed. Paola Zambelli et al. In: MAGNUS, Albertus. The ­Speculum Astronomiae and its Enigma: Astrology, Theology and Science in Albertus Magnus and his Contemporaries. Dordrech et al: Kluwer Academic Publishers, 1992. p. 240. Chama-nos a atenção o fato de o livro ter supostas imagens da Virgem Maria nele desenhadas: se a obra era demoníaca, por que seria ilustrada com um simbolismo tão sagrado? A crônica por si só não responde a essa aparente contradição. Como no caso das acusações de heresia atribuídas a João de Pathernay, relato que segue a história do monge de Morigny no texto de São Denis, precisamos recorrer a outras fontes para saber mais sobre o episódio - a Crônica latina não conta, mas também essa história envolvia acusações de magia.4 4 João de Pathernay foi um arcebispo na província de Tours. Sob a autoridade do papa João XXII, o arcebispo foi acusado de diversas heresias e investigado pela inquisição. As cartas que tratam dessa investigação atualmente estão nos Arquivos Apostólicos do Vaticano e também não dão detalhes sobre as acusações específicas atribuídas a João. Felizmente chegaram até nós alguns dos aconselhamentos ou opiniões (consilia) dados pelo jurista Oldrado da Ponte a respeito de alguns casos de quando atuou na corte papal de Avinhão. Oldrado comentou esse processo e, graças a ele, sabemos que algumas das acusações atribuídas a João de Pathernay envolviam o recurso aos sortilégios (sortilegia) e às poções de amor (pocula amatoria). Ver: Fontoura (2020).

A exemplo de outra “tradição” das crônicas de São Denis,5 5 Ver nota 1, cf. supra. podemos recorrer ao conjunto de crônicas organizadas sob o título de Grandes crônicas da França. Escrito em francês, o texto foi nomeado às vezes como Grandes chroniques de France, outras apenas como Chroniques de France. A crônica começou a ser escrita na década de 1270 e tinha o objetivo de contar a história dos francos, e, para tanto, os cronistas chegaram até as origens supostamente troianas dessa civilização. Nessa primeira versão, os relatos ali registrados vão até a morte do rei Felipe II, ou Felipe Augusto, em 1223. Como no caso da Crônica latina de Guilherme de Nangis, as Grandes crônicas também receberam sucessivos acréscimos e revisões. A história encerra seus registros com a vida do rei Carlos V, coroado em 1364 e morto em 1380, chegando a registrar alguns acontecimentos iniciais do reinado do seu filho e sucessor, Carlos VI, coroado também em 1380.6 6 Entre 1920 e 1953, Jules Viard editou o texto em 10 tomos, tendo como base o manuscrito BnF fr. 2813 do século XIV: aqui referenciado como Les grandes chroniques de France. Ed. Jules Viard, v. 9. Paris: Librairie ancienne Honoré Champion, 1937; ver também: Guyot-Bachy e Moeglin (2005, t. 163. p. 385-386).

Os acontecimentos de 1323 são, nesse texto, praticamente os mesmos evocados na continuação da Crônica latina. No entanto, quando as Grandes crônicas tratam do monge de Morigny e de sua obra de magia, se desenvolve um relato um pouco maior e detalhes que não encontramos nesse outro registro.7 7 Apesar de ser bastante provável que a escrita dos acontecimentos de 1323, tanto na Crônica latina quanto nas Grandes crônicas, partiu provavelmente das mesmas fontes, não está claro qual das duas crônicas veio primeiro. Segundo Jules Viard, que editou as Grandes crônicas, os relatos de 1323 são baseados na continuação da Crônica latina de Guilherme de Nangis e são alargados a partir dela. Esta também é a opinião de Hercule Géraud, que editou a Crônica latina. Mais recentemente, Nicholas Watson apostou no contrário: o relato menor, a respeito do monge anônimo de Morigny, da Crônica latina, teria se baseado no relato originalmente maior das Grandes crônicas. Ver, respectivamente: Les grandes chroniques... op. cit. p. II; GÉRAUD, H. De Guillaume de Nangis... op. cit. p. 29; e Watson (1998, p. 164).

A respeito do monge, ainda anônimo, é dito o seguinte: “pela sua curiosidade e orgulho, quis provocar e renovar uma heresia e feitiçaria condenada, chamada Ars notoria em latim, e pensou em lhe dar outro título e outro nome”.8 8 Les grandes chroniques... op. cit. p. 24. Uma tradução parcial desse texto, para o inglês, pode ser encontrada em: Watson (1998, p. 164). Trad. livre do autor: “par sa curiosité et par son orgueil voult susciter et renouveller une hérésie et sorcerie condampnée, qui est nommée en latin Ars notoria, et avoit pensé à lui baillier autre titre et autre nom”. Embora esse comentário não diga qual seria esse novo título, ele é revelador. A Ars notoria era uma arte bastante conhecida no meio intelectual dos séculos XIII e XIV e foi considerada, pelos seus críticos, uma forma de magia (VÈRONESE, 2007VÈRONESE, Julien (ed.). L’Ars Notoria au Moyen Age. Introduction et édition critique. Firenze: Sismel; Edizioni del Galluzzo, 2007.). A crônica explica que essa arte notória pretendia, por meio de figuras, desenhos ou marcas (figures et empraintes), fazer seus praticantes alcançarem o conhecimento de todas as áreas do saber ou de cada uma das ciências (à chascune science). Essas figuras “devem ser contempladas em certas ocasiões com jejuns e orações; e então, depois da contemplação, é alcançada a ciência que se quer ter e adquirir”.9 9 Idem. Trad. livre do autor: “puis doivent estre regardées à certain temps faiz en jeunes et en oroisons; et ainsi, après le regart estoit espandue science, laquelle en ce regart on vouloit avoir et acquérir”. Remetendo à já mencionada preocupação a respeito das invocações demoníacas disfarçadas de palavras estranhas, a crônica continua:

É preciso que se nomeie e se chame por alguns nomes desconhecidos, nomes que se acredita firmemente serem de demônios. Então esse saber engana a muitos e muitos são enganados por ele; porque ninguém, usando tal saber, alcançou algum bem ou algum fruto se ligando a ele.10 10 Idem. Trad. livre do autor: “Il convenoit que on nommiast et appellast aucuns noms mescogneus, lesquiex noms on creoit fermement que c’estoient noms de deables; pourquoy pluseurs celle science decevoit et estoient deceuz; car nul n’avoit onques esté usant de celle science que aucun bien ou aucun fruit [fait] en eust raporté”.

Na esteira da condenação de Tomás de Aquino, que chamou a arte notória de “ilícita e ineficaz”,11 11 Suma teológica, II-II. Q. 96, a. 1 (leia-se parte II de II, questão 96, artigo 1). Ver: Aquino (2012, p. 472). Trad. livre do autor: “[ars notoria] illicita est, et inefficax”. a despeito da sua aparência devocional, o autor das Grandes crônicas comunica que o monge de Morigny também pareceu reprovar essas técnicas. Nos deparamos, portanto, com uma contradição discreta, porém significativa, em relação ao que é dito na Crônica latina. Se neste outro texto é explicado que a obra do monge tinha as imagens de Maria, mas também (etiam) os nomes possivelmente demoníacos, o autor das Grandes crônicas relata o seguinte: “Não obstante, este monge [de Morigny] reprovou esta ciência, mas ainda assim ele fingiu que a bendita Virgem Maria lhe apareceu muitas vezes e ainda que lhe inspirou com o conhecimento” (grifo nosso).12 12 Les grandes chroniques... op. cit. p. 24. Trad. livre do autor: “noient moins ycelui moine reprouvoit ycelle science, ja soit ce qu’il fainsist que la benoite Vierge Marie li fust apparue moult de foiz et aussi come li inspirant la science”. Dito de outra forma, trata-se de coisas diferentes: por um lado, a arte notória, que o monge queria mudar ou renovar (renouveller), como é dito no começo da crônica; por outro, uma arte renovada, mas apenas na aparência, uma vez que é falsamente atribuída à intervenção da Virgem.

O relato das Grandes crônicas insiste na pretensa homenagem que o monge anônimo faz à mãe de Deus, e nesse ponto as informações das crônicas voltam a se alinhar: “por sua honra [da Virgem Magia], ele pintou muitas imagens no seu livro, com muitas orações e caracteres, de forma preciosa e com finas cores, dizendo que a Virgem Maria tudo lhe revelou”.13 13 Ibidem, p. 24-25. Trad. livre do autor: “et pour ce, à l’onneur de li il avoit fait plusseurs ymages peindre en son livre avec plusseurs oroisons et caractères très précieusement de fines couleurs, en disant que la Vierge Marie li avoit tout revelé”. Se as instruções do monge fossem seguidas, o conhecimento de todo o saber ou de toda science seria adquirido, bem como algumas benesses materiais seriam obtidas: “e mesmo se fossem riquezas, honras ou prazeres que se quisessem, isso seria alcançado”.14 14 Ibidem, p. 25. Trad. livre do autor: “et plus, car fussent richesces, honneurs ou délices que on vousist avoir, on l'avoit”. Também nesse ponto ambas as crônicas convergem.

O relato das Grandes crônicas, como o da Crônica latina, encerra insistindo no detalhe curioso da necessidade de os leitores ou os praticantes assinarem suas cópias do livro escrito pelo monge misterioso. Seria orientado “que se escrevesse duas vezes o seu nome no livro [depois de] que fosse feita uma cópia do livro para si, o que era algo custoso - pois de nada valeria se não mandasse escrever uma cópia [e que arcasse] com os custos e despesas [dessa cópia]”.15 15 Idem. Trad. livre do autor: “escrire II fois son nom en ce livre, et faire escrire le livre proprement pour soy, qui estoit cousteuse chose, autrement il ne li vaudroit riens s’il n’en faisoit I escrire à ses couz et à ses despens”. Essas foram as razões pelas quais a obra do monge de Morigny foi queimada (et mis ou feu) em Paris em 1323.16 16 A instituição responsável pela condenação foi a Faculdade de Teologia da Universidade de Paris. O texto pode ser encontrado em: Chartularium Universitatis Parisiensis. Ed. H. Denifle e A. Châtelain. t. II. Paris: Fratrum Delalain, 1891. p. 274.

Paradoxalmente, as novas informações apontadas pelas Grandes crônicas, em relação ao texto menor da continuação da crônica de Guilherme de Nangis, nos deixam com mais perguntas não respondidas a respeito da obra do monge de Morigny. Por que ele quis renovar a arte notória se esta já era uma arte condenada? Qual o papel atribuído à Virgem Maria nessa prática? Por que os novos praticantes precisavam de cópias individuais do tratado? A respeito dessas questões, os cronistas beneditinos de São Denis se calam. Precisamos recorrer a outras fontes para tentar respondê-las.

O livro de magia do monge de Morigny segundo ele próprio

A arte notória pode ser entendida como uma tradição textual (ou um conjunto de tradições textuais) bastante consolidada do final do medievo. Julien Véronèse editou esse material a partir de 13 manuscritos, mas encontrou mais de 50 diferentes versões, sendo mais de 30 do período medieval. Véronèse (2007VÈRONESE, Julien (ed.). L’Ars Notoria au Moyen Age. Introduction et édition critique. Firenze: Sismel; Edizioni del Galluzzo, 2007., p. 15) definiu a arte notória como uma “magia da escola” (magie de l’école) por pelo menos duas razões. Por um lado, devido às suas pretensões, que giravam em torno da aquisição do conhecimento imediato das “artes” ensinadas nas escolas catedráticas e nas universidades, como o trivium, o quadrivium, a filosofia e a teologia. De forma ainda mais ampla, o manual latino dizia ser possível alcançar o domínio sobre todas as artes (omnem artes), o que incluía “todas as ciências, tanto as lícitas quanto as ilícitas”.17 17 Ars Notoria... op. cit. p. 168. Trad. livre do autor: “omnes scientie tam licite quam illicite”. Por outro lado, a classificação de uma magia “escolar” surge devido à sua circulação, que também se deu em espaços acadêmicos, letrados, abrangendo o que Michael Bailey (2013, p. 57) definiu como um “mundo sombrio” de leituras que orbitava o currículo oficial dos estudiosos.18 18 Trad. livre do autor: “elite forms of magical practice (…) these either made inroads into the official ­curriculum of the schools where these men had trained or existed in a shadowy world that ringed them.”

Uma dessas tradições da Ars notoria tem sido objeto de estudo pelos historiadores há relativamente pouco tempo. Na década de 1990, Sylvie Barnay (1994BARNAY, Sylvie. La mariophanie au regard de Jean de Morigny: magie ou miracle de la vision mariale? Actes des Congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, 25congrès, Miracles, prodiges et merveilles au Moyen Age, Orléans, 1994. p. 173-190.; 1999BARNAY, Sylvie. Du diable à la Vierge. Magie et mariophanie à la fin du Moyen Âge. Senefiance: Magie et Illusion au Moyen Âge, n. 42. Centre Universitaire d’Études et de Recherches Médievales d’Aix, 1999. Disponível em: Disponível em: https://books.openedition.org/pup/3359 . Acesso em: 16 maio 2020.
https://books.openedition.org/pup/3359...
), na sua investigação a respeito da literatura devocional à Virgem Maria no medievo, deparou-se com um tratado autobiográfico, escrito em primeira pessoa, colocado sob a autoria de um monge chamado João de Morigny (Johannes de Moriginato).19 19 Ver mais em: Hult (1986, p. 25-64), Huot (1987, p. 39-45) e Minnis (1988). Sobretudo no prólogo desse tratado, chama-do Liber visionum, ou Livro das visões, João escreveu sobre como praticou a arte notória ao longo dos anos sem saber que se tratava de uma arte demoníaca. Depois de um tempo envolvido nesse erro, João relata que a Virgem Maria intercedeu pela sua salvação, por meio de várias revelações - o que explica o título do prólogo -, e o autorizou a fazer uma versão renovada desse texto, agora sob seu patronato.

Pouco tempo depois da primeira publicação de Barnay, Nicolas Watson (1998)WATSON, Nicholas. John the Monk’s Book of Visions of the Blessed and Undefiled Virgin Mary, Mother of God: Two Versions of a Newly Discovered Ritual Magic Text. In: FANGER, Claire (ed.). Conjuring Spirits: Texts and Traditions of Medieval Ritual Magic. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1998. p. 163-215. e Claire Fanger (1998FANGER, Claire. Sacred and Secular Knowledge Systems in the Ars notoria and the Flowers of Heavenly Teaching of John of Morigny. In: KILCHER, Andreas; THEISOHN, Philipp (eds.). Die Enzyklopädik der Esoterik. Paderborn: Wilhelm Fink Verlag, 2010.) também desenvolveram investigações a respeito da obra de João de Morigny, a partir de outros manuscritos e também de outras perguntas, mais recentemente editando o texto na íntegra.20 20 Ver: Fanger e Watson (2000; 2015). Nos últimos anos foram sendo descobertas outras versões do manual, e atualmente conhecemos mais de 20 manuscritos espalhados pela Europa que trazem excertos ou a íntegra do tratado de João, conhecido na sua totalidade como Liber florum celestis doctrine, ou Livro das flores da doutrina (ou do ensino) celestial. Esse número relativamente grande de manuscritos nos permite inferir que houve uma circulação significativa desta obra que, nas palavras de Barnay (1999CAMILLE, Michel. Visual Art in Two Manuscripts of Ars Notoria. In: FANGER, Claire(ed.). Conjuring Spirits: Texts and Traditions of Medieval Ritual Magic. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1998. p. 110-139.), “fez barulho” (l’affaire fit du bruit) o suficiente para ser assunto das crônicas de São Denis.

Mas o que nos permite afirmar que João de Morigny é o monge de Morigny mencionado pelos cronistas beneditinos? E se de fato se tratar do mesmo personagem, o que o manual de João nos diz a respeito da sua magia (ou da magia de modo geral) que as histórias de São Denis não alcançam? Vamos agora a algumas possíveis aproximações.

Em primeiro lugar: qual a relação da arte ensinada por João com a Ars notoria? Já vimos que o relato das Grandes crônicas sugere uma aproximação entre essas práticas quando é dito que o monge anônimo quis “renovar” a arte notória. Mas o que exatamente isso quer dizer?

João, no início do seu Liber visionum, explica que pretende “ensinar o conhecimento de todas as artes (...) por meio das poucas orações que, neste livro, [foram concebidas] pela ­revelação dos anjos”.21 21 Liber visionum...op. cit., p. 126. Trad. livre do autor: “ad omnes artes sciendas (...) in hoc libro prepaucis placidisque orationibus, angelorum reuelacione”. De acordo com o monge, o domínio dessas artes aconteceria “em pouco tempo, de forma sutil, certa e maravilhosa e de acordo com os méritos do operador, [por meio] da visão, da aparição, da consolação e por intermédio da Virgem Maria, imaculada mãe do Deus”.22 22 Idem. Trad. livre do autor: “intemerate Dei genitricis virginis Marie visione, apparicione, consolacione et procuracione, secundum operantis merita, breui tempore, subtiliter et indubitanter et mirabiliter edocentur”. Em outras palavras, estamos falando de um recurso tipicamente associado à arte notória: práticas devocionais que visam ao domínio de todas as artes do saber. João não esconde essa ambição: “o livro presente [proporciona] o entendimento e o alcance de todas as ciências e artes”,23 23 Ibidem, p. 127-128. Trad. livre do autor: “presentem librum qui est de cognicione et adoptione omnium scienciarum et arcium”. o que replica ipsis litteris a intenção do outro manual.

Essa influência é apenas subentendida na narrativa de João? Certamente não. O monge é explícito quanto à sua passagem por esses estudos proibidos e fornece ao seu leitor diversos detalhes a respeito dessa trajetória. Explica que pouco tempo depois de entrar para a ordem de São Bento, tomou emprestado de outro monge um livro e passou a estudar o ofício da nigromancia (nigromancie artis) com muito interesse. Querendo aprofundar seus conhecimentos a respeito disso, seguiu o conselho de um certo médico lombardo chamado Tiago (Iacobo):

Ele me disse: “Peça permissão para frequentar os studia, e quando conseguir, procures por um certo livro que é chamado Ars notoria, assim encontrarás a verdade não apenas a respeito dessa ciência que tu procuras, mas a [verdade] de todas [as ciências]”. Assim eu fiz e obtive o livro depois de procurar por um certo tempo.24 24 Ibidem, p. 133. Trad. livre do autor: “dixit michi, ‘Petas licenciam studia frequentandi, et cum obtinueris quere quoddam librum qui ars notoria nuncupatur. Et ideo non solum de hac sciencia de qua queritur set de omnibus inuenies veritatem’. Quia sic feci, et obtinui librum diu quesitum”.

Os studia (studium no singular) eram bibliotecas ou centros de estudos das ordens monásticas. Nesse caso, estamos falando provavelmente de uma biblioteca da ordem beneditina. Não deve ser motivo de surpresa a circulação desse tipo de literatura entre os religiosos: Sophie Page (2013PAGE, Sophie. Magic in the Cloister: Pious Motives, Illicit Interests, and Occult Approaches to the Medieval Universe. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press, 2013.), por exemplo, analisando a biblioteca da abadia beneditina de Agostinho da Cantuária, no século XIV, encontrou referências a mais de 30 manuscritos que abordavam o tema da magia. Em muitas coleções, obras consideradas “mágicas” dividiam espaço com outras que poderiam, sob um primeiro olhar, ser classificadas como menos heterodoxas, enquadradas como devocionais ou piedosas. Como será visto daqui em diante, o testemunho de João de Morigny, confirmando a tese de Page, nos aponta, por sua vez, para a fluidez dessas fronteiras.

João explica que seu interesse pela Ars notoria deu-se sobretudo em razão da sua pobreza, que lhe impedia de ter livros ou cópias dos livros (multas paupertates tam in libris quam in exemplis) para seguir formalmente nos seus estudos. Essas limitações, por sua vez, não o impediram de desejar do fundo do coração (toto corde) aprender as ciências. É assim que João abdica do que chama de doctrinam successiuam - e que poderíamos traduzir como o ensino tradicional, formal ou gradual das escolas ou da universidade - para se dedicar à doctrinam subitaneam ou imediata, infundida supostamente pelos anjos como resposta a certas operações ritualísticas:

E de modo que não era possível tomar aulas devido à minha pobreza, e no livro já mencionado estavam contidos os meios pelos quais eu poderia atingir os meus propósitos, através da doutrina instantânea, por causa disso, dispensei todos os outros estudos. Tomei esses estudos [da doutrina instantânea] com frequência, e estudei muito para saber como funcionava. (...) [E consegui,] melhor do que podia [anteriormente].25 25 Liber visionum... op. cit. p. 137. Trad. livre do autor: “Et cum esse non posset per doctrinam successiuam propter meam paupertatem, et in predicto libro continebatur qualiter ad propositum meum attingere per doctrinam subitaneam potuissem, idcirco, omnibus alijs studijs dimissis, cepi in ipsa frequencius studere, et in tantum studui quod qualiter operari deberem sciui. (...) melius quam potui”.

O Liber visionum, que serve como introdução ou prólogo do Liber florum, é marcado por diversas revelações que João obteve em resposta à intervenção da Virgem, dos santos, dos anjos e eventualmente do próprio Cristo, os quais queriam alertá-lo quanto aos erros da arte notória e da nigromancia. Em uma delas, João, o Evangelista, lhe apareceu em sonho e teria dito: “João, tu és tolo e fizeste errado. Veja o que fizeste e não façais mais”.26 26 Ibidem, p. 142. Trad. livre do autor: “Johannes, tu es insipiens et male fecisti. Vide ne amplius facias”. João de ­Morigny, pedindo piedade (miserere mei), teria acordado logo depois. Às vezes os avisos chegavam quando estava acordado: “Eu acordei certa manhã (...), ouvi vozes nos meus ouvidos me dizendo ‘estúpido, estúpido e estúpido!’”.27 27 Ibidem, p. 145. Trad. livre do autor: “Ego, dum quodam mane vigilarem (...) audivi vocem ad aures meas dicentem “Stulte et stulte et stulte”. Em outra ocasião, foi enviada a ele uma mensagem menos delicada, relatada pelo monge beneditino como sendo um anjo que lhe apareceu em sonho e, seguindo a ordem de Cristo, lhe deu uma surra: “[o anjo] bateu-me forte, com seu punho, dizendo ‘Toma, por causa das coisas que fizeste e [ainda] faz que são contrárias ao teu Criador’. (...) por causa de tanta punição e dor, acordei”.28 28 Ibidem, p. 145-146. Trad. livre do autor: “e cum pugno acriter verberare, dicens, ‘Tene, quia fecisti et facis que sunt contraria Creatori tuo’. (...) pre nimia pena et dolore quas paciebar excitatus fui”. Depois dessa visão, João se arrependeu e confessou.

O monge beneditino não esconde que foi enganado: “De fato, este livro da [Ars] notoria, ao primeiro olhar externo, parece ser santo e, de todos os livros, o mais belo e útil, e mesmo o mais santo [de todos]”.29 29 Ibidem, p. 133-134. Trad. livre do autor: “Liber enim ille notoria prima facie, scilicet exterius, apparet quod sit sanctus, et omnium librorum pulcherrimus et utilissimus, et eciam sanctissimus”. Não há motivo para esconder, na sua biografia, a passagem por esses estudos, porque, no seu testemunho, o passado sombrio desempenha uma dupla função de legitimação. Por um lado, sua vida pregressa é o que justifica as aparições da Virgem: “a imaculada mãe de Deus, Virgem Maria (...) a mim (...) mostrou alguns milagres, me iluminando com a luz da Sua graça e me resgatando das armadilhas do Diabo”.30 30 Ibidem, p. 126-127. Trad. livre do autor: “intemerata Dei genitrix, virgo Maria (...) mihi (...) quedam miracula ostenderit, me lumine gratie sue illuminando et a laqueis dyaboli subtrahendo”. Em outra passagem, confessa: “[A Virgem] misericordiosamente me resgatou dos antigos erros”.31 31 Ibidem, p. 127. Trad. livre do autor: “me ab antiquitis meis erroribus (...) dignata est mise[ri]corditer reuocare”. Por outro lado, ao situar a arte notória como o “outro” ilegítimo e desautorizado, enfatiza a sua versão renovada como a correta e verdadeira: “Tu deves saber e crer que a Ars notoria é maléfica e que esta presente arte é boa”.32 32 Ibidem, p. 156. Trad. livre do autor: “sciatis et credatis quod ars notoria est malefica et quod ars presens bonifica”.

João explica que redigiu o livro “para o aperfeiçoamento e para a salvação de todos os ouvintes e leitores, [salvação] tanto da alma quanto do corpo, e para a destruição do inimigo”.33 33 Idem. Trad. livre do autor: “salutem et perfectionem tam anime quam corporis omnium audiencium seu legencium et destrucionem inimici”. O monge é claro quanto a isso ao explicar que, a respeito da licencia debita, “este livro foi composto para a utilidade e salvação de muitos”.34 34 Ibidem, p. 150. Trad. livre do autor: “componerem hunc librum pro vtilitate multorum”. Dito de outra forma, ao fazer do seu texto uma obra de salvação, João de Morigny se constrói como exemplum.

Nas crônicas de São Denis, as acusações à Ars notoria e à obra do monge de Morigny se confundem. Na Crônica latina, por exemplo, é dito que na obra do monge são encontrados os nomes estranhos supostamente demoníacos. Nas Grandes crônicas é explicado que o monge reprovou o recurso a esses chamados, o que, ainda sob o olhar dos críticos da magia, não foi suficiente para isentar essa arte “renovada” de suspeitas. Mas o que nos diz o texto de João a respeito disso?

Vimos até aqui que João de Morigny constrói a sua arte não apenas como aprimoramento, mas também como oposição à arte notória. Segundo o próprio João, ele tomou da arte notória apenas as “palavras boas e divinas” (verbis divinis et bonis) para escrever sua nova obra, deixando todo o resto para trás. Nesse esforço, diz que fez como os hebreus, que, na fuga do Egito, guiados por Moisés, receberam autorização de Deus para levar consigo os vasos de ouro e prata - em resumo, o espólio do Egito (spoliatio aegyptionis) - apesar da infidelidade desse povo. Quais, então, na arte notória, eram as palavras não consideradas “boas e divinas”? Na opinião de João, justamente aquelas de línguas estranhas, há muito encaradas com suspeição por parte da ortodoxia:35 35 Ver nota 3, cf. supra.

Por duas vezes foi revelado a mim, por intermédio de todos os espíritos angélicos, que as orações em línguas estranhas deste livro [da Ars notoria] eram invocações [feitas] aos espíritos malignos, escondidas de forma tão sutil e engenhosa que ninguém no mundo poderia perceber, dada sua sutileza.36 36 Liber visionum... op. cit. p. 140. Trad. livre do autor: “bis michi reuelatum fuit ab omnibus spiritibus angelicis quod in oracionibus extranee lingue illius libri erat invocacio malignrum spirituum interclausa, ita subtiliter et ingeniose quod nullus de mundo quantumcumque esset subtilis eam percipere potuisset”.

A exemplo desse “espólio”, João deixa claro que algumas das orações contidas na sua nova obra são resultado da época em que trabalhava e se inspirava na Ars notoria. “A oração que começa com ‘Excelentíssima’ eu compus enquanto trabalhava com a arte notória, depois da primeira visão”,37 37 Ibidem, p. 149. Trad. livre do autor: “Orationem que incipit “Excellentissima” conposui dum exercerem artem notoriam post primam visionem”. explica. Mas nenhuma das preces do Liber florum prescreve qualquer palavra que não fosse latina: os alegados nomes de anjos ou as palavras pretensamente vindas do grego, do caldeu ou do hebraico, muito comuns na Ars notoria, inexistem no tratado de João de Morigny. Claire Fanger (2010FANGER, Claire. Sacred and Secular Knowledge Systems in the Ars notoria and the Flowers of Heavenly Teaching of John of Morigny. In: KILCHER, Andreas; THEISOHN, Philipp (eds.). Die Enzyklopädik der Esoterik. Paderborn: Wilhelm Fink Verlag, 2010., p. 158) entende que João fez um “gesto de correção” (corrective gesture) ao apagar esses nomes da sua arte, atribuindo um novo protagonismo à Virgem nas operações. Nessa mesma direção, Sylvie Barnay (1994BARNAY, Sylvie. La mariophanie au regard de Jean de Morigny: magie ou miracle de la vision mariale? Actes des Congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, 25congrès, Miracles, prodiges et merveilles au Moyen Age, Orléans, 1994. p. 173-190., p. 179) fala na busca, por parte de João, de um “sobrenatural autorizado” (surnaturel autorisé) que procurou alinhar às expectativas de uma pretensa ortodoxia.

Dito isto, o que falar a respeito da suposta vinculação da obra do monge de Morigny ao patronato da Virgem Maria, tal como aparece nas crônicas de São Denis? Já vimos que, no Liber visionum, João atribui à Virgem um papel importante no processo de infusão das ciências e também que foi ela que o salvou das artimanhas do Diabo. São várias as figuras de linguagem que João utiliza para se colocar como um protegido da Nossa Senhora: às vezes se entende como “um monge indigno e um servo humilde desta Virgem”,38 38 Ibidem, p. 127. Trad. livre do autor: “[Et idcirco ego, frater Johannes de Moriginato] a monachus indignus, eiusdem Virginis (...) seruus et (...) humilis”. outras se coloca “sob sua mão e proteção”.39 39 Ibidem, p. 130. Trad. livre do autor: “[virginis Marie (...)] proteccione et manu sua [me custodiens]”. As intercessões dessa entidade na vida de João não se iniciam em razão do seu envolvimento na arte notória - como no episódio em que, segundo o monge, uma das estátuas da Virgem em Chartres se transformou na própria Virgem em carne e osso (carnaliter et corporaliter transmutata) para lhe pedir que lá permanecesse para adorar e agradecer a Deus. Muito tempo antes disso, quando João ainda tinha entre 12 e 14 anos, Maria lhe apareceu em sonho e teria lhe revelado: “tu serás monge”,40 40 Ibidem, p. 132. Trad. livre do autor: “[in somnis (...)] monachus eris (...) [excitatus fui. Et amirans (...)]”. o que o fez acordar admirado e seguir a partir de então o seu chamado.

A relação de João com a Virgem pode ser entendida nos termos de Sylvie Barnay (1994BARNAY, Sylvie. La mariophanie au regard de Jean de Morigny: magie ou miracle de la vision mariale? Actes des Congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, 25congrès, Miracles, prodiges et merveilles au Moyen Age, Orléans, 1994. p. 173-190.; 1999CAMILLE, Michel. Visual Art in Two Manuscripts of Ars Notoria. In: FANGER, Claire(ed.). Conjuring Spirits: Texts and Traditions of Medieval Ritual Magic. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1998. p. 110-139.), que falou de uma expressão “mariofânica”, o que quer dizer que a figura de Maria ocupa um lugar central na sua experiência espiritual. Esse tipo de testemunho é importante, pois evidencia algo que podemos apenas suspeitar a partir dos relatos das crônicas de São Denis: a ideia de que, a despeito das acusações dos seus adversários, crenças e práticas enquadradas como “mágicas” não eram vistas como errôneas ou como desviantes por parte dos seus praticantes. Para João de Morigny, o Liber florum é um exemplo a ser seguido, um exemplo que se constrói inclusive em oposição à Ars notoria, definida como professora ou mestra dos erros (magister erroris), dentre outras qualificações. Por sua vez, se nos debruçarmos sobre o que o autor deste outro manual escreve sobre os ensinamentos ali contidos, encontraremos definições menos pejorativas, como as noções de uma arte que é muito sagrada (sacratissima), muito santa (sanctissima), até a noção pouco modesta de arte das artes e ciência das ciências (ars artium et scientia scientiarum). Em resumo, na disputa entre o legítimo e o ilegítimo, a esfera do pecado e do demoníaco recai sempre sobre o “outro”.

Há outra caracterização feita pelas crônicas de São Denis, a respeito do livro anônimo do monge também desconhecido, que merece consideração: a menção de que os leitores desse manual precisavam fazer suas próprias cópias do texto e ali escrever por duas vezes seus nomes. Nesse caso, a narrativa de João explica, em parte, o porquê disso. Precisamos ainda recorrer a um exercício de comparação entre os diferentes manuscritos do Liber florum que chegaram até nós para comprovar se (e como) isso de fato aconteceu.

No Liber figurarum, ou Livro das figuras, outro capítulo do Liber florum, João explica, nos seus próprios termos, por que o seu nome deveria ser removido e corrigido (corrigitur et tollitur) daquelas orações. Ele afirma que as operações que eram ensinadas não atingiriam qualquer resultado, a não ser que ali estivesse escrito o nome daquele para quem o livro tivesse sido especialmente feito (nisi iste pro quo specialiter fuerit liber compositus). Na interpretação de Sylvie Barnay (1999), essa marca de propriedade pretendia tornar o possuidor do códice também um “possuído” (faire de son possesseur un possédé) pela força ou energia que seria delegada por meio daqueles ensinamentos. Essa lógica que transforma também o texto físico em um objeto dotado de poder aparece nas instruções da Prima pratica (Primeira prática), outro capítulo do tratado, em que é instruído que o leitor deixe sua cedulam (a folha do texto escrito) de orações sobre um altar e diante de uma estátua da Virgem, depois de fazer um sinal da cruz.

Uma análise codicológica de diferentes versões do Liber florum nos aponta para evidências de que essas orientações, pelo menos algumas vezes, foram seguidas. Graças às investigações de Claire Fanger e Nicolas Watson, sabemos de pelo menos três exemplos. Em um manuscrito provavelmente alemão, do final do século XIV, atualmente na biblioteca britânica,41 41 BRITISH LIBRARY, Londres. Liber florum celestis doctrine. Additional MS 18027, séc. XIV. o copista e talvez utilizador da obra assinou seu nome: Alberto de Judenberg. Em outro manuscrito, datado possivelmente no mesmo período e procedente da mesma região,42 42 SCHOTTENKLOSTER, Viena. Liber florum celestis docctrine. Codex Scotensis-Vindobonensis 140, séc. XIV, p. 61. vemos que em algumas orações o nome de João foi substituído por Hartmann. Em mais um documento, provavelmente italiano e da segunda metade do século XV, atualmente na biblioteca da Universidade McMaster,43 43 MCMASTER UNIVERSITY LIBRARY, Hamilton. Liber florum celestis doctrine. MS 107, séc. XIV. todas as referências ao nome de João foram apagadas. Sabemos que o proprietário do manual foi um homem chamado Bernardo, pois este é o nome que aparece nas orações. Sabemos, também, que essa dinâmica de apropriação e ressignificação dos textos precedentes é um movimento “bastante comum” (quite common feature of ritual magic) dessa literatura que foi classificada como mágica pelos seus opositores (KLAASSEN, 2013KLAASSEN, Frank. The Transformations of Magic: Illicit Learned Magic in the Later Middle Ages and Renaissance. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press, 2013., p. 121-122).

Uma análise comparativa dos manuscritos sobreviventes do Liber florum nos remete a outra menção nas crônicas de São Denis: a de que a obra anônima do monge de Morigny teria figuras ou imagens da Virgem ali desenhadas. No Liber visionum, quando João fala da Ars notoria, diz que esta é uma arte que, no primeiro olhar, parece muito boa, pois esse livro “deve ser escrito com diversas cores e há diversas figuras belíssimas pintadas com diversas cores”.44 44 Liber visionum... op. cit. p. 133-134. Trad. livre do autor: “quia in eo scriptura debet de diuersis coloribus scribi. In eo sunt pulcherrime figure diuersis coloribus colorate”. A caracterização visual do livro, na opinião de João de Morigny, parece ser um aspecto positivo do manual. Não parece fortuito, portanto, que outro capítulo do Liber florum se intitule Liber figurarum, ou Livro das figuras, e que ensine o operador a fazer suas próprias figuras ou imagens.

No manuscrito anteriormente mencionado, possivelmente italiano e copiado por (ou para) um tal Bernardo, encontramos iluminuras da Virgem. O manuscrito alemão de ­Alberto de Judenberg não apresenta essas pinturas, mas existem espaços em branco reservados para elas futuramente, bem como diversas iniciais decoradas com azul, púrpura e marrom. Este é o caso de outro manuscrito do Liber florum, do começo do século XIV, atualmente na Universidade de Graz,45 45 GRAZ UNIVERSITY LIBRARY, Graz. Liber florum celestis doctrine. 680, séc. XIV. que também deixou espaços em branco para futuras ilustrações e incorporou o vermelho e o verde na tinta usada para sua escrita.

Claire Fanger (2010FANGER, Claire. Sacred and Secular Knowledge Systems in the Ars notoria and the Flowers of Heavenly Teaching of John of Morigny. In: KILCHER, Andreas; THEISOHN, Philipp (eds.). Die Enzyklopädik der Esoterik. Paderborn: Wilhelm Fink Verlag, 2010., p. 161) atesta que cópias caras e luxuosas são encontradas tanto em versões da Ars notoria quanto em exemplares do Liber florum. Michel Camille (1998CAMILLE, Michel. Visual Art in Two Manuscripts of Ars Notoria. In: FANGER, Claire(ed.). Conjuring Spirits: Texts and Traditions of Medieval Ritual Magic. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1998. p. 110-139.) que analisou alguns manuscritos da Ars notoria, defende que as imagens ou figuras desses manuscritos não devem ser interpretadas como meros adereços, uma vez que são parte da performance ritual ou da experiência mística do operador. Dito de outra forma, parece possível crer que os ensinamentos de João de Morigny não devem ser entendidos apenas no âmbito da instrução ou da educação que proporciona aos seus leitores. Mais do que isso, na esfera daquilo que Sylvie Barnay (1994BARNAY, Sylvie. La mariophanie au regard de Jean de Morigny: magie ou miracle de la vision mariale? Actes des Congrès de la Société des Historiens Médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public, 25congrès, Miracles, prodiges et merveilles au Moyen Age, Orléans, 1994. p. 173-190., p. 186) chamou de “profissão de fé” (une profession de foi), o Liber florum precisa ser compreendido também na sua materialidade ou na corporeidade que se manifesta por meio do livro, do códice ou da cedulam que deveria ser personalizada para cada usuário - o que aparece de forma apenas indiciária na Crônica latina ou nas Grandes crônicas.

Conclusão

Este ensaio teve, por primeiro objetivo, sugerir uma hipótese de autoria. Duas crônicas escritas pelos beneditinos de São Denis fazem acusações a respeito de uma obra de magia anônima, queimada em 1323, atribuída a um monge, também anônimo, de Morigny. A continuação da Crônica latina, escrita em latim, traz poucas informações a respeito desse texto, por ser uma narrativa menor; já as Grandes crônicas, em francês, trazem mais informações a respeito do tratado do monge. A partir dos indícios apontados nessas histórias, foram feitas algumas comparações com a obra conhecida como Liber florum celestis doctrine, ou Livro das flores da doutrina (ou do ensino) celestial, escrita em primeira pessoa por um monge chamado João de Morigny. Há informações que convergem entre as acusações das crônicas e o testemunho do autor do Liber florum, o que sinaliza assertivamente para a possibilidade de que o monge anônimo de Morigny fosse João de Morigny; e sua obra, desconhecida pelos cronistas, fosse o Liber florum.

Há certa confusão, por parte da continuação da Crônica latina, entre a condenação das práticas da Ars notoria, que dependem, por exemplo, do chamamento de nomes estranhos para o desempenho de certos rituais, com a condenação da obra do monge de Morigny. Nesse sentido, a narrativa das Grandes crônicas é mais precisa, pois reconhece que este monge não exatamente praticava a arte notória, mas quis renová-la. O testemunho de João de Morigny, por um lado, aponta para essa intenção, e faz dessa própria arte notória, em certos momentos, um “outro” pejorativo e condenável para enfatizar a pureza e a ortodoxia da arte apresentada no Liber florum. Por outro lado, João também reconhece que foi influenciado por essa arte notória e a praticou por muito tempo antes de ser definitivamente salvo pela Virgem.

O suposto patronato dessa arte renovada à Virgem Maria é outro elemento que aparece em ambas as crônicas de São Denis. O texto de João assume que houve essa intenção: ­Maria ocupa um lugar central nas experiências religiosas ali relatadas e ensinadas. As crônicas ainda acusam o livro anônimo de ter imagens dessa Virgem e reforçam a necessidade de que seus leitores tivessem suas próprias cópias. Novamente o testemunho de João de Morigny (e as evidências codicológicas dos manuscritos) convergem com as informações das crônicas. O próprio João ressalta a importância dessas ilustrações, e diversos manuscritos apontam para marcas de autoria e de apropriação das operações do Liber florum - o que sugere que assim como suas instruções foram levadas a sério, as acusações dos cronistas de São Denis, apesar do seu viés crítico e condenatório, remetem a práticas que de fato foram prescritas.

Fontes documentais

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  • Chronique latine de Guillaume de Nangis de 1113 a 1300 avec les continuations de cette chronique de 1300 a 1368 Ed. H. Géraud. t. II. Paris: Jules Renouard, 1843.
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Referências

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  • 1
    A edição de Hercule Géraud deste texto baseia-se em diversos manuscritos franceses, a maioria escritos sem interrupção, da segunda metade do século XIII ao final do século XIV. A fonte aqui utilizada será referenciada da seguinte forma: Chronique latine de Guillaume de Nangis de 1113 a 1300 avec les continuations de cette chronique de 1300 a 1368. Ed. H. Géraud. t. II. Paris: Jules Renouard, 1843. Ver mais em: GÉRAUD, Hercule. De Guillaume de Nangis et de ses continuateurs. Bibliothèque de l’École des Chartres. v. 3, 1841-1842. p. 23.
  • 2
    Chronique latine... op. cit. p. 50. Trad. livre do autor: “Eodem anno liber quidam cujusdam monachi de Morigniaco juxta Stampas, qui liber habebat beatae Mariae multas depictas imagines, qui etiam cum hoc continebat multa ignota nomina quae, ut firmiter dicebatur, nomina daemonum credebantur, quia delicias et divitias promittebat, quinimo et quidquid homo optaret si librum pro se depingi faceret, et nomen proprium bis in illo inscriberet, et multa alia quae nihil vel error videbantur, merito tamquam superstitiosus Parisius condemnatur”.
  • 3
    A preocupação aparece, por exemplo, em Agostinho de Hipona que falou dos “ritos fraudulentos dos demônios que se firmam sob os nomes de anjos” (ritibus fallacibus daemonum obstricti sub nominibus angelorum). Séculos depois, no Speculum astronomiae, escrito por um autor anônimo (possivelmente Alberto Magno) que pretendia delimitar as áreas legítimas e ilegítimas da ciência, sobretudo da astronomia, é dito a respeito dos rituais de magia: “É suspeito que, sob os nomes de uma língua desconhecida, possa haver [nesses rituais] alguma coisa escondida e que seja contra a honestidade da fé católica” (suspectus enim est, ne saltem sub ignotae linguae nominibus aliquod lateat, quod sit contra fidei catholicae honestatem). Ver: Sancti Aurelii Augustini Episcopi. De civitate Dei. Ed. B. Dombart. v. 1. Lipsiae: In aedibus B. G. Teubneri, 1908. p. 415 (L. X, c. 9); MAGNUS, Albertus. Speculum Astronomiae. Ed. Paola Zambelli et al. In: MAGNUS, Albertus. The ­Speculum Astronomiae and its Enigma: Astrology, Theology and Science in Albertus Magnus and his Contemporaries. Dordrech et al: Kluwer Academic Publishers, 1992. p. 240.
  • 4
    João de Pathernay foi um arcebispo na província de Tours. Sob a autoridade do papa João XXII, o arcebispo foi acusado de diversas heresias e investigado pela inquisição. As cartas que tratam dessa investigação atualmente estão nos Arquivos Apostólicos do Vaticano e também não dão detalhes sobre as acusações específicas atribuídas a João. Felizmente chegaram até nós alguns dos aconselhamentos ou opiniões (consilia) dados pelo jurista Oldrado da Ponte a respeito de alguns casos de quando atuou na corte papal de Avinhão. Oldrado comentou esse processo e, graças a ele, sabemos que algumas das acusações atribuídas a João de Pathernay envolviam o recurso aos sortilégios (sortilegia) e às poções de amor (pocula amatoria). Ver: Fontoura (2020).
  • 5
    Ver nota 1, cf. supra.
  • 6
    Entre 1920 e 1953, Jules Viard editou o texto em 10 tomos, tendo como base o manuscrito BnF fr. 2813 do século XIV: aqui referenciado como Les grandes chroniques de France. Ed. Jules Viard, v. 9. Paris: Librairie ancienne Honoré Champion, 1937; ver também: Guyot-Bachy e Moeglin (2005, t. 163. p. 385-386).
  • 7
    Apesar de ser bastante provável que a escrita dos acontecimentos de 1323, tanto na Crônica latina quanto nas Grandes crônicas, partiu provavelmente das mesmas fontes, não está claro qual das duas crônicas veio primeiro. Segundo Jules Viard, que editou as Grandes crônicas, os relatos de 1323 são baseados na continuação da Crônica latina de Guilherme de Nangis e são alargados a partir dela. Esta também é a opinião de Hercule Géraud, que editou a Crônica latina. Mais recentemente, Nicholas Watson apostou no contrário: o relato menor, a respeito do monge anônimo de Morigny, da Crônica latina, teria se baseado no relato originalmente maior das Grandes crônicas. Ver, respectivamente: Les grandes chroniques... op. cit. p. II; GÉRAUD, H. De Guillaume de Nangis... op. cit. p. 29; e Watson (1998, p. 164).
  • 8
    Les grandes chroniques... op. cit. p. 24. Uma tradução parcial desse texto, para o inglês, pode ser encontrada em: Watson (1998, p. 164). Trad. livre do autor: “par sa curiosité et par son orgueil voult susciter et renouveller une hérésie et sorcerie condampnée, qui est nommée en latin Ars notoria, et avoit pensé à lui baillier autre titre et autre nom”.
  • 9
    Idem. Trad. livre do autor: “puis doivent estre regardées à certain temps faiz en jeunes et en oroisons; et ainsi, après le regart estoit espandue science, laquelle en ce regart on vouloit avoir et acquérir”.
  • 10
    Idem. Trad. livre do autor: “Il convenoit que on nommiast et appellast aucuns noms mescogneus, lesquiex noms on creoit fermement que c’estoient noms de deables; pourquoy pluseurs celle science decevoit et estoient deceuz; car nul n’avoit onques esté usant de celle science que aucun bien ou aucun fruit [fait] en eust raporté”.
  • 11
    Suma teológica, II-II. Q. 96, a. 1 (leia-se parte II de II, questão 96, artigo 1). Ver: Aquino (2012, p. 472). Trad. livre do autor: “[ars notoria] illicita est, et inefficax”.
  • 12
    Les grandes chroniques... op. cit. p. 24. Trad. livre do autor: “noient moins ycelui moine reprouvoit ycelle science, ja soit ce qu’il fainsist que la benoite Vierge Marie li fust apparue moult de foiz et aussi come li inspirant la science”.
  • 13
    Ibidem, p. 24-25. Trad. livre do autor: “et pour ce, à l’onneur de li il avoit fait plusseurs ymages peindre en son livre avec plusseurs oroisons et caractères très précieusement de fines couleurs, en disant que la Vierge Marie li avoit tout revelé”.
  • 14
    Ibidem, p. 25. Trad. livre do autor: “et plus, car fussent richesces, honneurs ou délices que on vousist avoir, on l'avoit”.
  • 15
    Idem. Trad. livre do autor: “escrire II fois son nom en ce livre, et faire escrire le livre proprement pour soy, qui estoit cousteuse chose, autrement il ne li vaudroit riens s’il n’en faisoit I escrire à ses couz et à ses despens”.
  • 16
    A instituição responsável pela condenação foi a Faculdade de Teologia da Universidade de Paris. O texto pode ser encontrado em: Chartularium Universitatis Parisiensis. Ed. H. Denifle e A. Châtelain. t. II. Paris: Fratrum Delalain, 1891. p. 274.
  • 17
    Ars Notoria... op. cit. p. 168. Trad. livre do autor: “omnes scientie tam licite quam illicite”.
  • 18
    Trad. livre do autor: “elite forms of magical practice (…) these either made inroads into the official ­curriculum of the schools where these men had trained or existed in a shadowy world that ringed them.”
  • 19
    Ver mais em: Hult (1986, p. 25-64), Huot (1987, p. 39-45) e Minnis (1988).
  • 20
    Ver: Fanger e Watson (2000; 2015).
  • 21
    Liber visionum...op. cit., p. 126. Trad. livre do autor: “ad omnes artes sciendas (...) in hoc libro prepaucis placidisque orationibus, angelorum reuelacione”.
  • 22
    Idem. Trad. livre do autor: “intemerate Dei genitricis virginis Marie visione, apparicione, consolacione et procuracione, secundum operantis merita, breui tempore, subtiliter et indubitanter et mirabiliter edocentur”.
  • 23
    Ibidem, p. 127-128. Trad. livre do autor: “presentem librum qui est de cognicione et adoptione omnium scienciarum et arcium”.
  • 24
    Ibidem, p. 133. Trad. livre do autor: “dixit michi, ‘Petas licenciam studia frequentandi, et cum obtinueris quere quoddam librum qui ars notoria nuncupatur. Et ideo non solum de hac sciencia de qua queritur set de omnibus inuenies veritatem’. Quia sic feci, et obtinui librum diu quesitum”.
  • 25
    Liber visionum... op. cit. p. 137. Trad. livre do autor: “Et cum esse non posset per doctrinam successiuam propter meam paupertatem, et in predicto libro continebatur qualiter ad propositum meum attingere per doctrinam subitaneam potuissem, idcirco, omnibus alijs studijs dimissis, cepi in ipsa frequencius studere, et in tantum studui quod qualiter operari deberem sciui. (...) melius quam potui”.
  • 26
    Ibidem, p. 142. Trad. livre do autor: “Johannes, tu es insipiens et male fecisti. Vide ne amplius facias”.
  • 27
    Ibidem, p. 145. Trad. livre do autor: “Ego, dum quodam mane vigilarem (...) audivi vocem ad aures meas dicentem “Stulte et stulte et stulte”.
  • 28
    Ibidem, p. 145-146. Trad. livre do autor: “e cum pugno acriter verberare, dicens, ‘Tene, quia fecisti et facis que sunt contraria Creatori tuo’. (...) pre nimia pena et dolore quas paciebar excitatus fui”.
  • 29
    Ibidem, p. 133-134. Trad. livre do autor: “Liber enim ille notoria prima facie, scilicet exterius, apparet quod sit sanctus, et omnium librorum pulcherrimus et utilissimus, et eciam sanctissimus”.
  • 30
    Ibidem, p. 126-127. Trad. livre do autor: “intemerata Dei genitrix, virgo Maria (...) mihi (...) quedam miracula ostenderit, me lumine gratie sue illuminando et a laqueis dyaboli subtrahendo”.
  • 31
    Ibidem, p. 127. Trad. livre do autor: “me ab antiquitis meis erroribus (...) dignata est mise[ri]corditer reuocare”.
  • 32
    Ibidem, p. 156. Trad. livre do autor: “sciatis et credatis quod ars notoria est malefica et quod ars presens bonifica”.
  • 33
    Idem. Trad. livre do autor: “salutem et perfectionem tam anime quam corporis omnium audiencium seu legencium et destrucionem inimici”.
  • 34
    Ibidem, p. 150. Trad. livre do autor: “componerem hunc librum pro vtilitate multorum”.
  • 35
    Ver nota 3, cf. supra.
  • 36
    Liber visionum... op. cit. p. 140. Trad. livre do autor: “bis michi reuelatum fuit ab omnibus spiritibus angelicis quod in oracionibus extranee lingue illius libri erat invocacio malignrum spirituum interclausa, ita subtiliter et ingeniose quod nullus de mundo quantumcumque esset subtilis eam percipere potuisset”.
  • 37
    Ibidem, p. 149. Trad. livre do autor: “Orationem que incipit “Excellentissima” conposui dum exercerem artem notoriam post primam visionem”.
  • 38
    Ibidem, p. 127. Trad. livre do autor: “[Et idcirco ego, frater Johannes de Moriginato] a monachus indignus, eiusdem Virginis (...) seruus et (...) humilis”.
  • 39
    Ibidem, p. 130. Trad. livre do autor: “[virginis Marie (...)] proteccione et manu sua [me custodiens]”.
  • 40
    Ibidem, p. 132. Trad. livre do autor: “[in somnis (...)] monachus eris (...) [excitatus fui. Et amirans (...)]”.
  • 41
    BRITISH LIBRARY, Londres. Liber florum celestis doctrine. Additional MS 18027, séc. XIV.
  • 42
    SCHOTTENKLOSTER, Viena. Liber florum celestis docctrine. Codex Scotensis-Vindobonensis 140, séc. XIV, p. 61.
  • 43
    MCMASTER UNIVERSITY LIBRARY, Hamilton. Liber florum celestis doctrine. MS 107, séc. XIV.
  • 44
    Liber visionum... op. cit. p. 133-134. Trad. livre do autor: “quia in eo scriptura debet de diuersis coloribus scribi. In eo sunt pulcherrime figure diuersis coloribus colorate”.
  • 45
    GRAZ UNIVERSITY LIBRARY, Graz. Liber florum celestis doctrine. 680, séc. XIV.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2021
  • Aceito
    12 Maio 2022
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