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O Elemento Conflito na Dramaturgia Moderna e Contemporânea: ferramenta de análise e criação

L’Élément Conflit dans la Dramaturgie Moderne et Contemporaine: un outil d’analyse et de création

RESUMO

Este artigo se debruça sobre o conflito como elemento dramatúrgico, com o objetivo de realizar primeiramente uma revisão bibliográfica sobre esse tema específico, além de mostrar sua presença e relevância não somente em obras dramáticas mais tradicionais como também em dramaturgias de maior ruptura com o cânone dramático nas quais se destacam a epicização e/ou o lirismo. Propõe-se também pensar o conflito como ferramenta de análise e de criação a partir do sistema de divisão em pulsões (intersubjetivo, intrassubjetivo e extrassubjetivo) e em eixos (intraficcional e extraficcional) que se intercambiam.

Palavras-chave:
Teatro; Drama; Dramaturgia Moderna; Dramaturgia Contemporânea; Conflito

RÉSUMÉ

Cet article se concentre sur le conflit en tant qu’élément dramaturgique, dans le but de réaliser d’abord une revue bibliographique sur ce thèm espécifique, en plus de montrer sa présence et sa pertinence non seulement dans des œuvres dramatiques plus traditionnelles mais aussi dans les dramaturgies de plus grande rupture avec le dramatique canon où ressortent épicisation et/ou lyrisme. Il est également proposé de penser le conflit comme un outil d’analyse et de création basé sur le système de découpage en pulsions (intersubjectif, intrasubjectif et extrasubjectif) et en axes (intrafictionnel et extrafictionnel), qui sont interchangeables.

Mots-clés:
Théâtre; Drame; Dramaturgie Moderne; Dramaturgie Contemporaine; Conflit

ABSTRACT

This article focuses on conflict as a dramaturgical element, with the objective of firstly performing a bibliographic review on this specific theme, besides showing its presence and relevance not only in more traditional dramatic works but also in dramaturgies of greater rupture from the dramatic canon in which epicization and/or lyricism stand out. It also proposes to consider conflict as a tool for analysis and creation based on the system of division into drives (intersubjective, extrasubjective and intrasubjective) and axes (intrafictional and extrafictional) that interchange.

Keywords:
Theatre; Drama; Modern Dramaturgy; Contemporary Dramaturgy; Conflict

Introdução

O propósito do presente artigo1 1 O artigo é um recorte da monografia A dramaturgia sob a lente do conflito: uma perspectiva não-teleológica (Barros, 2020). é realizar primeiramente uma revisão bibliográfica sobre o elemento ‘conflito’ nas práticas dramatúrgicas moderno-contemporâneas visando mapear e contrapor diferentes visões teóricas. Trata-se de um conjunto de discussões em torno da dramaturgia que há décadas vêm assinalando como essa instância se flexibilizou/transformou e, ainda assim, continua central, a depender do que se entende como ‘conflito’ no sentido de dimensão propulsora das obras. Para essa revisão, fez-se necessário também abordar os principais autores que analisaram as transformações no drama desde a virada do século XIX até o século XXI. Nesse sentido, destacam-se: os clássicos Teoria do Drama Moderno (2001) e Teoria do Drama Burguês (2004) de Peter Szondi; O Futuro do Drama (2002), de Jean-Pierre Sarrazac, Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo (2013), de Sarrazac e seus coautores2 2 A obra Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo conta com organização de Jean-Pierre Sarrazac, co-organização de Catherine Naugrette, Hélène Kuntz, Mireille Losco e David Lescott e inclui os seguintes autores: Florence Baillet; Laurence Barbolosi; Jean-Louis Besson; Cleménce Bouzitat; Joseph Danan; Laurent Gaudé; Kerstin Hausbei; Céline Hersant; François Heulot; Geneviève Jolly; Hélène Kuntz; Patrick Leroux; David Lescot; Mireille Losco; Martin Mégevand; Tania Moguilevskaia; Alexandra Moreira da Silva; Catherine Naugrette; Muriel Plana; Jean-Loup Riviere; Arnaud Rykner; Jean-Pierre Ryngaert; Jean-Pierre Sarrazac; Catherine Treilhou-Balaudé. ; Introdução à dramaturgia (1988), de Renata Pallottini; Dicionário de Teatro (2008), de Patrice Pavis; An Anatomy of Drama (Uma anatomia do drama) (1978), de Martin Esslin; Introdução às Grandes Teorias do Teatro (2003) e A Linguagem da Encenação Teatral, de Jean-Jacques Roubine (1998)ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.; A ação do lírico na dramaturgia contemporânea (2015) e O drama lírico (1981), de Cleise Mendes; Conflitos estruturais no texto pós-dramático: reflexões sobre o deslocamento do conflito dramático na teatralidade performativa e sua aplicação na dramaturgia brasileira (2010), de Stephan Baumgärtel; a tese de doutorado de João Sanches, intitulada Dramaturgias de desvio: recorrências em textos encenados no Brasil entre 1995 e 2015 (2016); e artigo recente de Paulo Ricardo Berton, Aline de Fátima Pereira e Waleska Georgiana de Oliveira, intitulado O conflito como o fundamento do drama (2019).

Entre esses autores fundamentais da teoria do drama, que encampam diretamente o elemento conflito, há aqueles que dispõem de uma visão mais teleológica, a partir da qual esse conflito na dramaturgia modernocontemporânea tende a perder a importância ou mesmo desaparecer. Cabe apontar ainda outros teóricos que defendem que o conflito prossegue como aspecto crucial da dramaturgia, embora tenha mudado de tipo. Ao concordarmos com esse segundo grupo e considerarmos a intersubjetividade – relação entre indivíduos – como apenas uma possibilidade de tipo de conflito,

compreendemos que, além de o conflito continuar um elemento essencial, este pode ser seccionado em três pulsões distintas: a intersubjetiva (oposição clássica entre sujeitos-personagens), a intrassubjetiva (tensões do indivíduo em relação consigo mesmo) e extrassubjetiva (tensões do indivíduo com o meio em que vive, questões sociais, culturais, ambientais etc.). Também identificamos dois eixos operacionais nos quais tais pulsões se intercambiam ou se retroalimentam: o intraficcional e o extraficcional. Desse modo, sem a pretensão de criarmos teorização inédita sobre o assunto, exploramos como o elemento conflito pode operar como uma ferramenta útil tanto para a análise de obras como para a criação cenico-dramatúrgica.

As transformações na dramaturgia no século XX

A partir do Renascimento, especialmente no final do século XV, observa-se o forte interesse de intelectuais da época pela tradução e interpretação da obra A Poética, de Aristóteles, cujo fenômeno chamado de “aristotelismo” (Roubine, 2003, p. 10ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.), aos poucos, contribuiu para a fixação/canonização de um determinado modelo normativo para a prática dramatúrgica e, consequentemente, cênica na Europa e em suas colônias, chegando-se, nos séculos XVIII – XIX, ao paradigma/cânone do “estilo dramático puro” (Szondi, 2001, p. 96SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.). Esse modelo canônico é caracterizado pelos seguintes elementos: unidades de ação, tempo e espaço, comunicação quase exclusivamente feita por meio do diálogo entre os personagens e pelo conflito intersubjetivo como centro da ação dramática, isto é, a oposição de objetivos/desejos entre sujeitos-personagens como o problema disparador de todos os acontecimentos encadeados nas peças.

E com a chamada “crise do drama” (Szondi, 2001, p. 79SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.), no final do século XIX, inicia-se outro processo, também longo, não linear e não absoluto, de ruptura com esse cânone do gênero dramático a partir da exploração de desvios3 3 A noção de ‘desvio’, no sentido adotado aqui, parte de Jean-Pierre Sarrazac (2002) e é aprofundada por João Sanches. De acordo com Sanches, “[...] a noção de desvio seria um desdobramento da noção de distanciamento de Brecht”, sendo que a “[...] diferença entre distanciamento e desvio estaria no fato de que a noção de desvio, aqui proposta, trata especificamente de construções dramatúrgicas nas quais a autorreflexividade se apresenta não apenas por meio de emersões épicas” (Sanches, 2016a, p. 10). épicos e líricos, ora sutis ora mais radicais. Assim, uma das principais transformações na escrita dramática moderno-contemporanea diz respeito justamente à presença e à centralidade do conflito intersubjetivo, que tende a perder foco ou mesmo quase desaparecer com a epicização e o lirismo de grande parte das obras dramatúrgicas que ganharam destaque ao longo século XX. Quando Patrice Pavis, no Dicionário de Teatro, afirma que o conflito “tornou-se a marca registrada do teatro” (Pavis, 2008, p. 67PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.), entende-se o quanto esse elemento foi e ainda é essencial no que compreendemos como dramaturgia e teatro. Semelhante raciocínio pode ser notado quando a autora Renata Pallottini, ao parafrasear Henry A. Jones em seu livro Introdução à Dramaturgia, defende que: “um drama se faz com base em um conflito” (Pallottini, 1988, p. 25PALLOTTINI, Renata. Introdução à Dramaturgia. São Paulo: Ática, 1988.). No entanto, para Pavis, tal relevo que o conflito assume “[...] só se justifica para uma dramaturgia da ação (forma fechada*). Outras formas (a épica*, por exemplo) ou outros teatros (asiáticos) não se caracterizam pela presença do conflito nem da ação*” (Pavis, 2008, p. 67PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.). Nessa perspectiva, é possível dizer que há dramaturgias e manifestações cênicas sem conflito ou, pelo menos, obras literárias dramáticas e peças em que esse elemento não é uma característica marcante/determinante. Cabe ressaltar ainda que Pavis (2008, p. 173)PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. se refere à “forma fechada” como aquela que “extrai a maioria de suas características do teatro clássico europeu”, a qual está, portanto, ligada ao que Szondi (2001, p. 96)SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001., em Teoria do Drama Moderno, aponta como “estilo dramático puro”. Nesse modelo, o conflito é um elemento fundamental, assimilado na sua dimensão interpessoal, isto é, como oposição entre sujeitos/personagens. Nas palavras de Szondi (2001, p. 70)SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001., “o drama do classicismo havia tomado por tema os conflitos da relação intersubjetiva”.

O modelo do drama puro e a visão teleológica do conflito

A partir da noção de que a teleologia constitui uma ciência que estuda os fins, o presente artigo parte da busca por uma perspectiva não-teleológica do conflito na dramaturgia, justamente para propor um entendimento de não-fim, ou um estudo sobre o não-fim do conflito. Logo, defender uma perspectiva não-teleológica sobre o conflito na dramaturgia, ou seja, aquela que pressupõe o seu não-desaparecimento, implica que também existam concepções em certa medida teleológicas sobre esse elemento. De fato, existem autores4 4 Como Peter Szondi (2001) e Jean Pierre Sarrazac (2002), por exemplo. que se referem a um suposto desaparecimento do conflito no decorrer das transformações do drama ao longo do século XX. Ao mesmo tempo, afirmar que há perspectivas que consideram o fim de algo (um certo modelo dramatúrgico caracterizado pelo conflito, nesse caso) significa que esse algo em determinado momento surgiu, nasceu ou foi instaurado de alguma forma. Contextualizar, então, tais visões na busca por uma perspectiva não-teleológica do conflito nos trará mais entendimentos acerca da dramaturgia e do conflito como um de seus elementos.

Um possível início para essa contextualização transcorre no que Peter Szondi explica como “drama moderno”, isto é, quando há uma transição “do estilo dramático puro para o contraditório” (Szondi, 2001, p. 96SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.), em um processo gradual de rupturas com um certo modelo dramático e, portanto, cênico, que se estabeleceu paulatinamente na Europa (contexto erudito) ao longo da Era Moderna5 5 Período que vai do final do século XV ao século XIX. . Tal processo de rupturas tem o seu início observado por Szondi entre as últimas décadas do século XIX e o início do século XX, período chamado de crise do drama pelo autor.

Entre as características que definem o drama puro, segundo Szondi, destacam-se: o fato de o drama ser absoluto, significando que sua realidade é fechada, sem que se tome consciência do que é externo ao contexto da obra; a impressão de ausência do dramaturgo, havendo, assim, apenas as vozes das personagens se comunicando por meio de diálogos; a qualidade primária do drama, que consiste no fato de que o drama representa somente a si mesmo, ao invés de um fato histórico, por exemplo; o drama ocorrer sempre no presente, desse modo isento de lapsos temporais. No entanto, o ponto talvez mais ressaltado por Szondi quanto ao drama diz respeito à intersubjetividade e, consequentemente, aos diálogos. Segundo o autor, a totalidade do drama se desenvolve “[...] mediante a superação, sempre efetivada e sempre novamente destruída, da dialética intersubjetiva, que no diálogo se torna linguagem” (Szondi, 2001, p. 34SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.), sendo o diálogo o suporte do drama.

Ainda sobre a intersubjetividade no drama, Szondi pontua que no drama “a relação intersubjetiva é sempre unidade de oposições que almejam sua superação” (Szondi, 2001, p. 109SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.). Assim, se as relações intersubjetivas no drama implicam na oposição entre as partes envolvidas (unidade de oposições), pode-se inferir que, quando se fala em intersubjetividade no drama, fala-se em conflitos interpessoais, não apenas em quaisquer relações interpessoais, mas naquelas que envolvem oposição e desejo de superação ou, em outras palavras, conflito, no sentido mais tradicional do termo. Cabe considerar, portanto, o conflito interpessoal como uma das características centrais ou características-base do drama clássico. Dessa forma, se a crise do drama e o surgimento, no século XX, do drama moderno e contemporâneo com seus desvios6 6 Noção do dramaturgo e teórico Jean-Pierre Sarrazac (2012), a ser melhor explorada a seguir. épicos e líricos suscitam mudanças nos elementos que compõem o drama, busca-se entender o que ocorre com o comportamento do conflito como elemento dramatúrgico nesse contexto.

O paradigma dramático que dominou a arte teatral no contexto europeu erudito e que tem foco na intersubjetividade, bem como na realidade fechada (como a forma fechada também descrita por Pavis e exposta anteriormente), está ligado a certa lógica de imitação fiel da vida, visando alcançar o nível máximo de verossimilhança na representação dramática e cênica. Tanto o realismo quanto o naturalismo caracterizam-se, como os próprios termos sugerem, por essa busca mimética, sendo as principais diferenças entre os dois movimentos, segundo Esslin, a radicalidade nesse esforço e o fato de que “[...] realismo é um termo descritivo inventado pelos críticos, enquanto que naturalismo foi o lema programático de uma escola” (Esslin, 1978, p. 65ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.).

É importante levar em conta, como preâmbulo, que essa busca/questão da verossimilhança não era exatamente uma novidade trazida pelo movimento realista-naturalista. A partir do Renascimento, no entanto, há um resgate do modelo teatral greco-romano, tomando-se como referência para a práxis teatral não somente obras dramatúrgicas antigas que sobreviveram aos séculos, mas também pela interpretação dos escritos teóricos de Aristóteles e Horácio resgatados pelos intelectuais da Era Moderna. Assim, especialmente a partir da Poética de Aristóteles e das peças escritas que chegaram parcialmente ou integralmente intactas aos séculos XV-XVI, iniciou-se um processo de canonização de Aristóteles – o qual Roubine (2003, p. 10)ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. chama de “aristotelismo” –, que, aos poucos, fixou um modelo normativo para a prática dramatúrgica e cênica europeia, cujo ápice se deu no século XIX, chegando-se ao chamado drama absoluto ou puro (Szondi), em que a eliminação dos aspectos épicos e líricos e o conceito aristotélico de mimese (interpretado como imitação da realidade) são centrais e interligados.

Vale destacar que esse modelo normativo não corresponde às características da prática cênico-dramatúrgica grega do qual partiu (século V-IV a.C.) como referência, uma vez que esta apresentava aspectos épicos e líricos, eliminados do drama puro/absoluto a partir de um processo lento e gradual, tendo em vista que o teatro renascentista e o barroco também apresentam aspectos épicos e líricos, posteriormente suprimidos. Além disso, os gêneros populares e os teatros não-europeus coexistentes no mesmo período histórico não correspondiam a esse modelo dramático, que predominou no contexto cultural erudito europeu.

Desse modo, é somente entre os séculos XVIII e XIX, com o classicismo francês, e especialmente com o drama burguês (romantismo e realismonaturalismo), que se atesta uma maior cristalização, o ápice da normatização dramática. Nesse sentido, tendo como base a interpretação (ou superinterpretação7 7 Sobre a crítica ao pensamento clássico e sua interpretação da mimeses aristotélica, ver Ramos (2015). ) de Aristóteles, no campo da dramaturgia, pode-se identificar como paradigma central a busca por um certo tipo de relação arte-vida imitativa, isto é, a representação teatral almejada como imitação da vida. Nas suas palavras: “O aristotelismo francês é indubitavelmente uma tentativa para instaurar, de maneira coerente e sistemática, um realismo no teatro” (Roubine, 2003, p. 24ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.). No entanto, na doutrina clássica dos séculos XVII-XVIII havia outros princípios estéticos que impediam a realização plena desse objetivo mimético, tais como: a beleza (necessidade de métrica/versificação/declamação) e o decoro (moral que impedia que certos acontecimentos/ações fossem representados no palco).

Nessa perspectiva, o movimento romântico deu um significativo passo rumo ao realismo mais integral, não só questionando a cláusula dos Estados8 8 Postulado inventado pelos doutos da doutrina clássica que estabelecia que somente personagens da nobreza (reis, príncipes, duques, condes e etc.) deveriam ser protagonistas das tragédias. ao colocar burgueses como foco central em cena, na defesa pelos diálogos em prosa e não em verso e também pela inserção de aspectos considerados grotescos e/ou imorais, isto é, defesa da representação cênicodramatúrgica de aspectos da realidade vistos como impróprios. E, nessa conjuntura, destacam-se Lessing9 9 Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781). Filósofo, poeta, crítico de arte e dramaturgo francês. Um de seus escritos teóricos mais importantes é a obra Dramaturgia de Hamburgo, e as suas peças principais são Minna von Barnhelm, Emília Galotti e Natan, o Sábio. , Diderot10 10 Denis Diderot (1713-1784). Filósofo, escritor e dramaturgo francês. Dentre seus textos teóricos conhecidos estão: Paradoxo sobre o comediante e Conversas sobre o filho natural. Principais peças: O Filho Natural e O Pai de Família. e Victor Hugo11 11 Victor-Marie Hugo (1802-1885). Poeta, romancista e dramaturgo francês. Entre suas principais obras estão os romances Os Miseráveis e Notre-Dame de Paris (popularmente conhecido como O Corcunda de Notre-Dame), as peças teatrais Cromwell, Hernani, Ruy Blas e Torquemada, além de seu manifesto teórico Do grotesco e do sublime. – mencionados por Peter Szondi (2004)SZONDI, Peter. Teoria do drama burgues [século XVIII]. São Paulo: Cosac Naify, 2004. em Teoria do drama Burguês – cujos escritos teóricos e dramaturgia contribuíram para um certo progresso do realismo cênico em termos de cópia da realidade. O Realismo avançou ainda mais na busca pela imitação perfeita ao romper com a forte idealização ainda presente no Romantismo, com seus personagens ainda muito maniqueístas (ou muito bons ou maus) e finais cheios de golpes de teatro, ou seja, personagens e enredo ainda um tanto quanto inverossímeis.

Entre os autores dramáticos de relevo no final do século XIX e início do século XX e que são referência na estética realista-naturalista estão: Ibsen, Tchekhov e Strindberg. Não por acaso, a obra icônica desses dramaturgos é um dos ápices do ideal realismo-naturalismo, configurando um dos melhores exemplos de representação da realidade via estrutura dramática e, ao mesmo tempo, o canto do cisne (começo do fim) do modelo dramático puro, já que é possível observar, nessas obras, transbordamentos líricos e épicos, alguns dos quais Szondi comenta ao classificá-las como crise do drama.

O norueguês Ibsen é considerado o pai do Realismo por dispor de uma obra efetivamente icônica no efeito de real, embora tenha escrito também peças classificadas como simbolistas. Em sua produção, porém, é possível notar certos aspectos lírico-épicos, pois o presente é sempre desculpa para evocação do passado. Nesse sentido, Szondi (2001, p. 44)SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001. aponta “uma base épica invisível”. As peças principais de Ibsen são Peer Gynt, O Inimigo do Povo; Hedda Gabler; e a famosa Casa de Bonecas. Já Tcheckov, dramaturgo russo, tem a sua obra caracterizada por personagens que vivem no passado e pela recusa da ação, ou seja, o que acontece em cena é nada (aparentemente) ou, quando acontece, não há grandes consequências (encadeamento da ação a partir de um conflito). As suas peças mais conhecidas são: As Três Irmãs, A Gaivota, O Jardim das Cerejeiras e Tio Vânia. E, por último, e não menos importante, temos Strindberg, cuja fase inicial das obras é classificada como realista e, a segunda, como precursora do Expressionismo. Szondi chama essa primeira de “dramaturgia do eu” (Szondi, 2001, p. 123SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.), uma vez que o conflito dramático intersubjetivo dá lugar a conflitos internos das personagens, ou seja, a intersubjetividade cede espaço à intrassubjetividade. De suas obras realistas, as mais famosas são Senhorita Julia e O Pai.

As obras naturalistas de Strindberg, Ibsen e Tchekhov, todavia, não são as únicas nas quais Szondi evidencia mudanças sutis com o intuito de mostrar como divergem do drama puro. Um exemplo disso é quando Szondi comenta a obra naturalista Os Tecelões, de Gerhart Hauptmann:

Desse modo, a descrição épica das condições de vida dos tecelões parece – como motivação da revolta – ser capaz de dramatização. Porém a própria ação não é dramática. Até uma certa cena do último ato, a revolta dos tecelões carece do conflito intersubjetivo; ela não se desenvolve no medium do diálogo (como no Wallenstein, de Schiller), antes se situa, ímpeto de desesperados que é, além do diálogo e, por esse motivo, não pode ser senão o seu tema. Assim, a obra volta a reincidir no épico (Szondi, 2001, p. 81SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.).

Nota-se, na citação acima, que Szondi diferencia as formas épica e dramática partindo do comportamento do conflito, que, no caso da peça de

Hauptmann, não aparece em caráter intersubjetivo por grande parte da obra. Assim, o elemento conflito é tomado como uma interessante ferramenta para se analisar possíveis desvios da forma dramática pura em uma determinada obra literária. Como já comentado, Szondi recorre a três pontos principais para definir o drama puro: “fato (1) presente (2) intersubjetividade (3)” (Szondi, 2001, p. 91SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.), e usa esses pontos como eixos comparativos para determinar a crise do drama, constantemente mencionando o conflito através do eixo comparativo da intersubjetividade. Os demais eixos comparativos usados por Szondi podem ser mais bem observados no seguinte trecho, no qual o autor compara Ibsen, Tchekhov e Strindberg:

Em Ibsen, o passado domina no lugar do presente. Não é temático um acontecimento passado, mas o próprio passado, na medida em que é lembrado e continua a repercutir no íntimo. Desse modo, o elemento intersubjetivo é substituído pelo intrasubjetivo. Nos dramas de Tchékhov, a vida ativa no presente cede à vida onírica na lembrança e na utopia. O fato tornase acessório, e o diálogo, a forma de expressão intersubjetiva, converte-se em receptáculo de reflexões monológicas. Nas obras de Strindberg, o intersubjetivo ou é suprimido ou é visto através da lente subjetiva de um eu central (Szondi, 2001, p. 91SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.).

No trecho exposto, mesmo que Szondi não se refira exclusivamente ao conflito, fica explícita a ideia de que a intrassubjetividade está presente, de forma diferente, tanto nas obras de Strindberg como nas de Tchekhov e de Ibsen, autores icônicos do realismo-naturalismo que estavam focados na tentativa de representar fielmente o real. Como sabemos, a realidade possui aspectos e camadas que não se restringem somente a conflitos de ordem intersubjetiva representados em diálogos. Logo, não é de se surpreender que justamente nesses autores, que se destacaram por sua capacidade de espelhamento da realidade, a crise dessa mesma forma se evidencie por meio de erupções de intra e extrassubjetividade articuladas ao universo intersubjetivo, ou seja, encampando aspectos internos, psicológicos das personagens, além de questões relacionadas à macroestrutura socioeconômica. Também não é por acaso que tais autores tenham parte de sua obra classificada como pioneira das seguintes correntes de vanguarda modernista: o Simbolismo e o Expressionismo. Como define Sarrazac (2013, p. 63)SARRAZAC, Jean-Pierre et al. (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2013., tratava-se de uma “encruzilhada naturalista-simbolista”, sendo o Simbolismo “a outra face do naturalismo”. Ambos os movimentos, além de terem o mesmo espírito decadentista do fim do século, operaram fissuras no modelo dramático canônico, apresentando aspectos épicos e líricos que virão a constituir o primeiro capítulo (crise do drama) de um movimento de explosão das estruturas dramáticas (modelo) operado de modo não linear ao longo de todo século XX.

Dramaturgia moderna e contemporânea: novos conflitos

No que diz respeito às transformações no drama ao longo do século XX, Szondi identifica desvios em relação ao drama puro não só nos autores citados por ele (e já mencionados aqui) da chamada crise do drama, mas ainda em obras tidas como tentativas de salvamento12 12 São descritas por Szondi como tentativas de salvamento: o naturalismo (Hauptmann; Strindberg); a peça de conversação (Beckett; Hofmannsthal); a peça de um só ato (Strindberg; Maeterlinck; Hofmannsthal; O'Neill); confinamento e existencialismo (Lorca; Strindberg; Sartre). do drama tradicional e naquelas tidas como tentativas de solução13 13 As tentativas de solução mencionadas por Szondi (2001) são: a dramaturgia do eu (expressionismo: Hasenclever; Sorge; Toller; Kaiser; Brecht); a revista política (Piscator); o teatro épico (Brecht); a montagem (Bruckner); o jogo de impossibilidade do drama (Pirandello); o monólogo interior (O'Neill); o eu-épico como diretor de cena (Wilder); o jogo do tempo (Wilder) e a reminiscência (Miller). ; sendo que estas últimas constituíram a virada para novas formas, nas quais os recursos épicos, em especial, e também os líricos, avultam com mais evidência. Já as tentativas de salvamento seriam aquelas em que se localiza a manutenção da forma dramática clássica, mas que, mesmo assim, possuem alguns aspectos épicos e líricos sutis. Desse modo, para o autor, o drama novo, próprio do século XX, deriva da mistura, dentro do gênero dramático, de elementos épicos e líricos. Por exemplo, quanto à obra de Gerhart Hauptmann, dentro da categoria das tentativas de salvamento, Szondi afirma que esse drama naturalista “escolhia seus heróis entre as camadas baixas da sociedade” (Szondi, 2001, p. 101SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.). De acordo com a sua visão, essa opção já poderia ser considerada como um aspecto épico, uma vez que o “eu-épico” teria íntima relação com o problema do “meio” (Szondi, 2001, p. 103SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.).

Desse modo, a dramaturgia do naturalismo, em que a forma dramática trata de sobreviver à crise historicamente condicionada, encontra-se desde o princípio no perigo de converter-se em épica por causa da mesma distância face à burguesia que lhe possibilitou, de início, salvar o drama (Szondi, 2001, p. 105SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.).

Outro exemplo interessante de ser mencionado entre as tentativas de salvamento do drama são as peças de conversação, que “[...] giram em torno de questões como o direito de voto para mulheres, amor livre, direito de divórcio, mesalliance14 14 Casamento com pessoa de posição social ‘inferior’. , industrialização e socialismo” (Szondi, 2001, p. 106SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.). Tal definição de Szondi confirma que as peças de conversação, mesmo dentro do padrão canônico, não se limitam ao território da intersubjetividade, uma vez que seus diálogos giram em torno de questões extrassubjetivas – e, por esse motivo, seriam épicas.

Já ao sublinhar as tentativas de solução, Szondi demonstra as fortes tendências épicas em vários dramaturgos das primeiras décadas do século XX, indicando a epicização como solução à forma dramática que entrara em crise desde as últimas décadas do século XIX. Assim, nas tentativas de solução, o épico se torna base da nova dramaturgia moderna, não somente no teatro épico de Brecht, mas também na estratégia do “eu épico como diretor da cena” (Szondi, 2001, p. 156SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.), como em Our Town, de Thornton Wilder (1938), ou em Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello (1921), sobre a qual Szondi afirma: “[...] não é uma obra dramática, mas épica. Como para toda dramática épica, o que normalmente constitui a forma do drama é para ela algo temático” (Szondi, 2001, p. 151SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001.). Jean Pierre Sarrazac, em O Futuro do Drama, igualmente aponta para o aparecimento de “recursos épicos” no drama moderno, referindo-se ao conflito intersubjetivo como “não sendo suficiente para servir de contrapeso à epicização do mundo” (Sarrazac, 2002, p. 15SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Tradução de Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campos das Letras, 2002. Disponível em: https://www.academia.edu/15301564/O_Futuro_do_Drama. Acesso em: 11 fev. 2020.
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).

É importante salientar que Szondi e Sarrazac escreveram sobre as transformações do drama ao longo do século XX, porém nenhum dos dois se aprofundou satisfatoriamente nos aspectos líricos presentes nas obras desse período. Szondi traz uma visão predominantemente teleológica, a qual coloca o drama épico como uma espécie de solução para uma forma dramática em crise, e Sarrazac, apesar de criticar a visão teleológica de Szondi, aponta para o hibridismo das obras dramáticas modernas por ele analisadas com um foco ainda muito direcionado aos desvios épicos dessas obras. Assim, ambos deixam os aspectos líricos em segundo plano, voltando sua atenção prioritariamente aos elementos épicos. Sarrazac e Szondi são os principais autores criticados por Cleise Mendes em seu artigo A ação do lírico na dramaturgia contemporânea, que trata justamente de reconhecer esse esquecimento do lirismo ao enfatizar “[...] o papel do lírico como tendência estruturante das várias instâncias da composição dramatúrgica, no desenho das situações, no singular modo de ação das personagens imersas num processo de subjetivação” (Mendes, 2015, p. 9MENDES, Cleise Furtado. A ação do lírico na dramaturgia contemporânea. Revista aSPAs, São Paulo, USP, v. 5, n. 2, p. 6-15, 2015.).

Assim, em concordância com Mendes (2015)MENDES, Cleise Furtado. A ação do lírico na dramaturgia contemporânea. Revista aSPAs, São Paulo, USP, v. 5, n. 2, p. 6-15, 2015. e Sanches (2016aSANCHES, João Alberto Lima. Dramaturgias de desvio: recorrências em textos encenados no Brasil entre 1995 e 2015. 2016. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2016a.; 2016bSANCHES, João Alberto Lima. Dramaturgias de desvio: um estudo comparativo de textos encenados no Brasil. Pitágoras 500, Campinas, Unicamp, v. 2, n. 10, p. 63-73, 2016b.), compreende-se aqui que os desvios no contexto de transformações no drama no último século não implicam somente transbordamentos épicos, mas também líricos. A nossa hipótese é a de que o drama, quando chega ao seu ápice no realismo/naturalismo, em seu raio-x das questões humanas, acaba entrando em crise, pois transborda tanto em intrassubjetividade como extrassubjetividade, sendo a extrassubjetividade relacionável aos aspectos épicos, e a intrassubjetividade, por sua vez, associável às propriedades líricas. Esse transbordamento das dimensões épicas e líricas se acentua ainda mais na dramaturgia moderna e contemporânea, em sua necessidade de abordar não só conflitos interpessoais, como conflitos de ordem intra e extrassubjetiva, desembocando em uma dramaturgia tanto cheia de epicização como lirismo.

A partir da lógica do “devir rapsódico” e seus “transbordamentos incessantes” (Sarrazac, 2002, p. 103SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Tradução de Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campos das Letras, 2002. Disponível em: https://www.academia.edu/15301564/O_Futuro_do_Drama. Acesso em: 11 fev. 2020.
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)15 15 Em O Futuro do Drama, Jean-Pierre Sarrazac (2002, p. 103) afirma que: “[...] o devir rapsódico procede por transbordamentos incessantes. Do dramático pelo épico ou pelo lírico, é claro. Mas, igualmente, no outro sentido, do épico ou do lírico pelo dramático. No entanto, transbordar não significa aniquilar”. e do conceito de desvio explorado em Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo (Sarrazac, 2013SARRAZAC, Jean-Pierre et al. (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2013.), João Sanches, em sua tese de doutorado, sintetiza os seguintes recursos épicos mais recorrentes na dramaturgia contemporânea:

  • I. Rapsódia: “formas dramáticas ‘híbridas’ (aquelas que utilizam estratégias associadas a diferentes gêneros e subgêneros canônicos) e abertas (aquelas que explicitam estratégias de autorreflexividade, relativização e apelo mais direto à colaboração receptiva)” (Sanches, 2016a, p. 112SANCHES, João Alberto Lima. Dramaturgias de desvio: recorrências em textos encenados no Brasil entre 1995 e 2015. 2016. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2016a.);

  • II. Montagem/colagem: autonomia mais radical entre as partes; uso de materiais diversos (textos, poesias, cenas, improvisos, canções, coreografias, objetos, documentos etc.);

  • III. Metadrama: ruptura do microcosmo; autorreflexividade.

Já quanto aos desvios líricos mais recorrentemente observados na dramaturgia contemporânea, são estes os descritos por Sanches:

  • I. Monodrama: quando a ação apresentada na obra é uma projeção da mente, do inconsciente, da subjetividade de uma personagem, ou do autor;

  • II. Poema dramático: “os aspectos formais dessas obras são determinados por seus conteúdos líricos (sentimentos, pensamentos, sonhos e memórias), e não por um esquema actancial [...] um poema dramático não seria um tipo de drama – ele seria uma forma lírica com emersões dramáticas” (Sanches, 2016a, p. 199SANCHES, João Alberto Lima. Dramaturgias de desvio: recorrências em textos encenados no Brasil entre 1995 e 2015. 2016. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2016a.);

  • III. Ação cíclica: “texto dramático cuja situação/ação dramática central progride circularmente, através de repetições, acumulações e/ou numa dinâmica de movimento espiralado – que não demanda um desfecho definitivo” (Sanches, 2016a, p. 201SANCHES, João Alberto Lima. Dramaturgias de desvio: recorrências em textos encenados no Brasil entre 1995 e 2015. 2016. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2016a.).

Deve-se ressaltar que, ao se mencionar “dramaturgia de desvio” (Sanches, 2016b, p. 65SANCHES, João Alberto Lima. Dramaturgias de desvio: um estudo comparativo de textos encenados no Brasil. Pitágoras 500, Campinas, Unicamp, v. 2, n. 10, p. 63-73, 2016b.), usa-se como referência o estilo dramático puro ao qual Szondi se refere, mas ao mesmo tempo é importante considerar que esse modelo ideal não chega a ser inteiramente contemplado por nenhuma obra dramatúrgica. Isso porque se deve levar em consideração a natureza acanônica das obras artísticas, como defende João Sanches: “A afirmação de que o drama seria acanônico por natureza procura destacar a liberdade formal que os artistas desde sempre experimentaram, a despeito dos valores majoritários, predominantes nas produções reconhecidas de determinadas culturas, ou períodos históricos” (Sanches, 2016a, p. 22SANCHES, João Alberto Lima. Dramaturgias de desvio: recorrências em textos encenados no Brasil entre 1995 e 2015. 2016. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2016a.).

Perante desvios épicos e líricos, diferentes autores apontam para um desaparecimento ou um desmembramento do conflito na dramaturgia. Nesse sentido, a dramaturga e teórica Cleise Mendes, ao comentar a respeito da possibilidade de miscigenação lírico-dramática na recente produção dramatúrgica, afirma:

São elementos comuns a boa parte dessa produção o predomínio da função poética sobre a referencialidade; a fragmentação do diálogo cotidiano em emissões que parecem surgir aleatoriamente, aos poucos permitindo a eclosão de sentidos e terminando por alcançar um efeito curioso a partir de réplicas esparsas, silêncios ou vozes paralelas; a permanência das situações como que suspensas no tempo e no espaço, sem progressão dramática; o processo de subjetivação que isola as personagens, dissolve o clássico conflito e transforma suas enunciações em feixes de monólogos ou fluxos de reminiscências, fazendo que a linguagem adquira inequívoca forca lírica (Mendes, 2015, p. 10MENDES, Cleise Furtado. A ação do lírico na dramaturgia contemporânea. Revista aSPAs, São Paulo, USP, v. 5, n. 2, p. 6-15, 2015.).

A autora menciona uma dissolução do clássico conflito associada ao isolamento das personagens e ao desaparecimento dos diálogos dando lugar a (feixes de) monólogos, apresentando uma visão semelhante à de Sarrazac (2002, p. 14)SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Tradução de Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campos das Letras, 2002. Disponível em: https://www.academia.edu/15301564/O_Futuro_do_Drama. Acesso em: 11 fev. 2020.
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, que fala no “desvanecimento do conflito” na produção dramatúrgica moderno-contemporânea. É interessante perceber que, por usar a expressão clássico conflito, Mendes não elimina totalmente a possibilidade de conflitos de outros tipos. Entende-se que essa intersubjetividade, comum ao drama, não é predominante na forma lírica e acaba por dar lugar à intrassubjetividade. No entanto, a não-predominância da intersubjetividade em uma determinada obra apenas indica que a intersubjetividade não é a pulsão ali dominante, o que não significa que não possam existir nela conflitos de tipo intrapessoal, mesmo que apareçam de forma mais sutil ou secundária.

Quanto a definições de conflito, O Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo contém a seguinte descrição:

A partir de seu sentido etimológico – o de ‘choque’ –, o termo ‘conflito’ ampliou-se. Não designa mais apenas o instante preciso da colisão, mas mais genericamente toda situação que coloque em cena duas entidades antagônicas – dois indivíduos, mas também dois países em guerra ou dois desejos no seio de uma mesma consciência –, seja o choque real ou subterrâneo. Essa riqueza é primordial. Dramaturgicamente, falar de conflito é remeter à noção de ‘colisão’ dramática, oriunda dos Cursos de estética de Hegel. A própria ideia de colisão remete a um teatro da ação* no qual o desenrolar da fábula acompanha as diferentes etapas de uma luta. Nesse sentido, a história da noção dramatúrgica de conflito seria a de um lento desaparecimento, acompanhando a erosão da ação dramática. Entretanto, se entendermos o termo conflito em seu sentido mais amplo, parece de fato que as escritas modernas e contemporâneas continuam a se alimentar de tensões, oposições e lutas (Gaudé; Kuntz; Lescot, 2013, p. 41GAUDÉ, Laurent; KUNTZ, Hélène; LESCOT, David. Conflito. In: SARRA-ZAC, Jean-Pierre et al. (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2013.).

A definição acima não desconsidera completamente uma noção mais tradicional do termo, mas reconhece não dar conta de tudo o que abrange, à medida que as próprias formas de se pensar e fazer teatro se ampliam. Ou seja, reconhece-se que existe uma noção primeira de conflito ligada à etimologia da palavra e também à lógica da forma fechada, ou do teatro da ação, como expõem os autores, mas, ao mesmo tempo, abre-se espaço para entender que o conflito pode existir em sentido ampliado, reconhecendo tensões, oposições e lutas como possíveis territórios de conflito que alimentem escritas modernas e contemporâneas. É possível pensar, inclusive, que essas tensões, oposições e lutas não se limitam apenas à escrita dramatúrgica, visto que mesmo processos teatrais, os quais não necessariamente tenham o texto como primeira camada da dramaturgia, ainda assim podem, em seu discurso/temática/poesia, alimentar-se desses sentidos mais amplos de conflito.

Em um artigo mais recente, Paulo Ricardo Berton, Aline de Fátima Pereira e Waleska Georgiana de Oliveira (2019, p. 278)BERTON, Paulo Ricardo; PEREIRA, Aline de Fátima; OLIVEIRA, Waleska Georgiana de. O conflito como o fundamento do drama. Dramaturgias, Brasília, UnB, v. 11, ano 4, p. 274-293, 2019. discorrem sobre ”a persistência da estrutura dramática nos dias atuais e a sustentação dessas estruturas através do conflito”, aplicando a ideia do conflito como “fundamento do drama” na análise da dramaturgia de filmes de animação, filmes de suspense e telenovelas. Os autores defendem que “[...] a importância do conflito está no fato de ser a partir dele, ou em decorrência dele, que ocorre a progressão da estrutura dramática, da narrativa e o consequente envolvimento do público” (Berton; Pereira; Oliveira, 2019, p. 278BERTON, Paulo Ricardo; PEREIRA, Aline de Fátima; OLIVEIRA, Waleska Georgiana de. O conflito como o fundamento do drama. Dramaturgias, Brasília, UnB, v. 11, ano 4, p. 274-293, 2019.), mostrando o conflito como uma ferramenta de captação da atenção do espectador. A partir do que é exposto pelos autores, é possível entender como o conflito segue presente na contemporaneidade por meio de estruturas dramáticas em filmes e telenovelas, por exemplo. Mas o que pode ser dito nesse sentido sobre estruturas menos tradicionalmente dramáticas? O conflito desaparece, estilhaça-se, desloca-se? Existiriam outros tipos de conflito distintos daquele tido como clássico, associado ao território da intersubjetividade?

Nessa linha, existiriam pelo menos dois caminhos possíveis ao se investigar a presença do conflito em outras obras menos próximas ao cânone tradicional. Um deles é o de entender que o conflito interpessoal pode desaparecer do contexto geral que move a dramaturgia, mas muitas vezes continuar presente de modo secundário, por meio de microconflitos. Esse parece ser o caso da peça Iphigénie Hôtel, mencionada por Sarrazac em O Futuro do Drama, na qual há um contexto geral extrassubjetivo movendo a ação, ao mesmo tempo que a peça é recheada de microconflitos interpessoais, que não se interligam diretamente em uma trama coesa. Portanto, mesmo o conflito clássico pode ainda estar presente em obras que investem nos elementos épico-líricos. O fato de uma obra poder conter múltiplos conflitos interpessoais não necessariamente significa que a sua ação geral seja movida predominantemente pela pulsão intersubjetiva.

Partindo-se do pressuposto de que há sempre um ou mais conflitos movendo uma obra dramática em um sentido mais amplo de conflito, outro caminho de investigar o não-desaparecimento do conflito seria o de analisar, em obras cuja base não se dá na intersubjetividade, qual seria a pulsão dominante e, portanto, que tipo de conflito se apresenta como central. Nesse viés, aceita-se a existência de conflitos outros (ou seja, para além de relações interpessoais), a partir dos quais podem ser expressadas formas diferenciadas de tensões, oposições e lutas. Aqui, entende-se que uma luta social ou uma crise interna podem configurar espécies distintas de conflito que não se limitam às relações interpessoais. Um exemplo bastante prático de conflito central em uma obra cuja pulsão dominante não é a intersubjetiva pode ser encontrado na seguinte descrição do que seriam algumas características do drama lírico, no modelo formulado por Cleise Mendes. Nas suas palavras:

O drama lírico é construído sobre o modelo da circularidade. A ação dramática de uma peça como ‘A Espera de Godot’ desenvolve-se num movimento semelhante ao causado por um toque na superfície de um lago: através de círculos concêntricos que se formam a partir de um ponto. O conflito se adensa através de um acúmulo de imagens, por uma expansão do significado que detona logo na primeira impressão; ela não progride no sentido de um futuro, como no drama dramático, antes imita a sugestão de um poema. Através da repetição, do estribilho de perguntas e respostas que se fecham sobre si mesmas, cria-se uma estrutura de ritmo recorrente (Mendes, 1981, p. 65MENDES, Cleise Furtado. O drama lírico. ART Music Review, Salvador, v. 2, n. 2, p. 47-67, jul./set., 1981.).

Nessa perspectiva, entende-se que a construção desse conflito, que pode ser chamado de intrassubjetivo, tende para o surgimento de desvios líricos dentro da forma dramática (drama). Desse modo, o desenvolvimento da ação em obras do tipo descrito por Mendes se daria por uma progressão de acontecimentos pautados não em conflitos interpessoais, mas pelo acúmulo de imagens e outros recursos como a repetição. Desse modo, existem formas de construção de conflito não-interpessoal que permitem dar movimento à obra e trabalhar a expectativa e as emoções do espectador.

À Espera de Godot é uma peça que trabalha bastante em cima da expectativa (Beckett, s. d.BECKETT, Samuel. À espera de Godot. In: BECKETT, Samuel. Teatro de Samuel Beckett. Lisboa: Arcádia, s. d.). Os personagens Vladimir e Estragon passam a peça inteira esperando encontrar aquele que eles chamam de Godot, sem que se deixe explícito, na obra, se Godot é uma pessoa ou uma metáfora. Mesmo que Vladimir e Estragon cheguem ao final da peça sem encontrar Godot, o problema inicial, que consiste na vontade deles de encontrarem Godot versus o fato de Godot ainda não haver chegado ou aparecido, já configura um conflito que leva as personagens a agirem por meio da fala, o que não seria necessário caso não houvesse conflito algum os movendo. Nessa linha, a quase inércia (porém não total, pois uma fala já constitui um tipo de ação) das personagens ainda assim as leva de um ponto A a um ponto B na peça, mesmo estes não configurando um enredo no sentido de ações concatenadas. Porém, no ponto B, sendo esse o ponto final da trama, os protagonistas já foram atravessados pelas diferentes questões levantadas ao longo da obra, recebendo, inclusive, a visita de outras personagens – que, por sua vez, também passam por transformações. Esse movimento de um ponto A a um ponto B, ainda que aparentemente estático, é engendrado por uma questão, a qual pode ser considerada como conflito, apesar de ser outra ordem distinta da interpessoal.

Considerando-se, portanto, a intersubjetividade como apenas um território possível de conflito, propõe-se aqui a pensar no conflito em três pulsões diferentes, sendo elas: intersubjetiva, intrassubjetiva e extrassubjetiva. Nessa perspectiva, entende-se por intersubjetivo o que diz respeito à subjetividade do indivíduo em relação à subjetividade de outro ou outros; por intrassubjetivo aquilo que concerne à subjetividade do indivíduo em relação consigo, em suas contradições e dilemas; por extrassubjetivo, tudo que é externo ao indivíduo (questões sociais, culturais, econômicas etc.), mas que inevitavelmente o atravessa. Logo, entende-se que se a pulsão intersubjetiva tende a se materializar em conflitos interpessoais, é possível pensar nas pulsões intra e extra como indicadores de conflitos de caráter intrapessoal e extrapessoal.

Há autores, no entanto, que abordam suas discussões sobre dramaturgia sem necessariamente partir do conceito de conflito (ao menos não o nomeando dessa forma), inclusive quanto ao teatro dramático. Martin Esslin (1978)ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978., por exemplo, traz a noção de suspense, que, por sua vez, dar-seia na relação entre o conflito do drama apresentado e as reações/emoções do espectador/leitor. Para o autor, o suspense seria o elemento que prende a atenção do espectador/leitor, estimulando a sua expectativa, podendo se dar por meio de conflitos em pulsão intersubjetiva, ou mesmo para além:

O interesse e o suspense não precisam necessariamente ser despertados por recursos de intriga: no início de um balé destituído de enredo a beleza dos primeiros bailarinos pode ser suficiente para despertar interesse, enquanto que as expectativas da plateia quanto à possibilidade de ver toda uma vasta variedade coreográfica fornece suspense suficiente para manter a concentração do público por muito tempo (Esslin, 1978, p. 48ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.).

Quanto ao uso da expressão intriga, Patrice Pavis a define da seguinte forma: “[...] sequência detalhada dos saltos qualitativos da fábula*, o entrelaçamento e a série de conflitos* e obstáculos* e de recursos usados pelas personagens para superá-los” (Pavis, 2008, p. 214PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.). Assim, entende-se a intriga como uma tessitura de ações e conflitos. Os “recursos de intriga” aos quais Esslin se refere, portanto, têm a ver com a organização das ações e conflitos em uma dramaturgia – nesse sentido, dramaturgia estando mais ligada a uma noção de texto dramático –, por isso Esslin atenta para o fato de que nem sempre o suspense depende desses recursos de intriga ligados a essa lógica mais tradicional. Tal colocação do autor já abre algum espaço que indica a possibilidade de expansão de perspectiva para outros elementos sobre o que de fato move a estrutura dramática, não sendo somente a partir do choque de interesses entre personagens/personas.

Para Martin Esslin (1978, p. 51)ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978., “[...] o suspense da ação principal depende da existência de pelo menos duas soluções para o problema principal da peça”. Desse modo, compreendendo-se o conflito em seu sentido amplo, seria justo afirmar que todo problema principal a ser resolvido é um tipo de conflito, uma vez que um problema por si só já caracteriza uma tensão. Isso independe se o problema será resolvido ou não, assim como não está condicionado à pulsão do problema. De todo modo, o elemento suspense, da forma como descrito por Esslin, aparenta ter uma característica híbrida, constituindo algo que parte do microcosmo (o universo interno/intraficcional do drama), mas que é sempre mencionado em diálogo com o macrocosmo (o eixo externo/extraficcional; o público), de forma que está diretamente ligado a esses dois eixos e demonstra a interdependência deles na experiência teatral.

Observemos como Martin Esslin exemplifica o que, na sua visão, seriam espécies de suspense:

E existe um sem-número de espécies de suspense: esse pode estar em uma pergunta como: ‘E agora, o que vai acontecer’, mas igualmente pode estar contido na pergunta: “Eu sei o que vai acontecer, mas como será que vai acontecer?’, ou até mesmo: ‘Eu sei o que vai acontecer e como vai acontecer, mas como será que X vai reagir?’. Ou ele poderá ser também de outro tipo completamente diferente, tal como: ‘O que será que estou vendo acontecer?’, ou ‘Esses acontecimentos parecem formar um esquema qualquer, mas que tipo de esquema será?’ (Esslin, 1978, p. 48ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.).

A forma como Esslin explica o suspense depende tanto do que ocorre no eixo microcósmico (ações internas ao contexto da obra) como das reações do público em relação a esse microcosmo. A relação com o público, o espaço teatral entendido como tal e toda a camada do real para além do que se pode trazer de real dentro do microcosmo de uma obra consistem na camada macrocósmica. Esses eixos micro e macrocósmicos serão aqui chamados tanto dessa forma, como de eixos intraficcionais e extraficcionais, de modo a facilitar posteriores diálogos com mais autores, embora se reconheça desde já que o microcosmo de uma obra dramatúrgica não necessariamente se compõe de elementos ficcionais. A separação entre eixos intra e extraficcionais, ou em camadas micro e macrocósmicas, serve para distinguir, em âmbito teórico, o que é próprio do universo proposto por um espetáculo, por exemplo, do que integra a relação palco-espectador ou palco-sociedade (palco como o lugar onde se apresentam os atores).

Conflito como elemento de análise e criação: pulsões e eixos

Diversos tipos de conflito que se entrecruzam em uma obra podem ser divididos em dois grandes eixos: de ordem intraficcional ou microcósmico (próprio ao universo ficcional/interno da obra); e o extraficcional ou macrocósmico (entre obra e plateia e/ou o contexto político-econômico-social do qual essa obra é fruto e remete em algum nível a). Dentro desses dois eixos, é possível encontrar pulsões de caráter inter, intra e extrassubjetivo, ou seja, interpessoais, entre indivíduos, intrapessoais, internos de cada indivíduo e extrapessoais, entre o indivíduo e a superestrutura político-econômico-social que o rodeia. Leva-se em conta ainda que se entrecruzam, de modo complexo e às vezes até paradoxal, tanto essas pulsões como os eixos intra e extraficcionais. A intersubjetividade, como já visto em Szondi, por exemplo, é a pulsão dominante do gênero dramático, mas um conflito interpessoal depende da intrassubjetividade dos indivíduos/personagens que entram em choque, isto é, questões de ordem interna, do campo psicológico que movem os desejos/necessidades que se chocam, dando origem e justificando o conflito intersubjetivo.

Dessa mesma forma, sempre que houver conflito intraficcional, seja em pulsão majoritariamente intra, inter ou extrassubjetiva, haverá um eixo de conflito extraficcional que consiste nas expectativas e reações do público às ações apresentadas e as correlações várias que se pode fazer com o mundo lá fora. A correlação entre conflitos intra e extraficcionais fica mais evidente por meio da ideia de suspense como descrita por Martin Esslin. Os exemplos de suspense mencionados por Esslin em Uma Anatomia do Drama nada mais são do que a perspectiva do espectador sobre o que há de conflito no microcosmo, evidenciando-se, porém, um constante e coexistente eixo macrocósmico de conflito à medida que o espectador se põe a questionar e a esperar determinados acontecimentos da obra. A expectativa, em contraponto com o não saber o que vai acontecer, caracteriza um eixo macrocósmico, ou extraficcional, de conflito, mas que depende do contexto intraficcional para existir. Os conflitos intraficcionais são parte daquilo que cabe à obra antes de ela ser apresentada para o espectador, mas, a partir do momento em que há público, há um entrelaço unindo as camadas intraficcionais e extraficcionais de conflito, pois os fatores intraficcionais constantes à obra, já contendo conflito, entram em relação com a reação do público, gerando novos conflitos em eixo extraficcional.

Seguindo essa lógica, pode-se considerar o conflito como uma teia por meio da qual coexistem, em codependência, dimensões intra e extraficcionais e pulsões inter, intra e extrassubjetivas, sendo que o eixo e a pulsão dominantes podem variar de obra para obra, como já se viu em relação a tendências dramáticas, épicas e líricas. Essa teia vale tanto para a correlação entre a camada intraficcional e a extraficcional, como para a interdependência das pulsões inter, intra e extrassubjetivas dentro da camada intraficcional, entendendo que a extrassubjetividade pode ser atravessada por questões/pulsões intra e intersubjetivas, assim como a intrassubjetividade por pulsões extra e inter, e a intersubjetividade por pulsões extra e, principalmente, intra. Assim, assumindo-se que o eixo intraficcional de conflito abarca as pulsões intra, inter e extrassubjetivas, também se dá a possibilidade de variações de pulsão também no eixo extraficcional, sendo as dimensões intra e extraficcionais os eixos guarda-chuva que ao mesmo tempo se correlacionam, como exposto no esquema abaixo:

Figura 1
Camadas de conflito em correlação. Fonte: Elaboração dos autores.

Ainda quanto às possibilidades de conflito apresentadas e suas correlações, é interessante pensar na existência de camadas de conflito dentro do universo extraficcional, não só pela noção de suspense de Esslin provocar essa conjugação entre as camadas micro e macrocósmicas, mas principalmente se levarmos em conta o que Stephan Baumgärtel apresenta no trecho a seguir:

Em meados dos anos 90, novas práticas teatrais que não se enquadravam na forma dramática foram analisadas enquanto práticas ‘pós-modernas’ (Pavis), ‘pós-dramáticas’ (Lehmann), ou ‘performativas’ (Féral). Na dramaturgia dramática, o confronto entre a proposta ficcional e a realidade empírica dos espectadores acontece dentro de um contexto representacional, ou seja, sob hegemonia da comunicação intraficcional entre os personagens. Para as referidas dramaturgias novas, o eixo dominante do confronto vem sendo o vetor entre palco e theatron (Baumgärtel, 2010, p. 34BAUMGÄRTEL, Stephan. Conflitos estruturais no texto pós-dramático: reflexões sobre o deslocamento do conflito dramático na teatralidade performativa e sua aplicação na dramaturgia brasileira. In: NAVAS, Cássia; ISAACSSON, Marta; FERNANDES, Sílvia (Org.). Ensaios em cena. São Paulo: Cetera, 2010. P. 34-45.).

Nessa linha de raciocínio, apresenta-se também a possibilidade de obras cuja dominância de conflito não só varia em pulsão (inter, intra e extrassubjetiva), mas migra totalmente de eixo, deslocando-se do universo ficcional e ocorrendo predominantemente no eixo extraficcional, como Baumgärtel sugere ser o caso do chamado teatro performativo. O autor defende que “[...] o deslocamento do conflito do centro dramático (a relação entre personagens) para as diferentes camadas semióticas e os modos de apresentação teatral ajuda a aumentar as possibilidades de interação entre atores e espectadores” (Baumgärtel, 2010, p. 45BAUMGÄRTEL, Stephan. Conflitos estruturais no texto pós-dramático: reflexões sobre o deslocamento do conflito dramático na teatralidade performativa e sua aplicação na dramaturgia brasileira. In: NAVAS, Cássia; ISAACSSON, Marta; FERNANDES, Sílvia (Org.). Ensaios em cena. São Paulo: Cetera, 2010. P. 34-45.).

Ainda a respeito sobre como conflitos se constituem como eixo extraficcional, pode ser levantada a hipótese de conflitos não só no teatro performativo, mas na performance arte. Na performance The Artist is Present, de Marina Abramovic, realizada em 2010, a performer se senta em uma cadeira e permanece imóvel por diversas horas, enquanto os visitantes têm a prerrogativa de se sentarem, um a um, em uma cadeira posicionada em frente a ela pelo tempo que decidirem. A temática da performance em questão não é necessariamente pautada no conflito, mas é possível considerar que a performance, em sua ação estática (o contato visual imóvel), automovimenta-se por meio do conflito entre obra e espectador, significando que a dominância de conflito está no eixo extraficcional. Esse conflito pode se dar de diferentes formas: na expectativa de ação – de que algo aconteça a partir daquela ação estática (pulsão intersubjetiva; questionamento direto de espectador para obra); no questionamento do que uma obra de arte deva ser, o que pode até resultar em uma resposta negativa do espectador, por não considerar aquilo uma obra de arte (pulsão extrassubjetiva; o questionamento para além da obra, como o que é arte?); na expectativa de entender o que a obra está comunicando (pulsão intrassubjetiva; questionamento do espectador consigo).

Por fim, essas breves menções/indicações de conflito no teatro performativo ou na performance-arte contribuem no sentido de indicar possíveis caminhos de análise a partir daqui. Vimos, a partir da revisão bibliográfica e da contextualização apresentadas ao longo do presente artigo, que o conflito não desaparece, mas se flexibiliza, desloca-se e pode ser observado em diferentes pulsões (intersubjetiva, intrassubjetiva e intersubjetiva) e eixos (intraficcional e extraficcional). Não é uma novidade identificar que a relevância do elemento conflito não se anula quando falamos em dramaturgias épicas e líricas, ou apontar a existência de diferentes tipos de conflito. Portanto, o que fizemos aqui foi uma reflexão a partir dos autores que se debruçaram sobre essa questão específica, visando abrir caminhos para análise e criação de obras dramatúrgicas, tendo como fio condutor a categoria conflito. De mesmo modo, acreditamos que esta análise aporte novas discussões acerca do conflito como elemento dramatúrgico, oferecendo noções que dialoguem com a extensa variedade de práticas teatrais na contemporaneidade.

Notas

  • 1
    O artigo é um recorte da monografia A dramaturgia sob a lente do conflito: uma perspectiva não-teleológica (Barros, 2020BARROS, João Pedro Ricken Lopes de. A dramaturgia sob a lente do conflito: uma perspectiva não-teleológica. 2020. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Cênicas) – Universidade de Brasília, Brasília, 2020.).
  • 2
    A obra Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo conta com organização de Jean-Pierre Sarrazac, co-organização de Catherine Naugrette, Hélène Kuntz, Mireille Losco e David Lescott e inclui os seguintes autores: Florence Baillet; Laurence Barbolosi; Jean-Louis Besson; Cleménce Bouzitat; Joseph Danan; Laurent Gaudé; Kerstin Hausbei; Céline Hersant; François Heulot; Geneviève Jolly; Hélène Kuntz; Patrick Leroux; David Lescot; Mireille Losco; Martin Mégevand; Tania Moguilevskaia; Alexandra Moreira da Silva; Catherine Naugrette; Muriel Plana; Jean-Loup Riviere; Arnaud Rykner; Jean-Pierre Ryngaert; Jean-Pierre Sarrazac; Catherine Treilhou-Balaudé.
  • 3
    A noção de ‘desvio’, no sentido adotado aqui, parte de Jean-Pierre Sarrazac (2002)SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Tradução de Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campos das Letras, 2002. Disponível em: https://www.academia.edu/15301564/O_Futuro_do_Drama. Acesso em: 11 fev. 2020.
    https://www.academia.edu/15301564/O_Futu...
    e é aprofundada por João Sanches. De acordo com Sanches, “[...] a noção de desvio seria um desdobramento da noção de distanciamento de Brecht”, sendo que a “[...] diferença entre distanciamento e desvio estaria no fato de que a noção de desvio, aqui proposta, trata especificamente de construções dramatúrgicas nas quais a autorreflexividade se apresenta não apenas por meio de emersões épicas” (Sanches, 2016a, p. 10SANCHES, João Alberto Lima. Dramaturgias de desvio: recorrências em textos encenados no Brasil entre 1995 e 2015. 2016. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2016a.).
  • 4
    Como Peter Szondi (2001)SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001. e Jean Pierre Sarrazac (2002)SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Tradução de Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campos das Letras, 2002. Disponível em: https://www.academia.edu/15301564/O_Futuro_do_Drama. Acesso em: 11 fev. 2020.
    https://www.academia.edu/15301564/O_Futu...
    , por exemplo.
  • 5
    Período que vai do final do século XV ao século XIX.
  • 6
    Noção do dramaturgo e teórico Jean-Pierre Sarrazac (2012), a ser melhor explorada a seguir.
  • 7
    Sobre a crítica ao pensamento clássico e sua interpretação da mimeses aristotélica, ver Ramos (2015)RAMOS, Luiz Fernando. Mimesis Performativa: a margem de invenção possível. São Paulo: Annablume, 2015..
  • 8
    Postulado inventado pelos doutos da doutrina clássica que estabelecia que somente personagens da nobreza (reis, príncipes, duques, condes e etc.) deveriam ser protagonistas das tragédias.
  • 9
    Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781). Filósofo, poeta, crítico de arte e dramaturgo francês. Um de seus escritos teóricos mais importantes é a obra Dramaturgia de Hamburgo, e as suas peças principais são Minna von Barnhelm, Emília Galotti e Natan, o Sábio.
  • 10
    Denis Diderot (1713-1784). Filósofo, escritor e dramaturgo francês. Dentre seus textos teóricos conhecidos estão: Paradoxo sobre o comediante e Conversas sobre o filho natural. Principais peças: O Filho Natural e O Pai de Família.
  • 11
    Victor-Marie Hugo (1802-1885). Poeta, romancista e dramaturgo francês. Entre suas principais obras estão os romances Os Miseráveis e Notre-Dame de Paris (popularmente conhecido como O Corcunda de Notre-Dame), as peças teatrais Cromwell, Hernani, Ruy Blas e Torquemada, além de seu manifesto teórico Do grotesco e do sublime.
  • 12
    São descritas por Szondi como tentativas de salvamento: o naturalismo (Hauptmann; Strindberg); a peça de conversação (Beckett; Hofmannsthal); a peça de um só ato (Strindberg; Maeterlinck; Hofmannsthal; O'Neill); confinamento e existencialismo (Lorca; Strindberg; Sartre).
  • 13
    As tentativas de solução mencionadas por Szondi (2001)SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac Naify, 2001. são: a dramaturgia do eu (expressionismo: Hasenclever; Sorge; Toller; Kaiser; Brecht); a revista política (Piscator); o teatro épico (Brecht); a montagem (Bruckner); o jogo de impossibilidade do drama (Pirandello); o monólogo interior (O'Neill); o eu-épico como diretor de cena (Wilder); o jogo do tempo (Wilder) e a reminiscência (Miller).
  • 14
    Casamento com pessoa de posição social ‘inferior’.
  • 15
    Em O Futuro do Drama, Jean-Pierre Sarrazac (2002, p. 103)SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Tradução de Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campos das Letras, 2002. Disponível em: https://www.academia.edu/15301564/O_Futuro_do_Drama. Acesso em: 11 fev. 2020.
    https://www.academia.edu/15301564/O_Futu...
    afirma que: “[...] o devir rapsódico procede por transbordamentos incessantes. Do dramático pelo épico ou pelo lírico, é claro. Mas, igualmente, no outro sentido, do épico ou do lírico pelo dramático. No entanto, transbordar não significa aniquilar”.

Referências

  • BARROS, João Pedro Ricken Lopes de. A dramaturgia sob a lente do conflito: uma perspectiva não-teleológica. 2020. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Cênicas) – Universidade de Brasília, Brasília, 2020.
  • BAUMGÄRTEL, Stephan. Conflitos estruturais no texto pós-dramático: reflexões sobre o deslocamento do conflito dramático na teatralidade performativa e sua aplicação na dramaturgia brasileira. In: NAVAS, Cássia; ISAACSSON, Marta; FERNANDES, Sílvia (Org.). Ensaios em cena São Paulo: Cetera, 2010. P. 34-45.
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  • ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
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  • PALLOTTINI, Renata. Introdução à Dramaturgia São Paulo: Ática, 1988.
  • PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
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  • ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
  • ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
  • SANCHES, João Alberto Lima. Dramaturgias de desvio: recorrências em textos encenados no Brasil entre 1995 e 2015. 2016. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Bahia, 2016a.
  • SANCHES, João Alberto Lima. Dramaturgias de desvio: um estudo comparativo de textos encenados no Brasil. Pitágoras 500, Campinas, Unicamp, v. 2, n. 10, p. 63-73, 2016b.
  • SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama Tradução de Alexandra Moreira da Silva. Porto: Campos das Letras, 2002. Disponível em: https://www.academia.edu/15301564/O_Futuro_do_Drama Acesso em: 11 fev. 2020.
    » https://www.academia.edu/15301564/O_Futuro_do_Drama
  • SARRAZAC, Jean-Pierre et al. (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo São Paulo: Cosac Naify, 2013.
  • SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950] São Paulo: Cosac Naify, 2001.
  • SZONDI, Peter. Teoria do drama burgues [século XVIII] São Paulo: Cosac Naify, 2004.

Editado por

Editor responsável: Marcelo de Andrade Pereira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2021
  • Aceito
    30 Ago 2022
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