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Para se Dançar às Avessas: Artaud, Mbembe e a dança como insurgência visceral do corpo-sem-órgãos

Pour se Danser à l’Envers: Artaud, Mbembe et la danse comme insurrection viscérale du corpssans-organes

RESUMO

Para se Dançar às Avessas: Artaud, Mbembe e a dança como insurgência visceral do corposem-órgãos – Investiga-se aqui a questão do corpo (e da dança como superação possível de seus automatismos). Para tanto, apresenta-se o conceito alargado de dança na contemporaneidade, tendo Artaud e o conceito de corpo-sem-órgãos como ponto de partida. Em um segundo momento, a discussão se amplia com a leitura necropolítica da atualidade, realizada por Mbembe, que aprofundou a biopolítica em conceitos como mortificação, reconstrução de si e visceralidade. Finalizando, a metodologia utilizada é a de revisão bibliográfica, e as conclusões alcançadas apontam em direção ao corpo – sobretudo o corpo que dança – como possibilidade de insurgência da assim chamada resistência visceral.

Palavras-chave:
Antonin Artaud; Achille Mbembe; Corpo sem Órgãos; Necropolítica; Dança Contemporânea

RÉSUMÉ

La question du corps (et de la danse comme possible dépassement de ses automatismes) est ici investiguée. Pour cela, le concept large de la danse contemporaine est présenté en prenant Artaud et le concept de corps-sans-organes comme point de départ. Dans un deuxième temps, la discussion s'élargit avec la lect ure nécropolitique du présent, menée par Mbembe, qui a approfondi la biopolitique dans des concepts tels que la mortification, reconstruction de soi et la viscéralité. Enfin, la méthodologie utilisée est celle d'une revue bibliographique et les conclusions atteintes pointent vers le corps – notamment le corps qui danse – comme une possibilité d'insurrection de la soi-disant résistance viscérale.

Mots-dés:
Antonin Artaud; Achille Mbembe; Corps sans Organes; Nécropolitique; Danse Contemporaine

ABSTRACT

To Dance Wrong Side Out: Artaud, Mbembe and dance as a visceral insurgency of the body without organs – The aim of this work is to investigate the question of body (and of danc e as a possible way of overcoming the automatisms of the body). For this purpose, a broad concept of contemporary dance is introduced, taking Artaud and his concept of body without organs as a starting point. In a second m oment, the discussion expands with the necropolitical reading of the present times, carried out by Mbembe, who deepened biopolitics by developing concepts such as mortification, reconstruction of oneself and viscerality. Through literature review, the conclusions obtained point towards the body – especially the body that dances – as a possibility of insurgence of the so-called visceral resistance.

Keywords:
Antonin Artaud; Achille Mbembe; Body without Organs; Necropolitics; Contemporary Dance

Acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? (Foucault, 1966FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico. Conferência, 1966. Tradução: CEPAT FINTE IHU (Instituto Humanitas Unisinos). Disponível em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/174-noticias-2010/587012-o-corpo-utopico-textoinedito-de-michel-foucault. Acesso em: 25 out. 2022.
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).

Introdução

Em primeiro lugar, é preciso dizer que pensamos a dança aqui em um sentido amplo, dentro de um escopo alargado a que o século XX viria a assistir. Já nas poéticas vanguardistas de Antonin Artaud, percebe-se a urgência de uma linguagem cênica capaz de conceber o corpo e suas possibilidades em campo ampliado. Teatro se torna, para ele, um campo plural, que se expande a partir do corpo do performer, podendo se ramificar por meio dos gestos, do pensamento, da cena, do som – do exercício da vida em si. Ele se torna, como veremos, um exercício estético da vida, da vida liberta das amarras e, por extensão, também um exercício do teatro e da dança libertos das amarras, ou seja, dos limites impostos a estes pela tradição.

Se o corpo é a condição sine qua non para que a dança aconteça, cabe perguntar: que corpo é esse e que dança é essa? Temos em vista, neste artigo, a dança contemporânea em sua multiplicidade, dança esta que surge necessariamente depois das danças clássicas (como o ballet) e da dança moderna e que já surge como algo que se abre totalmente à diferença, às diferentes estéticas e aos diferentes corpos, bem como às demais artes, borrando fronteiras. O século XX, com os movimentos de vanguarda, abriria espaço para a hibridização da dança com outras linguagens, o que resulta na ampliação, releitura e transformação do campo, eliminando barreiras entre as artes em direção a uma cena expandida. Ao mesmo tempo que a dança, na contemporaneidade, abriu-se para a performance arte, ela também aboliu o virtuosismo técnico e os corpos estereotipados do ballet em prol do fluxo, do ritmo e das intensidades, tentando se aproximar da vida em suas contradições. Como coloca Eliana Rodrigues Silva (2008, p. 33)SILVA, Eliana Rodrigues. As Configurações do Corpo na Cena Artística Contemporânea. Cogito, Salvador, v. 9, p. 29-34, 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/cogito/v9/n9a05.pdf. Acesso em: 25 out. 2022.
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E o corpo na dança moderna, como se configurava? Por volta do início do século XX, indo de encontro à insipidez e ao academicismo da escola clássica. O mundo enfrentava a 1ª grande guerra e já não era mais possível dançar sobre um mundo de fantasias, fadas e príncipes, mas sim sobre a verdadeira condição humana, suas vitórias, fracassos e angústias. [...] A dança pós-moderna de hoje não se interessa [mais] em apresentar corpos perfeitos, unificados pela forma, nem delineados por imperativos estéticos ou sexuais. Tudo é permitido. A dança parece querer, de fato, expressar a multiplicidade corporal feita de músculos, ossos, nudez, imperfeições e qualidades do ser humano, falando de si próprios, para uma plateia que se identifique com o que vê.

Assim sendo, pensamos dança aqui em sua corporeidade e em sentido amplo, sentido este que só pôde emergir ao longo do século XX e de suas profundas transformações. Transformações estas que passam pela compreensão do corpo (e de seu papel na cena contemporânea1 1 Como aponta Débora Saccol (2014), as precursoras da dança moderna e contemporânea – tais como Isadora Duncan e Loie Füller – já vinham, desde o começo do século XX, propondo experimentações e repensando diversos aspectos da dança, sobretudo criticando seu engessamento e padronização. Ao longo do século XX, transformações ainda mais expressivas teriam lugar e seriam propostas por diferentes artistas e pesquisadoras. Além disso, ao pensarmos aqui uma cena expandida na dança contemporânea, ela passa, também e sobretudo, pelas inovações propostas por Pina Bausch (Cabral; Santos, 2019), um dos marcos da dança do século XX, cuja proposta de uma dança-teatro revolucionou e redefiniu a noção de dança. ) e ainda pela interrogação acerca dos mecanismos de controle dos corpos na contemporaneidade, como veremos. Nesse contexto, investigamos aqui, por meio da revisão bibliográfica, a questão do corpo – do corpo que dança – a partir da relação de autores a princípio díspares, como Antonin Artaud e Achille Mbembe.

Para Artaud, a questão do corpo (como corpo que quer se libertar de seus automatismos e mecanismos de controle) é central. Essa questão será incessantemente abordada e reformulada em sua obra, desde a proposição de um Teatro da Crueldade, em seu primeiro livro (O teatro e seu duplo, 2006), até sua transcriação por meio do conceito de “corpo sem órgãos”, que emerge somente nos anos finais de sua obra (em Para acabar com o juízo de Deus, 2020). Esse conceito, na discussão aqui empreendida, será fundamental para pensarmos a dança na contemporaneidade em suas possibilidades de liberdade e cura biopolítica.

Para a expansão do conceito, estabeleceremos um diálogo com a leitura necropolítica da atualidade, realizada por Mbembe, que aprofundou a bio-política na busca por linhas de fuga que permeiam conceitos como mortificação, reconstrução de si e visceralidade, tornando o corpo ponto fulcral dos processos de uma resistência que o autor denomina visceral e que nos faz perguntar se pode se dar pelo corpo que dança.

Cabe observar que, embora ambos os autores tenham um referencial teórico específico consolidado, ainda são raros os estudos que correlacionem suas obras2 2 Houve a publicação, em 2021, de um artigo de Adeilton Silva que relaciona não só a obra de Artaud, mas também a de José Saramago com a necropolítica, mas é um artigo que não aborda nem o tema da dança nem o do teatro, antes propõe uma reflexão sobre a degradação humana em geral (Silva, 2021). Nesse contexto, vale observar que um esforço inicial foi realizado pelas autoras deste artigo na dissertação intitulada O corpo sem órgãos como resistência visceral: atravessamentos a partir da revolução corporal de Antonin Artaud, de autoria da primeira e orientação da segunda. A dissertação em questão foi defendida no PPGAC/UFOP, em 2022, e buscou contemplar a aproximação entre Artaud e Mbembe em suas denúncias e anúncios, mirando de fato na possibilidade de uma linguagem corporificada que se mostre capaz de resistir visceralmente à necropolítica (Silveira, 2022). e menos ainda os que correlacionem os conceitos em questão para se pensar a dança3 3 A aproximação entre necropolítica e dança ainda é esparsa na bibliografia. Sobre biopolítica, cabe observar que existe um número maior de estudos a explorá-la em diálogo com matrizes de criação em dança. Por exemplo, a aproximação entre a dança butô e os mecanismos de poder e de controle biopolítico da vida vem sendo explorada no Brasil pelo pesquisador Éden Peretta: podemos citar aqui a análise, realizada por ele e Gabriely Lemos (2022), do espetáculo de teatrodança Zoé: restos de uma vida nua, do Coletivo Anticorpos (2018). De forma mais específica, uma rara, porém significativa, contribuição pode ser encontrada no artigo Mestiçagens de um butô negro: colorações afro-brasileiras na dança de Marco Xavier (Tonnetti; Corradini; Mello, 2021), que relaciona dança butô e necropolítica. na contemporaneidade.

O corpo sem órgãos como dança às avessas: a dissolução entre teatro e dança em Artaud

Antonin Artaud foi uma figura marcante das vanguardas do começo do século XX, atuando em diversas frentes como ator, escritor, dramaturgo, roteirista, diretor e pesquisador. A relação com a corporeidade perpassou todo seu trabalho, tanto na investigação artística como em sua própria vida, em uma relação direta entre corpo e poder. Aliados aos desejos de renovação, os movimentos de vanguarda tiveram como principal motivação a crítica à constituição da vida moderna, que visava ao progresso industrial e ao desenvolvimento econômico, tendo o racionalismo como visão de mundo. A participação de Artaud nesse clima de insurgência (como no movimento surrealista, em que ele foi atuante em seus primeiros anos) possibilitou trocas que ecoarão profundamente nos manifestos por uma nova linguagem para as artes, para o corpo e para o Teatro da Crueldade4 4 O pensamento de Artaud é tão profícuo que inspiraria diferentes movimentos artísticos, inclusive na dança contemporânea. Para Samantha Marenzi (2019), um dos principais exemplos da influência artaudiana na dança do século XX seria, justamente, a já mencionada (nas notas anteriores) dança butô, surgida no Japão pós-Segunda Guerra Mundial. .

Buscou-se, portanto, um fazer artístico que rompesse com a ideia de mostrar algo a uma plateia e que fosse capaz de proporcionar experiências sensórias ao público para, a partir disso, afetar também a vida. O corpo em cena, para Artaud, deveria existir independentemente de qualquer texto teatral, assim como a voz também não precisaria estar ligada à declamação de um texto, pois ele buscava a expressão de novos estados do corpo que pudessem conectar fisicamente o artista/dançarino/ator com tudo ao seu redor, colocando-o em relação com o outro, com o mundo.

O livro O teatro e seu duplo (2006) é composto de diversos textos escritos entre 1931 e 1936 e que tinham por objetivo mapear as questões que Antonin Artaud julgava fundamentais, apresentando o 1º e o 2º Manifestos do Teatro da Crueldade. Essa visão se opunha às tradições do teatro dramático e a todo o psicologismo da cena em uma busca pelo despertar do artista para que fosse possível contagiar a plateia, em prol de uma cena que englobasse a existência.

Na cena teatral tradicional (e até no ballet, em certo sentido), o corpo representa papéis. Mas Artaud queria eliminar do teatro a representação, acabar com todo o psicologismo em cena, diminuir a separação palco-plateia. Ele queria que o corpo do artista, transformado em hieróglifo, se tornasse pura expressão de significados que não poderiam jamais ser reduzidos a palavras. Vemos aqui um paralelo com o que também ocorrerá na dança na contemporaneidade, centrada na presença do corpo e em suas possibilidades. Como coloca Derrida (1995, p. 152)DERRIDA, Jacques. Escritura e Diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995.: “[...] o teatro da crueldade não é uma representação. É a própria vida no que ela tem de irrepresentável”.

Entre os fatores que inspiraram a ênfase na corporeidade na proposta teatral de Artaud, destaca-se o contato com o Teatro(-dança) de Bali e suas matrizes de criação, assim como a experiência com ritual do Ciguri5 5 Ritual orientado pelo uso do peiote. O peiote é um cacto encontrado no México que remonta aos tempos pré-colombianos por sua longa tradição tanto medicinal quanto ritual. Nativo do sul da América do Norte, esse cacto contém vários alcaloides, incluindo mescalina. Em sua visita de nove meses ao México em 1937, Artaud participou do Ciguri e viveu com os Tarahumaras por cerca de um mês. Esse ritual mudaria profundamente sua relação com seu próprio corpo e sua psiquê (Dias, 2021). , junto ao povo Raramuri6 6 Também conhecidos na literatura como “Tarahumaras”, uma modificação do nome originário pelos colonizadores espanhóis. no México.

Segundo Mèredieu (2011)MÈREDIEU, Florence. Eis Antonin Artaud. Tradução: Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2011., o contato de Artaud com aquilo que ele denominou “Teatro de Bali” se deu como espectador por meio de uma visita à Exposição Colonial que aconteceu em Vincennes, na França, em 1931. O corpo atento e preparado do artista oriental e sua consciência energética ofereciam um campo aberto para a semeadura de uma nova postura artística. Assim, uma linguagem física encontraria sua expressão por meio de signos, fazendo do corpo do ator uma espécie de hieróglifo, ou seja, algo capaz de captar forças/fluxos e as transformar em signos pelo movimento. Os dançarinos balineses foram considerados atores por Artaud. Algo que poderia ser considerado um erro, na verdade, mostrou-se um grande acerto e contribuiu com a revolução cênica do século XX: o apagamento cada vez maior das fronteiras entre teatro e dança.

O que Artaud admirou nos atores-dançarinos balineses é que eles “com suas vestes geométricas pareciam hieróglifos animados” (Artaud, 2006, p. 56ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. Tradução: Teixeira Coelho. Revisão: Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2006.). Artaud não estava sendo metafórico ao comparar atores a hieróglifos: ele atribui o mesmo caráter simbólico das línguas orientais ao que ele chamou de “o signo teatral puro”. O que impressionou Artaud foi a imediatez da presença dos atores-dançarinos, a percepção de que sua dança não era um ato de re(-a)presentação, mas sim um tipo de “presença pura”, relativa a uma linguagem física e gestual que a arte ocidental teria de algum modo perdido.

A partir do contágio com o Teatro-Dança de Bali, Artaud começa a desdobrar sua pesquisa pelo viés cada vez maior da corporeidade, da gestualidade e do sagrado por meio de uma escuta que não se utiliza necessariamente da audição, mas sim uma escuta do corpo, o qual é sensorial e sensorialmente afetado e, dessa forma, é também capaz de partilhar signos, estados, sensações e sentimentos. Ao compartilhar sua experiência com o Teatro de Bali, Artaud (2006, p. 60)ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. Tradução: Teixeira Coelho. Revisão: Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2006. nos diz:

Há toda uma profusão de gestos rituais cuja chave não temos e que parecem obedecer a determinações musicais precisas, com alguma coisa a mais que não pertence em geral à música e que parece destinada a envolver o pensamento, a persegui-lo, a conduzi-lo através de uma malha inextricável e certa. Tudo nesse teatro, de fato, é calculado com uma minúcia adorável e matemática. Nada é deixado ao acaso ou à iniciativa pessoal. É uma espécie de dança superior, na qual os dançarinos seriam antes de tudo atores.

Inclusive, para Oliveira (2010, p. 10-11)OLIVEIRA, Filipe Gradim. Artaud e a Dança do Corpo sem Deus. O Percevejo Online, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, n. p., 2010., pode-se dizer que “[...] no Teatro da Crueldade recupera-se o antigo conluio entre dança e teatro, entre devir e necessidade; respectivamente, entre o defluir e o atuar”. Segundo o autor, o contato estético de Artaud com o corpo dos atores bailarinos foi de fato um dos grandes impulsionadores que despertou o desejo de repensar a relação entre teatro e a corporeidade, ao que o autor continua: “[...] por isso, a dança do gestual se reafirmou, lubrificando os movimentos e inserindo o corpo no plano cósmico, simbólico e poético da crueldade. Ela o inseriu novamente no ritmo dramático e perigoso da criação”.

No Ocidente, o entendimento das linguagens artísticas é historicamente fragmentado, em que se tem teatro e dança como linguagens distintas. O que Artaud identificou no Teatro de Bali foi uma fluidez entre tais instâncias, em que a dança acrescentava novas possibilidades de expressão à ação teatral, gerando uma retroalimentação. Tal encontro só reforçou no artista o desejo de criar uma linguagem conectada com o ritual, explorando os gestos em conexão com a dimensão interior por meio das pulsões, que, por sua vez, perpassam o corpo e seus processos criativos. A busca de Artaud por essa linguagem corporal o levaria para cada vez mais longe do Ocidente e da lógica ocidental: fosse em direção ao interior dos cânions mexicanos, em busca de uma cultura em que a prática teatral ainda não tivesse se desligado do ritual em direção ao texto, fosse em direção para dentro de si, seus estados psicológicos e sua dita loucura.

Um ponto muito famoso (e controverso) da bibliografia de Artaud são as internações psiquiátricas pelas quais passou entre os anos de 1937 e 1946, logo após seu retorno do México e até pouco depois do final da Segunda Guerra Mundial. Durante esse processo, Artaud teve que deslocar as necessidades de expressão artística para si e seus estados, fossem eles físicos, “metafísicos” ou psicológicos, conectando as necessidades desse corpo que se tornaria, ao mesmo tempo, carregado e privado de pulsão criativa para que, assim, seus manifestos e criações se dessem por meio do canto, da dança, da escrita e de seus desenhos.

Grande parte desse processo, pelo qual Artaud tentará recuperar a posse de seu próprio corpo e de seu senso de identidade, será registrada em seus cadernos, os famosos Cadernos de Rodez, que, segundo Mèredieu (2011)MÈREDIEU, Florence. Eis Antonin Artaud. Tradução: Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2011., renderam centenas de diários no período de 15 meses, em que o artista registrava suas diversas práticas poéticas: escritas, desenhos, intensidades e perfurações ao rabiscar o papel. Muitos desses registros acompanham processos físicos de retomada de si e de seu próprio corpo, uma vez que o artista foi submetido a dezenas de sessões de eletrochoque, gerando perda de memória e diversas sequelas físicas e mentais.

Assim sendo, cabe observar a questão de o corpo – ou o organismo, como ele muitas vezes se refere – poder ser considerado um tema transversal (e fundamental) em seus questionamentos acerca da construção de seu Teatro da Crueldade e das perspectivas paradigmáticas que este abre para as artes do corpo. A questão do organismo se faz presente e ganha diferentes abordagens ao longo de sua vida. Por exemplo, em O teatro e seu duplo, Artaud entendia o organismo (o corpo) como lugar de passagem de forças para a expressão do ator, conforme pode ser extraído do texto Atletismo afetivo, lá presente (Artaud, 2006ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. Tradução: Teixeira Coelho. Revisão: Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2006.). Para Artaud, o corpo é o lugar de passagem de afetos, a ponto de os atores (e também dançarinos e performers, se atualizarmos o termo) terem o que ele chama de uma “espécie de musculatura afetiva”. Ele continua:

O ator é como um atleta do coração. [...] e a esfera afetiva lhe pertence propriamente. Ela lhe pertence organicamente. [grifo nosso] [...] Enquanto o atleta se apoia para correr, o ator se apoia para lançar uma imprecação espasmódica, mas cujo curso é jogado para o interior (Artaud, 2006, p. 151ARTAUD, Antonin. O Teatro e Seu Duplo. Tradução: Teixeira Coelho. Revisão: Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2006.).

Artaud busca trazer para o corpo uma autonomia perdida no mundo ocidental. As artes do corpo eram, em geral, relegadas ao segundo plano na história da arte devido a essa inferiorização do corpo7 7 Podemos citar aqui, por exemplo, Le Goff e Truong (2006), que abordam em profundidade as tensões e crises que o ocidente cristão tem com o corpo desde a Idade Média, aprofundadas pela cisão alma e corpo, na qual a alma em geral é divinizada e glorificada, e o corpo, rebaixado e humilhado, sinônimo de pecado e erro. Poucos se oporão a essa visão, mesmo na modernidade. Descartes mesmo verá o corpo como não mais do que um “autônomo” controlado pela alma racional. Uma das poucas exceções nesse cenário é a filosofia do corpo de Baruch Espinosa, filósofo de origem judaica, perseguido por religiosos judeus e cristãos no século XVII, da qual podemos extrair uma afirmação que Deleuze retomará inúmeras vezes, inclusive para se referir ao corpo sem órgãos de Artaud: “[...] fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo. [...] Pois ninguém conseguiu, até agora, conhecer tão precisamente a estrutura do corpo que fosse capaz de explicar todas as suas funções” (Espinosa, 2009, p. 101). Se para Espinosa não haveria superioridade entre as instâncias do corpo e da mente, também não há separação entre o psíquico e o físico. Para Deleuze e Guattari (1999), influenciado por Espinosa e Artaud, o corpo será uma composição de forças, potência de afecções e um modo de conhecimento ao qual não convém uma definição pronta e acabada. Voltaremos a isso depois. Com essa breve digressão, o que pretendemos trazer aqui é que Artaud tem um caráter precursor em sua abordagem do corpo, como apontado pelo próprio Deleuze. . Já em O teatro e seu duplo (2006), o que se percebia era uma perspectiva mais otimista, em que o corpo pode ser o lugar de cura para a sociedade ocidental. Em uma cultura ocidental que sempre separou corpo e alma, localizar as emoções como algo que acontece organicamente no corpo foi precursor em muitos sentidos.

Contudo, após os anos de internação em diversos hospitais psiquiátricos, o foco no corpo, justamente, como lugar de controle e aprisionamento (a ser superado) se mostrará determinante para a obra de Artaud. O aprisionamento e o controle impostos a seu corpo nos regimes das muitas instituições pelas quais passou se fazem evidentes em sua deterioração física e mental. Em suas vivências, Artaud chegará à percepção concreta de como, nas sociedades ocidentais, o organismo se tornara necessariamente desajustado, desequilibrado, composto de órgãos que ele considerará defeituosos ou contaminados: partes que não mais dão conta do todo, mesmo quando postas todas juntas.

Parece surgir a percepção de que o corpo é muito mais que a soma de suas partes (ou de seus órgãos) e precisa ser compreendido como muito mais que sua descrição meramente anatômica, antes em suas intensidades e forças. Inclusive, Artaud parece tentar responder à pergunta de Espinosa, ecoada posteriormente por Deleuze e Guattari: “O que pode o corpo?” (Espinosa, 2009, p. 101ESPINOSA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.), ainda que não tenha posto a questão necessariamente nesses termos. Em certo sentido, essa ainda é uma questão central que parece ecoar em muitos pesquisadores das artes do corpo e da dança.

André Lage, em um artigo sobre os cadernos de Artaud escritos nos sanatórios de Rodez e Ivry, nos conta que Artaud teria deixado, ao todo, 406 cadernos escritos ao longo de suas internações8 8 Mais especificamente, de acordo com Mèredieu (2011, p. 780), dos 406 cadernos escritos, uma centena teria sido escrita no período de Rodez (somente após o término dos tratamentos de eletrochoque, aproximadamente dois anos após sua chegada lá), e os restantes continuando a serem escritos após seu retorno a Paris e durante sua residência no sanatório de Ivry. e que eles, apesar de seu caráter marginal (não foram escritos pelo autor tendo em vista serem publicados), teriam no geral “um tema extremamente primordial que surge a partir de Rodez: a reinvenção da anatomia” (Lage, 2009, p. 316LAGE, André Silveira. Os Cadernos de Antonin Artaud: escritura, desenho e teatro. Sala Preta, São Paulo, v. 9, p. 311-316, 2009.), no que poderia ser chamado de:

[...] uma ‘picto-coreografia’ ([em alusão a] Derrida), que se configura, pouco a pouco, de maneira instável, fragmentada, anárquica e múltipla. Eles [...] encenam alguns temas recorrentes em seus últimos escritos, a saber, a luta contra deus e o ‘paimãe’, a revolta contra a ‘miséria do corpo humano’ e a sua má constituição anatômica, a força da magia e a reivindicação revolucionária de um novo corpo humano, corpo infinitamente potencial (Lage, 2009, p. 313LAGE, André Silveira. Os Cadernos de Antonin Artaud: escritura, desenho e teatro. Sala Preta, São Paulo, v. 9, p. 311-316, 2009.).

Lage (2009, p. 314)LAGE, André Silveira. Os Cadernos de Antonin Artaud: escritura, desenho e teatro. Sala Preta, São Paulo, v. 9, p. 311-316, 2009. marca essa relação entre corpo, desenho e escritura no pensamento de Artaud, uma vez que eles evocariam uma dupla reinvenção anatômica, capaz de “engajar o corpo inteiro”. Já para Penido (2018, p. 1475)PENIDO, Luiz Henrique Carvalho. Antonin Artaud: por uma estética do subjétil. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA, 16., 2018, Uberlândia. Anais Eletrônicos [...]. Uberlândia: UFU, 2018. Disponível em: https://abralic.org.br/anais/arquivos/2018_1547559604.pdf. Acesso em: 20 out. 2022.
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, o que Artaud faz com essa “picto-coreografia íntima em processo” seria buscar:

[...] dar concretude ao pensamento, isto é, reconstituir-lhe o corpo esvaziado por práticas ilusórias conceituais. Buscar um corpo passa, paradoxalmente, pelo vazamento do limiar do irrepresentável, aquilo que permanece além de qualquer representação possível, daí a necessidade do ato e do corpo. Porque o corpo, a corporalidade propriamente dita, crua e não insignada, assim nos parece pensar Artaud, é o limiar do irrepresentável (Penido, 2018, p. 1480PENIDO, Luiz Henrique Carvalho. Antonin Artaud: por uma estética do subjétil. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA, 16., 2018, Uberlândia. Anais Eletrônicos [...]. Uberlândia: UFU, 2018. Disponível em: https://abralic.org.br/anais/arquivos/2018_1547559604.pdf. Acesso em: 20 out. 2022.
https://abralic.org.br/anais/arquivos/20...
).

Já na transmissão radiofônica Para acabar com o juízo de deus, gravada em 1948, ano de sua morte, Artaud desenvolve um texto sensório e rítmico, atravessado pela potência de sua voz e de sua respiração, que é considerado um marco tanto no sentido do engajamento do corpo inteiro em uma criação artística quanto no sentido de tentar alcançar o limiar do irrepresentável. Assim, Artaud faz do corpo o lugar privilegiado do acontecer poético, justamente nisso em que se mostra como “o limiar da experiência pensante” (Nunes, 1986, p. 261NUNES, Benedito. Passagem para o Poético. São Paulo: Ática, 1986.). Artaud critica ainda a constituição (política e corporal) do homem moderno, abordando também uma crítica à geopolítica norte-americana, as experiências rituais que teve com o povo Raramuri e, de forma provocativa, enfrenta o grande inimigo dessa última fase: “deus”. Ao colocar lá pela primeira vez a questão do corpo sem órgãos, Artaud nos diz:

Porque prendam-me se quiserem, mas não há nada mais inútil que um órgão.

Quando terão feito para o homem um corpo sem órgãos,

Terão então liberado o homem de todos os seus automatismos e o terão

devolvido à sua verdadeira liberdade

Então voltarão a ensiná-lo a dançar ao avesso

como no delírio dos bailes populares e esse avesso será seu verdadeiro

conforme (Artaud, 2020, p. 86ARTAUD, Antonin. Para Acabar com o Juízo de Deus: e outros escritos. Tradução: Olivier Dravet Xavier. Belo Horizonte: Moinhos, 2020., grifo nosso).

Quando Artaud coloca que “não há nada mais inútil que um órgão” e que somente com um corpo sem órgãos o ser humano encontrará a “verdadeira liberdade” e se libertará de “todos os seus automatismos”, isso se dá porque o que está sendo criticado é a visão mecanicista de corpo como “organização orgânica dos órgãos”, nas palavras de Deleuze (Deleuze; Guattari, 1999, p. 19DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1999.), na qual o órgão é uma forma de organização do corpo com determinado fim, e é essa instrumentalização anatômica do corpo que Artaud critica. Ao contrário, o corpo sem órgãos foge de toda organização e representação. Artaud busca desconstruir a visão meramente anatomicamente do corpo e assim permitir que o corpo “dance às avessas”: com sua picto-coreografia9 9 O termo picto-coreografia é usado por Derrida (1998) para se referir ao modo como os cadernos de Artaud foram escritos, rabiscados, queimados e esburacados, formando verdadeiros pictogramas, quase como símbolos mágicos. Escritos em traços ora espasmódicos, ora contundentes, eles mostram ter seu próprio ritmo performativo. o conduzindo ao limiar do irrepresentável.

Assim, acreditamos que, por meio da concepção do Teatro da Crueldade e do desenvolvimento de uma escrita picto-coreográfica de si, Artaud buscou contaminar e incentivar outras pessoas a descobrirem o funcionamento próprio e radical de cada corpo, movido pelo desejo de ser, perspectiva que se reforçou na fase final de sua vida. Como colocará André Lage, a reinvenção da anatomia proposta por Artaud é: “[...] uma reinvenção que passa pelo corpo, pelo ritmo, pela voz, pela explosão desse ‘verbo vibrátil, espasmódico e metódico’ que coloca o teatro dentro do corpo e que faz do corpo humano o lugar privilegiado do ato teatral” (Lage, 2009, p. 316LAGE, André Silveira. Os Cadernos de Antonin Artaud: escritura, desenho e teatro. Sala Preta, São Paulo, v. 9, p. 311-316, 2009.).

Desse modo, o corpo humano se torna, por extensão de sentido, o lugar privilegiado de todo e qualquer acontecimento artístico, o lugar privilegiado do ato poético. O corpo da descrição anatômica e da compreensão racional é o corpo dos automatismos cotidianos. É esse corpo representacional que precisa ser superado. Assim, o corpo que dança às avessas pode ser o corpo que se liberta de seus automatismos, organizados em representações e extratos, em direção ao irrepresentável e se fazendo arte: essa sempre fora a busca de Artaud.

Não por acaso, a rigidez anatômica, a padronização expressiva e excessiva dos movimentos e a desconexão entre arte e vida não seriam, justamente, algumas das questões latentes para o surgimento da dança contemporânea? A perspectiva de uma dança ao avesso, lançada por Artaud, abre caminhos para pensarmos a dança na contemporaneidade como aquela capaz de identificar quais são esses automatismos e, assim, investigar e instigar subversões dentro do funcionamento único de cada corpo em sua busca por liberdade por meio do gesto e do movimento, promovendo insurreições.

Mas, para tanto, cabe perguntar: o que são esses automatismos e o que é essa libertação? Para responder a tais perguntas, recorreremos, a seguir, ao filósofo camaronês Achille Mbembe10 10 O filósofo e professor Achille Mbembe nasceu na República dos Camarões em 1957, região ocidental da África Central. O filósofo tem sido um pesquisador de impacto para pensar a realidade política mundial ao abordar a temática da necropolítica (2018), que aprofunda conceitos como controle dos corpos e biopoder em direção a outros como estado de exceção e políticas de morte, realizando uma análise profunda dos modos de exercício do poder do capitalismo contemporâneo, suas violências e conflitos. . Com isso, essa pergunta também cresce em direção a uma hipótese-pergunta: pode a dança na contemporaneidade ser um instrumento político de insurreição (e resistência) frente aos modos de exercício do poder, da violência e do controle (característicos do capitalismo contemporâneo, criador de automatismos e anestesias) por meio da reinvenção dos corpos com novas composições de si que surgem, justamente, à medida em que se tenta traduzir o irrepresentável em novas representações?

Entre Artaud, Mbembe e Deleuze: o corpo sem órgãos encontra a necropolítica

A partir de tal hipótese, perguntamo-nos se a vida/obra de Artaud, em certo sentido, pode se mostrar emblemática para pensarmos a biopolítica e a necropolítica em suas ações sobre os corpos e mecanismos de controle hoje. É aqui que entra Achille Mbembe, que tem uma pesquisa profunda sobre os efeitos do poder e suas implicações mortais11 11 Achille Mbembe (2018) cunha o termo necropolítica, política de “morte”, que surge como um desdobramento e aprofundamento dos estudos biopolíticos e que propõe repensar a história das dominações ocidentais pela ótica das tecnologias de morte e de exploração que remontariam sobretudo aos processos da colonização e da plantation. nos corpos e, a partir disso, nos apresenta uma possibilidade de reinvenção que vem das vísceras, do âmago da vida que pulsa nesses corpos. Assim, essa investigação une autores a princípio díspares, mas que podem ser aproximados – ainda que de forma preliminar e inovadora –, pois o objetivo final é uma “dança às avessas” capaz de potencializar a busca por formas de reinvenção e libertação dos corpos por meio de novas composições de si, como veremos agora.

A fim de avançar nesta investigação, propõe-se aqui também um breve mergulho na transmissão radiofônica Para acabar com o juízo de deus, de 1948, de modo a apontar os ecos entre Artaud, a necropolítica e a contemporaneidade – inclusive para inspirar perspectivas de resistência centradas no corpo. O que pretendemos aqui é aproximar as denúncias finais de Artaud – sobre seu próprio corpo e os corpos como um todo no ocidente polarizado do ambiente de Guerra Fria pós-Segunda Guerra Mundial – com a perspectiva necropolítica, para que, no próximo subitem deste artigo, seja possível abordar possibilidades de concepção de novos corpos livres em dança frente aos mundos de morte que Achille Mbembe apresenta.

Como Mbembe (2018, p. 71)MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução: Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018. coloca:

[...] propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, [...] [são criados] ‘mundos de morte’, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de ‘mortos-vivos’.

A temática de uma mortificação como modo de utilizar e extrair a potência dos corpos é desenvolvida como ponto central pelo autor e, desse modo, acredita-se que o conceito de necropolítica é capaz de demonstrar essa ação concreta que não só se ocupa do roubo à potência de vida, mas também aponta uma realidade comum: a exploração, o controle e a dizimação dos corpos, das identidades, das culturas e da natureza, principal ferramenta de exploração e expropriação do capitalismo desde a modernidade. Mbembe se aprofunda na relação entre guerra e biopoder para dar continuidade à investigação iniciada por Michel Foucault12 12 Biopolítica é o termo cunhado pelo filósofo Michel Foucault (2005), aqui entendido como os modos dos quais o capitalismo se utiliza para gerir a vida pública por meio da submissão dos corpos: catalogações, punições, aprisionamentos, determinações da subjetividade, etc. , tendo como foco agora o estreitamento da relação entre política e o exercício da morte em uma análise não só contemporânea, mas que refaz o percurso histórico dos processos de dominação.

Assim, o filósofo camaronês parte do entendimento de que o empreendimento colonial (base do mundo ocidental moderno, como os estudos decoloniais vem demonstrando13 13 Recomendamos aqui a leitura da obra seminal de Walter Mignolo (2003), The Darker Side of the Renaissance. ) tem em sua base o princípio da segregação e da guerra e, nesse sistema, a guerra se torna o seu modo operante. Artaud, na transmissão, faz uma crítica à potência econômica norteamericana, abordando a problemática da guerra e do pós-Segunda Guerra ao dizer: “[...] e eles querem com todas as suas forças e de todas as formas possíveis fazer e fabricar soldados em vista de todas as guerras planetárias que poderiam vir a ocorrer ulteriormente” (Artaud, 2020, p. 48ARTAUD, Antonin. Para Acabar com o Juízo de Deus: e outros escritos. Tradução: Olivier Dravet Xavier. Belo Horizonte: Moinhos, 2020.). Expõe, assim, uma visão que demonstra uma das finalidades de destinação dos corpos nesse contexto bélico e constante que marcava também o século XX.

Em Artaud, podemos encontrar uma denúncia dessa mesma mortificação causada pelos modos de vida coloniais e capitalista, por ele também considerados automatismos, que esvaziam o corpo de sua potência. No texto inicial da transmissão radiofônica, de forma irônica, Artaud aborda a incessante necessidade de produção ao dizer que, afinal, “[...] é preciso dar à inércia humana um espaço central, /é preciso que o operário tenha como se empregar, / é preciso que sejam criados campos de novas atividades” (Artaud, 2020, p. 48ARTAUD, Antonin. Para Acabar com o Juízo de Deus: e outros escritos. Tradução: Olivier Dravet Xavier. Belo Horizonte: Moinhos, 2020.). A partir dessa fala, a produção capitalista parece se colocar nessa função de criar uma infinidade de atividades ligadas ao trabalho, que tem como objetivo principal gerar lucro, mas que, para isso, age de forma a desconectar a pessoa de si própria por meio de uma espécie de mortificação – e automatização do corpo – em prol da produtividade incessante e do lucro.

Mbembe aponta a escravização dos povos da África para o trabalho forçado como uma das primeiras ações de dominação biopolítica por meio do sistema da plantation, os grandes latifúndios monocultores do período colonial. Em seguida, o autor define a vida da pessoa escravizada como uma “morte em vida”. A questão da colonização também é abordada pelo filósofo como espaço de experimentação violenta que, pela perspectiva historiográfica, também culminaria no episódio nazista e diz que “a conquista colonial revelou um potencial de violência até então desconhecido” (Mbembe, 2018, p. 32MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução: Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.).

Logo, para que possamos investigar a constituição dos corpos nas sociedades ocidentais contemporâneas, faz-se necessário entender de que forma a história da mortificação cria corpos automatizados e mortos em vida – justamente por isso, perfeitos para o trabalho exploratório.

Cabe destacar um alerta feito por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1999)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1999. acerca das experimentações do corpo sem órgãos: assim como existem corpos sem órgãos plenos de potência criadora (justamente o que buscamos criar por meio da dança na contemporaneidade), existiriam também outros corpos sem órgãos, vazios e esvaziados, que também se proliferam em constante afetação. Sobre isso, os autores dizem:

O CsO do dinheiro (inflação), mas também CsO do Estado, do exército, da fábrica, da cidade, do Partido etc. Se os estratos dizem respeito à coagulação, à sedimentação, basta uma velocidade de sedimentação precipitada num estrato para que ele perca sua figura e suas articulações, e forme seu tumor específico nele mesmo, ou em tal formação, em tal aparelho. Os estratos engendram seus CsO, totalitários e fascistas, aterrorizadoras caricaturas do plano de consistência. Não basta então distinguir os CsO plenos sobre o plano de consistência e os CsO vazios sobre os destroços de estratos, por desestratificação exageradamente violenta. É preciso considerar ainda os CsO cancerosos num estrato tornado proliferante (Deleuze; Guattari, 1999, p. 24DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1999.).

Se pensarmos a partir da condição necropolítica denunciada por Mbembe (2018)MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução: Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018., poderemos facilmente identificar, em nossa atualidade, diversas existências desses corpos sem órgãos esvaziados e que são denunciados por Deleuze e Guattari, sejam como “totalitários e fascistas” ou então como “cancerosos num estrato tornado proliferante”. Desse modo, é possível identificar, em ambos os autores, um alerta a respeito da existência de outras formas de resistência não benéficas para o coletivo, que não devem ser desprezadas e, por conta disso, reforça-se a necessidade de criações artísticas que possam gerar experiências de afetação positiva de vida inclusive nesses corpos.

Os corpos sem órgãos denunciados por Deleuze e Guattari parecem refletir, então, os agentes que constituem o contexto da necropolítica. Ao situarem a questão a partir da transmissão radiofônica de Artaud, os autores destacam:

Extraordinária composição de Pour en finir avec le jugement de Dieu [Para acabar com o Juízo de Deus]: ele começa por amaldiçoar o corpo canceroso da América, corpo de guerra e de dinheiro; denuncia os estratos que ele chama de ‘caca’; a isto opõe o verdadeiro Plano, mesmo que seja o riacho minúsculo dos Tarahumaras, peyotl; mas ele conhece também os perigos de uma desestratificação demasiado brutal, imprudente. Artaud não para de enfrentar tudo isto e aí sucumbe (Deleuze; Guattari, 1999, p. 25DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1999.).

A partir da reflexão dos autores acima percebemos que, um assunto no qual Artaud se debruçou em sua transmissão, mesmo que em suas limitações, foi denunciar os estratos do capitalismo e de que forma estes criam corpos esvaziados de potência (como os trabalhadores e os soldados explorados, anteriormente citados), necessários para a manutenção do dinheiro e da guerra, apesar de serem (ou justamente por serem) corpos desvitalizados, mortificados, mortos em vida.

É possível superar tudo isso? Para Adeilton Silva (2021, p. 202-203)SILVA, Adeilton Lima. Antonin Artaud e José Saramago: caos e cosmos. Revista de Letras Juçara, Caxias, v. 5, n. 1, p. 198-207, 2021. Disponível em: https://ppg.revistas.uema.br/index.php/jucara/article/view/2586. Acesso em: 20 jan. 2023.
https://ppg.revistas.uema.br/index.php/j...
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[...] o que Artaud discute [...] são as mazelas dos processos colonizadores e supostamente civilizatórios. As origens da necropolítica que hoje permeia a sociedade tecnológica residem exatamente aí. O que testemunhamos na atualidade é uma explosão de tensões históricas, em que os grupos tradicionalmente subjugados e excluídos resolveram reagir. Os fundamentos da necropolítica passam a ser confrontados.

É a possibilidade desse confronto que nos interessa aqui ao pensarmos a dança na contemporaneidade. Deleuze e Guattari propõem a ideia de uma desterritorialização em que, a partir do conhecimento desse território em que fomos constituídos, deve-se buscar “um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis” (Deleuze; Guattari, 1999, p. 22DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1999.). Pode o corpo que dança ser o corpo que, indo além da necropolítica e dos mundos de morte estabelecidos, encontra tal desterritorialização, tal linha de fuga em direção não à negação, mas à afirmação da potência da vida? Pode, por isso, a dança na contemporaneidade ser capaz de confrontar e curar a violência dos corpos mortificados, cancerosos ou mesmo totalitários e fascistas, uma vez que ela os pode levar para além de seus vazios em direção a novas picto-coreografias como composições de si?

As potências da dança e a insurgência visceral

A fim de refletir acerca da relação entre o corpo sem órgãos, a dança e a resistência, confirmando a hipótese antes proposta, agora buscaremos realizar uma aproximação entre uma “escrita das vísceras”, conforme sugere Daniel Lins (1999)LINS, Daniel. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. ao falar dos cadernos de Artaud, e as “lutas da visceralidade”, apontadas por Achille Mbembe (2019b)MBEMBE, Achille. Poder Brutal, Resistência Visceral. Translation by Damian Kraus. São Paulo: N-1 edições, 2019b. como uma forma, centrada nos corpos, de resistência possível aos cenários necropolíticos do capitalismo hoje – potentes, e não vazios de vida, mesmo em suas contradições. A fim de abordar a reconstrução do corpo sem órgãos, ecoando questões fundantes do teatro da crueldade, entende-se a necessidade de tecer, na vida, uma nova relação com a linguagem. Daniel Lins (1999)LINS, Daniel. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. faz uma aproximação interessante na medida em que entende que se faz possível (e necessária) a existência de um “artesão do corpo sem órgãos”, ou seja, de um artista capaz de reconstruir seu corpo em sua potência de forma artesanal.

Vivenciar é também experimentar pensamentos nômades, produzir uma escrita das vísceras, elaborar conceitos grávidos de acontecimentos e trabalhar com citações inseridas no universo da contaminação e não da cópia, criando assim uma nova linguagem que cheira à vida [...] (Lins, 1999, p. 8LINS, Daniel. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999., grifo nosso).

A perspectiva de uma resistência visceral ganha um espaço central para conceber essa linha de fuga ao corpo mortificado e automatizado, em que o autor acredita que é “[...] na total subjetividade das vísceras que repousa a linguagem e, em consequência, a realidade singular das coisas” (Lins, 1999, p. 12LINS, Daniel. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.). Acredita-se, então, que seja de extrema importância propor que se busquem novas formas de escritas e inscrições corporais, ou de pictocoreografias: que não sufoquem ou apaguem sua realidade singular, suas dores, seu território, sua multidão e até mesmo a impossibilidade de falar das coisas de forma institucionalizada, assumindo os limites do cognoscível e da representação em um ato poético. As vísceras são anteriores aos órgãos da anatomia moderna e à razão. Pensar uma linguagem que emerge das “vísceras” não tem relação com uma divisão do corpo em categorias estanques ou órgãos. Semântica e metaforicamente, as vísceras parecem mais antigas e vitais que os órgãos, carregadas de potência vital.

Os cadernos de Artaud, no período das internações, por sua vez, pareciam se tornar palco para essas expressões viscerais e, ao tratar do assunto, Lins aponta que é por meio dessa linguagem corporal em sua picto-coreografia que Artaud quer “acordar os mortos vivos para vida”, ao que ele continua:

Contra a linguagem inerte, Artaud reivindica as marcas de uma doença de estilo: o texto deve carregar os traços de dilaceramento e angústia, estrias e nervuras, marcas de uma segunda, terceira, infinitas peles tatuadas tanto pela agulha que as penetra como pelo suor que escorre das vísceras e faz do líquido quente e salgado a tinta que incendeia o mundo dos mortos vivos, acordando-os para a vida (Lins, 1999, p. 13LINS, Daniel. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999., grifo nosso).

As formas de desenvolvimento de uma “linguagem das vísceras”, conforme sugerem os estudos acerca do corpo sem órgãos, podem ser inúmeras, expressando a dor, a festa, a cultura, a memória. O corpo que dança livre, para além de seus automatismos cotidianos, seria o corpo que redescobre sua própria visceralidade e se reconstrói.

Mbembe defende também uma “revolução das vísceras” por meio de conceitos como “resistência visceral” e “lutas da visceralidade”, que ele menciona em uma entrevista denominada Quando o poder brutaliza o corpo, a resistência assume uma forma visceral14 14 Essa entrevista (concedida a Pablo Lapuente Tiana e Amador Fernández-Savater), foi publicada no Brasil no livro Poder brutal, resistência visceral, organizado pela N-1 edições (Mbembe, 2019b). . Ao definir o que seriam essas “lutas da visceralidade”, Achille Mbembe as apresenta como “insurreições” que se posicionam diante de um cenário bem definido: a brutalização15 15 Recomendamos aqui o livro Brutalismo, de Achille Mbembe, em que o autor parte de um conceito extraído da arquitetura para pensar relações políticas, questionando: “[...] por outro lado, o que é o político senão uma apreensão de elementos de toda ordem aos quais se tenta dar forma, se necessário pela força, um exercício de torção e remodelação por excelência?” (Mbembe, 2021, p. 11). do sistema nervoso.

O poder brutaliza os corpos (e o sistema nervoso) para controlá-los. Ana Kiffer (2020, p. 19)KIFFER, Ana. O Brasil é uma Heterotopia. São Paulo: N-1 edições, 2020. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/textos/125. Acesso em: 20 jan. 2023.
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, em alusão a Mbembe, afirma que nosso tempo é marcado, por excelência, pelo signo “da destruição e do Brutalismo”. Já Peter Pál Pelbart questiona os efeitos do biopoder e do Brutalismo nas sociedades, destacando a centralidade do corpo nesses processos: “[...] em todo caso, nunca como antes se expôs com tamanha evidência a que ponto a vida e o corpo estão no centro do furacão, ali onde biopolítica, guerra e capitalismo se entrelaçam de modo indissociável” (Pelbart, 2020, p. 9PELBART, Peter Pál. Biopolítica e Brutalismo em Chave Estratégica. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, Florianópolis, v. 17, p. 1-10, 2020.). Como se opor a todo esse sistema brutal de aniquilamento e controle? É essa brutalização do sistema nervoso, antes mencionada, que conduz, justamente, à apatia e à “morte em vida” e cuja finalidade seria moldar nossos corpos à força para o trabalho, deixando-os dóceis e coniventes.

Para Achille Mbembe (2019b, p. 18)MBEMBE, Achille. Poder Brutal, Resistência Visceral. Translation by Damian Kraus. São Paulo: N-1 edições, 2019b.:

Há um surgimento de pequenas insurreições. Essas microinsurreições ganham uma forma visceral como resposta à brutalização do sistema nervoso típica do capitalismo contemporâneo. Uma das formas de violência do capitalismo contemporâneo consiste em brutalizar o sistema nervoso. Como resposta, emergem novas formas de resistência ligadas à reabilitação dos afetos, emoções, paixões, que convergem nisso tudo que eu chamo de ‘políticas da visceralidade’.

A reabilitação dos afetos pode ser aquilo que, justamente, preenche o corpo esvaziado de sua potência, automatizado nas relações cotidianas quase sempre inseridas em um cenário capitalista e de exploração, em que seres humanos não são mais do que mão de obra – e algumas vezes até mesmo mão de obra descartável. Como dançar a partir do entendimento de que cada vez mais (e de forma veloz na sociedade contemporânea) o corpo se torna o alvo de um processo que busca fazer dele um objeto moldado pela coerção, violência, medo? O que existe de mais visceral em nós que é capaz de se delinear como resistência?

Tendo tudo isso em vista, entende-se que o corpo sem órgãos, quando preenchido em sua potência – quando preenchido pela vida em suas contradições, até mesmo naquilo que “a vida tem de irrepresentável” – é aquele capaz de denunciar a naturalização das mortes contemporâneas, sejam elas físicas ou simbólicas, e que se mostram constantes na constituição dos corpos e dos territórios que os formam por meio das culturas ali existentes. O que pretendemos prosseguir investigando é a capacidade que a dança tem de auxiliar na superação de um tipo específico de estrato: a brutalização do sistema nervoso. Como atuar fisicamente contra a crescente brutalização dos corpos? Como pode o gesto cênico do corpo que dança também curar? Simples (ainda que complexo): como insurreição visceral, a dança contemporânea é capaz de reabilitar afetos e despertar potências em sua busca por liberdade por meio do gesto e do movimento, promovendo insurreições – as insurreições viscerais de Mbembe16 16 Na entrevista anteriormente citada, Mbembe, ao ser questionado sobre a possibilidade de resistência à necropolítica, aponta que “[...] as formas contemporâneas de resistência à necropolítica e à necroeconomia [...] são muito diversificadas, pois dependem das situações locais e dos contextos” (Mbembe, 2019b, p. 16). Para as autoras, a dança em suas possibilidades se mostra, sem dúvida, como uma dessas formas de resistência. – capazes de acordar até mesmo os “corpos mortos em vida”.

Para Hélia Borges (2021, n. p.)BORGES, Hélia. Notas sobre a Dança Contemporânea e a Experiência da Queda. Incomunidade, Porto, 24 abr. 2021. Disponível em: https://www.incomunidade.pt/notas-sobre-a-danca-contemporanea-e-a-experiencia-da-queda/. Acesso em: 20 jan. 2023.
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17 17 O texto de Helia Borges (2021) sobre a experiência da queda na dança contemporânea foi publicado em uma revista portuguesa on-line de ampla circulação (mas não estritamente acadêmica) e é uma das raras referências encontradas que mencionam, ainda que de passagem, a questão da necropolítica na perspectiva da dança. , a atualidade assiste:

[...] a emergência de corpos brutalizados em seu sistema nervoso como consequência das forças neocapitalísticas. No entanto, assistimos nos levantes, nas insurreições, a força de luta e resistência ao instituído. Esse movimento fragmentário e coletivo, paradoxalmente, é fruto das políticas de visceralidade que se dão a partir das práticas de reabilitação do corpo sensório atiçado pelas afecções, pelas paixões (como por exemplo, a experiência da queda na dança contemporânea).

Mirar a uma linguagem inspirada na visceralidade, ou seja, à reabilitação do corpo sensório pela dança dialoga com a proposta de uma “escrita das vísceras” (Lins, 1999LINS, Daniel. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.), antes mencionada. Essa reabilitação dos afetos é sobretudo potência política, pois busca dar voz às questões do corpo, que também é voz que representa causas coletivas. Cabe, então, sintetizar que os processos de desconstrução e reconstrução propostos pela experiência do corpo sem órgãos (perspectivando ocupar-se de si para ocupar-se dos outros) encontram nas poéticas da dança um modo de reabilitação dos afetos, novas composições de si capazes de ir contra à brutalização dos corpos e, por isso mesmo, também um modo de resistência visceral.

Para Hélia Borges (2021, n. p.)BORGES, Hélia. Notas sobre a Dança Contemporânea e a Experiência da Queda. Incomunidade, Porto, 24 abr. 2021. Disponível em: https://www.incomunidade.pt/notas-sobre-a-danca-contemporanea-e-a-experiencia-da-queda/. Acesso em: 20 jan. 2023.
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, os “levantes” (como ela se refere à resistência visceral) se fazem necessários “a partir de lugares predefinidos do humano alienado [e] expropriado”, ou, como ela também coloca, a partir de “um humano que se constituiu enquanto corpo morto”. Para eles, a dança permite “o retornar à vida a partir de um estado de morte”, uma vez que a dança “[...] coloca em trânsito uma dinâmica do desejo, [...] caminho [que] se realiza a partir da sensibilização: o acordar do corpo que retorna sob a forma de um novo hábito na obscuridade dos automatismos”. E essa seria “[...] uma perspectiva política porque provoca um deslocamento e um descolamento perceptivo, ao produzir novas formas do sensível e do visível contra aquilo que é consenso, reconfigurando a experiência do comum”.

Assim sendo, a resistência visceral se abre como um campo de possibilidade para o corpo sem órgãos, “reconfigurando a experiência do comum” pela estesia. O corpo sem órgãos e pleno de vida é um corpo energético, um corpo de possibilidade: um corpo que dança em seus hieróglifos, se move entre a representação e o irrepresentável e se abre a novas composições de si. Assim, um elemento identificado no corpo sem órgãos por Deleuze e Guattari é justamente a possibilidade de gerar transformações individuais e coletivas, de possibilitar afetações. Possibilitar essas afetações, em uma coletividade brutalizada, é uma forma de resistência. Com isso, a dança na contemporaneidade pode abrir um horizonte de superação (micro)político, ainda que possa ser coletivo, da necropolítica.

Isso gera indagações: como podemos dançar juntas/juntos/juntes em prol de reconfigurar nossas dores pessoais e coletivas? Por onde essa criação se desdobra fisicamente? Quais ações criativas em relação à musculatura, fluência, peso, ritmo, disrupção podem se fazer necessárias? Esses são só alguns exemplos de indagações, visto que a perspectiva do corpo sem órgãos, por definição, jamais se proporia a responder um procedimento exato, ainda que sejam questões possíveis para investigação futura.

Considerações finais

Quando pensamos a necropolítica de Achille Mbembe, a reabilitação dos afetos se mostra fundamental contra a brutalização dos sentidos decorrente do capitalismo contemporâneo, fazendo-nos aqui propor a dança como esfera de (micro)insurreições, visto que esta se mostra capaz de “acordar” o corpo brutalizado, tirando-o de sua apatia e dos automatismos cotidianos e reabilitando seus afetos ao levá-lo a “dançar às avessas”: ao dançar para além (e até “ao contrário”, no sentido de “na direção oposta”) de seus mecanismos de sobrevivência e automatismos. Em outras palavras, se pensamos a dança, pelo menos a dança na contemporaneidade, como lugar de criação, o corpo que dança se torna sujeito, escapando a sua mera objetificação.

Como coloca Debora Saccol (2014, p. 02)SACCOL, Débora Matiuzzi Pacheco. A Disciplina dos Corpos na Cena Contemporânea. DAPesquisa, Florianópolis, v. 9, n. 11, p. 1-10, 2014. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/dapesquisa/article/view/8171. Acesso em: 20 jan. 2023.
https://www.revistas.udesc.br/index.php/...
, “o corpo passa a ser o sujeito da dança” e, ao se tornar sujeito, instiga toda uma reflexão crítica especialmente no que se refere à sua disciplina e controle e à forma como esta se modifica (e se codifica) na cena contemporânea. Assim, ele se torna um corpo que se experimenta pela arte, um corpo que se entrega ao gesto, que se revive ao se fazer no limiar da representação – um corpo que se insurge. Afinal:

[...] a dança é esse corpo que se experimenta através da arte. Ao dançar, o corpo se entrega ao gesto, ao encontro, às vertigens da estética. Joga-se ao instante, ao evento, desfaz o tempo e o espaço, desnuda-se dos movimentos para tornar-se sensível. Uma vida que não existe fora dos encontros e acontecimentos, pois o corpo que dança torna-se ele mesmo acontecimento quando encontra algo que potencializa a experiência sensível e casual em vivência necessária, em experiência do pensamento, em condição de existência como efeito da capacidade de agir e pensar. Dançar então pode ser desmesurar, desnudar, desmarcar o espaço, desaparecer no espaço-cena. Pensar, sentir, viajar. Expressar poeticamente a potência da vida. Encontrar uma potência para a vida que a faça tornar-se arte. Vida como obra de arte. Dança como devir (Munhoz, 2011, p. 29MUNHOZ, Angélica Vier. Flutuações de um Corpo-Dança. Repertório, Salvador, n. 16, p. 24-30, 2011.).

Neste artigo, pretendemos pensar a dança na contemporaneidade como conceito alargado e em campo expandido, sobretudo pela noção de resistência visceral, manifestada no confronto dos conceitos de corpo sem órgãos, de Antonin Artaud, e de necropolítica, de Achille Mbembe. Como vimos, este artigo girou em torno de uma hipótese-pergunta: se a dança, na contemporaneidade, poderia ser um instrumento político de insurreição (ou seja, de resistência) diante do cenário global da necropolítica. Mesmo que parcial, a conclusão alcançada nos responde que sim e que isso se daria por aquilo que foi chamado aqui de resistência visceral, a qual propõe pela dança a reinvenção e o acordar dos corpos, sujeitados e adormecidos pelos modos de exercício do poder, da violência e de controle (biopoder) característicos do capitalismo contemporâneo e seu poder anestesiante e brutalizador dos sentidos.

Neste contexto, a “dança às avessas” se pôs como diálogo possível entre a dança contemporânea e a desconstrução de um corpo cheio de automatismos, de um corpo pré-formatado e de movimentos moldados e limitados pelos interesses e pela expropriação do mundo capitalista, colonial e patriarcal. Desse modo, as potências da dança na contemporaneidade poderão se mostrar também em sua força de agenciamento micropolítico se suas experimentações nascerem da superação da violência e da brutalização dos sentidos (caracterizando-se, assim, como resistência visceral), tal como discutido neste artigo. Este, contudo, está longe de esgotar o tema, muito pelo contrário: muito ainda pode ser pesquisado e experimentado quanto às reverberações entre biopolítica, necropolítica e dança18 18 Como a já mencionada esparsa bibliografia disponível o demonstra. Por exemplo, um próximo passo – a ser realizado em pesquisas futuras – poderia ser explorar novos processos de criação em dança contemporânea, que possam dar vazão à tal “escrita das vísceras” apresentada por Lins (1999) a partir de Artaud no contexto das lutas da visceralidade de Mbembe (2019b). .

Como principal contribuição, fica a percepção de que a dança na contemporaneidade pode se mostrar não só como um fazer artístico ou como uma categoria aberta à discussão filosófica, mas, sobretudo, como um instrumento político – ou micropolítico, melhor dizendo. Para Suely Rolnik (2018, p. 131)ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1 edições, 2018., crítica ferrenha do capitalismo e de sua colonização do inconsciente e dos corpos (causadora de automatismos): “o que move os agentes da insurreição micropolítica é a vontade de perseveração da vida, que nos humanos se manifesta como impulso de ‘anunciar’ mundos por vir, num processo de criação e experimentação que busca expressá-los”.

Se a dança na contemporaneidade pode, de fato, se constituir como um instrumento político de insurreição (e resistência) diante dos automatismos e anestesias, característicos do capitalismo contemporâneo e de seus modos de exercício do poder, violência e controle que criam devires de mundo, então essa “dança às avessas” passa, necessariamente, pela reinvenção dos corpos por meio de novas composições de si, novas pictocoreografias de sujeitos que se assumem como agentes de (micro)insurreições.

Concluímos aqui que, no confronto entre dança e necropolítica por meio de um conceito-chave como resistência visceral, um pedaço de terra nova surgiu. Nesse pedaço de terra, novas sementes podem ser lançadas e vir a florescer: elas buscam, sobretudo, uma conexão visceral entre cada pessoa e seu próprio corpo, entre corpos e comunidades, entre comunidades e territórios, e assim por diante. Desse modo, despertam autonomias e afetos, criam sentidos que dancem, se insurjam e sejam capazes de propor “novos mundos” ou até mesmo, quem sabe, nos permitam sonhar novos “futuros possíveis”, como diria Ailton Krenak (2019)KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019..

Notas

  • 1
    Como aponta Débora Saccol (2014)SACCOL, Débora Matiuzzi Pacheco. A Disciplina dos Corpos na Cena Contemporânea. DAPesquisa, Florianópolis, v. 9, n. 11, p. 1-10, 2014. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/dapesquisa/article/view/8171. Acesso em: 20 jan. 2023.
    https://www.revistas.udesc.br/index.php/...
    , as precursoras da dança moderna e contemporânea – tais como Isadora Duncan e Loie Füller – já vinham, desde o começo do século XX, propondo experimentações e repensando diversos aspectos da dança, sobretudo criticando seu engessamento e padronização. Ao longo do século XX, transformações ainda mais expressivas teriam lugar e seriam propostas por diferentes artistas e pesquisadoras. Além disso, ao pensarmos aqui uma cena expandida na dança contemporânea, ela passa, também e sobretudo, pelas inovações propostas por Pina Bausch (Cabral; Santos, 2019CABRAL, Jeferson de Oliveira; SANTOS, Vera Lúcia Bertoni dos. Notas Sobre a Teatralidade na Dança-Teatro de Pina Bausch. Revista da FUNDARTE, Montenegro, n. 37, p. 19-31, 2019. Disponível em: http://.seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/RevistadaFundarte/index. Acesso em: 20 jan. 2023.
    http://.seer.fundarte.rs.gov.br/index.ph...
    ), um dos marcos da dança do século XX, cuja proposta de uma dança-teatro revolucionou e redefiniu a noção de dança.
  • 2
    Houve a publicação, em 2021, de um artigo de Adeilton Silva que relaciona não só a obra de Artaud, mas também a de José Saramago com a necropolítica, mas é um artigo que não aborda nem o tema da dança nem o do teatro, antes propõe uma reflexão sobre a degradação humana em geral (Silva, 2021SILVA, Adeilton Lima. Antonin Artaud e José Saramago: caos e cosmos. Revista de Letras Juçara, Caxias, v. 5, n. 1, p. 198-207, 2021. Disponível em: https://ppg.revistas.uema.br/index.php/jucara/article/view/2586. Acesso em: 20 jan. 2023.
    https://ppg.revistas.uema.br/index.php/j...
    ). Nesse contexto, vale observar que um esforço inicial foi realizado pelas autoras deste artigo na dissertação intitulada O corpo sem órgãos como resistência visceral: atravessamentos a partir da revolução corporal de Antonin Artaud, de autoria da primeira e orientação da segunda. A dissertação em questão foi defendida no PPGAC/UFOP, em 2022, e buscou contemplar a aproximação entre Artaud e Mbembe em suas denúncias e anúncios, mirando de fato na possibilidade de uma linguagem corporificada que se mostre capaz de resistir visceralmente à necropolítica (Silveira, 2022SILVEIRA, Marina de Nóbile da. O Corpo sem Órgãos como Resistência Visceral: atravessamentos a partir da revolução corporal de Antonin Artaud. 2022. 119 f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Instituto de Filosofia, Arte e Cultura, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufop.br/handle/123456789/15100. Acesso em: 20 jan. 2023.
    https://repositorio.ufop.br/handle/12345...
    ).
  • 3
    A aproximação entre necropolítica e dança ainda é esparsa na bibliografia. Sobre biopolítica, cabe observar que existe um número maior de estudos a explorá-la em diálogo com matrizes de criação em dança. Por exemplo, a aproximação entre a dança butô e os mecanismos de poder e de controle biopolítico da vida vem sendo explorada no Brasil pelo pesquisador Éden Peretta: podemos citar aqui a análise, realizada por ele e Gabriely Lemos (2022)LEMOS, Gabriely; PERETTA, Éden. Dança e Biopolítica: notas sobre uma vida nua. Conceição/Conception, Campinas, v. 11, p. 1-12, 2022. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/conce/article/view/8671128. Acesso em: 20 jan. 2023.
    https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
    , do espetáculo de teatrodança Zoé: restos de uma vida nua, do Coletivo Anticorpos (2018). De forma mais específica, uma rara, porém significativa, contribuição pode ser encontrada no artigo Mestiçagens de um butô negro: colorações afro-brasileiras na dança de Marco Xavier (Tonnetti; Corradini; Mello, 2021TONNETTI, Flávio; CORRADINI, Sandra; MELLO, Simone. Mestiçagens de um Butô Negro: colorações afro-brasileiras na dança de Marco Xavier. ARJ – Art Research Journal: Revista de Pesquisa em Artes, Natal, v. 8, n. 2, n. p., 2021. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/24230. Acesso em: 27 jan. 2023.
    https://periodicos.ufrn.br/artresearchjo...
    ), que relaciona dança butô e necropolítica.
  • 4
    O pensamento de Artaud é tão profícuo que inspiraria diferentes movimentos artísticos, inclusive na dança contemporânea. Para Samantha Marenzi (2019)MARENZI, Samantha. Fundações e Filiações: o legado de Artaud em Hijikata Tatsumi. Dossiê Dança Butô. Ephemera, Ouro Preto, v. 2, n. 2, p. 21-30, ago. 2019. Disponível em: https://periodicos.ufop.br/ephemera/article/view/2218. Acesso em: 20 jan. 2023.
    https://periodicos.ufop.br/ephemera/arti...
    , um dos principais exemplos da influência artaudiana na dança do século XX seria, justamente, a já mencionada (nas notas anteriores) dança butô, surgida no Japão pós-Segunda Guerra Mundial.
  • 5
    Ritual orientado pelo uso do peiote. O peiote é um cacto encontrado no México que remonta aos tempos pré-colombianos por sua longa tradição tanto medicinal quanto ritual. Nativo do sul da América do Norte, esse cacto contém vários alcaloides, incluindo mescalina. Em sua visita de nove meses ao México em 1937, Artaud participou do Ciguri e viveu com os Tarahumaras por cerca de um mês. Esse ritual mudaria profundamente sua relação com seu próprio corpo e sua psiquê (Dias, 2021DIAS, Luciana da Costa. Beyond the Peyote Dance: the Raramuri tribe and ‘Mexico’ representations in Antonin Artaud’s work. In: MOROSETTI, Tiziana; OKAGBUE, Osita (Org.). The Palgrave Handbook of Theatre and Race. London/New York: Palgrave MacMillan, 2021. P. 403-427.).
  • 6
    Também conhecidos na literatura como “Tarahumaras”, uma modificação do nome originário pelos colonizadores espanhóis.
  • 7
    Podemos citar aqui, por exemplo, Le Goff e Truong (2006)LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma História do Corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006., que abordam em profundidade as tensões e crises que o ocidente cristão tem com o corpo desde a Idade Média, aprofundadas pela cisão alma e corpo, na qual a alma em geral é divinizada e glorificada, e o corpo, rebaixado e humilhado, sinônimo de pecado e erro. Poucos se oporão a essa visão, mesmo na modernidade. Descartes mesmo verá o corpo como não mais do que um “autônomo” controlado pela alma racional. Uma das poucas exceções nesse cenário é a filosofia do corpo de Baruch Espinosa, filósofo de origem judaica, perseguido por religiosos judeus e cristãos no século XVII, da qual podemos extrair uma afirmação que Deleuze retomará inúmeras vezes, inclusive para se referir ao corpo sem órgãos de Artaud: “[...] fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo. [...] Pois ninguém conseguiu, até agora, conhecer tão precisamente a estrutura do corpo que fosse capaz de explicar todas as suas funções” (Espinosa, 2009, p. 101ESPINOSA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.). Se para Espinosa não haveria superioridade entre as instâncias do corpo e da mente, também não há separação entre o psíquico e o físico. Para Deleuze e Guattari (1999)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1999., influenciado por Espinosa e Artaud, o corpo será uma composição de forças, potência de afecções e um modo de conhecimento ao qual não convém uma definição pronta e acabada. Voltaremos a isso depois. Com essa breve digressão, o que pretendemos trazer aqui é que Artaud tem um caráter precursor em sua abordagem do corpo, como apontado pelo próprio Deleuze.
  • 8
    Mais especificamente, de acordo com Mèredieu (2011, p. 780)MÈREDIEU, Florence. Eis Antonin Artaud. Tradução: Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2011., dos 406 cadernos escritos, uma centena teria sido escrita no período de Rodez (somente após o término dos tratamentos de eletrochoque, aproximadamente dois anos após sua chegada lá), e os restantes continuando a serem escritos após seu retorno a Paris e durante sua residência no sanatório de Ivry.
  • 9
    O termo picto-coreografia é usado por Derrida (1998)DERRIDA, Jacques. Enlouquecer o Subjétil: pinturas, desenhos e recortes textuais de Lena Bergstein. Tradução: Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: UNESP, 1998. para se referir ao modo como os cadernos de Artaud foram escritos, rabiscados, queimados e esburacados, formando verdadeiros pictogramas, quase como símbolos mágicos. Escritos em traços ora espasmódicos, ora contundentes, eles mostram ter seu próprio ritmo performativo.
  • 10
    O filósofo e professor Achille Mbembe nasceu na República dos Camarões em 1957, região ocidental da África Central. O filósofo tem sido um pesquisador de impacto para pensar a realidade política mundial ao abordar a temática da necropolítica (2018), que aprofunda conceitos como controle dos corpos e biopoder em direção a outros como estado de exceção e políticas de morte, realizando uma análise profunda dos modos de exercício do poder do capitalismo contemporâneo, suas violências e conflitos.
  • 11
    Achille Mbembe (2018)MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução: Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018. cunha o termo necropolítica, política de “morte”, que surge como um desdobramento e aprofundamento dos estudos biopolíticos e que propõe repensar a história das dominações ocidentais pela ótica das tecnologias de morte e de exploração que remontariam sobretudo aos processos da colonização e da plantation.
  • 12
    Biopolítica é o termo cunhado pelo filósofo Michel Foucault (2005)FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução: Maria Hermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005., aqui entendido como os modos dos quais o capitalismo se utiliza para gerir a vida pública por meio da submissão dos corpos: catalogações, punições, aprisionamentos, determinações da subjetividade, etc.
  • 13
    Recomendamos aqui a leitura da obra seminal de Walter Mignolo (2003)MIGNOLO, Walter D. The Darker Side of the Renaissance: literacy, territoriality, & colonization. Michigan: University of Michigan Press, 2003., The Darker Side of the Renaissance.
  • 14
    Essa entrevista (concedida a Pablo Lapuente Tiana e Amador Fernández-Savater), foi publicada no Brasil no livro Poder brutal, resistência visceral, organizado pela N-1 edições (Mbembe, 2019bMBEMBE, Achille. Poder Brutal, Resistência Visceral. Translation by Damian Kraus. São Paulo: N-1 edições, 2019b.).
  • 15
    Recomendamos aqui o livro Brutalismo, de Achille Mbembe, em que o autor parte de um conceito extraído da arquitetura para pensar relações políticas, questionando: “[...] por outro lado, o que é o político senão uma apreensão de elementos de toda ordem aos quais se tenta dar forma, se necessário pela força, um exercício de torção e remodelação por excelência?” (Mbembe, 2021, p. 11MBEMBE, Achille. Brutalismo. Tradução: Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 edições, 2021.).
  • 16
    Na entrevista anteriormente citada, Mbembe, ao ser questionado sobre a possibilidade de resistência à necropolítica, aponta que “[...] as formas contemporâneas de resistência à necropolítica e à necroeconomia [...] são muito diversificadas, pois dependem das situações locais e dos contextos” (Mbembe, 2019b, p. 16MBEMBE, Achille. Poder Brutal, Resistência Visceral. Translation by Damian Kraus. São Paulo: N-1 edições, 2019b.). Para as autoras, a dança em suas possibilidades se mostra, sem dúvida, como uma dessas formas de resistência.
  • 17
    O texto de Helia Borges (2021)BORGES, Hélia. Notas sobre a Dança Contemporânea e a Experiência da Queda. Incomunidade, Porto, 24 abr. 2021. Disponível em: https://www.incomunidade.pt/notas-sobre-a-danca-contemporanea-e-a-experiencia-da-queda/. Acesso em: 20 jan. 2023.
    https://www.incomunidade.pt/notas-sobre-...
    sobre a experiência da queda na dança contemporânea foi publicado em uma revista portuguesa on-line de ampla circulação (mas não estritamente acadêmica) e é uma das raras referências encontradas que mencionam, ainda que de passagem, a questão da necropolítica na perspectiva da dança.
  • 18
    Como a já mencionada esparsa bibliografia disponível o demonstra. Por exemplo, um próximo passo – a ser realizado em pesquisas futuras – poderia ser explorar novos processos de criação em dança contemporânea, que possam dar vazão à tal “escrita das vísceras” apresentada por Lins (1999)LINS, Daniel. Antonin Artaud: o artesão do corpo sem órgãos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. a partir de Artaud no contexto das lutas da visceralidade de Mbembe (2019b)MBEMBE, Achille. Poder Brutal, Resistência Visceral. Translation by Damian Kraus. São Paulo: N-1 edições, 2019b..
  • Disponibilidade dos dados da pesquisa: o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.
    Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Referências

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    » https://www.incomunidade.pt/notas-sobre-a-danca-contemporanea-e-a-experiencia-da-queda/.
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  • SPINOZA, Baruch. Ethics New York: Hafner Publishing Company, 1954.
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Editor responsável: Gilberto Icle

Disponibilidade de dados

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Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2022
  • Aceito
    30 Jan 2023
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