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O Mistério da Jarra do Escritor Alemão: provocações da montagem cinematográfica e literária à pesquisa nas Ciências Humanas

Le Mystère du Pot de L'Écrivain Allemand: provocations du montage cinématographique et littéraire pour la recherche en sciences humaines

RESUMO

O artigo indaga as políticas da imagem e da montagem na literatura e no cinema como experimentação de uma aposta ética na pesquisa das Ciências Humanas. À luz do conceito de montagem em Walter Benjamin, e das análises de DidiHuberman sobre a imagem como tomada de posição, problematiza a distância intransponível entre sujeito e o objeto, a fratura entre forma e conteúdo, ética e estética na pesquisa frente ao intolerável de um mundo comum. As indagações são apresentadas através de fragmentos que versam sobre o entrelaçamento entre corpo, memória, revolta e criação, no intuito de ressaltar a aposta ética da montagem não como o bálsamo para o corpo sufocado pelo abjeto, mas como o oxigênio necessário à multiplicação de vias, sentidos, ultrapassagens de limites para a criação de resistências ao torpor do pensamento.

Palavras-chave:
Montagem; Literatura; Cinema; Pesquisa; Ética

RÉSUMÉ

L'article analyse les politiques de l'image et du montage dans la littérature et le cinéma en tant qu'expérimentation d'un pari éthique sur la recherche en sciences humaines. D’après le concept de montage de Walter Benjamin et des analyses de Didi-Huberman sur l'image en tant que position, il analyse la distance infranchissable entre le sujet et l'objet, la fracture entre la forme et le contenu, l'éthique et l'esthétique dans la recherche face à l'intolérable d'un monde commun. Les questions sont soulevées à travers des fragments qui traitent l'entrelacement du corps, la mémoire, la révolte et la création, afin de souligner le pari éthique du montage non pas comme un baume pour le corps étouffé par l'abject, mais comme l'oxygène nécessaire à la multiplication des voies, des sens, au dépassement des limites pour la création de résistances à la torpeur de la pensée.

Mots-clés:
Montage; Littérature; Cinema; Recherche; Éthique

ABSTRACT

This article investigates the politics of the image and montage in the literature and filmmaking as an experimentation with an ethical bet on research in Human Sciences. In the light of Walter Benjamin’s concept of montage, as well as DidiHuberman’s analysis of image as taking a position, it problematizes the insurmountable distance between the subject and the object, the fracture between form and content, ethics and aesthetics in research in the face of the intolerable of an ordinary world. The questions are presented through fragments that deal with the intertwining between body, memory, revolt, and creation, to emphasize the ethical bet of the montage not only as a balm for the body suffocated by the abject, but as the oxygen necessary for the multiplication of paths, senses, overcoming limits for the creation of resistance to the numbness of thought.

Keywords:
Montage; Literature; Cinema; Research; Ethics

Preâmbulo

Criadores de imagens no cinema e na literatura propiciam o estranhamento perturbador ao mundo onde o intolerável inscruta-se irremediavelmente. Produção imagética disponível ao pensamento insatisfeito com o protagonismo do humano reduzido à fonte exclusiva, da qual, o que os olhos veem seriam representações da consciência, ou rastros do Sujeito. O olhar não teria história. A imagem não revidaria o olhar, não pensaria. Heterogêneas modalidades estéticas do artesanato das imagens resumir-se-iam à escolha do criador. Neste ensaio, deseja-se apostar na política da imagem como artefato histórico, assim como na montagem como ato ético na pesquisa das Ciências Humanas. O rebelar-se ante os projetos fascistas da atualidade encontra neste artesanato o estranhamento indutor ao escape do corpo paralisado pelo nada a fazer, por excesso de dor, ou por indiferença. O estupor, o estranhar produzido pela montagem do cinema e da literatura quando o ar falta e, simultaneamente, o pensamento, enrijece. Oferta a indicar não o bálsamo para o corpo sufocado pelo abjeto, mas o oxigênio necessário à multiplicação de vias, sentidos, ultrapassagens de limites para a criação de resistências ao torpor da asfixia.

O ato de montar neste ensaio inspira-se na destruição criativa de Walter Benjamin (1987BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras Escolhidas volume 2. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 236): “O caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que todo ódio”. Despejo arriscado, a exigir a renúncia de conceitos cristalizados, do conforto de concepções políticas desatentas aos apelos singulares da atualidade. O despejar do homem-estojo, imune ao desconforto do pensar onde seus vestígios, à semelhança das marcas impressas em um tecido, dar-lhe-ão a segurança de um horizonte: “O caráter destrutivo é o adversário do homem-estojo. O homem-estojo busca sua comodidade, e sua caixa é a síntese desta. O interior da caixa é o rastro revestido de veludo que ele imprimiu no mundo. O caráter destrutivo elimina até mesmo os vestígios da destruição” (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras Escolhidas volume 2. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 236). Quais provocações o conceito de montagem faria à pesquisa nas Ciências Humanas? Qual risco ofereceria ao abrigo de uma caixa de veludo?

A montagem, no seu intuito de proporcionar ar fresco e ao mesmo tempo o despejo, para que no espaço vazio algo aconteça, requer tomada de posição, não de partido, na produção do saber através das imagens. Escolha que requer movimento e risco. A neutralidade do pesquisador é recusada:

É preciso implicar-se, aceitar entrar, afrontar, ir ao coração, não bordejar, decidir. É preciso também - porque o ato de decidir acarreta isto - ‘afastarse’ violentamente do conflito, ou então ligeiramente, como o pintor quando se afasta de sua tela para saber em que ponto está seu trabalho. [...] Para saber é preciso tomar posição, o que supõe mover-se, e constantemente assumir a responsabilidade de tal movimento (Didi-Huberman, 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017., p. 16).

O tomar partido almeja manter a direção à verdade no rumo previsto, caminho no qual nada poderá desviar ou indicar outras vias ao percurso. Ato do distanciamento estratégico, da “abstração pura, na transcendência altiva, no céu do longe demais” (Huberman, 2017, p. 16). A imagem, o saber e a pesquisa ganham a altivez da não interferência daquilo que ultrapasse o limite das suas metas. Didi-Huberman, à luz das reflexões benjaminianas, apresenta conexões entre o ato de montar e o “caráter destrutivo” como tomada de posição:

A montagem possui esse ‘caráter destruidor’, pelo qual um prévio de narrativade temporalidade, em geralvê-se deslocado a fim de que dele seja extraído o conflito imanente [...] Por outro lado, a montagem procede desobstruindo, isto é, criando vazios, suspense, intervalos que funcionarão como outras tantas vias abertas, caminhos para uma nova maneira de pensar a história dos homens e a disposição das coisas. Ali onde partido impõe a condição preliminar de uma partida em detrimento das outras, a posição supõe uma copresença eficaz e conflituosa, uma dialética das multiplicidades entre si (Didi-Huberman, 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017., p. 113).

Para saber, segundo o pesquisador da história das artes, é preciso exercitar o ato arriscado de tomada de posição a exigir o entrelaçamento entre as políticas do corpo, da memória e do desejo. Entrelaçamento indutor do despejo do subjetivismo, da compacidade do real, da transcendência altiva a desprezar políticas do sensível tramadas na carne do pesquisador. O entrelaçar artesão das relações inesgotáveis entre revolta, desejo, finitude e criação:

Tomar posição é desejar, é exigir algo, é situar-se no presente e visar futuro. Contudo, tudo isso só existe sobre o fundo de uma temporalidade que nos precede, que nos engloba, chamando por nossa memória até em nossas tentativas de esquecimento, de ruptura, de novidade absoluta. Para saber é preciso saber o que se quer; porém, é preciso, também, saber onde se situa nosso não saber, nossos medos latentes (Didi-Huberman, 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017., p. 15).

Para saber através das imagens, Didi-Huberman (2018DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do Tempo Sofrido. O olho da História II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018., p. 105) sugere “[...] elevar seu pensamento à altura de uma cólera, elevar sua cólera à altura de um trabalho [...]. Para saber abrir nossos olhos para a violência do mundo inscrita nas imagens”. Proposta que denota à montagem na literatura e no cinema um ato nada inocente. Fúria e criação não seriam amortecidas por sentenças dos becos sem saída do pensamento. O montar estaria atento aos sinais do terror. Arte da guerra, dos exilados de heterogêneas modalidades de territórios, que recusaram, e recusam, a violência da sentença a decretar o esgotamento da experimentação. Arte passível de fazer da cólera uma destruição criadora de ar fresco, despejos, caminhos.

A cólera neste ensaio materializa-se por meio de três fragmentos. O primeiro apresenta o incômodo diante da sacralização do excluído na pesquisa das Ciências Humanas. O sagrado que obscurece o infame, os banidos da vida social de interferirem na história, assim como omite o pesquisador como passível de ser afetado pelas misérias de um mundo comum. Discorre também sobre o vigor dos detritos, das tralhas, dos restos, produzido pela desatenção da historiografia oficial para prováveis montagens. O montar, à luz de Walter Benjamin, que profana a conversão dos humilhados, da escória em entes desmaterializados. No segundo, cenas de um sonho de Benjamin indicarão relações entre montagem, memória e política. A jarra de um escritor alemão contendo algo indefinido, o choro de Benjamin ao tocar um corpo, o calor insuportável no ambiente protagonizam o sonho. No terceiro, a agonia do canário na gaiola no Chile, a asfixia de um homem sergipano indica sinais de alarme que escapam à visibilidade do cotidiano. Montagem e corpo estão presentes nestas imagens. São fragmentos que almejam problematizações às metodologias nas Ciências Humanas. Fragmentos que inquirem a distância intransponível entre sujeito e o objeto, a fratura entre forma e conteúdo, ética e estética frente ao intolerável de um mundo comum. Qual o poder do dejeto, de uma tralha, do que restou de um destroço? Por que montar?

O Cortejo dos Restos

Na planície poeirenta do solo arrasado, sob o céu cinzento, homens marchavam curvados. Desconheciam para onde iriam, mas eram impelidos por uma necessidade de caminhar. “Trazia cada um deles às costas uma enorme Quimera, tão pesada como um saco de farinha ou de carvão” (Baudelaire, 2006BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2006., p. 283). Caminhavam resignados como se o peso sobre o corpo inexistisse. “Na poeira de um solo tão desolado como o do céu, eles marchavam com a aparência resignada dos que são condenados a esperar eternamente” (Baudelaire, 2006BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2006., p. 283). Na Paris do poeta francês, no sertão brasileiro, nas cidades onde corpos são perpassados por sonhos, quimeras que não escolheram, homens são condenados à esperança. Olhos de um corpo ereto a vislumbrar a marcha triste comovem-se, outros não. Os comovidos almejam conduzir a marcha, torná-la menos fatigante, mas a curvatura do corpo em direção ao solo desolado é desviada do olhar. A sentença da condenação desses homens “a esperar eternamente” não os atrai. O céu cinzento torna-se objeto de preocupação. Os olhos sensibilizados, testemunhas da marcha melancólica, talvez desejem luz para os conduzir na caminhada. Para onde? Qual iluminação?

Os ombros curvados dos homens ‘condenados a esperar eternamente’ retratariam a indolência do coração, a acedia: “Para os teólogos da idade Média ela contava como o fundamento originário da tristeza” (Benjamin, 2005, p. 70). Indolentes, sob o céu cinza, ocupavam planícies e sertões resignados:

A acedia é o sentimento melancólico da todo-poderosa fatalidade, que priva as atividades humanas de qualquer valor. Consequentemente, ela leva a uma submissão total à ordem das coisas que existem [...] ela se sente atraída pela majestade solene do cortejo dos poderosos (Lowy, 2005LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de História’. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 71).

Nas planícies, sertões, cidades a curvatura dos caminhantes resignados poderá ser inquirida em sua fatalidade. O peso das quimeras, dos sonhos que não lhes pertence, assim como a tristeza. Porém, olhos dos corpos eretos, religiosos, ou não, reivindicarão a luminosidade do sagrado, e a advertência de Walter Benjamin seria preterida: “A superação autêntica e criadora da iluminação religiosa não se dá através do narcótico. Ela se dá numa iluminação profana, de inspiração materialista e antropológica” (Benjamin, 1994, p. 23). Qual materialismo? Que iluminação a literatura e o cinema ofereceriam a estes homens para libertá-los da esperança indolente?

O cortejo formado por desvalidos, infames, criaturas vulneráveis percorre pesquisas nas Ciências Humanas. Temas onde a tristeza impera, o sofrimento predomina, a justiça é clamada. Cortejo cuja imagem aproxima-se do universo do sagrado, no qual o compadecer-se, o inclinar-se ao outro rogaria a salvação do excluído. Pesquisas descrevem desumanidades, formulam hipóteses sobre a origem das agruras, indicam soluções para saná-las. Almeja-se incluir, dar a voz, dialogar com o objeto investigado na busca da salvação. Diálogo onde o outro padece, resiste, na sua luminosa diferença. Luz que denota às suas palavras e silêncios o significado preciso; o enigma a ser decifrado. Desenha com nitidez os limites do corpo como propriedade privada, ou coletiva. Denota à voz, ao grito a particularidade da sua dor. Revela sombras que só a ele pertence. Para esse humanismo são condenados ao lixo da história, à espera da inclusão, da empatia, do direito à voz. O outro teria um lugar, cercas, margens. Espaços e barreiras nitidamente delimitados e compartilháveis quando a luz da consciência faz emergir a redentora empatia. Cada infortunado no seu devido lugar, até que outra presença o ocupe, iluminada pela luz da compaixão. Translado seguro, do qual o visitante sairia ileso. A tralha humana continuaria em seu posto, também ilesa. O desassossego, o transtorno advindo do encontro com a alteridade a destruir cercas, lugares, margens inexistiriam. Qual o poder de um resto, de um fragmento?

O cortejo passa vagaroso devido ao peso dos infortúnios. Percorre lento junto aos cupins dos velhos arquivos. Inúmeros significados, confissões, explicações divergentes, nomeações, classificações justificariam a razão do peso. Apesar de longevo mistura-se também aos temas atuais captados nas telas de vidro. A vida infame, precária, é vista por olhos ávidos em cuidar, redimir, como se o olhar do pesquisador fosse imune às misérias de qualquer espécie. Olhar do aprendiz de um ente sagrado, inspirado na teologia, em que a imagem do outro, das mazelas da existência não revidariam o olhar: “Somente os teólogos sonham com imagens que não fossem produzidas pela mão do homem [...]. Frente a cada imagem, o que deveríamos indagar é como ela nos olha, como nos pensa e como nos toca” (DidiHuberman, 2014, p. 14). Que efeitos sucedem à pesquisa caso a imagem revidasse o olhar?

O cortejo segue em direção ao paraíso, ou ao inferno, como se o malogro dessas existências estivesse escrito na predestinação da alma, do socius, ou do destino. O paraíso seria a vitória da existência maldita integrada ao mundo no qual a maldição dessas criaturas fosse estranha às verdades que o faz funcionar. A procissão atravessa o vidro da tela, percorre páginas amareladas corroídas por insetos como se as mazelas fossem capítulos de histórias contínuas em direção ao desfecho conclusivo. Passado, presente e futuro convertem-se em páginas descritivas do tempo, em que a pulsação de quem as toca, ou de qualquer acontecimento inusitado inoperasse. O perigo do agora, apelos inadiáveis que irrompem entre o par sujeito-objeto, passíveis de dissipar a delimitação daquilo que os define, é ignorado. No presente vislumbrar-se-ia o que restou, ou que ainda resta dos escombros do passado. Sujeito e objeto, tempo e espaço, corpo e mundo habitariam universos intocáveis, à semelhança dos limites das fronteiras onde o tempo é alheio à pulsação de algo vivo que interfira na impermeabilidade das suas bordas. Do paraíso e do inferno um relampejar seria evitado: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele foi de fato. Significa apropriarse de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (Benjamin, 1996BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1996., p. 224). Qual o perigo do relampejar para os condutores do cortejo dos desvalidos?

O cortejo passa assistido pela imunidade do olhar que o observa. No manuseio dos arquivos a luva protegeria as mãos do pesquisador da contaminação. O vidro da tela o imunizaria por meio da presumível distância. Imagens estranhas, irreconhecíveis à nitidez do malogro do seu objeto não afetariam a pele. O corpo imunizado proteger-se-ia do efeito do toque nas folhas, ou de qualquer coisa que ainda insista em dizer, ruminar, ou silenciar algo inusitado. Desvalidos passam pesados, inventariados, observados pelo olho imune ao risco da contaminação, aos perigos do agora. O contágio passível de interromper a linearidade da história, das origens, dos suportes exclusivos dos pronomes pessoais é sanado. A falta de ar do pesquisador ante a radicalidade cortante da alteridade, do acontecimento desnorteador, da imagem que revida o olhar é evitada. Sujeito e objeto apartam-se na ausência das desestabilizações de um mundo comum. Desse conforto uma indagação é evitada: “O que o historiador faz da carne humana, com efeito, aquela que deseja, ama, sofre ou contradiz a linha reta das análises claras?” (Farge, 2015FARGE, Arlete. Lugares para a História. Belo Horizonte: Autêntica, 2015., p. 79).

Da carne desejante, a recusar uma “vida fragilizada”, algo acontece:

Afetos, paixões, dores emergem como ação política: corpos singulares, múltiplos, e não ‘o corpo’, em geralsão afetados pela história e a afetam [...] a história não é narrada apenas por meio de uma sequência de ações humanas, mas também por meio de toda a constelação das paixões e das emoções sentidas pelos povos (Didi- Huberman, 2021DIDI-HUBERMAN, Georges. Povo em Lágrimas. Povo em Armas. São Paulo: N-1 edições, 2021., p. 466).

Nas pesquisas em que o abismo entre o céu e o inferno é o leme da investigação, evita-se a história contada por carne humana, sentida na epiderme, nos ossos, nas vísceras, na qual o desenho do corpo ganha forma provisória a cada encontro, ou desencontro, de desejos e memórias em embates. Impede-se a manipulação que ao tocar, ao utilizar os fragmentos de existências, desestabilize a solidez do método. A proteção ao contágio bloqueia o prosseguimento de outra e inconclusiva história onde morte e criação se enlaçam. Morte da autoria exclusiva, do resultado esperado, da esperança, ou desesperança, paralisadora. Contaminação, a dissipar o protagonismo da visão de mundo do pesquisador, germinada na arrogância do olhar imaculado ao negar o corpo sujo por heterogêneos afetos. O contaminar-se a exigir justaposições de heterogêneas presenças de histórias na pele a interromper a linearidade do tempo. Exigência da escrita onde mãos tateantes são protagonistas da criação:

Escrever é tatear. Por isso ‘interrompemo-nos aqui e ali’, afirma Benjamin. Escrever é não saber ‘como prosseguir’. É essa interrupção que dá o direito ao escritor de dizer: ‘uma vez só é nada’ [...] Escrever não é preencher, obsessivamente, os espaços vazios do pensamento e, por sua vez, tatear não é o mesmo que ausência de rigor na escrita, mas simplesmente o gesto do escritor, que com suas mãos cuidadosas, ‘aprendeu a começar de novo a cada dia’. A mão tateante é uma mão treinada, é ela que realiza na busca do escritor, um corte ‘afiado no campo das palavras e do pensamento’ (Oliveira, 2013OLIVEIRA, Flavio Valentim. Arte, Teologia e Morte: filosofia e literatura em Franz Kafka e Walter Benjamin. Curitiba: Appris editora, 2013., p. 16).

A imagem profanada convoca a emergência do agora desacomodador do pesquisador, incita o corte afiado que o faz estranhar a lógica que o conduz. O agora afiado a interromper a meta planejada, a palavra salvadora, o pensamento convicto. O conforto da conclusão na defesa de uma tese seria suspenso. Profanação realizada no terreno, no tatear, na materialidade da empiria produzida por um modo peculiar de montagem que se apropria de restos ainda não carcomidos totalmente pelos vermes. Walter Benjamin inspira esse ensaio ao apresentar o seu método:

Método deste trabalho: montagem literária. Eu não tenho nada a dizer Apenas a mostrar. Eu não vou furtar nada de valioso ou apropriar-me de formulações espirituosas. Mas sim os trapos, o lixo: não os inventariar, mas antes, fazer-lhes justiça do único modo possível: utilizando-os (Benjamin, 2006BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006., p. 502).

Em tempos sombrios, a metodologia é exposta. O terror do fascismo induz o filósofo berlinense a recusar a historiografia desatenta aos dejetos, aos fatos menores. Totalidades a explicar a harmonia, ou a desordem do humano; sistemas, nos quais, o inexpressivo, os restos dos grandes feitos aludem à representação do que os move são rejeitados no seu método. O mostrar exigiria o ato prévio da montagem, da apropriação do que foi desprezado por um método no qual fricções, paradoxos, embates entre sonhos e desejos a atravessar o corpo do pesquisador, são preteridos. Após a montagem, a legibilidade de uma cidade, do mundo, de uma época seria possível, porém exigiria o tônus necessário do leitor para suportar o desconforto do estranhamento. Os restos montados desorganizariam caminhos irreversíveis de projetos alheios ao desnorteador campo da imanência. Mostrar requer “desunir as evidências para melhor unir, visual e temporalmente as diferenças [...] arte de historicização: uma arte que rompe a continuidade das narrações, extrai diferenças e, compondo essas entre si, restitui o valor essencialmente crítico de toda historicidade” (Didi-Huberman, 2017DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017., p. 63).

O mostrar da montagem, à semelhança da explosão detonada por dinamite, imagem criada pelo filósofo berlinense para caracterizar o legado do cinema. Da explosão, cárceres implodiram-se, produzindo detritos, fragmentos, à espera de outras narrações inimagináveis. A realidade perderia a compacidade das bordas intensificando-se na abertura de vias, possibilidades antes vetadas por uma lógica naturalizante do real:

Nossos cafés e nossas ruas, nossos escritórios e nossos quartos alugados [...] pareciam aprisionar-nos inapelavelmente. Veio então o cinema, que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite dos seus décimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens aventurosas entre as ruínas arremessadas à distância (Benjamin, 1994, p. 189).

Na sala escura o espectador se defrontaria com a estranheza do gesto costumeiro. A paisagem seria deformada. As “viagens aventurosas” transtornariam os limites impostos pela vida cotidiana. Na tela imagens estilhaçariam a ordem espacial e temporal delimitadora das histórias. O corpo se tornaria irreconhecível:

Se o cinema não nos dá a presença do corpo e não nos pode dar, talvez seja porque também se propõe a outro objetivo: estende sobre nós uma noite experimental ou um espaço em branco, opera com grãos dançantes e poeira luminosa, afeta o visível com uma perturbação fundamental, e o mundo com um suspense que contradizem toda percepção natural. Produz assim a gênese de um corpo desconhecido, que temos atrás da cabeça, como o impensado no pensamento, nascimento do visível que ainda se esconde à vista (Deleuze, 2013DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2013., p. 117).

A montagem cinematográfica não estaria imune à neutralidade política. Para a estética fascista, respostas claras ao que seja alma, pátria, família, o coletivo são exibidas ao espectador. Veta-se o “impensado no pensamento”. A “noite experimental”, o “espaço em branco” dão lugar à luminosidade necessária para o reconhecimento da comunidade onde tudo nasce e germina o porvir. Espaços, vazios, em branco são ocupados pela eternidade da essência da alma imaculada. O fascismo possui carpintarias peculiares de montagem. Imagens tomam partido ao evitar a imprecisão, o infinito de um rosto na tela. “Faça-se arte, pereça o mundo, diz o fascismo” (Benjamin, 2012BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk editora, 2012., p. 123). A arte fascista despreza o fio afiado da materialidade cotidiana, dos afetos da vida ordinária passíveis de desfigurar o contorno da beleza eterna a ser preservada. Na literatura e no cinema a montagem educava, formatava espíritos guerreiros rumo ao futuro vitorioso.

Artistas resistentes ao fascismo apostavam na presença do mundo; o mundano à semelhança do fio afiado desfigurador, à lâmina da destruição criativa da história a interromper a eternidade do mito, a fidelidade a uma missão. Atentos ao “relampejar” do agora resistiam. Ao ato de montar é recusada a inocência da criação. Qual o poder de um dejeto?

O lixo do mundo, os humilhados, os excluídos, não aguardaria a salvação anunciada pelo humanismo ávido por incluí-los. Para Benjamin, fazer justiça no uso dos restos almejaria efetuar cesuras, criar fendas, passagens de ar em narrações finalizadas, “encarceradas”, para que o ato de contar histórias prosseguisse inconclusivamente. Os restos ganhariam intensidade quando arrancados das funções peculiares advindas dos lugares que os definem. Tralhas, detritos manuseados, desdobrariam histórias, possibilitando a criação de imagens passíveis da legibilidade perturbadora aos clichês, à racionalidade da luz que os ilumina. Legibilidade artesanalmente confeccionada pelo corpo contaminado frente à violência de um mundo comum.

A legibilidade advém da montagem: a montagem considerada como forma e como ensaio. A saber, uma forma pacientemente elaborada, mas não fechada em sua certeza (sua certeza intelectual: ‘isto é verdadeiro’, sua certeza estética: ‘isto é belo’, ou sua certeza moral: ‘isto é o bem’). Como pensamento elevado à altura de uma cólera, toma posição e torna legível a violência do mundo (Didi-Huberman, 2018DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do Tempo Sofrido. O olho da História II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018., p. 110).

O pesquisador, à semelhança de um trapeiro, do catador dos restos para montar, “[...] não falaria por ninguém, não daria voz a ninguém [...] desfigura-se no ato da coleta. Estranha-se e estranha o que cata” (Baptista, 2022BAPTISTA, Luis Antonio dos Santos. Fragmentos de um horizonte em ruína: divagações sobre histórias dos restos. In: SILVA, Rodrigo Lages; MIRANDA, Aline Britto (Org.). Horizontes coletivos: experiência urbana e construção do comum. Curitiba: CRV, 2022., p. 25). À semelhança de um colecionador de objetos usados, é movido por uma paixão destrutiva, como o cinema:

A verdadeira paixão do colecionador, com muita frequência ignorada, é sempre anárquica, destrutiva. Pois esta é a sua dialética: vincular à fidelidade pelo objeto, pelo único, pelo elemento oculto nele, o protesto subversivo e inflexível contra o típico, contra o classificável (Benjamin, 1984BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984., p. 100).

A Jarra

“A faca não corta o fogo”1 1 Verso do poeta Herberto Helder citado por Molder (2013, p. 235). , essa é a revelação do mistério da jarra. No sonho de Walter Benjamin, o gabinete do escritor alemão é o único cenário. Ali foi-lhe entregue o vasilhame misterioso. O pequeno cômodo possuía uma única janela. “Um monstruoso calor reinava no aposento” (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras Escolhidas volume 2. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 13). Na mesa de escrever encontrava-se Goethe em avançadíssima idade. Benjamin mantinha-se em pé a seu lado. O velho escritor pressente a presença e interrompe a escrita. Levanta-se e oferta ao visitante um vasilhame antigo. Por quê? Estaria vazio, conteria o quê?

O escritor alemão o conduz ao aposento ao lado. Na sala, a longa mesa parecia “calculada para muito mais pessoas do que contava” (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras Escolhidas volume 2. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 13). Insinuava estar preparada para um jantar com os antepassados do visitante, ou para mortos desconhecidos. Os dois sentaram-se à mesa. Após a refeição, Benjamin pediu permissão para ampará-lo. Goethe tentava levantar-se penosamente. “Um monstruoso calor reinava no aposento”. No ato da ajuda tocou no cotovelo do velho escritor. O toque comoveu Benjamin. Ele chorava. O sonho finaliza após a comoção. O porquê da jarra no relato do sonho não é revelado. Por que o choro após o toque no corpo de avançada idade?

“A faca não corta o fogo”; a resposta estaria nesta afirmação, caso a jarra contivesse cinzas. No toque dos corpos, a comoção converteu o pó em chama, a fricção a promover o fogo que destrói, cria, apaga-se, reacende-se ao afirmar o encontro entre matérias, entre tempos. Chama que, ao reacender, revela a modulação das suas formas, a corrosão da combustão. Dela, a fragilidade encarnada na finitude de um gesto, nos escombros da universalidade de uma verdade, daria espaço para que algo emirja como outro. Combustão destrutiva encontrada também na história quando insuflada pela transgressão do humano às amarras da eternidade do destino irremediável. Calor artesão de transmutações infinitas. O infinito, não definido como atributo do transcendente, do universal, mas como efeito de tatibilidades, encontro entre corpos, crispações, choques, interrupções, mortes intermitentes do mundo desacomodador da empiria. Segundo Jeanne Marie Gagnebin, o escritor alemão ofereceu a Benjamin um regalo peculiar. Algo infinito acontecia.

Talvez uma urna funerária, e vai jantar, com ele a seu lado, numa mesa posta para os antepassados. Sob o signo da caducidade e da finitude comuns reina, porém, uma emoção, uma ternura infinita entre ambos, manifestada pelo gesto de amparo de Benjamin ao velho poeta. Um pouco como se houvesse ao mesmo tempo a consciência aguda do fim dessa configuração de escrita e de escritor e a reafirmação de sua frágil beleza (Gagnebin, 2017GAGNEBIN, Jeanne Marie. Canteiro de Obra. In: BRITO, Fabiana; BERENSTEIN, Paola (Org.). Gestos Urbanos. Salvador: EDUFBA, 2017., p. 32).

No sonho do filósofo berlinense “um monstruoso calor reinava no aposento”. As sombras do nazismo atravessavam o gabinete do velho escritor. As cinzas no interior da jarra esperavam o sopro para emergência da chama. Na sala de jantar, a mesa estava posta para o passado inconcluso dos antepassados, junto aos mortos desconhecidos de tempos diversos. Aguardava o que teriam a dizer sobre o “monstruoso calor”. Desvalidos, infames, fracassados, torturados espreitariam o convite ao encontro, no qual teriam algo a dizer, trocar, interferir no calor a sufocar a respiração. O anfitrião talvez propusesse ao convidado aproximar o rosto da jarra e soprar as cinzas, “[...] e soprar devagar para que a brasa, por baixo, recomece a propagar o seu calor, a sua luminosidade, o seu perigo. Como se, da imagem cinzenta, se erguesse uma voz: Não vês que ainda estou a arder?” (Didi-Huberman, 2015DIDI-HUBERMAN, Georges. Falenas. Ensaios sobre a aparição. Lisboa: KKYM, 2015., p. 317). Das chamas ouviria gritos a recusar o silêncio não deliberado, imagens do passado não esgotado e ouviria: “Cadáveres empilhados falarão para sempre. Gritarão através dos tempos. Assim como aqueles jogados ao mar, incinerados, enterrados em valas clandestinas. Um grito incessante, ensurdecedor” (Mudado, 2015MUDADO, Sergio. A chama e o vento. Belo Horizonte: Kore Editora, 2015., p. 149).

“A faca não corta o fogo”, insinuava aquela voz. O grito incessante ardia na recusa do abrandamento da sua força. O fio da lâmina a cortar, dilacerar, esquartejar, abater vidas transmutar-se-ia em outra coisa quando perpassado pela chama. O fogo impediria o esquecimento de dores do outrora quando o sopro incitasse o corrosivo calor. Finalizaria a faca, permaneceria a chama. Passado e presente não seriam mais os mesmos. O rosto de onde partisse o sopro também. As cinzas de Goethe aguardavam na velha jarra. Dentro dela um murmúrio afirmava: “Em qualquer época, os vivos descobrem-se no meio-dia da história. Espera-se deles que preparem um banquete para o passado. O historiador é o arauto que convida os defuntos à mesa” (Benjamin, 2014, p. 523). Para quê?

Na viagem à Itália, a paisagem aturdiu o escritor alemão. No diário, escrito durante a estadia italiana, registrou a exuberância do que avistava: acidentes naturais, hábitos dos moradores, cores, odores, texturas das matérias. Algo mais foi redigido em seu diário: a força do que via a interferir no desenho da sua alma

Interessam-me agora tão somente as impressões captadas pelos sentidos, e estas livro algum, pintura alguma oferece. O fato é que meu interesse pelo mundo se renova; testo meu poder de observação e examino até onde vão minha ciência e meus conhecimentos, se meus olhos estão limpos e veem com clareza, quanto posso aprender em meio à velocidade, e se as rugas sulcadas e impressas em meu espírito podem ser de novo removidas. Já neste momento, em que estou por minha própria conta, em que preciso estar sempre atento e presente, dão-me esses poucos dias ao espírito uma elasticidade inteiramente nova (Goethe, 1999GOETHE, Johann Wolfgang Von. Viagem à Itália 1786-1788. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 30).

Estar atento ao que o mundo lhe apresentava e o desestabilizava propiciaram ao escritor alemão a elasticidade para remover rugas sulcadas em seu espírito. Afetado por sensações heterogêneas, vislumbrou estéticas outras para a existência. O que sentia no instante da fruição de uma sensação lhe oferecia a remoção de marcas do passado. A empiria interferia no outrora pretensamente definitivo. Teria essa passagem do diário de Goethe a corrosão da chama reacendida? Qual perigo essa citação portaria a um corpo paralisado, ou indiferente, ao intolerável de um mundo comum?

Arrancar a citação do escritor alemão da sua época, desalojá-la da natureza mítica, apropriar-se dela no enfrentamento dos perigos inadiáveis do agora, torná-la fragmento à espera de uma montagem inspira-se no uso de Walter Benjamin sobre o ato de citar: a citação a interromper o conforto da verdade inquestionável, assim como da desesperança, ou da esperança, contida na desatenção aos apelos do que ultrapassa as bordas do eu, ou do nós: “Citações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passeante a convicção” (Benjamin, 1987BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras Escolhidas volume 2. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 61). Assalto que, ao interromper a estabilidade de uma cronologia, ao borrar a nitidez da autoria, desobstruiria o fechamento conclusivo de uma história. Interrupção do ato político da montagem, no qual autores, ideias, teorias perdem suas aspas ao converterem-se em fragmentos disponíveis a inesgotáveis composições: “Este trabalho deve desenvolver ao máximo a arte de citar sem aspas. Sua teoria está intimamente ligada à da montagem” (Benjamin, 2006BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006., p. 500). O montar que requer a atenção à dissipação dos limites inquebrantáveis entre ética e estética, corpo e mundo, passado e os perigos do agora.

No gabinete do escritor alemão “um monstruoso calor reinava no aposento”. A comoção do visitante ao tocar o velho corpo do anfitrião assemelhava-se ao sopro em direção às cinzas contidas na jarra. O verso “a faca não corta o fogo” foi afirmado justaposto ao “grito incessante, ensurdecedor” no interior do vasilhame. Um monstruoso calor assola o país. Nas esquinas das cidades brasileiras, cinzas aguardam um sopro qualquer. Cenas do sonho do filósofo berlinense encontram-se disponíveis para prováveis montagens, ou para “o balbucio de um outro porvir”:

Cabe ao presente, em particular ao historiador de hoje ficar atento àquilo que jaz nos acontecimentos e nas obras do passado como promessa ou protesto, como ‘confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como tenacidade’ enumera Benjamin na quarta tese ‘Sobre o conceito de história’, como sinal ou balbucio de um outro porvir. Nesse sentido preciso, o historiador materialista de Benjamin desconstrói a imagem engessada da tradição e procura nas interferências do tempo, do passado e do presente, o sopro de outra história possível (Gagnebin, 2009GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: estética e experiência histórica. In: ALMEIDA, Jorge de; BADER, Wolfgang (Org.). Pensamento alemão no século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2009., p. 157).

Nas esquinas brasileiras, o monstruoso calor ameaça a respiração para o balbucio de outro porvir. Gritos insistem em enfrentar o esquecimento do passado não encerrado. A escuta da voz, a dizer “Não vês que ainda estou a arder?”, também é ameaçada. Qual o poder do sopro de uma montagem?

Gás

O Anu Branco alimenta-se dos ovos do ninho de outras aves. Pássaro predador é conhecido como o Porteiro das Sombras, o mensageiro da morte. Canários o evitam. Nas minas do Chile, indicam a presença do gás inodoro que mata implacavelmente. Em dias de chuva, o canto do Porteiro das Sombras anuncia o imprevisível sinal aos habitantes das cidades brasileiras. Aves atravessam o céu da América do Sul com seus sinais de alarme aos humanos. Mineradores das minas de carvão chilenas utilizavam canários em gaiolas para detectar a existência do gás tóxico. Caso o canário agonizasse, o trabalho seria interrompido. O monóxido de carbono é invisível e inodoro. A agonia da ave alertava para a urgência da evacuação da área. Trabalhadores não conseguiam detectar perigos invisíveis. Quando a saúde dos canários persistia na gaiola, a jornada de trabalho debaixo da terra transcorria sem cessar, como se a morte em vida não fosse um escândalo. Aves atravessam o céu da América do Sul a indicar possibilidades de vida e de morte. Que vida ocuparia as minas chilenas caso o canário não agonizasse? O que sucede ao corpo quando perigos invisíveis não são detectados? Qual corpo?

A literatura e o cinema oferecem às pesquisas nas Ciências Humanas imagens onde a invisibilidade, o que ultrapassa os limites do perceptível, indicaria concepções díspares sobre o que seria corpo, morte, vida, e a morte em vida. Imagens a perfurar sólidas convicções ao criar vias de fuga ao asfixiante universo da verdade não posta à prova. Imagens que interrompem o conforto da esperança, ou a paralisia dos becos sem saída do pensamento. Incitam estranhamento ao já conhecido. Suspendem idas apressadas do argumento em direção à conclusão da análise. Desnorteiam, tateiam, ao desbloquear caminhos represados pelo anestesiamento da presença cortante da alteridade.

Nas obras de Kafka, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, entre outros autores, animais escapam da metáfora como ornamento da palavra, da hierarquização de modos de vida. Bichos seriam estranhos às funções do simbólico, aturdir-se-iam na busca por rastros de emoções familiares do universo humano. Corpo, vida e morte estilhaçar-se-iam em sentidos outros, ato incômodo ao ensejo de encarcerá-los à natureza, aos dogmas, ou à moral. Nos contos de Kafka, os animais não remetem a uma mitologia, nem a arquétipos. Seriam devir, zonas de intensidades: “[...] devir animal é precisamente fazer o movimento, traçar a linha de fuga em toda sua positividade, ultrapassar um limiar [...] encontrar um mundo de intensidades puras, em que todas as formas se desfazem, todas as significações também” (Deleuze; Guattari, 2014DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014., p. 27). Em Clarice Lispector, a interseção entre animal e o povo não se reduziria à denúncia da animalização racista e classista, é também “[...] a ferramenta de um saber que desafia uma biopolítica que produz os corpos e os ordena para dominá-los: para traçar a partir dali as distinções entre as vidas vivíveis e as vidas insignificantes” (Giorgi, 2016GIORGI, Gabriel. Formas Comuns: animalidade, literatura, biopolítica. Rio de Janeiro: Rocco, 2016., p. 107). Nos contos de Guimarães Rosa, “[...] o puro ofício de viver atribuído ao saber dos bichos retoma o grau zero da vida na natureza [...] criando uma zona de indistinção, domínio do indeterminado, do imprevisível, do que se entende por devir” (Souza, 2011SOUZA, Eneida Maria. De Animais e de literatura. Rosa, Kafka e Coetzee. Revista Aletria, v. 21, n. 3, p. 83-89, 2011,, p. 84). Animais, em certas propostas estéticas da literatura e do cinema, inquirem políticas dos corpos e da vida:

Trata-se, então, de pensar os modos como o animal transforma lógicas de sua inscrição na cultura e nas linguagens estéticas, interrogando, ao mesmo tempo, uma reordenação mais ampla de corpos e de linguagem da qual essa nova proximidade do animal dá testemunho. Em outras palavras, trata-se de ver como a redefinição do animal ilumina ‘retóricas’ do corporal e do vivente mais amplas que, por sua vez, refratam uma imaginação biopolítica dos corpos (Giorgi, 2016GIORGI, Gabriel. Formas Comuns: animalidade, literatura, biopolítica. Rio de Janeiro: Rocco, 2016., p. 31).

Canários e Anus Brancos atravessam o céu da América do Sul. Destituem o eu da soberania dos destinos do corpo, desprivatizam-no, anunciam o acaso, desfazem formas da ameaça previsível, indicam a força daquilo que ultrapassa as barreiras do perceptível. Nas gaiolas das minas do Chile, nos voos das cidades brasileiras, afirmam o “[...] corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos, lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização” (Foucault, 1998FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1998., p. 22). Rompem com a significação irredutível, porque ele é “[...] ruptura inqualificável. Ele é esse estranho começo e recomeço que pode colocar em questão um pouco de tudo, o pensamento, a narração, a significação, a comunicação, a história: ele introduz uma catástrofe no tempo que flui” (Uno 2014UNO, Kuniichi. A Gênese de um Corpo Desconhecido. São Paulo: n-1, 2014., p. 51).

Em uma cidade sergipana, o acontecimento inscrito no corpo, uma catástrofe a interromper o tempo que flui, apresentou a eficácia do gás exterminador de “vidas insignificantes”. Qual “catástrofe” ocorreu na asfixia de Genivaldo de Jesus Santos?

Um corpo tragado por fumaça debate-se dentro de uma viatura policial na beira de uma rodovia do Nordeste brasileiro. Os pés são a única parte disposta para fora do veículo. Contorcem-se por infinitos quinze minutos, enquanto a garganta resseca de gás lacrimogêneo e desespero. Outros tantos quinze minutos decorrem já com pés e garganta imóveis, entregues ao azar da abordagem policial truculenta e torturante. Quem testemunha, tenta evitar o presumível, mas é intimidado pelos fardados. Diante do achaque, resta apenas registrar em vídeo o horror que ardem aos olhos. Não há colírio que amenize os efeitos da tortura policial explícita. Não há óculos escuros para o efeito do gás sufocante que transforma a caçamba de uma viatura em câmara de gás (Fonseca; Baptista, 2023FONSECA, Lazaro Batista; BAPTISTA, Luis Antonio dos Santos. Rememorar um Corpo sem Ar: Provocações de um Lamento às Urgências do Agora Nordestino. In: FONSECA, Lazaro Batista da; LOPES, Kleber Jean Matos (Org.). Por um Nordeste desdobrado: veredas e devires da pesquisa em Psicologia. Alagoas: Edufal, 2023., p. 12).

Na Europa dos anos 1930, Walter Benjamin preocupava-se com a guerra química. No ensaio Teorias do Fascismo Alemão indicava o perigo: “É sabido como não há defesa eficaz contra os ataques químicos a partir do ar. Mesmo as medidas de proteção individuais, as máscaras de gás, são impotentes contra o gás” (Benjamin, 2012BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk editora, 2012., p. 1130). O filósofo berlinense prenunciava a pluralidade de formas e consistências, o inodoro e o insípido das ações fascistas.

Ao sul de Sergipe, em Umbaúba, o ocorrido dentro da câmara de gás dissolveu em minutos o contorno do corpo de Genivaldo de Jesus Santos. Tornava-o “superfície de inscrição dos acontecimentos”. A “catástrofe” efetuava-se no “Eu tornado quimera”, dissolvido na indefinição de um perfil, do local, da data precisa. Transmutava-se em muitos, e ninguém. O que restou exibia “uma juntura de criaturas, um ponto de encontro, de aliança, de enlace (ou de choque, de guerra) entre forças viventes” (Giorgi, 2016GIORGI, Gabriel. Formas Comuns: animalidade, literatura, biopolítica. Rio de Janeiro: Rocco, 2016., p. 188). Os que testemunharam “o horror que ardem aos olhos” viram pretos, loucos, mulheres, trabalhadores, criaturas humilhadas pela violência do Estado do passado e do presente “em perpétua pulverização”. No interior do veículo, o corpo pulverizado tornado impessoal sinalizava a “comunidade de heterogêneos”, superfície de muitos e de ninguém. O impessoal a turvar a nitidez de um rosto, a ampliar a intensidade de uma dor desdobrando-a, desalojando-a de um pouso fixo. As testemunhas que presenciaram o “ horror que ardem aos olhos” prenunciavam o poder do grito:

Quando René Char, por sua vez, escreveu que ‘os olhos são capazes de gritar’, pode-se abrir esta frase em direção à ideia de que os olhos também seriam capazes de resistir, de se levantar, de fazer bifurcar a injustiça intolerável do mundo, mesmo que apenas pela imaginação (Didi-Huberman, 2018DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do Tempo Sofrido. O olho da História II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.).

Na Alemanha dos anos 1920, artistas admiradores do espírito guerreiro ariano desprezaram os efeitos dos ataques químicos. Canários fracassaram em Umbaúba. Anus Brancos persistem sinalizando o perigo da violência do Estado visível para uns, opaca para outros, quando desatentos à morte em vida, assim como à potência de um mundo comum. Em solo nordestino, tempos contrastantes escapavam à percepção. A explosão de tempos heterogêneos avizinhava-se como proposta ética aos que testemunharam o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos:

A montagem é uma exposição de anacronismos naquilo mesmo que ela procede como uma explosão da cronologia. A montagem talha as coisas habitualmente reunidas e conecta as coisas habitualmente separadas, Ela cria, portanto, um abalo e um movimento: ‘O abalo. Estamos fora de nós. O olhar vacila e, com ele, aquilo que ele fixava. As coisas exteriores não são mais familiares, elas se deslocam. Qualquer coisa ali se tornou muito leve, que vai e vem’ (E. Bloch). A explosão tendo acontecido, é um mundo de poeira - farrapos, fragmentos, resíduos - que, então, nos rodeia. Mas a poeira que a explosão do não contemporâneo levanta é mais dialética que a distração: ela, em si mesma, é explosível, modo de dizer que ela oferece doravante um material, bastante sutil, em suma, para os movimentos históricos, as revoluções por vir (Didi-Huberman, 2016DIDI-HUBERMAN, Georges. REMONTAR, REMONTAGEM (DO TEMPO). Caderno de Leituras, Chão da feira, n. 47, 2016., p. 6).

Qual “catástrofe” teria ocorrido ao corpo dos que testemunharam a câmara de gás na cidade sergipana? Quais montagens dos farrapos, dos restos estariam disponíveis ao pesquisador das Ciências Humanas? Qual o poder do grito nos olhos?

Disponibilidade dos dados da pesquisa:

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Nota

  • 1
    Verso do poeta Herberto Helder citado por Molder (2013MOLDER, Maria Filomena. Aprender a parar de ser humano: calar-se, não ter nome. Cadernos Nietsche, n. 32, p. 235-261, 2013., p. 235).

Referências

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  • DIDI-HUBERMAN, Georges. REMONTAR, REMONTAGEM (DO TEMPO). Caderno de Leituras, Chão da feira, n. 47, 2016.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do Tempo Sofrido O olho da História II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Povo em Lágrimas Povo em Armas. São Paulo: N-1 edições, 2021.
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  • UNO, Kuniichi. A Gênese de um Corpo Desconhecido São Paulo: n-1, 2014.
Editora responsável: Fabiana de Amorim Marcello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2023
  • Aceito
    03 Ago 2023
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