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A magnitude invisível da violência contra a mulher

No Brasil, os registros de violências revelam, de maneira geral, o predomínio dos homens, tanto como vítimas, quanto como perpetradores. Em 2013, o risco de morte de homens por agressões foi 11,3 vezes superior ao das mulheres, e 83,5% do total de internações por agressões no Sistema Único de Saúde (SUS) foram de homens.11. Mascarenhas MDM, Sinimbu RB, Silva MMA, Malta DC. Análise de situação das causas externas no Brasil. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Saúde Brasil 2014: uma análise da situação de saúde e das causas externas. Brasília: Ministério da Saúde;2014. Na população jovem (20-29 anos), na qual as agressões são a principal causa de morte (54,6% no período 2000-2012),22. Neves ACM, Garcia LP. Mortalidade de jovens brasileiros: perfil e tendências no período 2000-2012. Epidemiol Serv Saude. 2015 out-dez;24(4):595-606. evidenciam-se diferenças marcantes entre os sexos quanto ao perfil das violências. Estudo realizado com dados do inquérito do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva), realizado pelo Ministério da Saúde, em 2011, com jovens vítimas de violências atendidos em serviços de urgência e emergência do SUS, revelou que os homens foram as principais vítimas (75,1%) e agressores (83,1% e 69,7% dos casos de violência perpetrada contra vítimas do sexo masculino e feminino, respectivamente). Entre os homens, predominaram agressões em via pública perpetradas por desconhecidos, com maior proporção de lesões mais graves e óbitos nas primeiras 24 horas. Por seu turno, entre as vítimas do sexo feminino, predominaram ocorrências no domicílio, perpetradas por companheiros, ex-companheiros, familiares ou conhecidos.33. Neves ACM, Garcia LP. Atendimentos de jovens vítimas de agressões em serviços públicos de urgência e emergência, 2011: diferenças entre sexos. Cienc Saude Coletiva. No prelo 2016.

O fato é que os homens são as principais vítimas de formas de violência que resultam em maior número de registros nos sistemas de informação da saúde, da segurança pública e da justiça. Por sua vez, a violência contra a mulher é caracterizada por sua invisibilidade, tendo em vista que ocorre principalmente no âmbito privado e é, em grande parte, perpetrada por familiares e conhecidos.33. Neves ACM, Garcia LP. Atendimentos de jovens vítimas de agressões em serviços públicos de urgência e emergência, 2011: diferenças entre sexos. Cienc Saude Coletiva. No prelo 2016.

4. Garcia LP, Duarte EC, Freitas LRS, Silva GDM. Violência doméstica e familiar contra a mulher: estudo de casos e controles com vítimas atendidas em serviços de urgência e emergência. Cad Saude Publica. 2016 abr;32(4):e00011415.
-55. World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2013 [cited 2016 Jun 21]. Available from: Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/85239/1/9789241564625_eng.pdf
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Por estas características, grande parte das ocorrências não geram atendimentos e não são captadas pelos sistemas de informação, o que resulta em subenumeração dos eventos, e contribui para reforçar a invisibilidade da violência contra a mulher.

Lamentavelmente, este tipo de violência ganha visibilidade somente quando ocorrem casos extremos, que demandam ações do Estado, a exemplo dos estupros coletivos ocorridos no estado do Piauí e na cidade do Rio de Janeiro, entre maio e junho de 2016,66. Sena Y. Polícia apura terceiro estupro coletivo no Piauí em pouco mais de um ano [Internet]. São Paulo: Folha de São Paulo; 2016 [citado 2016 jun 21]. Disponível em: Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/06/1779541-policia-apura-terceiro-estupro-coletivo-no-piaui-em-pouco-mais-de-um-ano.shtml
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,77. Paiva G. Garota presta depoimento à polícia após queixa de estupro coletivo no Rio [Internet]. São Paulo: Folha de São Paulo; 2016 [citado 2016 jun 21]. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/05/1775312-garota-presta-depoimento-a-policia-apos-queixa-de-estupro-coletivo-no-rio.shtml
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e dos feminicídios, crimes tipificados pela Lei nº 13.104/2015.88. Brasil. Lei 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 2015 mar 10; Seção 1:1. A repercussão que alguns casos têm na mídia e nas redes sociais, a qual contribui para trazer à tona inúmeros relatos de casos semelhantes, desvela a falsa impressão de que a violência contra a mulher é um fenômeno de menor magnitude do que a violência que vitimiza os homens.

As estatísticas sobre estupros são um exemplo do subdimensionamento da magnitude da violência contra a mulher. Segundo o Anuário de Segurança Pública, em 2014 foram registrados 47.646 estupros no País, com subnotificação estimada em 35%.99. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário brasileiro de segurança pública 2015 [Internet]. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2015[citado 2016 jun 21]. Disponível em: Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2015.retificado_.pdf
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Por sua vez, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, registrou 17.781 atendimentos a mulheres vítimas de estupro em 2015, o que corresponde a uma média de 49 atendimentos por dia, ou mais de dois por hora. Entretanto, 40% dos municípios brasileiros ainda não notificavam ao Sinan os atendimentos a vítimas de violências. Além disso, nos municípios onde é realizada a notificação, nem todas as vítimas de estupro chegam a ser atendidas nos serviços de saúde, e também existe subnotificação do agravo entre aquelas que são atendidas.1010. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Coordenação Geral de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Nota: Estupros em mulheres. Brasília: Ministério da Saúde; 2016. Supondo que os casos notificados correspondam a 10% das ocorrências, o número estimado de estupros por ano no Brasil seria de aproximadamente 500 por dia, ou mais de 20 a cada hora. De fato, o número de ocorrências de estupro no Brasil não é conhecido, e muito embora subestimada, sua magnitude impressiona.

No Brasil, em pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2014), 90% das mulheres entrevistadas responderam que tinham medo de serem vítimas de agressão sexual.99. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário brasileiro de segurança pública 2015 [Internet]. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2015[citado 2016 jun 21]. Disponível em: Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2015.retificado_.pdf
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Esse temor não é infundado. O risco de uma mulher ser estuprada no Rio de Janeiro, no período dos Jogos Olímpicos de 2016, foi estimado em 3,5/10 mil. Este risco é semelhante àquele de um homem ser assassinado por arma de fogo (3,8/10 mil), maior que o risco de infecção por dengue (5/10 mil) e quase 12 vezes maior que o risco de infecção pelo vírus Zika (3/100 mil).1111. Ximenes R, Amaku M, Lopez LF, Coutinho FAB, Burattini MN, Greenhalgh D, et al. The risk of dengue for non-immune foreign visitors to the 2016 summer olympic games in Rio de Janeiro, Brazil. BMC Infect Dis. 2016 Apr;16:186

12. Bastos L, Villela DAM, Carvalho LM, Cruz OG, Gomes MFC, Durovni B, et al. Zika in Rio de Janeiro: assessment of basic reproductive number and its comparison with dengue. BioRxiv. 2016 May.
-1313. Escobar H. Risco de pegar zika nas Olimpíadas é menor que o de estupro, diz professor da USP [Internet]. São Paulo: Estadão; 2016 [citado 2016 jun 21]. Disponível em: Disponível em: http://ciencia.estadao.com.br/blogs/herton-escobar/risco-de-pegar-zika-nas-olimpiadas-e-menor-que-o-de-estupro-diz-professor-da-usp/
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Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS),55. World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2013 [cited 2016 Jun 21]. Available from: Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/85239/1/9789241564625_eng.pdf
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35% das mulheres no mundo já sofreram violência física e/ou sexual perpetrada por parceiro íntimo ou violência sexual perpetrada por não parceiro. Ou seja, mais de uma a cada três mulheres no mundo já foi vítima de pelo menos um episódio desses tipos de violência, embora ainda existam muitas outras formas de violência contra a mulher, que abrangem um amplo espectro, desde a agressão verbal e outras formas de abuso emocional, passando pela violência física ou sexual, e que tem como expressão máxima o feminicídio.

É evidente que as estatísticas sobre violência contra a mulher no Brasil revelam somente uma pequena fração da ocorrência das diversas formas de violência às quais as mulheres são cotidianamente submetidas. Diante disto, evidencia-se a necessidade de aprimoramento dos sistemas de informação, no sentido de se ampliar sua cobertura e melhorar sua qualidade. Entre os sistemas gerenciados pelo Ministério da Saúde, destacam-se o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), o Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS) e o Sistema Viva. Este sistema foi implantado em 2006 e está estruturado em dois componentes: (i) o inquérito realizado em serviços sentinela de atendimento de urgência e emergência; e (ii) o componente de vigilância contínua, incorporado ao Sinan em 2009.1414. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva): 2009, 2010 e 2011 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [citado 2016 jun 21]. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/sistema_vigilancia_violencia_acidentes.pdf
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Cabe ressaltar que todos os casos de violência contra a mulher são agravos de notificação compulsória ao Sinan. Outros sistemas de informação também merecem ser explorados e integrados, como aqueles gerenciados pelo Ministério da Previdência; pelo Ministério da Justiça; pelas Secretarias de Segurança Pública dos estados e do Distrito Federal; pelo Ministério Publico; e pelo Poder Judiciário.

Não obstante a relevância dos dados dos sistemas de informação, estes apresentam limitações. Portanto, inquéritos com dados primários, coletados com a utilização de instrumentos validados, também são necessários para conhecer a realidade da violência contra a mulher.1515. Contreras JM, Bott S, Guedes A, Dartnall E. Sexual violence in Latin America and the Caribbean: a desk review [Internet]. Pretoria: Sexual Violence Research Initiative; 2010 [cited 2016 Jun 21]. Available from: Available from: https://www.ciaonet.org/attachments/19595/uploads
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,1616. Rodrigo MLJ, Pérez IR. Medición de la violencia contra la mujer: catálogo de instrumentos. Granada: Escuela Andaluza de Salud Publica; 2008. 196 p.

Os serviços de saúde também têm um papel fundamental na resposta à violência contra as mulheres, pois muitas vezes são o primeiro local onde as vítimas buscam atendimento. É importante que estes serviços estejam disponíveis nos dias e períodos de maior ocorrência da violência contra a mulher - finais de semana, noites e madrugadas - e que os profissionais dos serviços estejam capacitados para o atendimento adequado às vítimas e a notificação dos casos de violência.44. Garcia LP, Duarte EC, Freitas LRS, Silva GDM. Violência doméstica e familiar contra a mulher: estudo de casos e controles com vítimas atendidas em serviços de urgência e emergência. Cad Saude Publica. 2016 abr;32(4):e00011415.,1717. Garbin CAS, Rovida TAS, Costa AA, Garbin AJI. Percepção e atitude do cirurgião-dentista servidor público frente à violência intrafamiliar em 24 municípios do interior do estado São Paulo, 2013-2014. Epidemiol Serv Saude. 2016 jan-mar;25(1):179-86.

18. Kury CMH, Kury MMH, Pereira CCR, Oliveira FA, Oliveira FC, Silva RMH, et al. Implantação de um centro na área das violências doméstica e sexual em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, 2009-2012. Epidemiol Serv Saude. 2015 out-dez;24(4):771-6.
-1919. Costa MS, Serafim MLF, Nascimento ARS. Violência contra a mulher: descrição das denúncias em um Centro de Referência de Atendimento à Mulher de Cajazeiras, Paraíba, 2010 a 2012. Epidemiol Serv Saude. 2015 jul-set;24(3):551-8.

A violência contra a mulher é um problema de saúde pública de proporções epidêmicas no Brasil, embora sua magnitude seja em grande parte invisível. Este problema não pode ser tratado como se fora restrito a alguns segmentos, uma vez que permeia toda a sociedade brasileira. A prevenção e o enfrentamento da violência contra a mulher passam necessariamente pela redução das desigualdades de gênero e requerem o engajamento de diferentes setores da sociedade, para se garantir que todas as mulheres e meninas tenham acesso ao direito básico de viver sem violência.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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