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Metodologia de ensino de língua portuguesa na formação docente: incursão em um corpus de manuais pedagógicos

Portuguese Language Teaching Methodology in teacher training: incursions into a corpus of pedagogical manuals

Metodología del Enseño de la Lengua Portuguesa en la formación docente: incursión en un corpus de manuales pedagógicos

Resumo:

Este estudo propõe qualificar o estatuto da ‘Metodologia de ensino de língua portuguesa’ como componente curricular da formação do professor de língua portuguesa. Para tanto, inicialmente, procede à reconstituição panorâmica do percurso histórico de evolução da formação docente em interface com a emergência das didáticas disciplinares. Em seguida, com base em aportes teóricos dos campos da história e didática das disciplinas escolares e da linguística aplicada, entre outros, descrevee analisa um corpus de três manuais pedagógicos, publicados entre 1949 e 1958, no Brasil, assinalando os modos pelos quais, nesses manuais, busca-se construir a especificidade da ‘Metodologia de ensino de língua portuguesa’ com relação às demais disciplinas de formação docente.

Palavras-chave:
didáticas disciplinares; formação do professor; manuais pedagógicos; metodologia de ensino de língua portuguesa

Abstract:

This study aims at examining the status of the ‘Portuguese Language Teaching Methodology’ as a curricular component of Portuguese teacher training. We will initially provide a panoramic reconstruction of the historical course of evolution of teacher training and its interface with the emergence of the pedagogies related to different disciplines. Secondly, supported by theoretical contributions from the fields of history, pedagogy of school disciplines and applied linguistics, amongst others, we will describe and review a corpus of three textbooks published in Brazil between 1949 and 1958, seeking to point out the ways the specificity of ‘Portuguese language teaching methodology’ is built relatively to other disciplines linked to teacher training.

Keywords:
pedagogy of disciplines; teacher training; textbooks; portuguese language teaching methodology

Resumen:

Este estudio se propone a calificar el estatuto dela ‘Metodología de Enseño de Lengua Portuguesa’ como componente curricular de la formación del profesor de lengua portuguesa. Para esto, inicialmente, procede a la reconstitución panorámica del camino histórico de evolución de la formación docente en interfaz con la emergencia de las didácticas disciplinares. En seguida, con base a aportes teóricos de los campos de la historia y didáctica de las disciplinas escolares y de la lingüística aplicada, entre otros, describe y analiza un corpus de tres manuales pedagógicos publicados entre 1949 y 1958 en Brasil, buscando señalar los modos por los cuales se busca construir la especificidad de la ‘Metodología de enseño de lengua portuguesa’ en relación a las demás disciplinas de la formación docente.

Palabras clave:
didácticas disciplinares; formación de docentes; manuales pedagógicos; metodología de enseño de lengua portuguesa

Introdução

Proponho, neste texto, levantar elementos para a compreensão do estatuto da metodologia de ensino, didática ou prática de língua portuguesa (doravante, metodologia de ensino de língua portuguesa) como disciplina ou componente curricular integrante da formação acadêmica do professor (para o ensino) de língua portuguesa. Para tanto, inicialmente, procedo à reconstituição panorâmica do percurso histórico de evolução da formação do professor para a escola brasileira na interface com a emergência das didáticas disciplinares como componente curricular dessa formação, com base na abordagem histórica da formação docente, proposta em outros estudos. Em seguida, recorro à descrição de um corpus de três manuais pedagógicos, publicados em um intervalo de quase uma década, entre 1949 e 1958, no Brasil1 1 Este estudo integra o conjunto de ações que se vem desenvolvendo no âmbito do Projeto de Pesquisa ‘Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa como disciplina curricular da formação docente: incursões em uma biblioteca de manuais pedagógicos’ (CNPQ-Chamada Universal-Processo 438985/2018-4-2019-2020), por mim coordenado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Agradeço aos (às) pareceristas anônimo(a)s pelos comentários e indicações quando da avaliação deste texto, sendo de minha inteira responsabilidade seu conteúdo e o estilo de composição. .

Do ponto de vista metodológico, a seleção do corpus decorre de pesquisa documental, e sua abordagem implica análise textual, focada sobre a configuração de determinados tópicos temáticos na materialidade dos manuais pedagógicos. A descrição e análise dessa configuração temática, sob uma perspectiva histórica e com base na contribuição de aportes teóricos dos campos da história e didática das disciplinas escolares e da linguística aplicada, entre outros, permitem flagrar alguns elementos dos processos de institucionalização ou disciplinarização da metodologia de ensino de língua portuguesa como componente curricular da formação do professor de língua portuguesa; em outros termos, os modos com que ela se institui em disciplina de formação profissional.

Assim configurado, este estudo reencontra um conjunto de outros que buscam caracterizar o estatuto das didáticas disciplinares (na interface com outras disciplinas curriculares) na formação docente, em diferentes campos do conhecimento acadêmico e conforme a consideração de procedimentos e corpora de pesquisa diversos (Bertani, 2013Bertani, J. A. (2013). As mudanças da disciplina de Didática Especial da Matemática (1946-1966). InAnais do 11 Encontro Nacional de Educação Matemática(p. 1-14). Curitiba, PR.; Oliveira & Fiorentini, 2018Oliveira, A. T. C. C., & Fiorentini, D. (2018). O papel e o lugar da didática específica na formação inicial do professor de matemática.Revista Brasileira de Educação,23, 1-17.), na área de ensino de matemática; Garcia & Nascimento, 2009Garcia, T. M. F. B., & Nascimento, F. E. (2009). A didática e os manuais para ensinar a ensinarFísica. InAnais do 9 Congresso Nacional de Educação - EDUCERE/III Encontro Sul Brasileiro de Psicopedagogia(p. 8634-8645). Curitiba, PR., na área de ensino de física; Schmidt, 2011Schmidt, M. A. M. S. (2011). Manuais de didática da história destinados à formação de professores e a constituição do código disciplinar da história no Brasil: 1935-1952. História (São Paulo), 30(2), 126-143. , na área de ensino de história; Souza, Barzotto & Sampaio, 2010Sousa, A. P., Barzotto, V. H., & Sampaio, M. L. P. (Orgs.). (2010). Formação do professor de língua portuguesa: quando a linguagem e o ensino se encontram. São Paulo, SP: Paulistana., na área de ensino delíngua portuguesa). Vejamos, a seguir, como os processos de institucionalização que instituem a metodologia de ensino de língua portuguesacomo disciplina da formação docente configuram-se na história da formação docente no Brasil, com base nos panoramas históricos, formulados especialmente em Tanuri (2000Tanuri, L. M. (2000). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, (14), 61-88.) e Saviani (2009Saviani, D. (2009). Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, 14(40), 143-155. ).

Aspectos da história da formação docente no Brasil e processos de institucionalização das didáticas disciplinares

Sob uma perspectiva histórica ampla, a gênese da formação do professor (para o ensino) de língua portuguesa2 2 Essa talvez seja a formulação mais adequada para caracterizar o público-alvo dos manuais pedagógicos de que se ocupa este estudo: são voltados precipuamente para a formação de professores dos anos iniciais de escolarização nas Escolas Normais, Institutos de Educação ou Escolas de Ensino de Segundo Grau, embora também tenham tido sido objeto de circulação, por hipótese, nos cursos de pedagogia e de letras nas faculdades que nasciam e passavam a formar bacharéis e licenciados em nível superior, no Brasil, conforme tratado logo adiante, nesta seção. e das demais disciplinas escolares encontra seu berço, por um lado, em um concerto de discursos institucionais produzidos já na segunda metade do século XIX, no Brasil, em torno da vontade (liberal, moderna) de instrução pública que supõe a necessidade de expansão do acesso à escolarização em nível primário para a população e, corolário direto, impõe a necessidade de formação de profissionais aptos a desempenhar o ofício de ensinar, mais especificamente, o de alfabetizar (Tanuri, 2000Tanuri, L. M. (2000). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, (14), 61-88.; Saviani, 2009Saviani, D. (2009). Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, 14(40), 143-155. ).

Por outro lado e complementarmente, a consolidação da escola ou da ‘forma escolar’ (Lahire, 2008Lahire, B. (2008).La raisonscolaire- école e pratiques d’écriture, entre savoir et pouvoir. Rennes, FR: PressesUniversitaires de Rennes.) entre nós (como ocorre com a cultura escolar moderna ocidental), ao implicar o progressivo fenômeno de especialização de saberes e sua ordenação em disciplinas escolares (o que supõe, entre outros elementos, a codificação escrita desses saberes, seu fracionamento conforme uma programabilidade determinada e o desenvolvimento de um aparelho docimológico de controle e regulação da aprendizagem), passa a exigir não apenas mais capacitação de profissionais como também formação cada vez mais especializada.

A hegemonia do modelo3 3 ‘Modelo’, considerado, aqui, conforme a formulação de Carvalho (2013), para quem, “[...] falar em ‘modelos’[pedagógicos] é falar de ‘objetos culturais’que são produtos de práticas sociais determinadas e que, na sua materialidade, são dispositivos de modelização de práticas. Por sua vez, tratar da ‘materialidade’de um objeto cultural é atentar para as marcas de produção e circulação desse objeto; é considerar os usos prescritos nele como dispositivos de produção de sentido” (Carvalho, 2013, p. 131, grifo do autor). das Escolas Normais como agência de formação de professores a partir do final do século XIX e seu redimensionamento ao longo das quatro primeiras décadas do século passado (Tanuri, 2000Tanuri, L. M. (2000). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, (14), 61-88.; Saviani, 2009Saviani, D. (2009). Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, 14(40), 143-155. ), quando com elas entram em concorrência as faculdades como agências em que se passam a ofertar os primeiros cursos superiores de pedagogia e de licenciatura (a partir de meados dos anos 1930), consistem, entre outros aspectos, em um processo crescente de explicitação do objeto da formação docente.

Assim, em um primeiro momento, esse objeto define-se por seu foco nos conteúdos escolares, estando a ‘arte de ensinar’ condicionada ao domínio do repertório de saberes codificados nas disciplinas escolares (língua, matemática, geografia, ciências etc.), elas próprias em processo de franca gestação e consolidação. Para Tanuri (2000Tanuri, L. M. (2000). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, (14), 61-88., p. 64), esse traço de “[...] um ensino apoucado, estreitamente limitado em conteúdo ao plano de estudos das escolas primárias [...]” marca “[...] o início do desenvolvimento das escolas normais em outros países e estava presente na organização imprimida às primeiras instituições congêneres aqui instaladas”4 4 Schneuwly (2014) assinala fenômeno similar de primazia dos conteúdos escolares como objeto e dispositivo de formação na história da formação universitária para o ensino secundário (e da constituição das didáticas disciplinares no campo das ciências da educação), no contexto suíço. Para o autor, entre as motivações desse fenômeno estariam os limites institucionais fracamente definidos entre as práticas de ensino na escola secundária e a formação universitária, em função fundamentalmente do processo incipiente de institucionalização desta última, o que é indiciado, por um lado, pelo forte trânsito de professores entre as duas agências (escola e universidade) e, por outro lado e complementarmente, pela familiaridade com que a formação universitária se relaciona com as formas de trabalho escolar. Esse suposto de familiaridade, de compartilhamento de práticas identificadas como conhecidas, teria relegado a um plano fracamente necessário a preocupação com a dimensão didática do trabalho docente, no que respeita aos modi operandi do ensino, às estratégias e instrumentos didáticos e às formas do trabalho escolar. Assim, considerada familiar, essa dimensão didática acaba por se diluir na prevalência dos conteúdos como objeto da formação docente e, nessa direção, desses conteúdos como traço distintivo do estatuto que as didáticas disciplinares vão adquirindo no âmbito dessa formação. .

A essa acepção do objeto da formação agrega-se, progressivamente, no contexto de estabelecimento e expansão do padrão das Escolas Normais ou de uniformização do ensino normal, a ênfase sobre a ‘preparação pedagógico-didática’ ou técnico-profissional (preparo do formando nos ‘exercícios práticos’) como condição sinequa non de uma formação satisfatória do professor. Tanuri (2000Tanuri, L. M. (2000). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, (14), 61-88.)assinala o lugar dos princípios e fundamentos do movimento escolanovista nessa conjuntura, a partir dos anos 1920 e ao longo dos anos 1930. Esse progressivo prestígio da dimensão técnico-profissional afeta o currículo da formação nas Escolas Normais, configurando-se, em algumas reformas, segundo a autora, como ampliação e diversificação da oferta de disciplinas de formação profissional, “[...] além da pedagogia, da psicologia e da didática [...]” “[…] a história da educação, a sociologia, a biologia e higiene, o desenho e os trabalhos manuais” (Tanuri, 2000Tanuri, L. M. (2000). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, (14), 61-88., p. 70-71).

O fenômeno de estabelecimento e expansão do modelo das Escolas Normais é porta de entrada para o período histórico marcado pela “Organização e implantação dos Cursos de Pedagogia e de Licenciatura e consolidação do modelo das Escolas Normais (1939-1971)” (Saviani, 2009Saviani, D. (2009). Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, 14(40), 143-155. , p. 144), momento crucial para a delimitação de um espaço formalmente inédito das didáticas disciplinares como componente curricular da formação do professor em nível superior e, nessa direção, para o reposicionamento do objeto da formação docente. O lugar que elas ocupam, do ponto de vista institucional, é aquele largamente conhecido como ‘esquema 3 + 1’, ou seja, elas sucedem a formação bacharelesca, mais duradoura, alocando-se, como parcela suplementar, no fim do percurso formativo5 5 A caracterização histórica desse fenômeno aparece desenvolvida em Araújo, Freitas & Lopes (2008), compilação de estudos voltados à reconstituição histórica dos processos de gênese e institucionalização das Escolas Normais em diferentes Estados (‘unidades provinciais/federativas’) brasileiros, entre o império e a república (1835-1960). A coletânea decorre de um investimento envolvendo pesquisadores e grupos de pesquisa de diferentes instituições brasileiras e apresenta um ‘inventário’ bastante robusto sobre as Escolas Normais. .

Esse esquema, nascido entre os anos 1930 e 1940, perdura como parâmetro de organização do currículo da formação do professor, com múltiplas e diferentes nuanças, até os dias atuais nas universidades brasileiras. Ocupando esse lugar no percurso de formação profissional, as didáticas disciplinares integram a formação pedagógica desde sempre sob a lógica dualista - uma ‘solução dualista’, nos termos de Saviani (2009Saviani, D. (2009). Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, 14(40), 143-155. )- que distingue formação teórica e formação pedagógica ou, em outros termos, campo disciplinar e campo profissional. Nessa divisão do trabalho de formação do professor, a formação pedagógica e as didáticas disciplinares que a integram já nascem, pode-se dizer, como elemento acessório.

O autor postula ser sob essa lógica dualista que se constituem historicamente os dois modelos de formação de professores, a saber: a) ‘modelo dos conteúdos culturais-cognitivos’- “[...] para o qual a formação de professores propriamente dita se esgota na cultura geral e no domínio específico dos conteúdos da área de conhecimento correspondente à disciplina que o professor irá lecionar” (Saviani, 2009Saviani, D. (2009). Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, 14(40), 143-155. , p. 149) - eo ‘modelo pedagógico-didático’- “[...] a formação de professores só se completa com o efetivo preparo pedagógico-didático” (Saviani, 2009, p. 149).

Metodologia de ensino de língua portuguesa e formação docente

No que respeita particularmente ao lugar da metodologia de ensino de língua portuguesa nesse esquema, os elementos de informação histórica da ‘evolução dos estudos sobre o ensino do Português’, formulados por Soares (1997Soares, M. (1997). Prefácio. In A. A. G. Batista.Aula de português- discurso e saberes escolares (p. VII-XV). São Paulo, SP: Martins Fontes.), são bastante elucidativos, tendo sua relevância intensificada em face da carência de dados sistematizados sobre a história do currículo e das práticas de formação do professor de língua portuguesa no Brasil. Ao traçar um panorama geral da produção intelectual sobre o ensino de língua portuguesa, a autora qualifica duas tendências dos estudos e pesquisas na transição de duas conjunturas históricas, a saber: i) a partir dos anos 1930 até meados dos anos 1970 e ii) a partir de meados dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980 e início dos anos 1990.

O traço característico do primeiro intervalo de tempo encontra-se na relação de subordinação dos estudos e pesquisas sobre o ensino de língua portuguesa à área de didática (‘Didática Geral e Especial’), emprestando-lhe os temas e objetos de investigação, quais sejam, segundo Soares,

[…] de um lado, propostas de natureza normativa, prescritiva, conjunto de normas, recursos e procedimentos que deveriam informar e orientar a prática dos professores; de outro lado, pesquisas, poucas e quase sempre de natureza experimental, que, em geral buscando de empréstimo fundamentos na Psicologia da Aprendizagem, procuram intervir no processo de ensino para verificar como melhor prescrever-lhe as sempre perseguidas e desejadas normas e procedimentos. (Soares, 1997Soares, M. (1997). Prefácio. In A. A. G. Batista.Aula de português- discurso e saberes escolares (p. VII-XV). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. VIII)

A autora menciona o uso, na disciplina ‘Didática de Português’ nas Faculdades de Filosofia, de

[…] dois livros muito familiares aos que ensinávamos essa disciplina nos anos 60 e 70, pois eram de uso intenso e cotidiano, manuais que diziam ‘o que’fazer e ‘como’fazer: o Manual de explicação de textos, de Fernando Lázaro Carrter e Cecília de Lara (1962), e O ensino da literatura, de Nely Novaes Coelho (1966) (Soares, 1997Soares, M. (1997). Prefácio. In A. A. G. Batista.Aula de português- discurso e saberes escolares (p. VII-XV). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. VIII, grifo do autor).

Esse vínculo orgânico da produção intelectual sobre o ensino de língua portuguesa com a área de didática vai-se reconfigurando progressivamente, segundo a autora, já nos anos 1960, quando do fenômeno de expansão do acesso à escolarização, e se intensifica nos anos 1970, quando do diagnóstico da contraface desse fenômeno: à expansão não se havia ajuntado o incremento das condições materiais de organização e funcionamento do trabalho escolar e de acolhimento do novo perfil de alunado que chegava às salas de aula, nem daquelas de valorização e garantia da qualidade do trabalho docente que, ao contrário, entrava em processo de franca precarização.

Nessa conjuntura, o recurso ao normativismo pedagógico passa a ser tensionado, uma vez que pouco pertinente para a compreensão do ‘fracasso’ que se escancara como traço inédito da escola brasileira, indiciado pela constatação não apenas da insuficiência de desempenho de nossos alunos, como também e especialmente de que essa insuficiência passa pela linguagem, configurando-se centralmente como crise na apropriação das habilidades de leitura e escrita. Nos termos de Soares,

‘Crise’no ensino de Português, ‘fracasso’do ensino de Português: as normas e prescrições que, até então, pareciam garantir o sucesso desse ensino desmoronavam. Por isso, no final dos anos 70 e início dos anos 80, a produção intelectual sobre o ensino de Português transforma-se: não mais normas, prescrições, instruções, cuja falência, na escola democratizada, era preciso reconhecer; agora, denúncia - a ‘crise’, o ‘fracasso’. Multiplicam-se então os estudos, as pesquisas, as reflexões sobre a falência do processo de alfabetização, as ‘deficiências’ de expressão oral e escrita de crianças e jovens (Soares, 1997Soares, M. (1997). Prefácio. In A. A. G. Batista.Aula de português- discurso e saberes escolares (p. VII-XV). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. IX, grifo do autor).

Um segundo fenômeno que concorre no redimensionamento da produção intelectual sobre o ensino de língua portuguesa, ao longo dos anos 1970, é desencadeado pela instância das políticas educacionais. Segundo Soares,

A reforma do ensino superior, promulgada no final dos anos, ao eliminar a figura da cátedra, conferiu autonomia à então denominada ‘Didática de Português’, designação substituída por ‘Prática de Ensino de Português’ (tendo-se mantido a disciplina ‘Didática’, é significativo que o termo ‘didática’ tenha sido evitado na denominação das disciplinas cujo objeto é o ensino de um certo conteúdo, anteriormente chamadas ‘Didáticas especiais’). Assim, de apêndice que era da Didática Geral, o ensino de Português (como também o ensino dos outros conteúdos) passou a constituir, pelo menos formalmente, uma área de conhecimento específica e independente. Pelo menos formalmente, de início, mas logo substancialmente, graças a um terceiro fenômeno que criou condições de possiblidade para que essa área de conhecimento, ‘Ensino de Português’, gerasse uma produção intelectual definida por seus próprios princípios e pressupostos (Soares, 1997Soares, M. (1997). Prefácio. In A. A. G. Batista.Aula de português- discurso e saberes escolares (p. VII-XV). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. X, grifo do autor).

O terceiro fenômeno a que se refere a autora consiste em “[...] chegada, ao campo do ensino de Português, dos conhecimentos construídos na área das ciências linguísticas” (Soares, 1997Soares, M. (1997). Prefácio. In A. A. G. Batista.Aula de português- discurso e saberes escolares (p. VII-XV). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. XI). Tais aportes teóricos, centrados inicialmente em identificação e denúncia do fracasso ou da crise da linguagem na escola6 6 A autora menciona que “[…] algumas obras que tiveram repercussão à época em que foram publicadas: Crise na linguagem: a redação no vestibular, de Maria Thereza Fraga Rocco, publicada em 1981; Leitura em crise na escola: as alternativas do professor, coletânea organizada por Regina Zilberman, publicada em 1982; Invasão da cathedral: literatura e ensino em debate, de Ligia Chiappini Leite, obra de 1983 […]” (Soares, 1997, p. X). , expandem-se em direção à compreensão do problema e à proposição de alternativas para sua reversão, principalmente a partir dos anos 1980. Soares assinala a ampliação e diversificação da produção intelectual sobre o ensino do português, a partir desse momento, “[...] de tal forma que, se foi possível citar obras representativas das tendências anteriores, o mesmo não se pode tentar para esta recente e vigente tendência” (Soares, 1997Soares, M. (1997). Prefácio. In A. A. G. Batista.Aula de português- discurso e saberes escolares (p. VII-XV). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. XII)7 7 A título de ‘citação aleatória’, a autora menciona que “[…] O texto na sala de aula, coletânea organizada por João Wanderley Geraldi, publicada em 1984; A linguística e o ensino da língua portuguesa, de Rodolfo Ilari, obra publicada em 1985; em 1986, No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, de Mary Kato, e Linguagem e escola: uma perspectiva social, da autora deste prefácio; em 1987, a coletânea organizada por Elvo Clemente, Linguística aplicada ao ensino de Português; de 1991, a coletânea organizada por Maria Helena Martins, Questões de linguagem; também de 1991, Portos de Passagem, de João Wanderley Geraldi; do mesmo autor, Linguagem e ensino, 1996 […]” (Soares, 1997, p. XII-XIII). .

Com base nos elementos de informação histórica arrolados, Soares (1997Soares, M. (1997). Prefácio. In A. A. G. Batista.Aula de português- discurso e saberes escolares (p. VII-XV). São Paulo, SP: Martins Fontes.) postula que o percurso da produção intelectual sobre o ensino do português transita da postura prescritiva, suposta na ênfase aos procedimentos técnicos de ensino, para a postura diagnóstica, suposta no discurso sobre a crise e o fracasso, e dessa para a postura propositiva, suposta na elaboração conceitual e aplicada da compreensão e do enfrentamento dos desafios então colocados.

A reconstituição panorâmica do percurso histórico de evolução da formação do professor para a escola brasileira com base na legislação, nas políticas educacionais, nas práticas acadêmicas de elaboração e implementação curricular e na produção intelectual, conforme sintetizada nesta seção, é o pano de fundo para a compreensão dos modos com que a metodologia de ensino de língua portuguesa adquire seu estatuto no quadro do processo histórico de invenção das didáticas disciplinares como componente curricular dessa formação. No caso deste estudo, é recurso operatório indispensável para examinar como esse estatuto ganha corpo na literatura pedagógica destinada aos professores, mais precisamente nos manuais pedagógicos, conforme tratado na próxima seção.

Os manuais pedagógicos como artefatos materiais da cultura pedagógica

Em estudo seminal sobre a história dos processos de produção e recepção da literatura pedagógica destinada ao professorado, particularmente aquela materializada em manuais pedagógicos publicados no Brasil entre 1930 e 1971, Silva (2003Silva, V. B. (2003). Uma história das leituras para professores: análise da produção e circulação de saberes especializados nos manuais pedagógicos (1930-1971). Revista Brasileira de História da Educação,(6), 29-57. ) caracteriza estes últimos e discute seu estatuto na difusão de saberes sobre o trabalho de ensino e na construção de uma cultura profissional docente, investimento de investigação filiado à área de história da educação e, mais especificamente, à história da leitura e dos impressos escolares.

Entre os traços que identificam e distinguem os manuais no âmbito da literatura educacional, a autora assinala sua finalidade instrumental no ensino de disciplinas profissionalizantes dos currículos de instituições de formação docente, bem como sua função de materializar um conjunto múltiplo de saberes profissionais, consubstanciados noideário da pedagogia como‘arte de ensinar’8 8 Do ponto de vista do campo normativo das concepções pedagógicas, Carvalho (2001, p. 142-143, grifo do autor) assinala que “A ‘arte de ensinar’, tal como a concebia a ‘moderna pedagogia’ que circulou no Brasil em fins do século XIX e início do XX, conformando iniciativas de reforma escolar, é ‘pedagogia prática’. […] Como ‘artes de saber-fazer-com’, ensino e aprendizagem são práticas fortemente atreladas à materialidade dos objetos que lhes servem de suporte. As práticas que se formalizam nos usos desses materiais guardam forte relação com uma pedagogia em que tal ‘arte’ é prescrita como boa imitação de um modelo. […] Essa pedagogia fundada no princípio de que ensinar a ensinar é fornecer bons moldes e de que aprender a ensinar supõe ‘ter visto fazer’conforma o impresso destinado aos professores”. O manual pedagógico integraria o arsenal de dispositivos de ‘modelização da leitura do professor’, ou, como nomeia metaforicamente a autora, uma espécie de ‘caixa de utensílios’. . Nessa direção, constituem-se em dispositivo material das práticas de formação, instituído em ‘discurso-segundo’, aquele que se constitui em referência explícita e necessária a outro discurso; em outros termos, aquele que traduz, recontextualiza ou reformula o discurso acadêmico e o discurso oficial, tomados como seu ‘discurso-fonte’9 9 As acepções de ‘discurso-fonte e discurso-segundo’ são emprestadas à contribuição de Authier (1982) em torno do discurso de divulgação científica. Para a autora, “Transmissão de um discurso existente em função de um novo receptor, a DC [Divulgação Científica] se dá, assim, de imediato como prática de reformulação de um discurso-fonte (daqui em diante D1) em um discurso-segundo (D2)” (Authier, 1982, p. 34-5). Em Gomes-Santos (2004), há o uso dessas noções na análise de documentos oficiais de parametrização curricular do ensino de língua portuguesa no Brasil. .

Essa condição de discurso-segundo constitui-se em duas modalidades complementares: por um lado, como “[...] síntese de uma ampla bibliografia, produzida por diversos nomes e relacionada a diferentes ramos de estudo” (Silva, 2003Silva, V. B. (2003). Uma história das leituras para professores: análise da produção e circulação de saberes especializados nos manuais pedagógicos (1930-1971). Revista Brasileira de História da Educação,(6), 29-57. , p. 37); por outro lado, como reformulação do discurso oficial em direção à sua especificação e clarificação, uma vez se tratar de “[...] um tipo de texto elaborado a partir dos programas oficiais e que contém de forma mais detalhada do que essas prescrições os conhecimentos a serem efetivamente ensinados aos normalistas” (Silva, 2003Silva, V. B. (2003). Uma história das leituras para professores: análise da produção e circulação de saberes especializados nos manuais pedagógicos (1930-1971). Revista Brasileira de História da Educação,(6), 29-57. , p. 30).

Ainda nessa condição de discurso-segundo, os manuais operam por meio de uma dupla estratégia: delimitação de saberes escolares e definição de procedimentos de ensino. Assim, os saberes profissionais, codificados nos manuais, são ordenados conforme um princípio de unidade que toma o ‘didático’ como arena comum de construção teórica e metodológica. É assim que os objetos ou conteúdos de ensino e o método de ensino ou a engenharia didática são os elementos estruturantes do trabalho didático representado pelos e nos manuais; em outras palavras, a coleção de saberes a serem ensinados e o arsenal de dispositivos suscetíveis de promover seu ensino.

No que respeita ao lugar dos manuais no processo de constituição das didáticas disciplinares, cabe assinalar que, do ponto de vista histórico, a emergência dos manuais como artefatos da cultura de formação docente articula-se intrinsecamente ao processo de expansão e consolidação do modelo das Escolas Normais como parâmetro hegemônico para a formação dos professores das séries iniciais da escolarizaçãoe, no cerne desse processo, ao fenômeno lento de ‘universitarização’ dessa formação com a criação das primeiras faculdades voltadas à formação de bacharéis e licenciados nas várias áreas de formação profissional. Assim, podemos dizer que as condições de produção e recepção dos manuais pedagógicos se constroem em reciprocidade com o processo de progressiva especificação tanto das práticas didáticas e das disciplinas do campo escolar, quanto das práticas de formação e das disciplinas científicas em que estas últimas se ancoram, no campo acadêmico. Nessa direção, os manuais podem ser considerados tanto efeito do processo de consolidação das didáticas disciplinares, quanto elemento estruturante desse processo, uma vez que, ao traduzirem saberes profissionais, conformam e vão construindo a especificidade dessas didáticas.

No que respeita especificamente aos manuais pedagógicos da área de ensino de língua, Mortatti; Trevisan; Oliveira e Sales (2009Sales, G. G. P. (2009). Um estudo sobre Metodologia da linguagem(1949), de J. Budin(Trabalho de Conclusão de Curso - Graduação em Pedagogia). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília. ) apresentam uma síntese das pesquisas realizadas no âmbito do Grupo de Pesquisa e do Projeto Integrado de Pesquisa ‘História do Ensino de Língua e Literatura no Brasil’, tendo como fonte de investigação manuais pedagógicos destinados aos alunos dos cursos de formação de professores primários. A síntese proposta pelos autores consiste em breve apresentação de um corpus de cinco manuais no que se refere a dados de sua autoria, à data e ao contexto de sua publicação. O estudo integra um investimento mais amplo de pesquisa que, do ponto de vista metodológico, ancora-se em uma abordagem histórica de fontes documentais10 10 O grupo de pesquisa em questão, liderado por Maria do Rosário Longo Mortatti, tem como sede institucional a Universidade Estadual Paulista - campus de Marília (São Paulo, Brasil). O objetivo das pesquisas é formulado nos seguintes termos pelos autores: “[...] contribuir tanto para a produção de uma história do ensino de língua e literatura no Brasil, que auxilie na busca de soluções para os problemas desse ensino, no presente, quanto para a formação de pesquisadores capazes de desenvolver pesquisas de fundo histórico, que permitam avanços em relação aos campos de conhecimento envolvidos […]” (Mortatti et al., 2009, p. 3). .

Ainda na área de ensino de língua, Oliveira (2015Oliveira, F. R. (2015). A institucionalização do ensino da literatura infantil na formação de professores: a criação de uma matéria de ensino (1947-1956). In História do ensino da literatura infantil na formação de professores no estado de São Paulo (1947-2003)(p. 87-149). São Paulo, SP: Editora UNESP. ) propõe investigar os modos pelos quais a literatura infantil constitui seu estatuto de componente disciplinar do currículo da formação de professores do Estado de São Paulo no período de 1947 a 1956, com base em ampla documentação que inclui diferentes fontes históricas (além de manuais pedagógicos, leis, decretos e portarias, conformando o discurso oficial, e artigos em jornais e revistas ou livros, conformando o discurso acadêmico-científico). Entre essas fontes, o autor considera um corpus de três manuais pedagógicos, sintetizando elementos de contextualização histórica de sua produção e recepção e de sua configuração textual (tópicos temáticos, com foco para a literatura infantil), além dos modos de estruturação das obras. Dois deles interessam diretamente à discussão que vimos propondo neste estudo: trata-se dos manuais Metodologia da linguagem: para uso das escolas normais e institutos de educação, de JanettaBudin, publicado em 1949Budin, J. (1949). Metodologia da linguagem. São Paulo, SP: Companhia Editora Nacional. pela Companhia Editora Nacional (São Paulo, SP), e seu homônimo Metodologia da linguagem, de Orlando Leal Carneiro, publicado em 195111 11 O manual Metodologia da linguagem, de JanettaBudin, é objeto de análise em Sales (2009); o homônimo de Orlando Leal Carneiro, por sua vez, em Galluzi (2006). . A seguir, proponho considerar, em caráter de ilustração, além desses, um terceiro manual. Os três conformam um corpusde manuais particularmente voltados para a área de linguagem e ensino de língua, publicados entre 1949 e 1958.

Incursão breve em um corpus de manuais pedagógicos

O corpus de manuais pedagógicos considerados, logo adiante, comporta três manuais designados por duas nomeações: Metodologia da linguagem (2 títulos) eDidática especial de português. No quadro 1, os títulos são apresentados em ordem cronológica de publicação e conforme seus dados bibliográficos:

Quadro 1
Dados biobibliográficos dos manuais pedagógicos.

Fonte: O autor.

A apreciação da conjuntura histórica, social e intelectual em que emergem esses manuais permite levantar alguns indicativos sobre as motivações de natureza diversa que estão na base de seu processo de produção12 12 Quanto às práticas de recepção dos manuais, demandariam um investimento particular de pesquisa que pudesse captar, por exemplo, a abrangência de sua circulação pelas agências de formação e sua repercussão no âmbito da imprensa pedagógica (como procede Silva, 2003), e, principalmente, que pudesse reconstituir e interpretar registros sobre sua eventual incorporação nas práticas efetivas de formação. . Do ponto de vista de sua função mais ampla, podemos supor, como mencionado, que tais manuais operam como dispositivo material da cultura escolar13 13 A noção de ‘cultura escolar’é considerada tal como desenvolvida por Faria-Filho (2008, p. 253), para quem “[...] tanto o processo de escolarização quanto as culturas escolares não são pressupostos; são o processo e o resultado das experiências dos sujeitos, dos sentidos construídos e compartilhados e/ou disputados pelos atores que fazem a escola. Por isso, tenho que considerar - do ponto de vista teórico e metodológico - a existência de outras culturas institucionais que estão em consenso e/ou conflito com a escola como a cultura familiar, a cultura religiosa etc. Preciso considerar também que os sujeitos que constroem essa cultura guardam diversos pertencimentos e identidades pelos quais as culturas escolares estarão continuamente informadas”. e da cultura de formação profissional, sendo estruturados, entre múltiplos outros aspectos, na confluência de modelos de ensino e modelos de formação docente hegemônicos em conjunturas históricas, sociais e políticas particulares, mas também sendo estruturantes desses modelos, uma vez que, em sua condição de discurso segundo, redimensionam tais modelos em um movimento potencialmente inventivo de tradução ou citação das referências (científicas, legais, culturais) em que eles se ancoram.

É assim que uma verificação geral de Metodologia da linguagem (1949), de Janetta Budin, considerado o primeiro manual pedagógico nacional voltado particularmente à área da linguagem (Oliveira, 2015Oliveira, F. R. (2015). A institucionalização do ensino da literatura infantil na formação de professores: a criação de uma matéria de ensino (1947-1956). In História do ensino da literatura infantil na formação de professores no estado de São Paulo (1947-2003)(p. 87-149). São Paulo, SP: Editora UNESP. ), permite evidenciar de imediato um primeiro indício de seu estatuto de discurso-segundo: sem texto de prefácio ou apresentação, ele abre com a transcrição do ‘Programa de Metodologia da Linguagem’ do Curso Normal do Instituto de Educação do Distrito Federal que inclui uma primeira parte relativa aos ‘Objetivos do ensino da matéria’ e outra, segmentada em sete ‘unidades didáticas’, as seis primeiras destinadas à segundasérie do curso e a sétima, para a terceira série. O ‘índice geral’ do manual retoma quase integralmente essas unidades didáticas, em um movimento não apenas de expansão ou especificação de seus tópicos temáticos, mas também de reconfiguração desses tópicos conforme a explicitação de conteúdos de ensino e a proposição de sugestões didáticas.

O manual Metodologia da linguagem (1951), de Orlando Leal Carneiro, por sua vez, retoma grande parte dos tópicos temáticos tratados por J. Budin, o que indicia que ambos se vinculam aos currículos e programas instituídos no Curso Normal do Instituto de Educação do Distrito Federal, instituição em que se opera a elaboração curricular, tomada em grande medida como parâmetro para as demais agências de formação do país no período de expansão e consolidação do modelo das Escolas Normais, no percurso de evolução histórica da formação docente no Brasil (Tanuri, 2000Tanuri, L. M. (2000). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, (14), 61-88.). Conforme menciona Oliveira (2015Oliveira, F. R. (2015). A institucionalização do ensino da literatura infantil na formação de professores: a criação de uma matéria de ensino (1947-1956). In História do ensino da literatura infantil na formação de professores no estado de São Paulo (1947-2003)(p. 87-149). São Paulo, SP: Editora UNESP. ),

Metodologia da linguagem (1951) foi publicado, conforme consta na orelha da capa e quarta capa, em decorrência da expansão do Ensino Normal pelo Brasil, especialmente após a promulgação da Lei Orgânica do Ensino Normal. Com o objetivo de colaborar com as discussões sobre o ensino da linguagem nos diferentes Institutos de Educação e Escolas Normais que se criavam no país, à época, a Editora Agir lançou a coleção ‘Biblioteca de Cultura Pedagógica’, cujo primeiro volume é Metodologia da linguagem (1951), de Orlando Leal Carneiro (Oliveira, 2015Oliveira, F. R. (2015). A institucionalização do ensino da literatura infantil na formação de professores: a criação de uma matéria de ensino (1947-1956). In História do ensino da literatura infantil na formação de professores no estado de São Paulo (1947-2003)(p. 87-149). São Paulo, SP: Editora UNESP. , p. 111-12, grifo do autor).

Para o propósito da discussão proposta neste estudo, é ainda no texto da orelha da capa que se encontra uma relevante ponderação sobre a metodologia da linguagem como componente curricular da formação docente, especificamente sobre sua primazia com relação às outras metodologias de ensino14 14 Na transcrição de excertos dos manuais pedagógicos, nesta seção, manteve-se a grafia do original. :

[…] Entre as várias metodologias de ensino, nenhuma sobreleva a da linguagem, pois, como diz Lombardo Radice, ‘toda lição escolar deve ser uma lição de linguagem’. E ninguém mais indicado que o Prof. Orlando Leal Carneiro, que, além de catedrático da disciplina no Instituto de Educação, foi Chefe de Distrito Educacional, durante cinco anos, na Prefeitura do Distrito Federal. Aliando, a uma invejável cultura lingüística, sólida formação pedagógica, o Sr. Orlando Leal Carneiro estuda os Fundamentos filosóficos e psicológicos da Linguagem, as bases psicológicas e históricas do seu ensino e não deixa um problema sequer de metodologia (leitura, escrita, composição, gramática e medida de aprendizagem) sem solução […]. (apud Carneiro, 1959Carneiro, O. L. C. (1959). Metodologia da linguagem(3a ed., Prefácio de Theobaldo Miranda Santos). Rio de Janeiro, RJ: Livraria AGIR Editora., texto de orelha da capa, grifo do autor).

No prefácio do manual, assinalado por Theobaldo Miranda Santos (importante referência na produção bibliográfica educacional da época), a primazia da metodologia de linguagem aparece ancorada no suposto do caráter específico ou da natureza singular do próprio objeto de que se ocupa, a linguagem. Nas palavras do professor Theobaldo,

O domínio da linguagem constitui o objetivo máximo da educação intelectual. Aprender a falar e escrever a língua materna, com correção, clareza e elegância, deve ser a tarefa principal do ensino escolar.

Daí a importância fundamental de que se reveste o aparecimento de um magnífico livro de metodologia da linguagem, num país onde, até bem pouco tempo, a didática da língua era representada por uma multidão de gramáticas eruditas e complicadas (SantosapudCarneiro, 1959Carneiro, O. L. C. (1959). Metodologia da linguagem(3a ed., Prefácio de Theobaldo Miranda Santos). Rio de Janeiro, RJ: Livraria AGIR Editora., p. 13).

Essa afirmação da especificidade da disciplina parece representar um dos componentes do estatuto que ela adquire no processo de institucionalização histórica do conjunto das didáticas disciplinares no currículo da formação docente, em estreita relação, conforme mencionado, com o processo de expansão e consolidação do modelo das Escolas Normais (e, no seio desse processo, com o fenômeno de universitarização dessa formação com a criação das primeiras faculdades). Em relação de imbricação direta com esse fenômeno encontra-se aquele de expansão do Curso Secundário no Brasil.

Ora, essas motivações macroinstitucionais constituem-se, conjuntamente com a progressiva especialização do próprio objeto da didática disciplinar, como componente da formação docente. Assim, enquanto os dois manuais descritos destinam-se à formação de professores para atuação nas séries iniciais de escolarização, na escola primária, tendo como objeto da metodologia (de ensino) a ‘linguagem’, o manual considerado, a seguir, ao se destinar à formação do professor de língua portuguesa para o Curso Secundário, ocupa-se do ‘português’ ou da ‘língua portuguesa’como objeto de elaboração didática, podendo mesmo delimitar conceitualmente suas fronteiras com relação à disciplina ‘didática’. Neste último caso, é o que se evidencia pela proposição do capítulo ‘Conceito de didática especial de Português’ como o primeiro no manual Didática especial de português, de Leodegário Amarante de Azevedo Filho (1958Azevedo Filho, L. A. (1958). Didática especial de português (para o curso secundário). Rio de Janeiro, RJ: Conquista.). Já no ‘Prólogo’, o autor assim qualifica esse capítulo:

No primeiro, tratamos de conceituar a disciplina aqui estudada, correndo o risco da definição, embora saibamos que omnis definitionpericulosa est. Todo êsse capítulo é dedicado à conceituação da Didática especial de português, cujo estudo sòmente se vem esboçando após a criação das ‘Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras’em nosso meio. Êste livro é, alias, o primeiro que se publica sôbre o assunto (Azevedo Filho, 1958Azevedo Filho, L. A. (1958). Didática especial de português (para o curso secundário). Rio de Janeiro, RJ: Conquista., p. 11, grifo do autor).

A conceituação proposta consiste em definição da didática especial de português em seu vínculo constitutivo com a didática (geral), ou seja, como subcampo desta última. Nos termos do autor,

Didática especial de português é a direção técnica da aprendizagem de Português, ou seja, é a aplicação dos princípios gerais da ‘Didática’ ao ensino da ‘Língua Portuguêsa’. A definição, como se vê, abrange dois conceitos, - o de ‘Didática Geral’ e o de ‘Língua Portuguêsa’, - que convém estudar. Não se pode, realmente, traçar normas técnicas para o ensino de ‘Português’, sem conhecimento dessas duas disciplinas. Êste trabalho, portanto, começa pela fixação do conceito de Didática, - cujos princípios gerais mais tarde serão aplicados ao ensino do idioma, - e pela caracterização da ‘Língua Nacional’ (Azevedo Filho, 1958Azevedo Filho, L. A. (1958). Didática especial de português (para o curso secundário). Rio de Janeiro, RJ: Conquista., p. 13, grifo do autor).

Assim, o duplo conceito a que ele se refere marca, a um só tempo, o pertencimento da didática especial do português ao campo geral da didática (associada a uma teoria da aprendizagem fornecida pela ‘Psicologia Educacional’15 15 Para o autor, “A ‘aprendizagem’, portanto, é um processo psicológico que se caracteriza pela incorporação de experiências novas ao patrimônio individual, num ambiente de estímulos capaz de gerar interêsse” (Azevedo Filho, 1958, p. 14, grifo do autor). ) e a outros “[...] ramos da ciência pedagógica” (Azevedo Filho, 1958Azevedo Filho, L. A. (1958). Didática especial de português (para o curso secundário). Rio de Janeiro, RJ: Conquista., p. 19), e sua filiação à tradição disciplinar particular em que se dá a gênese de seu objeto (a língua16 16 A esse propósito, não é irrelevante observar como esse objeto é designado por três nomeações pelo autor, no capítulo em questão: ‘Língua portuguêsa/português, idioma e língua nacional’. ), sendo exatamente esse objeto o traço que lhe confere identidade ou individuação frente às demais didáticas disciplinares.

É esse relativo primado do objeto na definição da especificidade da disciplina que justifica a seção III do capítulo voltada à ‘Caracterização da Língua Nacional’ (Azevedo Filho, 1958Azevedo Filho, L. A. (1958). Didática especial de português (para o curso secundário). Rio de Janeiro, RJ: Conquista.). Nessa seção, a definição da língua portuguesa como a ‘língua padrão’do Brasil é formulada com base no suposto de sua superioridade em relação às demais línguas e culturas que circularam no país historicamente (‘dialetos autoctones’ ou aqueles de ‘escravos africanos, de cultura inferior à portuguêsa’), tendo-se sobre elas preponderado por ser “[...] idioma representativo de uma civilização mais elevada” (Azevedo Filho, 1958Azevedo Filho, L. A. (1958). Didática especial de português (para o curso secundário). Rio de Janeiro, RJ: Conquista., p. 15). Azevedo Filho reconhece haver, todavia, particularidades do português brasileiro com relação ao lusitano e que estas “[…] podem e devem ser encaradas como um problema de ‘estilo’” (Azevedo Filho, 1958Azevedo Filho, L. A. (1958). Didática especial de português (para o curso secundário). Rio de Janeiro, RJ: Conquista., p. 15, grifo do autor), noção cujo sentido ele empresta ao Curso de linguística geral, de Ferdinand Saussure. Essa ‘tese nova e possìvelmente arrojada’ é assim formulada pelo autor: “A língua portuguesa do Brasil, por conseguinte, é a portuguêsa. As diferenças naascidas do uso que dela fazemos e do que dela fazem os portuguêses não passam de simples diferenças estilísticas” (Azevedo Filho, 1958Azevedo Filho, L. A. (1958). Didática especial de português (para o curso secundário). Rio de Janeiro, RJ: Conquista., p. 16-17).

A defesa do vínculo do português brasileiro com o português lusitano, qualificado como língua de ‘um povo de civilização superior’, e a redução da diversidade e variação linguística a um problema de natureza estilística atualizam uma polêmica intelectual histórica, já presente entre os românticos, em torno da noção de ‘língua nacional’17 17 É exatamente o postulado da variação como ‘estado da língua e recurso do falante’, ou seja, como propriedade constitutiva da língua, que fica nas margens das evidências recobertas pela noção de ‘língua nacional’, conforme a discussão proposta por Signorini (2002). . Ao trazer à tona essa polêmica, Azevedo Filho alinha-se à estratégia ideológica segundo a qual a referência lusitana como matriz de nossa constituição linguística e cultural é expediente de legitimação de nossa identidade como nação civilizada.

Trata-se, em uma palavra, de uma concepção idealista de língua, cuja legitimidade assenta-se fortemente nos princípios de homogeneidade e correção ou de pureza do idioma (Signorini, 2002Signorini, I. (2002). Por uma teoria da desregulamentação linguística. In: M. Bagno(Org.),Linguística da norma(p.93-125). São Paulo, SP: Edições Loyola., 2006Signorini, I. (2006). A questão da língua legítima na sociedade democrática: um desafio para a linguística aplicada contemporânea. In: L. P. Moita-Lopes (Org.),Por uma linguística aplicada indisciplinar(p. 169-190). São Paulo, SP: Parábola Editorial.). É assim caracterizada que a língua pode-se converter em objeto da didática especial do português, objeto de elaboração didática, ou seja, que se pode “[...] determinar o que se vai ensinar, para depois estabelecer o modo de fazê-lo. E vamos ensinar o ‘Português do Brasil’, com as características que vimos acima” (Azevedo Filho, 1958, p. 18, grifo do autor).O que se tem como pressuposto nessa formulação é, em última análise, o reforço de uma concepção de língua como expressão da identidade individual do aluno ‘falante de português’, o brasileiro civilizado, na própria engrenagem de produção da identidade moderna da nação brasileira (Boto, 2003Boto, C. (2003). A civilização escolar como projeto político e pedagógico da modernidade: cultura em classes, por escrito. Cadernos Cedes, 23(61), 378-397.; Faria Filho, 2005Faria Filho, L. M. (2005). Representações da escola e do alfabetismo no século XIX. In A. M. O. Galvão & A. A. G. Batista (Orgs.), Leitura:práticas, impressos, letramentos(p. 143-164). Belo Horizonte, MG: Autêntica.).

Em seu conjunto, os manuais globalmente descritos guardam entre si o traço de concorrerem no processo de disciplinarização da metodologia de ensino de língua portuguesa como componente curricular da formação docente, processo que se opera em estreita relação, por um lado, com o percurso histórico de evolução dos modelos de formação, conforme mencionado, e, por outro lado, com aquele de gênese e consolidação da própria língua portuguesa como disciplina escolar18 18 Esta seria uma hipótese a ser perseguida em uma abordagem mais aprofundada desses e de outros manuais pedagógicos. , cuja oficialização no currículo da escola secundária dá-se na segunda metade do século XIX, tendo por instituição fundadora o Colégio Pedro II, criado em 1838, no Rio de Janeiro (Bunzen, 2011Bunzen, C. (2011). A fabricação da disciplina escolar Português. Revista Diálogo Educacional,11, 885-911.; Petri, 2010Pietri, E. (2010). Sobre a constituição da disciplina curricular de língua portuguesa. Revista Brasileira de Educação, 15, 70-83.; Razzini, 2000Razzini, M. P. G. (2000). O Espelho da Nação: a antologia nacional e o ensino de Português e de Literatura (1838-1971)(Tese (Doutorado em Teoria Literária). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.; Rojo, 2008Rojo, R. H. R. (2008). Gêneros de discurso/texto como objeto de ensino de línguas: um retorno ao trivium? In I. Signorini (Org.),Rediscutir texto, gênero e discurso(p. 73-108). São Paulo, SP: Parábola Editorial.; Soares, 2002Soares, M. (2002). Português na escola - história de uma disciplina curricular. In M. Bagno(Org.),Linguística da norma(p.155-177). São Paulo, SP: Edições Loyola.).

Além desse traço mais geral, alguns outros traços comuns podem ser destacados na amostragem de manuais considerada, entre os quais, a presença de tópicos temáticos relativos i. aos processos de aprendizagem e às condições para sua realização (a motivação, por exemplo, estando entre tais condições); ii. às técnicas e aos procedimentos concernentes ao planejamento e à execução do ensino; e iii. aos instrumentos de verificação da aprendizagem. Tais traços revelam o vínculo histórico constitutivo da metodologia de ensino de língua portuguesa com os campos da pedagogia, da psicologia e das ciências da educação, especialmente com a área de didática ou didática geral.

Nesse processo histórico de disciplinarização, podemos dizer que a afirmação da especificidade da metodologia de ensino de língua portuguesa no currículo da formação do professor ancora-se no suposto da língua como o recurso central que pilota o processo de aquisição do capital cultural na escola.

Considerações finais

O levantamento de alguns elementos de qualificação do estatuto da metodologia de ensino de língua portuguesa como componente curricular da formação docente por meio da caracterização de um corpus de manuais pedagógicos publicados no Brasil entre 1949 e 1958, conforme propus neste estudo, aponta como indício relevante do processo histórico de institucionalização da disciplina o fenômeno de afirmação de sua suposta especificidade com base na natureza do próprio objeto de que ela se ocupa - a linguagem, a língua -, considerado o dispositivo institucional que condensa, a um só tempo, a função de codificação do capital cultural e simbólico de cuja difusão a escola é promotora, e a função de dispositivo de promoção dessa própria difusão. Em que sentido os procedimentos de síntese bibliográfica e de caracterização global dos manuais pedagógicos, tal como ensejados, podem subsidiar a discussão sobre o lugar da disciplina metodologia de ensino de língua portuguesa no currículo da formação docente, atualmente?

Essa indagação pode ser considerada à luz do diagnóstico de Saviani (2009Saviani, D. (2009). Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, 14(40), 143-155. ) de que as didáticas disciplinares integram a formação pedagógica desde sempre sob a lógica dualistaque distingue formação teórica e formação pedagógica ou, em outros termos, campo disciplinar e campo profissional. Tal diagnóstico reaparece como argumento constante em uma multiplicidade de estudos recentes sobre a formação inicial do professor no curso de pedagogia e nas licenciaturas, entre os quais aqueles de Gatti (2014Gatti, B. (2014). A formação inicial de professores para a educação básica: as licenciaturas. Revista USP, (100), 33-43. ), Libâneo (2010Libâneo, J. C. (2010). O ensino da didática, das metodologias específicas e dos conteúdos específicos do ensino fundamental nos currículos dos cursos de pedagogia. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 91(229), 562-83. ) e, com foco particular sobre a formação do professor de língua portuguesa, de Gomes-Santos (2012Gomes-Santos, S. N. (2012). Praxeologização do currículo e formação docente o caso do Curso de Licenciatura em Letras da UFPA. In I. Signorini & R. S. Fiad (Orgs.),Ensino de língua: das reformas, das inquietações e dos desafios (p. 145-190). Belo Horizonte, MG: Editora da UFMG.) e de Sampaio, Freitas e Souza (2010Sampaio, M. L. P., Freitas, A. C., & Souza, G. S. (2010). Aspectos da formação do professor em universidades potiguares: os programas de disciplinas dos cursos de letras como objeto de análise. In: A.P. Sousa, V. H. Barzotto & M. L. P. Sampaio (Orgs.),Formação do professor de língua portuguesa: quando a linguagem e o ensino se encontram (p. 21-32). São Paulo, SP: Paulistana.).

Ora, com base nos elementos de diagnóstico, formulados nesses estudos, poderíamos falar da metodologia de ensino de língua portuguesa (e das demais didáticas disciplinares) como uma disciplina em busca de (re)definição de sua identidade curricular, do ponto de vista dos saberes supostos para a formação profissional do professor em sua dimensão mais especificamente didático-pedagógica. A consideração de dispositivos institucionais e artefatos materiais que constroem a tradição da formação docente, como propusemosneste estudo pela caracterização dos manuais pedagógicos, é recurso relevante para contextualizar e problematizar a historicidade dessa busca por um estatuto identitário. Lembremo-nos, a esse propósito, de que o problema da especificidade da metodologia de ensino de língua portuguesa como um dos traços da construção do estatuto curricular da disciplina ancora-se, nos manuais considerados, em uma visão edênica de língua como motor ideal e alavanca dos processos escolares de aquisição do saber, transversal a todos os outros saberes escolares em função de sua propriedade intrínseca de codificar, representar e fazer circular o capital cultural.

O aprofundamento da descrição proposta bem como a consideração de manuais pedagógicos, produzidos em outras conjunturas históricas, podem fornecer muitos outros elementos para a compreensão do lugar da metodologia de ensino de língua portuguesa em uma história da formação do professor de língua portuguesa no Brasil, incluídos centralmente seus efeitos nos currículos e nas práticas de formação atuais19 19 Uma história da formação do professor de língua portuguesa em interface com a história da disciplina língua portuguesa no currículo e nas práticas didáticas encontra-se por ser ainda sistematizada. A esse propósito, não parece inútil indagar: caberiam as práticas didáticas e as práticas de formação atuais em um manual pedagógico? as quais, no dizer de Schneuwly (2014Schneuwly, B. (2014). Didactique: construction d’unchampdisciplinaire. Éducation et didactique, 8(1), 13-22. , p. 17), “[…] como toda ação humana, são sempre sedimentações de práticas historicamente constituídas”.

Do ponto de vista da pesquisa científica, a investigação desse lugar da disciplina metodologia de ensino de língua portuguesa (bem como daquele das demais didáticas disciplinares) na formação docente pode ser considerada um desafio de natureza epistemológica, como aquele suposto na discussão de Franco & Pimenta (2016Franco, M. A. S., & Pimenta, S. G. (2016). Didática multidimensional: por uma sistematização conceitual. Educação e Sociedade,37(135), 539-553.) em torno da problemática de uma ‘Didática Multidimensional’, cujo princípio central estaria na prática de ensino tomada como um fenômeno complexo e multirreferencial. Para as autoras, a didática multidimensional concebe os ‘processos de ensino’ (para além dos ‘atos de ensinar’) como o ponto radial de que decorrem e para o qual convergem as ações dos sujeitos nos contextos educacionais, sendo essas ações estruturantes dos processos didáticos. Com base no ideário freireano (Freire, 1978Freire, P. (1978). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.), postulam, assim, ser a ‘curiosidade epistemológica’ (ou a ‘atividade intelectual’) dos sujeitos o lugar de geração e interpretação desses processos (Franco & Pimenta, 2016Franco, M. A. S., & Pimenta, S. G. (2016). Didática multidimensional: por uma sistematização conceitual. Educação e Sociedade,37(135), 539-553.).

Considerando esse desafio epistemológico, a investigação do estatuto da metodologia de ensino de língua portuguesa na formação docente parece poder representar uma tarefa ‘pluridisciplinar’20 20 Schneuwly e Hofstetter (2006, p. 19) assinalam que, no contexto suíço, o processo histórico de autonomização das didáticas como disciplinas científicas caracteriza-se pela ampliação, na atualidade, das fronteiras de seu campo de referência científica, ou seja, por um modo de funcionamento pluridisciplinar, conforme umaperspectiva empírica ancorada na prática de pesquisa e incluindo todas as ciências sociais e humanas. Nessa direção, as didáticas disciplinares teriam seu objeto definido na articulação de três polos: “[…] objetos de ensino/aprendizagem historicamente determinados; os alunos, sua atividade de aprendizagem e os processos de desenvolvimento; os professores, formados pela profissão e suas práxis historicamente sedimentadas”. ou, mais propriamente, uma ‘atitude transdisciplinar’ (Celani, 1998Celani, M. A. A. (1998). Transdisciplinaridade na linguística aplicada no Brasil. In I. Signorini & M. Cavalcanti (Orgs.),Linguística aplicada e transdisciplinaridade(p. 129-142). Campinas, SP: Mercado de Letras., p. 133), tal como qualificada por Signorini (1998Signorini, I. (1998). Do residual ao múltiplo e ao complexo: o objeto da pesquisa em linguística aplicada. In: I. Signorini& M. Cavalcanti(Orgs.),Linguística aplicada e transdisciplinaridade(p. 99-110). Campinas, SP: Mercado de Letras.) quando de sua discussão sobre a especificidade da pesquisa no campo dos estudos em linguística aplicada brasileiros. Com base nessa atitude, o estatuto da metodologia de ensino de língua portuguesa constituir-se-ia em um objeto de investigação ‘híbrido’, gerado

[…] numa lógica das multiplicidades, das rupturas e do movimento, [pela qual] produz-se uma configuração específica e provisória, não isenta de reduções, mas que procura ter a especificidade, o novo e o complexo como elementos constituintes do objeto e, como tal, a serem contemplados pela reflexão (Signorini, 1998Signorini, I. (1998). Do residual ao múltiplo e ao complexo: o objeto da pesquisa em linguística aplicada. In: I. Signorini& M. Cavalcanti(Orgs.),Linguística aplicada e transdisciplinaridade(p. 99-110). Campinas, SP: Mercado de Letras.,p.103).

Assim concebido, o estatuto da disciplina metodologia de ensino de língua portuguesa como componente curricular da formação docente, sob a perspectiva da pesquisa científica e com base na potência da postura multidimensional, pluridisciplinar ou transdisciplinar, pode ser tomado como constituído em uma espécie de estação ou ‘porto de passagem’(Geraldi, 1991Geraldi, J. W. (1991). Portos de passagem. São Paulo, SP: Martins Fontes.), ou seja, um entre-lugar em que podem se orquestrar múltiplos e renovados aportes teóricos que subsidiem a compreensão mais refinada dos desafios da formação do professor de língua portuguesa para a escola pública brasileira na atualidade.

Referências

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  • Tanuri, L. M. (2000). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, (14), 61-88.
  • 1
    Este estudo integra o conjunto de ações que se vem desenvolvendo no âmbito do Projeto de Pesquisa ‘Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa como disciplina curricular da formação docente: incursões em uma biblioteca de manuais pedagógicos’ (CNPQ-Chamada Universal-Processo 438985/2018-4-2019-2020), por mim coordenado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Agradeço aos (às) pareceristas anônimo(a)s pelos comentários e indicações quando da avaliação deste texto, sendo de minha inteira responsabilidade seu conteúdo e o estilo de composição.
  • 2
    Essa talvez seja a formulação mais adequada para caracterizar o público-alvo dos manuais pedagógicos de que se ocupa este estudo: são voltados precipuamente para a formação de professores dos anos iniciais de escolarização nas Escolas Normais, Institutos de Educação ou Escolas de Ensino de Segundo Grau, embora também tenham tido sido objeto de circulação, por hipótese, nos cursos de pedagogia e de letras nas faculdades que nasciam e passavam a formar bacharéis e licenciados em nível superior, no Brasil, conforme tratado logo adiante, nesta seção.
  • 3
    ‘Modelo’, considerado, aqui, conforme a formulação de Carvalho (2013Carvalho, M. M. C. (2013). Tempos de formação, tempos de produção: rememorando um itinerário. In C. Monarcha & D. Gatti Jr. (Orgs.), Trajetórias de formação do campo da história da educação brasileira(p. 113-143). Uberlândia, MG: Editora da Universidade Federal de Uberlândia. ), para quem, “[...] falar em ‘modelos’[pedagógicos] é falar de ‘objetos culturais’que são produtos de práticas sociais determinadas e que, na sua materialidade, são dispositivos de modelização de práticas. Por sua vez, tratar da ‘materialidade’de um objeto cultural é atentar para as marcas de produção e circulação desse objeto; é considerar os usos prescritos nele como dispositivos de produção de sentido” (Carvalho, 2013Carvalho, M. M. C. (2013). Tempos de formação, tempos de produção: rememorando um itinerário. In C. Monarcha & D. Gatti Jr. (Orgs.), Trajetórias de formação do campo da história da educação brasileira(p. 113-143). Uberlândia, MG: Editora da Universidade Federal de Uberlândia. , p. 131, grifo do autor).
  • 4
    Schneuwly (2014Schneuwly, B. (2014). Didactique: construction d’unchampdisciplinaire. Éducation et didactique, 8(1), 13-22. ) assinala fenômeno similar de primazia dos conteúdos escolares como objeto e dispositivo de formação na história da formação universitária para o ensino secundário (e da constituição das didáticas disciplinares no campo das ciências da educação), no contexto suíço. Para o autor, entre as motivações desse fenômeno estariam os limites institucionais fracamente definidos entre as práticas de ensino na escola secundária e a formação universitária, em função fundamentalmente do processo incipiente de institucionalização desta última, o que é indiciado, por um lado, pelo forte trânsito de professores entre as duas agências (escola e universidade) e, por outro lado e complementarmente, pela familiaridade com que a formação universitária se relaciona com as formas de trabalho escolar. Esse suposto de familiaridade, de compartilhamento de práticas identificadas como conhecidas, teria relegado a um plano fracamente necessário a preocupação com a dimensão didática do trabalho docente, no que respeita aos modi operandi do ensino, às estratégias e instrumentos didáticos e às formas do trabalho escolar. Assim, considerada familiar, essa dimensão didática acaba por se diluir na prevalência dos conteúdos como objeto da formação docente e, nessa direção, desses conteúdos como traço distintivo do estatuto que as didáticas disciplinares vão adquirindo no âmbito dessa formação.
  • 5
    A caracterização histórica desse fenômeno aparece desenvolvida em Araújo, Freitas & Lopes (2008Araújo, J. C. S., Freitas, A. G. B., & Lopes, A. P. C. (2008). As escolas normais no Brasil: do império à república. Campinas, SP: Editora Alínea.), compilação de estudos voltados à reconstituição histórica dos processos de gênese e institucionalização das Escolas Normais em diferentes Estados (‘unidades provinciais/federativas’) brasileiros, entre o império e a república (1835-1960). A coletânea decorre de um investimento envolvendo pesquisadores e grupos de pesquisa de diferentes instituições brasileiras e apresenta um ‘inventário’ bastante robusto sobre as Escolas Normais.
  • 6
    A autora menciona que “[…] algumas obras que tiveram repercussão à época em que foram publicadas: Crise na linguagem: a redação no vestibular, de Maria Thereza Fraga Rocco, publicada em 1981; Leitura em crise na escola: as alternativas do professor, coletânea organizada por Regina Zilberman, publicada em 1982; Invasão da cathedral: literatura e ensino em debate, de Ligia Chiappini Leite, obra de 1983 […]” (Soares, 1997Soares, M. (1997). Prefácio. In A. A. G. Batista.Aula de português- discurso e saberes escolares (p. VII-XV). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. X).
  • 7
    A título de ‘citação aleatória’, a autora menciona que “[…] O texto na sala de aula, coletânea organizada por João Wanderley Geraldi, publicada em 1984; A linguística e o ensino da língua portuguesa, de Rodolfo Ilari, obra publicada em 1985; em 1986, No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, de Mary Kato, e Linguagem e escola: uma perspectiva social, da autora deste prefácio; em 1987, a coletânea organizada por Elvo Clemente, Linguística aplicada ao ensino de Português; de 1991, a coletânea organizada por Maria Helena Martins, Questões de linguagem; também de 1991, Portos de Passagem, de João Wanderley Geraldi; do mesmo autor, Linguagem e ensino, 1996 […]” (Soares, 1997Soares, M. (1997). Prefácio. In A. A. G. Batista.Aula de português- discurso e saberes escolares (p. VII-XV). São Paulo, SP: Martins Fontes., p. XII-XIII).
  • 8
    Do ponto de vista do campo normativo das concepções pedagógicas, Carvalho (2001Carvalho, M. M. C. (2001). A caixa de utensílios e a biblioteca: pedagogia e práticas de leitura. In D. G. Vidal & M. L. S. Hilsdorf (Orgs.), Brasil 500 anos: tópicas em história da educação(p. 137-167). São Paulo, SP: Editora da Universidade de São Paulo., p. 142-143, grifo do autor) assinala que “A ‘arte de ensinar’, tal como a concebia a ‘moderna pedagogia’ que circulou no Brasil em fins do século XIX e início do XX, conformando iniciativas de reforma escolar, é ‘pedagogia prática’. […] Como ‘artes de saber-fazer-com’, ensino e aprendizagem são práticas fortemente atreladas à materialidade dos objetos que lhes servem de suporte. As práticas que se formalizam nos usos desses materiais guardam forte relação com uma pedagogia em que tal ‘arte’ é prescrita como boa imitação de um modelo. […] Essa pedagogia fundada no princípio de que ensinar a ensinar é fornecer bons moldes e de que aprender a ensinar supõe ‘ter visto fazer’conforma o impresso destinado aos professores”. O manual pedagógico integraria o arsenal de dispositivos de ‘modelização da leitura do professor’, ou, como nomeia metaforicamente a autora, uma espécie de ‘caixa de utensílios’.
  • 9
    As acepções de ‘discurso-fonte e discurso-segundo’ são emprestadas à contribuição de Authier (1982Authier, J. (1982). La mise en scène de la communicationdans des discours de vulgarisationscientifique. Langue Française, 53, 34-47.) em torno do discurso de divulgação científica. Para a autora, “Transmissão de um discurso existente em função de um novo receptor, a DC [Divulgação Científica] se dá, assim, de imediato como prática de reformulação de um discurso-fonte (daqui em diante D1) em um discurso-segundo (D2)” (Authier, 1982Authier, J. (1982). La mise en scène de la communicationdans des discours de vulgarisationscientifique. Langue Française, 53, 34-47., p. 34-5). Em Gomes-Santos (2004Gomes-Santos, S. N. (2004). A questão do gênero no Brasil: teorização acadêmico-científica e normatização oficial(Tese de Doutorado em Linguística). Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.), há o uso dessas noções na análise de documentos oficiais de parametrização curricular do ensino de língua portuguesa no Brasil.
  • 10
    O grupo de pesquisa em questão, liderado por Maria do Rosário Longo Mortatti, tem como sede institucional a Universidade Estadual Paulista - campus de Marília (São Paulo, Brasil). O objetivo das pesquisas é formulado nos seguintes termos pelos autores: “[...] contribuir tanto para a produção de uma história do ensino de língua e literatura no Brasil, que auxilie na busca de soluções para os problemas desse ensino, no presente, quanto para a formação de pesquisadores capazes de desenvolver pesquisas de fundo histórico, que permitam avanços em relação aos campos de conhecimento envolvidos […]” (Mortatti et al., 2009Mortatti, M. R. L., Trevisan, T. A., Oliveira, F. R., & Sales, G. G. P. (2009). Manuais para a formação de professores primários (1940-1960) e a conformação de práticas de ensino de leitura e escrita no Brasil.In Comunicação no 2 Seminário Brasileiro Livro e História Editorial (p. 1-14). Niterói, RJ. , p. 3).
  • 11
    O manual Metodologia da linguagem, de JanettaBudin, é objeto de análise em Sales (2009Sales, G. G. P. (2009). Um estudo sobre Metodologia da linguagem(1949), de J. Budin(Trabalho de Conclusão de Curso - Graduação em Pedagogia). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília. ); o homônimo de Orlando Leal Carneiro, por sua vez, em Galluzi (2006Galluzzi, M. (2006).Um estudo sobre metodologia da linguagem(1955), de Orlando Leal Carneiro (Trabalho de Conclusão de Curso de Pedagogia). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília. ).
  • 12
    Quanto às práticas de recepção dos manuais, demandariam um investimento particular de pesquisa que pudesse captar, por exemplo, a abrangência de sua circulação pelas agências de formação e sua repercussão no âmbito da imprensa pedagógica (como procede Silva, 2003), e, principalmente, que pudesse reconstituir e interpretar registros sobre sua eventual incorporação nas práticas efetivas de formação.
  • 13
    A noção de ‘cultura escolar’é considerada tal como desenvolvida por Faria-Filho (2008Faria Filho, L. M. (2008). Fazer história da educação com E. P. Thompson: trajetórias de um aprendizado. In L. M. Faria Filho (Org.),Pensadores sociais e história da educação(p. 247-264). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora., p. 253), para quem “[...] tanto o processo de escolarização quanto as culturas escolares não são pressupostos; são o processo e o resultado das experiências dos sujeitos, dos sentidos construídos e compartilhados e/ou disputados pelos atores que fazem a escola. Por isso, tenho que considerar - do ponto de vista teórico e metodológico - a existência de outras culturas institucionais que estão em consenso e/ou conflito com a escola como a cultura familiar, a cultura religiosa etc. Preciso considerar também que os sujeitos que constroem essa cultura guardam diversos pertencimentos e identidades pelos quais as culturas escolares estarão continuamente informadas”.
  • 14
    Na transcrição de excertos dos manuais pedagógicos, nesta seção, manteve-se a grafia do original.
  • 15
    Para o autor, “A ‘aprendizagem’, portanto, é um processo psicológico que se caracteriza pela incorporação de experiências novas ao patrimônio individual, num ambiente de estímulos capaz de gerar interêsse” (Azevedo Filho, 1958Azevedo Filho, L. A. (1958). Didática especial de português (para o curso secundário). Rio de Janeiro, RJ: Conquista., p. 14, grifo do autor).
  • 16
    A esse propósito, não é irrelevante observar como esse objeto é designado por três nomeações pelo autor, no capítulo em questão: ‘Língua portuguêsa/português, idioma e língua nacional’.
  • 17
    É exatamente o postulado da variação como ‘estado da língua e recurso do falante’, ou seja, como propriedade constitutiva da língua, que fica nas margens das evidências recobertas pela noção de ‘língua nacional’, conforme a discussão proposta por Signorini (2002Signorini, I. (2002). Por uma teoria da desregulamentação linguística. In: M. Bagno(Org.),Linguística da norma(p.93-125). São Paulo, SP: Edições Loyola.).
  • 18
    Esta seria uma hipótese a ser perseguida em uma abordagem mais aprofundada desses e de outros manuais pedagógicos.
  • 19
    Uma história da formação do professor de língua portuguesa em interface com a história da disciplina língua portuguesa no currículo e nas práticas didáticas encontra-se por ser ainda sistematizada. A esse propósito, não parece inútil indagar: caberiam as práticas didáticas e as práticas de formação atuais em um manual pedagógico?
  • 20
    Schneuwly e Hofstetter (2006Schneuwly, B., & Hofstetter, R. (2006). Les didactiques des disciplines: entre logiquesdisciplinaire et professionnelle. Réflexions à partir de l’histoire de la formation des enseignants du secondaire à Genève. Bulletin/ AssociationSuissedesProfesseurs d’Université, 32(1), 16-20., p. 19) assinalam que, no contexto suíço, o processo histórico de autonomização das didáticas como disciplinas científicas caracteriza-se pela ampliação, na atualidade, das fronteiras de seu campo de referência científica, ou seja, por um modo de funcionamento pluridisciplinar, conforme umaperspectiva empírica ancorada na prática de pesquisa e incluindo todas as ciências sociais e humanas. Nessa direção, as didáticas disciplinares teriam seu objeto definido na articulação de três polos: “[…] objetos de ensino/aprendizagem historicamente determinados; os alunos, sua atividade de aprendizagem e os processos de desenvolvimento; os professores, formados pela profissão e suas práxis historicamente sedimentadas”.
  • Sandoval Nonato é professor do Departamento de Metodologia de Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Doutorado em Linguística (Universidade Estadual de Campinas, 2004), com estágio doutoral em Teoria do Discurso (Universidade de Paris 12, Val-de-Marne, 2002). Estágio pós-doutoral em Didática de Línguas (Universidade de Genebra, 2006). Mestrado em Linguística Aplicada (Universidade Estadual de Campinas, 1999). Membro do Grupo de Trabalho Linguística Textual e Análise da Conversação da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística. Líder do Grupo de Pesquisa Linguagem na Prática Escolar (FEUSP). Autor de A exposição oral nos anos iniciais do Ensino Fundamental (Cortez Editora, 2012) e Recontando histórias na escola (Martins Fontes, 2003). Experiência em Linguística Aplicada, Linguística Textual e Ensino-Aprendizagem (Métodos e Técnicas de Ensino). Estuda formação e trabalho do professor de língua portuguesa e produção e recepção de gêneros textuais na escola. E-mail: sandovalnonato@usp.br http://orcid.org/0000-0002-3976-584X
  • Como citar este artigo: Nonato, S.Metodologia de ensino de língua portuguesa na formação docente: incursão em um corpus de manuais pedagógicos. (2019).Revista Brasileira de História da Educação, 19. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e077
  • Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença CreativeCommons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2019
  • Aceito
    06 Jun 2019
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