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Faria de Vasconcelos e a Escola Nova em Portugal: do self-government à educação científica

Faria de Vasconcelos and the New School in Portugal: from self-government to science education

Faria de Vasconcelos y la Escuela Nueva en Portugal: del autogobierno a la educación científica

Resumo:

O presente artigo propõe-se a abordar o estudo do pensamento educacional de um representante da Escola Nova em Portugal, António de Sena Faria de Vasconcelos (1880-1939). A partir de 1912, o autor dirigirá uma escola por ele próprio fundada em Bierges-Les-Wavre, experiência caracterizada por contemporâneos como uma das principais ações de aplicação dos princípios renovados em educação. Em uma primeira etapa de sua produção, que vai do início do século aproximadamente aos anos de 1920, a ênfase se dá na discussão do método ativo, daquilo que Faria de Vasconcelos prefere denominar de autogoverno, ou, mais precisamente, self-government. Do ponto de vista teórico-metodológico, o estudo inscreve-se na perspectiva da história das mentalidades. Os procedimentos metodológicos adotados são a leitura e a análise das obras completas do autor, tomando esse corpus documental em paralelo com contemporâneos seus.

Palavras-chave:
métodos de ensino; história da educação; filosofia da educação; cultura escolar

Abstract:

This article addressed the study of educational thinking by a representative of New School in Portugal, António de Sena Faria de Vasconcelos (1880-1939). From 1912, the author ran a school founded by himself in Bierges-Les-Wavre, an experience characterized by contemporaries as one of the main actions of application of renewed principles in education. In an early stage of his production,from the beginning of the century to the 1920s, the emphasis is on the discussion of the active method, what Faria de Vasconcelos prefers to call self-government. From the theoretical-methodological point of view, the study is part of the perspective of the history of mentalities. The methodological procedures adopted are the reading and analysis of the complete works of the author, taking this documentary corpus in parallel with his contemporaries.

Keywords:
teaching methods; history of education; philosophy of education; school culture

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo tratar sobre el estudio del pensamiento educativo realizado por un representante de la Escuela Nova en Portugal, António de Sena Faria de Vasconcelos (1880-1939). A partir de 1912, el autor dirigirá una escuela fundada por él en Bierges-Les-Wavre, una experiencia caracterizada por los contemporáneos como una de las principales acciones de aplicación de principios renovados en la educación. En una primera etapa de su producción, que se extiende desde el comienzo del siglo hasta la década de 1920, el énfasis está en la discusión del método activo, lo que Faria de Vasconcelos prefiere llamar autogobierno o, más precisamente, self-government. Desde el punto de vista teórico-metodológico, el estudio hace parte de la perspectiva de la historia de las mentalidades. Los procedimientos metodológicos adoptados son la lectura y el análisis de las obras completas del autor, tomando este corpus documental en paralelo con sus contemporáneos.

Palabras clave:
métodos de enseñanza; historia de la educación; filosofía de la educación; cultura escolar

Introdução

O presente artigo propõe-se a abordar o estudo do pensamento educacional de um representante da Escola Nova em Portugal, um teórico da educação portuguesa, António de Sena Faria de Vasconcelos (1880-1939). Educador,estudou na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Bruxelas, onde depois atuaria junto às cadeiras de pedagogia e de psicologia. Publicou, já em 1909, um trabalho que foi muito utilizado nas escolas de formação de professores: Lições de pedologia e pedagogia experimental. A partir de 1912 dirigiu uma escola por ele próprio fundada em Bierges-Les-Wavre, experiência caracterizada por contemporâneos como uma das principais ações de aplicação dos princípios renovados em educação. Essa escola seria fechada após a invasão alemã na Bélgica em 1914. Entre 1914 e 1915, Faria de Vasconcelos integrou a equipe que compunha na época o Instituto Jean-Jacques Rousseau em Genebra, onde ele teria estreito contato com Claparède, Ferrière e Bovet.

Entre 1915 e 1920, o educador viveu na América Latina, atuando primordialmente em Cuba e na Bolívia. Nesses países, ele teve atuação destacada como gestor de políticas públicas em educação, como administrador escolar e como autor de textos pedagógicos, publicados em revistas e livros da época. Nessa ocasião, fez também um conjunto bastante significativo de conferências na América do Sul. Na Bolívia, organizou a seção de Pedagogia e Psicologia da Escola Normal Superior de La Paz e exerceu o cargo de diretor de uma revista pedagógica. De volta a Portugal, ligou-se de imediato ao grupo da Seara Nova, lecionando, desde 1921, na Escola Normal Superior e, desde 1922, na Faculdade de Letras de Lisboa. Em 1925, fundou o Instituto de Orientação Profissional, voltado para a aplicação de práticas psicopedagógicas no âmbito da orientação escolar. Do ponto de vista teórico, as referências conceituais que norteiam a pesquisa são contempladas por autores identificados com a história das mentalidades, em especial com Lucien Febvre. Os procedimentos metodológicos adotados são a leitura e a análise das obras completas de Faria de Vasconcelos, tomando esse corpus documental em paralelo com contemporâneos seus. A obra do referido autor pode ser compreendida a partir das fases de sua elaboração.

Em uma primeira etapa, que vai do início do século aproximadamente aos anos de 1920, a ênfase se dá na discussão do método ativo, daquilo que Faria de Vasconcelos prefere denominar de autogoverno, ou, mais precisamente, self-government. Supunha-se, a partir desse ideário, que a escola poderia se tornar uma comunidade em miniatura e que as práticas democráticas, sendo vivenciadas em sala de aula, levariam a um preparo do próprio exercício da democracia. No segundoperíodo da produção do educador, entre 1920 e 1930, é possível perceber a discussão mais voltada para as questões das políticas públicas da educação, com o propósito de estabelecimento de critérios que viessem a configurar a solução dos problemas da educação nacional. Finalmente, a partir dos anos 1930 (mas já desde 1925), há a ênfase na dimensão da cientificidade da pedagogia e das práticas educativas.

Nesse sentido, buscar-se-á comprovar a hipótese, acima delineada, acerca das etapas de organização de uma obra que está em estreita consonância com a história de vida de seu autor. Além disso, o eixo da produção de Faria de Vasconcelos indica o próprio movimento da Escola Nova, que caminha do ideário de escola ativa para uma tentativa de tornar científica a compreensão dos assuntos pedagógicos. Faria de Vasconcelos percorre essa trilha, protagonizando o tema da educação, sob a perspectiva multifacetada e pluridimensional. Reconstituir seu pensamento significa dialogar com a própria herança da educação renovada.

A escola ativa e a educação nova em Portugal do princípio do século XX

Pensar a história da educação no século XX, em Portugal como no Brasil, requer que se atente para o tema da Educação Nova ou da escola ativa (Cruz 2001Cruz, M. G. M. B. (2001). António de Sena Faria de Vasconcelos (1880-1939): um português no Movimento da Escola Nova. Educação em Revista, 2(1).; Duarte 2010Duarte, M. L. P. (2010). À descoberta da Escola Nova de Faria de Vasconcelos (Dissertação de Mestrado), Departamento de Educação, Universidade de Aveiro, Aveiro.; Figueira 2004Figueira, M. H. (2004). A educação nova em Portugal (1882-1935): semelhanças, particularidades e relações com o movimento homónimo internacional (Parte II). História da Educação, 8(15), 29-52.; Gomes 1984Gomes, J. F. A. (1984). Faria de Vasconcelos. In Estudos de história e de pedagogia (p.119-140). Coimbra, PT: Almedina.). Como a escola moderna fez uma autocrítica e passou a meditar sobre sua própria transformação? Esse é o eixo do problema, quando se busca verificar o que se passava nas escolas e quais eram suas possibilidades de mudança (Magalhães 2016Magalhães, J. (2016). Intelectuais e história da educação em Portugal e no Brasil. Cadernos de História da Educação,15(1), 299-322.; Marques 2000Marques, J. F. (2000). Introdução sobre as publicações e escritos de Faria de Vasconcelos entre 1915 e 1920. In Faria de Vasconcelos. Obras completas (Tomo II, p. IX-XIII). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian.; Martins 2015Martins, Ernesto Candeias (2015). Faria de Vasconcelos, pioneiro da Educação Ativa: orientação escolar e profissional e o sistema educativo português. Imagens da Educação, 5(3), 70-82.; Meirelles-Coelho, s.n.Meirelles-Coelho, C. (s.n.). Educação intelectual, moral e física segundo Faria de Vasconcelos. In J. Tavares, A. Pereira, C. Fernandes & S. Monteiro (Orgs), Activação do desenvolvimento psicológico: actas do Simpósio Internacional. Aveiro, PT: Universidade de Aveiro.). O primeiro elemento a ser considerado é o avanço ocorrido em áreas correlatas, que passam a dialogar muito de perto com os estudos educacionais, sobretudo os avanços nos campos da biologia, da antropologia, da sociologia e da psicologia. A questão colocada naquele princípio do século XX, em linhas gerais, era esta: por que as crianças que vão para a escola lá não aprendem? Era imprescindível, diante disso, mudar a escola, era imperioso repensar os métodos de ensino. Passar-se-ia, portanto, a recusar o que passaria a ser, desde então, caracterizado por modelo de ensino tradicional (Nóvoa 2005Nóvoa, A. (2005). Evidentementemente: histórias da educação. Porto, PT: Asa.; Ó, 2009Ó, J. (2009). A governamentalidade e a história da escola moderna: outras conexões investigativas. Educação e Realidade, 34(2), 97-117. ; Pintassilgo 2003Pintassilgo, J. (2003). Construção histórica da noção de democratização de ensino: o contributo do pensamento pedagógico português. In Democratização escolar: intenções e apropriações (p.119-141). Lisboa, PT: Centro de Investigação em Educação.; Souza Machado 2016Sousa Machado, T. (2016). Faria de Vasconcelos: um pioneiro no movimento da Escola Nova na Europa e na América Latina. Revista Argentina de Ciencias del Comportamiento, 8(2), 115-123.).

As sociedades do Ocidente eram, então, absolutamente regradas pelo código da cultura letrada. Sob tal perspectiva, era necessário, também e principalmente, colocar todas as crianças na escola e assegurar para elas um bom aprendizado. Por ser assim, era como se os educadores do período tivessem duas tarefas: a de contribuir para a irradiação das oportunidades escolares e a de fazer a crítica aos modelos e métodos então adotados pela escola tradicional (Fernandes 1978Fernandes, R. (1978). O pensamento pedagógico em Portugal. Lisboa, PT: Instituto da Cultura Portuguesa.; Ferreira 2005Ferreira, António Gomes (2005). A difusão da escola e a afirmação da sociedade burguesa. Revista Brasileira de História da Educação, 5(1[9])., 2008Ferreira, A. G. (2008). O sentido da educação comparada: uma compreensão sobre a construção de uma identidade. Educação, 31(2), 124-138.; Ferrière 2000Ferrière, A. (2000). Préface de M. Adolphe Ferrière. In Faria de Vasconcelos. Obras completas(Tomo II, p.3-11). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian.).

O desafio, para que se compreenda o movimento da Escola Nova, em países como Portugal e o Brasil, é o seguinte: como projetar uma escolarização pautada pela liberdade e pelo interesse da criança, sendo que, ao mesmo tempo, será preciso dotá-la de instrumentais teóricos e conceituais requisitados para o domínio da norma culta da língua e do acervo cultural de conhecimentos acumulados?Ou seja: como conciliar conteúdos e matérias sólidas de ensino com métodos atraentes que respeitem a individualidade e o desenvolvimento biopsicológico do educando?

Muitos dos trabalhos elaborados sobre Faria de Vasconcelos centram-se na biografia do educador. Falta, contudo, no entendimento deste artigo, maior atenção ao campo da produção das ideias, do modo como o pensamento pedagógico do autor foi construído, em consonância com o ideário teórico de seu tempo. A análise interna da obra possibilitará um mapeamento do ideário pedagógico que o educador elaborano campo das propostas desenvolvidas internacionalmente pelo que veio a ser caracterizado como movimento da Escola Nova. Faria de Vasconcelos destaca-se por desenvolver a tese da cientificidade da matéria pedagógica, ancorada na acepção de que o aprendizado será aprimorado quanto mais for conhecido aquilo que foi caracterizado como psicologia do desenvolvimento (Boto, 2010Boto, C. (2010). Compêndios pedagógicos de Augusto Coelho (1850-1925): a arte de tornar ciência o ofício de ensinar. História da Educação, 14(30), 9-60. Recuperado de: http://fae.ufpel.edu.br/asphe/revista/rhe30.pdf
http://fae.ufpel.edu.br/asphe/revista/rh...
).

Faria de Vasconcelos enfatiza que o trabalho com as crianças deverá ser pautado no método científico, no alargamento do espírito crítico, no primado de uma metodologia ativa, capaz de favorecer a autonomia dos alunos, calcada esta sobre sua atividade espontânea, mas, ao mesmo tempo, sobre seu constante estímulo por parte do educador. Pode-se dizer que o pensamento de Faria de Vasconcelos concebe a educação física, os trabalhos manuais e os métodos ativos em interação com um pressuposto segundo o qual o aprendizado se dará mediante o estímulo do fator biopsicológico do interesse. O conhecimento de todo esse território é que caracterizaria a dimensão científica da educação. Trata-se aqui de pensar em um ensino voltado para a efetividade do aprendizado.

A Escola Nova, com Faria de Vasconcelos, é projetada como um laboratório de pedagogia prática, no qual os trabalhos manuais, a vida no campo, a educação física, tudo isso contribuiria para o desenvolvimento de uma cultura geral do espírito, muito para além da somatória e do acúmulo de conhecimentos memorizados. A educação integral é aqui concebida, não como universo do saber enciclopédico, mas como a possibilidade de desenvolvimento pleno das potencialidades e faculdades intelectuais, físicas e morais do sujeito, em um modelo de ensino pautado por fatos e pela experiência, no qual diferentes metodologias e estratégias variadas possibilitam uma abordagem ampla das matérias de estudo. Nesse modelo, portanto, a acepção de emulação implicaria o reconhecimento de medidas objetivas por meio das quais o aluno seria classificado e identificado dentro de um mapa de habilidades e de competências que seriam, por instrumentos de mensuração, elaborados. Assim, se, aparentemente, cada aluno comparava seus atuais resultados com a progressão de seus resultados anteriores, esse aluno estaria sim posto em um esquadro classificatório, que o mediria em relação a todos os outros à luz de critérios do que se supunha ser a normalidade.

Na primeira etapa de sua produção, no primeiro decênio de 1900, Faria de Vasconcelos problematiza a educação, a partir de sua vertente histórico-social. Esse é o caso, por exemplo, das obras O ensino ético-social das multidões e A psicologia das massas infantis, ambas publicadas em 1902. Destaca-se também nessa fase - mais precisamente em 1909 - o conjunto de conferências pronunciadas na Sociedade de Geografia de Lisboa, sob o título Lições de pedologia e pedagogia experimental.

Em O ensino ético-social das multidões, o autor inicia com a observação de que a época em que então se vivia seria a era das multidões. As multidões percorreriam a modernidade e seriam caracterizadas por uma inferioridade psicológica, por um atraso mental e moral. Seria necessário educar e instruir os indivíduos - os quais eramapresentados como elementos celulares das multidões. A escola seria uma instituição charneira nessa perspectiva, posto que ela habilitaria os sujeitos para um aprendizado para a vida. Só que, para isso, parecia ao educador ser fundamental outro estilo de educação:

Uma instrução menos pedante, menos seca, mais larga, mais viva, fazendo homens, vontades enérgicas, consciências claras, corações ardentes, inteligências sãs; unir a ciência com a vida de forma que aquela sirva para dar à existência de cada um a plenitude adequada ao grau de desenvolvimento atingido pelas próprias ciências nas suas aplicações. É certo que elas ainda não aproveitam senão aos privilegiados da fortuna. Mas é na educação que essa união deve começar, colocando lealmente a criança em face das consequências naturais das descobertas científicas, cujos resultados são nocivos se não tornam a vida de todos mais fácil, mas sã e mais feliz (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 87).

A ideia seria a de formar sujeitos morais e sociais na escola e na vida, dotados de uma “[...] cultura que se aproprie das necessidades dominantes de nossa época e das tendências ideais que esta encerra” (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 88). Aqui se iniciava um patamar de virulenta crítica às instituições educativas da época em Portugal. O analfabetismo eraqualificado como um problema ético-social do povo; e a sociedade sequer se apercebia de seus males: uma educação clássica e fastidiosa; um funcionalismo parasitário; a inexistência da indústria... tudo isso fazendo com que Portugal caminhasse para trás. Faria de Vasconcelos apela então à elite intelectual de seu país, mas também “[...] aos estabelecimentos de ensino, a todas as vontades esclarecidas para que encetem a obra de regeneração de um povo pela sua educação moral e social, de forma que pelo pensamento e vida em comum se formem corações e espíritos de eleição” (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 93).

No mesmo acorde, vislumbra-se a memória apresentada ao Laboratório de Sociologia da Universidade Nova de Bruxelas e publicada em 1903 sob o título A psicologia das massas infantis. Parte-se aqui do pressuposto de que os grupos constituídos por crianças na escola constituem também multidões, massas “[...] algumas vezes instáveis, transitórias, como nos jogos, algumas vezes mais estáveis, mais permanentes” (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 97), como aquelas que se agregam na estrutura disciplinar das salas de aula. O referido texto visava abordar o problema da psicologia coletiva acerca das crianças. Entende-se, nesse caso, que a criança, quando posta em grupo, representa um perigo para o adulto. O autor evoca a perspectiva lombrosiana, segundo a qual, “[...] a constituição fisio-psicológica da criança é análoga à do criminoso nato, do moralmente insano e do selvagem, dos quais se apresentam os principais caracteres” (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 97).

A criança é vista,nesse sentido, como “[...] um prolongamento atávico da humanidade primitiva, uma imagem intensamente viva da barbárie, a reprodução em ponto pequeno de nossos ancestrais” (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 97). Por ser assim, a criança é percebida como um ser anormal, com manifestações mórbidas e antissociais. É claro que as anormalidades e as perturbações manifestadas pela criança em seu desenvolvimento seriam também decorrentes do mau ambiente social em que ela estaria envolvida. Ora, nesse sentido, destaca o autor o papel imprescindível desempenhado pela educação para “[...] fortalecer sua inteligência, desenvolver sua atenção, canalizar sua vontade, corrigir e equilibrar sua instabilidade e sua incoerência sentimentais e imaginativas” (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 99). No parecer do educador, somente a educação poderia municiar a lógica e os instrumentos de julgamento e de conduta.

O pressuposto dessa cosmovisão é o de que a criança é fraca e frágil, dotada de uma vontade débil. Daí ela ser propensa, a partir da influência de más condições do meio, a desenvolver tendências perigosas para si e para o ambiente em que vive. A acepção de criança que está na base desse texto corresponde a algo desconhecido, arriscado, incontido, indomável... Além disso, atrela-se tal visão a uma perspectiva que considera o atavismo uma realidade social. Nesse sentido, se o atavismo é um fato, como a criança poderia nascer boa e inteligente, ou mesmo moralmente superior a seus pais? Faria de Vasconcelos coloca suas dúvidas acerca do fato. Uma perturbação que o acompanha é exatamente a das multidões infantis constituídas nas escolas e nas ruas.

Nessas multidões que as crianças formam entre si, nós podemos melhor estudar a lenta eclosão de suas forças, o desabrochar intenso de suas energias. É nelas e por elas que sua vida se manifesta, se define, se fortifica, finaliza, já que a existência da criança se passa praticamente inteira em meio a essas multidões (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 99).

Ora, considerando-se que, sob tal perspectiva, a criança refaz em sua trajetória o percurso que foi trilhado pela espécie, por essa lógica, a criança se assemelharia ao homem primitivo. Seria, então, contraditório afirmar que a criança tem uma essência boa, que depois será possivelmente corrompida pela sociedade. Afirmar isso é o mesmo que afirmar que o homem primitivo é moralmente superior ao homem social.

A infância e a escola em Faria de Vasconcelos

A ideia contida na teoria de Faria de Vasconcelos sobre as crianças é a de que a infância tende a imitar as ações dos demais agrupamentos humanos. Por isso ela forma pequenos grupos no grupo grande, como o desenvolvimento de afinidades eletivas, mas também com a configuração dos ciúmes e das rivalidades que perpassam o interior das equipes e as relações entre as mesmas. As multidões infantis, quando situadas nas escolas ou nos colégios, teriam características particulares. Mesmo assim, escola e colégio seriam ambientes diferentes. Na escola, as crianças passariam apenas algumas horas. No colégio (este pensado como internato), a criança permaneceriatodo o tempo. Em todo caso, Faria de Vasconcelos considera que a educação coletiva das crianças é sempre preferível ao modelo individual de ensino doméstico, até porque haveria uma psicologia coletiva da infância. E a vida mais plena da criança se manifestaria exatamente pelas massas infantis que ela integra. Isso poderia ser visto nas escolas e nos colégios, mas isso estaria também presente nos jogos infantis. Em todos esses casos, estudar a criança no coletivo é apreender algo que está para além da constituição psicológica individual: “[...] a escola é uma massa pensante, heterogênea, diferenciada, relativamente estável, da qual a psicologia é uma síntese sinérgica, superior à psicologia individual da criança. O colégio é uma massa mais homogênea, mais contínua, mais sentimental que pensante” (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 106).

Lições de pedologia e pedagogia experimentalé, provavelmente,o primeiro escrito de Faria de Vasconcelos que apresenta a educação como um estudo a ser desenvolvido sob o modelo das ciências da natureza. Esse texto é - como o próprio autor o descreve - um conjunto de lições sobre pedologia, proferidas sob os auspícios da Liga de Educação Nacional, na Sociedade de Geografia de Lisboa. Nesse trabalho, novamente a premissa inscreve-se em dada acepção de criança que supõe que a infância difere da idade adulta não apenas quantitativa, mas qualitativamente. Daí a necessidade de “[...] descer até ela” (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 190). Isso, por sua vez, implicava uma nova forma de perceber o fenômeno educativo. A escola antiga seria incapaz de reconhecer cientificamente a criança. Aqui, começa o autor sua luta e sua disputa contra os antigos métodos que povoavam aquilo que a Escola Nova viria a designar por pedagogia tradicional:

A antiga escola e a antiga ciência educativa eram o resultado de um empirismo grosseiro; as bases em que assentavam, as transformações por que passavam, partiam sempre de considerações de ordem filosófica. Os homens que se ocupavam da educação eram raras vezes homens de escola; eram filósofos, pensadores, que à força de uma generosa reflexão chegavam a elaborar um plano de cultura intelectual, às vezes um sistema inteiro de educação, uma espécie de figurino por que se deviam vestir todas as escolas e todas as crianças. Assim se explica todo o caráter artificial, verbalista, da pedagogia antiga, que, por ignorar a natureza da criança e o conjunto das condições do meio, próprias para o desenvolvimento regular, não produzia uma obra de um real alcance prático (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 191).

A pedagogia nova é assim identificadasobretudo por sua base científica, por produzir um saber específico e sistematizado acerca da natureza física e psíquica da criança; e, por decorrência, “[...] o melhor professor será aquele que melhor conhecer os seus alunos” (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 193). Essa renovada disposição dos estudos pedagógicos tinha três dimensões: 1) em primeiro lugar, o que se supunha ser o estudo científico da criança; 2) além disso, a necessidade de haver a colaboração do médico e do especialista para se diagnosticar essa criança; 3) finalmente a cooperação da família na ação escolar.

A pedologia, compreendida como ciência experimental da criança, seria a pedra de toque desse novo estudo sobre o campo da educação. Ela era um braço do que se qualificava por pedagogia experimental. A pedagogia era apresentada como uma ciência nova; e o estudo científico da criança estaria bastante atrasado. A pedologia, procurando estudar as bases científicas da natureza física e psíquica da criança, trabalha questões ligadas ao seu crescimento e desenvolvimento, ao estímulo de suas forças, à aquisição dos conhecimentos e à educação, no sentido mais amplo. Haveria - supõe o autor - relações entre o desenvolvimento intelectual e os programas de ensino. Por sua vez, o que se compreendia por educação era algo mais amplo do que a mera instrução, abarcando a formação do caráter, da personalidade e da vontade.

Como ficou ponderado, só se pode ensinar bem e com proveito quando se conhece aquele a quem se ensina. Ora, uma das causas fundamentais do insucesso da obra escolar provem de que a escola não conhece nem respeita o desenvolvimento natural do aluno. E como há-de ser ele respeitado se os professores, regra geral, não fazem ideia alguma do que seja a criança fisiológica e psicologicamente? O professor tem por missão desenvolver a inteligência, formar o caráter da criança, mas o que ele não aprende é o que é essa inteligência, esse caráter, as leis, as fases, as variedades do seu desenvolvimento. A habilitação do professorado deve obedecer a um critério diferente do que até hoje lhe tem presidido. Toda a sua preparação era determinada pelas coisas e não pelas pessoas a ensinar. O professor habilitava-se estudando o programa das matérias que tinha que ensinar. Essas bastavam porque o programa era tudo. Mas depois constatou-se que, sobrelevando as matérias que se ensinam, sobrelevando os programas, há aqueles a quem elas se ensinam, há o aluno - elemento primacial e fundamental em matéria educativa. Daí, portanto, a necessidade de o professor conhecer, além das disciplinas que tem de ensinar, aquelas que ele não deve ensinar, mas que o habilitam a estudar e a conhecer o aluno, anatômica, antropológica, fisiológica, psicologicamente e nas suas relações com o meio social em que vive. Assim habilitado a encarar o problema educativo, tanto do ponto de vista das matérias de ensino, como daqueles a quem elas têm de ser ensinadas, o professor dará ao ensino e à educação uma feição inteiramente nova, cujos resultados práticos e úteis serão de um real alcance (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 198).

Compreender a pedagogia como uma ciência que implicaria o saber fisiológico e psicológico da infância significaria assumir, entretanto, um parâmetro para se mensurar o padrão de normalidade. O que era a criança normal? Quais comportamentos, quais hábitos, quais atitudes, considerar aceitáveis e até desejáveis na vida escolar? Como medir a inteligência? Todas essas questões eram indagações da época e eram perfilhadas pelo pensamento social e pedagógico de Faria de Vasconcelos. Ele, por exemplo, ao procurar definir a inteligência, irá diferenciá-la da aptidão escolar. A faculdade intelectual seria, portanto, independente da faculdade escolar. Não são sinônimos. Aprender na escola é alguma coisa que envolve outros requisitos para além daqueles que são dados pela inteligência: “[...] para ser bem sucedido nos estudos são precisas qualidades que dependem, sobretudo, da atenção; por exemplo, uma certa docilidade, uma regularidade de hábitos e sobretudo uma continuidade no esforço” (Faria de Vasconcelos, 1986Faria de Vasconcelos. (1986). Obras completas (1900-1909) (Tomo I). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 503). Por isso, ao ensinar, é preciso dar lições de atenção, de concentração, de tenacidade, de força de vontade. Não basta apresentar o conteúdo da matéria. É necessário dispor sobre as atitudes que se deverãoter em relação ao estudo.

A hipótese que se apresenta aqui, neste artigo, é a de que, embora já houvesse sido iniciada uma discussão sobre a ciência, não era essa ainda a tônica dos estudos de Faria de Vasconcelos nessa primeira fase de sua produção. O que se compreende por pedagogia científica é ainda algo impreciso. Trata-se de uma expressão genérica para atestar a necessidade de haver um estudo minucioso sobre a realidade do aluno. Antes de tudo, é um alerta para evidenciar que o estudo do aprendizado envolve o conhecimento do estudante que estuda e não apenas do programa e da matéria que são estudados. A cientificidade da dimensão pedagógica é subordinada à sua extração social e filosófica. Trata-se, mais do que tudo, de desenvolver elementos que configuremdada a filosofia da educação. A ciência, nesse sentido, não é abstraída das condições sociais da realidade escolar. É algo bastante diferente da tônica que será dada, a propósito do tema, em outros momentos da trajetória e da produção desse autor. Seja como for, o discurso sobre a pedagogia nova se constitui, já nos seus primórdios, como um discurso sobre a ciência e sobre a produção da normalidade escolar.

Uma escola nova na Bélgica

O livro intitulado Uma escola nova na Bélgica foi elaborado a partir de um conjunto de conferências realizadas em 1915 no Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra. Ali Faria de Vasconcelos reportava-se à experiência que tivera na escola de Bierges-Lez-Wavre, na ocasião em que também lecionava na Universidade Nova de Bruxelas, na Bélgica. Essa escola teria funcionado entre os anos 1912 e 1914, tendo sido “[...] interrompida com a invasão alemã da Bélgica em 1914, o que obrigou Faria de Vasconcelos a refugiar-se na Suíça” (Marques, 2000Marques, J. F. (2000). Introdução sobre as publicações e escritos de Faria de Vasconcelos entre 1915 e 1920. In Faria de Vasconcelos. Obras completas (Tomo II, p. IX-XIII). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. X). Considera Ferreira Marques que esse livro teria sido o que maior projeção internacional teve, de toda a obra dorenomado autor. De fato, recebeu um prefácio de Adolphe Ferrière, que era professor no Instituto Jean-Jacques Rousseau e uma das principais lideranças do movimento da Escola Nova. Ferrière caracterizou a escola dirigida por Faria de Vasconcelos como uma das melhores experiências práticas do ensino renovado. Ele dava algumas razões para isso: tratava-se de um laboratório de pedagogia prática; era um internato; situava-se no campo; os alunos eram divididos em pequenos grupos; havia coeducação dos sexos; havia trabalhos manuais; praticava-se o que ele nomeava ginástica natural; eram organizadas viagens pedagógicas.

Joaquim Ferreira Gomes destaca que a escola de Faria de Vasconcelos procurava, de fato, colocar em prática “[...] os grandes princípios da educação nova, como haviam sido pensados e expostos pelos grandes teóricos desse movimento de renovação pedagógica, como John Dewey, G. M. Kerschernsteiner, E. Claparède, A. Ferrière e outros” (Gomes, 1984Gomes, J. F. A. (1984). Faria de Vasconcelos. In Estudos de história e de pedagogia (p.119-140). Coimbra, PT: Almedina., p. 122). Nas palavras de Ferrière, a Escola Nova tinha algumas especificidades, o que significava que nem todas as experiências assim concebidas poderiam de fato ser consideradas como tal:

Em matéria de educação intelectual, a Escola Nova busca abrir o espírito para uma cultural geral do julgamento, mais do que por uma acumulação de conhecimentos memorizados. O espírito crítico nasce da aplicação do método científico: observação, hipótese, verificação, lei. Realiza-se a educação integral, não como instrução enciclopédica, mas enquanto possibilidade de desenvolvimento, pela influência do meio e dos livros, de todas as faculdades intelectuais inatas na criança (Ferrière, 2000Ferrière, A. (2000). Préface de M. Adolphe Ferrière. In Faria de Vasconcelos. Obras completas(Tomo II, p.3-11). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 6).

A escola havia sido fundada em 1912 por Faria de Vasconcelos. Foi criada na Bélgica e se situava no campo. Contava com um comitê consultivo, composto por grandes autoridades no universo da Escola Nova internacional, dentre as quais Compayré, Decroly e Ferrière. A iniciativa era periodicamente registrada no Boletim dos Alunos, uma publicação redigida integralmente pelas crianças: “[...] e eles falam sobre tudo daquilo que fazem, descrevem a maneira pela qual são instruídos, relatam os principais fatos que adornaram o trimestre, tal como as excursões, as grandes experiências, as conferências, etc.” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 14). Com essa publicação, era possível se ter uma ideia do que acontecia naquela escola, quais eram as experiências que os alunos vivenciavam e das especificidades da instituição perante suas congêneres. A escola contava com 17 professores, todos eles reunidos por afinidade com o projeto que desenvolviam. A escola havia sido estabelecida no campo, mas próxima de centros industriais, posto que era relativamente próxima de Bruxelas. Diz, sobre o tema, Ferreira Gomes:

Assim, os alunos podiam seguir de perto as aplicações da ciência e da técnica à exploração da terra, visitar frequentemente fábricas e minas e visitar regularmente os museus, as exposições de escultura e de pintura, seguir de perto o movimento artístico, assistir a concertos, a representações teatrais, etc.. É que, como escreve Faria de Vasconcelos, vida no campo não significa isolamento, renúncia tolstoiana às imensas vantagens educativas e instrutivas que a grande cidade proporciona (Gomes, 1984Gomes, J. F. A. (1984). Faria de Vasconcelos. In Estudos de história e de pedagogia (p.119-140). Coimbra, PT: Almedina., p.122).

Havia asuposição, nessa iniciativa, de que a criança reproduziria, em sua história de vida, o percurso que a espécie haveria percorrido em sua trajetória. Nas palavras de Faria de Vasconcelos:

A evolução natural à qual nós fizemos alusão é a da reprodução daquela que foi percorrida pelas necessidades da espécie, quer dizer pela humanidade ela própria: ela faz reviver na criança, de uma maneira evidentemente acelerada, as fases sucessivas pelas quais passou a humanidade. É, portanto, lógico a de fazer reconstruir pela criança a história abreviada da ciência (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 42).

Por meio de tal hipótese, substituía-se uma ordem lógica da exposição da ciência por uma ordem psicológica de sua descoberta a partir da reconstrução dos fatos pela ação da criança.

E a criança que percorre essas etapas, que redescobre assim as diferentes ciências, a criança que por si mesma experimentou, agiu, pesquisou e encontrou, por sua própria conta, nos espaços que ela estudou, as experiências, as verificações e as descobertas que conduziram as ciências ao estágio de desenvolvimento onde elas hoje se encontram. Isso permitirá que ela adquira os conhecimentos de acordo com uma ordem natural e lógica e permitirá também conservá-los de uma maneira precisa, pessoal e durável (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 43).

Faria de Vasconcelos é bastante incisivo ao comparar a estrutura do modelo do que chama de ensino tradicional e a estrutura do modelo que considera ser de educação renovada, tal como ocorria em Bierges-Lez-Wavre. No ‘sistema velho’, a situação didática era a seguinte: “[...] o professor entra, se instala no púlpito e começa o interrogatório dos alunos sobre um tema que a criança tenha aprendido mais ou menos de cor. Essa é a recitação maquinal, a exposição mecânica do sujeito” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 52). A lição a ser recitada é apresentada como um conjunto que se constitui por si mesmo, dado à partida de maneira rígida e sem vida.

No ensino de Bierges-Lez-Wavre a classe é alguma coisa que não se constitui apenas na sala de aula. A classe está em qualquer lugar, e, portanto, a lição se dará em qualquer lugar. A lição, nesse sentido, é compreendida como uma construção e não como uma coisa petrificada que a criança deverá aprender de cor. Em uma aula de ciências naturais, há primeiramente preparação da classe relativamente ao plano de trabalho a ser desenvolvido: “[...] nós interrogamos; nós questionamos; nós respondemos de diferentes formas; uma discussão se trava; e tudo isso resulta em um programa determinado de atividades bem definidas” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 53). A segunda fase comporta as preparações anatômicas ou microscópicas, segundo o caso. Outrossim, então, há “[...] observações, experimentações, constatações e notas pessoais” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p.53). Trata-se de colocar em andamento o plano estabelecido a princípio. Organizam-se, em uma terceira fase, as observações efetuadas, na presença dos animais estudados, terminando por haver uma grande discussão sobre essa tomada de notas. Finalmente a última fase do trabalho é a redação. Em suma, o papel do professor não éo de agir e pensar pelos alunos. O papel do professor não éo de falar todo o tempo, em tom de explicação: apenas o conhecimento fundado sobre a experiência dos próprios alunos pode ser considerado no cômputo do ensino experimental.

Oralidade, leitura e redação: trabalho pedagógico e procedimentos didáticos

Previam-se, no método de ensino da escola de Faria de Vasconcelos, conferências ministradas simultaneamente por alunos e professores. Todo o mês, cada aluno deveria prever ministrar uma conferência sobre tema de sua escolha: “[...] essas conferências são contraditórias; nós habituamos assim o aluno não apenas a expor suas ideias em público, mas, também e, sobretudo, a enfrentar a crítica, o verificação, a discussão” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 54). Na mesma direção, o ensino não deveria se valer de compêndios: “[...] para desenvolver na criança o espírito crítico, o espírito de sistematização e criar nele hábitos de documentação e de investigação, é absolutamente necessário liberá-lo da escravatura espiritual e moral do manual” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 56). Assim, o ensino não contava com manuais não apenas porque não haveria compêndios escritos segundo o plano de estudos dessa escola renovada.Não se trataria apenas disso: “[...] nós fazemos apelo à observação, à experimentação, às pesquisas, às descobertas pessoais das crianças; o que nos interessa é o que eles fazem eles próprios, é o que eles pensam por si próprios” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 56).

O trabalho pedagógico seria registrado em um boletim, que exporia, de maneira avaliativa, os resultados dos esforços de cada aluno. Esse boletim discorreria sobre as aptidões intelectuais, morais e manuais do aluno. A ideia era a de observar de perto a criança, estudá-la para descobrir nela as tendências, os traços, os hábitos; enfim, para realizar o que Faria de Vasconcelos denomina de seu “[...] retrato psicológico” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 61). Assim, nesse boletim, mais do que o resultado dos trabalhos de classe, constaria um conjunto mais amplo de atributos e de habilidades: “[...] ordem, higiene, espírito de camaradagem, sociabilidade, franqueza, etc.” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 62). Conhecendo os critérios do instrumento, as crianças procurariam, elas mesmas, superar seus pontos frágeis, o que despertaria nelas “[...] o sentimento de justiça, o sentido da equidade, a exercer seu sento crítico, habituando-os a manejar com tato, com prudência, com deferência, mas também com franqueza e lealdade, esse instrumento de controle” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 62).

No que dizia respeito aos procedimentos didáticos adotados para o ensino da língua materna, a premissa de Faria de Vasconcelos era a de que, na escolarização, “[...] falar é tão necessário quanto escrever” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 92). A criança tem na fala um meio de expressão natural, e é falando que ela transmite ideias, sensações e sentimentos. É preciso que a escola ensine-a a bem falar, a se exprimir com clareza e com correção. Mas, para tanto, é fundamental que a escola deixe de ser silenciosa; é preciso exercitar a criança na verbalização: “[...] a linguagem e a dicção são meios excelentes de cultura da língua natural e nós lhes damos muita importância desde o começo. Fazer a criança falar é para nós um dos meios de fazê-la agir” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 93). E quais seriam as estratégias de ensino para se colocar a criança para falar? Como se organizar didaticamente essa experiência da fala?

O trabalho em sala de aula contaria, antes de tudo, com descrições e narrações orais, livre e espontaneamente conduzidas pelas crianças, “[...] tendo por objeto os fatos, os acontecimentos, as coisas da vida pessoal, da vida escolar, da vida social da criança” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 93). Além disso, seriam realizadasconferências nas classes ou diante de toda a escola e na presença dos pais, nas quais os alunos discorreriam sobre trabalhos, experiências e excursões, com o fito de serem habituados a falar em público. Os alunos ainda fariam jograis a propósito de fábulas ou de contos lidos, sendo que cada um representaria um personagem. A classe travaria periodicamente discussões sobre assuntos diversos e os alunos deveriam ser sempre instados a participar oralmente. Ocorreriafinalmente recitação de leitura, em voz alta, de obras em prosa e em poesia.

A partir dessa convocação à fala, viriaa seguir o convite sempre à leitura:

‘As seções de leitura’: as crianças amam muito ouvir a leitura, ouvir contar uma história. E muitos preferem escutar mais do que ler eles mesmos; a voz, o gesto dão mais vida à ação. Para desenvolver esse gosto, nós temos nossas sessões de leitura: a) a hora do conto, após o almoço para os pequenos; b) as leituras da tarde, para as crianças maiores.

‘A leitura em classe’: é um fato que nossas leituras não se limitam a essas sessões. Em classe, nós procedemos a leituras em relação aos sujeitos dos diferentes campos do ensino. E então elas tornam-se, mais especialmente, exercícios, com explicações e comentários em relação com a idade e o conhecimento dos alunos, comentários que têm por finalidade o estudo da gramática, da composição, dos gêneros literários, etc.

‘A escolha dos livros’: A escolha de livros é certamente um problema delicado. Há tantos fatores que podem determinar a escolha de um livro e existem relativamente poucos livros respondendo plenamente ao objetivo buscado... Ao lado dos clássicos e dos modernos do país e do estrangeiro, nós temos a literatura escrita para a juventude: contos, lendas, romances, viagens, ciência, etc. (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p.94, grifo do autor).

Além do fomento à fala e à leitura, havia o estímulo à redação. A redação na escola, para o autor, teria dois modelos: o primeiro seria estimular que as crianças escrevessem sobre suas próprias experiências, sobre seus relatos de vida, escolar e pessoal. Os temas dessas redações “[...] seriam escolhidos livremente pelos alunos, ou pelos professores com os alunos, ou ainda pelo professor com a classe” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 96). O outro modelo de redação seria composto quando o professor deixasse a criança “[...] contar livremente, a seu modo, aquilo que ela vê, aquilo que ela faz e aquilo que ela pensa, permitir a manifestação de sua iniciativa, a expressão de sua pessoa, não lhe demandando nem impondo um estilo literário” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 96), e isso com a finalidade de que ela redigisse livre de clichês e refletindo com sinceridade sobre suas aptidões e seu gosto, com o intuito de formar, inclusive,o tal gosto...

Os alunos teriam, também para formar seu estilo e a habilidade da escrita, um boletim impresso na escola, a partir do qual eles se habituariam a desenvolver por escrito suas ideias. Diziam os alunos que, nesse boletim, “[...] nós falamos, sobretudo, daquilo que nós fazemos, nós descrevemos o modo pelo qual nós nos instruímos, nós relatamos os principais fatos ocorridos no trimestre, como as excursões, as grandes experiências, as conferências, etc.” (apud Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 102). As redações do boletim deveriam ser livres e pessoais e teriam por objetivo dar a conhecer a vida na escola sob todos os seus aspectos.

Apostando na elocução, na leitura e na redação, a escola não fazia questão de desenvolver o estudo teórico da gramática, considerado por demais abstrato. Compreende-se que as formas gramaticais seriam elementos vivos e, assim, deveriamser tratados por observação e por indução. Faria de Vasconcelos diz que não se estuda a gramática pela gramática, mas que é necessário que ela esteja em plena interlocução com o estudo simultâneo da forma, do sentido e do emprego da palavra. Isso deslocava, de alguma maneira, os estudos da morfologia e da sintaxe: “[...] os exercícios de elocução, de leitura, de composição, familiarizam a criança com o sentido, a forma e o som das palavras, criando associações visuais, auditivas e motoras, facilitando a aprendizagem da ortografia” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 103).

Faria de Vasconcelos é absolutamente contrário às “[...] fórmulas secas, às nomenclaturas áridas” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 103), que não são pedagógicas e não partem, em hipótese alguma, do interesse da criança. A ideia é a de que o método de ensino possui uma dimensão de formação moral. Portanto, mais do que técnica científica, trata-se de um elemento que promoverá a solidariedade humana. O trabalho intelectual envolve a relação da criança com seu ambiente social e, por causa disso, ele requer consciência das relações que ali se travam. Todos os “[...] fatos e gestos de sua vida particular são igualmente funções da vida social” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 120). No ensino da geografia, por exemplo, não se trata de colecionar nomes abstratamente:

O que interessa, o que apaixona, é ver as ações e reações recíprocas dos seres e da natureza, seus esforços, suas lutas, suas harmonias, suas oposições, suas vitórias. Ora, os fatos geográficos apreendidos neles mesmos não oferecem interesse algum. É necessário torná-los vivos, animá-los, não isolá-los do conjunto de condições de seu meio envoltório. O que é um rio, uma montanha, um mar, uma cidade, um país, um povo? Nada além de uma etiqueta, um nome, se por detrás dele a criança não reconhecer a realidade, a vida, o movimento, a emoção. É imprescindível que ela sinta tudo que se passa nisso, tudo o que está em jogo nas relações da natureza com o homem. A leitura de relatos de viajantes reais ou fictícios constitui um admirável guia para todas as explorações geográficas. É importante que a criança não permaneça mais passiva, mas que, por empatia, interesse-se pela vida da terra (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 106-107).

O self-government e a originalidade do sistema pedagógico de Faria de Vasconcelos

A maior ousadia da escola de Faria de Vasconcelos era, entretanto, o princípio do self-government. Esse conceito vinha diretamente derivado de uma concepção de vida moral, da convicção de que “[...] a virtude não é, de fato, uma lição que nós possamos aprender de cor. Ela se adquire, se conquista pelo exercício, pela experiência, pelo uso pessoal da liberdade. Ela deriva da posse, do domínio de si” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 125). O ser moral não será, portanto, suscitado na criança pela coerção, pela violência ou por ‘sanções artificiais’. Seria, para o autor, fundamental que fossem suprimidas as “[...] punições, sempre degradantes e humilhantes, bem como essa disciplina autoritária, mecânica, que regula cada ato, cada gesto da criança e que não consegue fazer dela nada além de uma máquina inconsciente e passiva, que executa sem pensar e sem sentir a regra imposta” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 125).

O self-government, a que se refere o texto Uma escola nova na Bélgica, seria algo que ia na contramão do ensino tradicional. A proposta era ade a criança viver plenamente o meio social e aprender por ela própria a se autocontrolar; a disciplinar suas forças; e a canalizar suas tendências. Para que as crianças se reconheçam como membros de uma coletividade, é preciso que, de alguma maneira, elas se sintam partícipes na elaboração das regras que norteiam o ambiente coletivo. As bases firmadas para esse autogoverno, segundo Faria de Vasconcelos, são os seguintes:

A organização de um quadro de regras, de atividades de usos e de costumes conforme a higiene física e moral e solidamente disposta; a criação de um espírito verdadeiramente social, em meio a uma divisão do trabalho racionalmente estabelecida e de uma cooperação efetiva e real da criança na vida da escola. Trata-se daquilo que permite praticar a vida social e adquirir pouco a pouco o sentimento da vida coletiva (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 126).

O procedimento maior utilizado para o self-government era a assembleia dos alunos, as quaisversavam sobre numerosos temas: compra de livros, organização de equipes e horários de trabalho, aparelhamento e funcionamento dos diversos ateliês e laboratórios, direção dos trabalhos, disposição dos jogos, redação do boletim da escola etc. Assim, a autonomia dos estudantes era configurada a partir da vivência, do exercício da liberdade, mas também da responsabilização sobre o trabalho a ser empreendido. Cada um seria encarregado de um conjunto de tarefas, sendo que a elaboração das regras teria sido previamente partilhada com o conjunto dos estudantes, que votariam suas próprias leis e escolheriam seus próprios representantes, incluindo a direção da escola e o conselho dos pais. A perspectiva que ancora essa metodologia se expressa na crença de que se obedece melhor à s regras que se ajuda a produzir e que especialmente as normas que emanam do grupo de colegas são aquelas que mais facilmente são respeitadas.

Considerações finais

Pelas razões acima expostas, e buscando desenvolver a iniciativa, a independência, o interesse, a curiosidade e o senso de responsabilidade dos alunos, Faria de Vasconcelos fez com que, em sua escola, fosse “[...] proscrita toda disciplina autoritária que pretenda impor à criança hábitos morais, dos quais eles não entendem nem a razão nem o objetivo” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 130). Ao contrário disso, o que se buscava era criar uma ‘regra interior’, que viesse a ser o corolário das experiências vivenciadas pelo estudante na vida escolar, vida essa que se construiria junto aos colegas e aos professores. Pode-se, pois, dizer que a liberdade era o grande preceito que norteava a organização da escola: “[...] liberdade de ir e vir, liberdade de fazer, de criar, de organizar, de investigar, de dispor de tudo o que a escola coloca à disposição do aluno” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p. 130). O educando, assim habituado à liberdade, aprenderia a usufruir desta - sem abusar de sua condição de ser livre.

Na escola de Bierges-Les-Wavre, por coerência, o professor era apenas o “[...] companheiro mais velho” (Faria de Vasconcelos, 2000Faria de Vasconcelos. (2000). Obras completas(1915-1920) (Tomo II). Lisboa, PT: Fundação Calouste Gulbenkian ., p.132). Ele deveriaexercer sobre os alunos um processo de persuasão, tendo em vista internalizar nas crianças o valor do self-government. Tratava-se de um deslocamento nítido da centralidade do processo educativo, que passaria do professor para o aluno, do conteúdo para o método, da autoridade para a liberdade. A Escola Nova de Faria de Vasconcelos daria efetiva consequência aos princípios primeiros do movimento. No Uma escola nova na Bélgica, Faria de Vasconcelos centraria sua reflexão sobre as questões dos modos de fazer, das maneiras de ser do ensino-aprendizado. Cada vez mais, concebia-se um modelo de educação no qual o aluno fosse convidado a descobrir por si próprio o conteúdo do ensino prescrito. Em Faria de Vasconcelos, ao menos nessa primeira etapa de sua produção, ficaram absolutamente evidenciadas as críticas ao modelo do que era então considerado pedagogia tradicional e a proposição de uma escola renovada, de acordo com os princípios da pedagogia nova. Os preceitos da liberdade e da autonomia davam o tom de uma escola ativa, calcada sobre a possibilidade do autogoverno da criança. Isso significava preparar a sociedade democrática pelo próprio exercício da democracia no interior do chão da classe.

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    Como citar este artigo: Boto, C. Faria de Vasconcelos e a Escola Nova em Portugal: do self-government à educação científica. (2019).Revista Brasileira de História da Educação, 19. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e092
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    Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2019
  • Aceito
    16 Set 2019
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